Crimes de Agrotóxicos Autor: Paulo Afonso Brum Vaz |
Sumário: 1. Introdução. 2. Análise do delito previsto no art. 15 da Lei n º 7.802/89. 3. O contrabando de agrotóxicos: enquadramento típico, conflito de normas e incongruências da legislação. 4. Competência para o crime de contrabando de agrotóxicos e delitos conseqüentes. 5. Conclusão. 1. Introdução A pirataria com agrotóxicos é prática comum nos Estados do sul, com tendência para se espraiar por todo o país. Contrabando, furto, roubo(1) e falsificação(2) possibilitam a venda e o uso de agrotóxicos sem o necessário receituário agronômico. Burlando as exigências legais e sem controle técnico, o produto tóxico é utilizado com prejuízo à saúde pública e ao meio ambiente. Os piratas das lavouras agem principalmente entre os municípios situados nas fronteiras. Produtos proibidos no Brasil são internalizados de forma ilegal (sem registro nos Ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Saúde), vindos da Argentina, do Uruguai e do Paraguai. Relatório elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente informa que um dos mais letais venenos já fabricados pelo homem, o DDT – inseticida proibido no Brasil desde 1985 –, continua sendo aplicado em lavouras brasileiras. Parte estaria sendo contrabandeada do Paraguai e parte seria fruto de desvio de estoques do próprio governo brasileiro (o Brasil importou 3 mil toneladas desse produto para uso contra a malária na Amazônia, entre 1990 e 1995). O DDT afeta os sistemas imunológico e neurológico de seres humanos e, por isso, está proibido em 40 países. Na Suíça, por exemplo, desde 1939. Nos EUA, desde 1972. É comum na região da fronteira gaúcha, especialmente com o Uruguai, nas cidades de Chuy, Rivera, Jaguarão e Livramento, a aquisição de agrotóxicos proibidos no Brasil. No Chuy, basta que se atravesse a rua para adquirir (contrabandear), sem qualquer problema, herbicidas de várias marcas desprovidos do tríplice registro e, portanto, ilegais no Brasil. O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola (SINDAG) atesta que a comercialização de agrotóxicos pirateados movimenta no Brasil, por ano, cerca de US$ 20 milhões. O problema do contrabando de agrotóxicos ocorre e tende a se agravar, porque existe um desnível legislativo na área da proteção ambiental e da saúde pública entre os países que compõem o Mercosul, notadamente no concernente aos agrotóxicos. Se analisarmos comparativamente as legislações sobre agrotóxicos dos quatro países que formam o bloco regional do Mercosul, vamos constatar que o Brasil é o país que possui a normatividade interna mais avançada e protetora da saúde humana e do meio ambiente. Na Argentina, a regulamentação dos agrotóxicos é feita por Resolução que delega o registro, o controle e a fiscalização ao Ministério da Agricultura e Pecuária daquele país. A avaliação da toxidade para a saúde humana para ingredientes ativos novos é feita com base em um parecer emitido por um especialista ad hoc credenciado, sendo adotado o sistema de registro por equivalência. No Uruguai, o sistema é precário. As avaliações são feitas com base no Decreto nº 149, de 15 de março de 1977, que estabelece a necessidade de registro e quais as informações devem ser prestadas. Não há avaliação ecotoxicológica e, sobre a toxidade para os seres humanos, as informações solicitadas, a serem avaliadas pelo Centro de Información y Asesoramiento Toxicologico – CIAT, são insuficientes. No Paraguai, o sistema de registro é ineficaz e feito com base na RES/MAG 1000/94, que admite o registro do produto no local de origem, sem qualquer ressalva quanto à utilização no país.(3) É certo que a assinatura do Tratado de Assunção, que instituiu o chamado “Mercosul”, impõe um repensar da matéria e o dever de harmonização das leis internas pelos países-membros. A prática ilícita é estimulada pelo reduzido custo dos agrotóxicos de origem estrangeira em relação aos similares nacionais. Em certos casos, esta diferença chega a 300%. A atraente diferença entre os valores, que se soma à facilidade da aquisição dos produtos no mercado internacional, acentuada pela fiscalização quase que inexistente, impulsionam o crescimento do contrabando de agrotóxicos no país. O IBAMA tem realizado operações de fiscalização e repressão e autuado inúmeros produtores rurais, mas a imensidão de nossas fronteiras e também das zonas rurais não permite uma fiscalização mais efetiva. Da mesma forma, a Polícia Federal e as Polícias Civil e Militar dos Estados do Sul têm reprimido o contrabando e a falsificação, efetuando inúmeras apreensões, sem, no entanto, conter a prática delituosa, que encontra campo fértil para proliferar. No último dia 15 de agosto, a Polícia Federal desmantelou uma organização criminosa que falsificava e contrabandeava agrotóxicos, atuando no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Goiás. A operação, nominada de Caá-Ete (nomenclatura indígena que, em guarani, significa Mata Nativa), prendeu 28 (vinte e oito) suspeitos, entre eles policiais civis, funcionários públicos e empresários, em decorrência de mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça Federal, Subseção de Carazinho/RS. Segundo se suspeita, o grupo comercializava mensalmente cerca de cinco toneladas de agrotóxicos, movimentando R$ 1,5 milhão, aproximadamente. Boa parte dos produtos era introduzida no país por Ciudad Del Este, no Paraguai, ou por Rivera, no Uruguai. Pretende o presente trabalho examinar a problemática sob o enfoque do direito penal, com ênfase especial para o art. 15 da Lei nº 7.802/89, num primeiro momento, e, depois, para a matéria tormentosa do contrabando de agrotóxicos e seu enquadramento penal; por fim, será objeto de apontamentos a não menos complexa questão da competência para o julgamento dos delitos respectivos. O art. 16 da Lei nº 7.802/89 será objeto de outro estudo. 2. Análise do delito previsto no art. 15 da Lei n º 7.802/89 Dispondo a Lei nº 9.605/98 “sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”, surgiu a preocupação de saber se aquele diploma revogou completamente a legislação anterior que cuida da disciplina penal dos agrotóxicos. No que interessa ao presente trabalho, urge ressaltar que a polêmica existente acerca da sobrevivência do delito previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89, a despeito de a nova lei ambiental trazer em seu bojo tipo penal (art. 56)(4) que reproduz condutas semelhantes às descritas na Lei dos Agrotóxicos, restou resolvida a partir do advento da Lei nº 9.974, de 06.06.2000, que, inclusive, deu nova redação ao artigo 15 referido.(5) Vladimir e Gilberto Passos de Freitas (Crimes Contra a Natureza, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 188/189) observam que, “muito embora a redação desse tipo penal se assemelhe à do art. 15 da Lei nº 7.802/89, nele não há qualquer menção expressa a agrotóxicos, seus componentes e afins. Ora, a conclusão a que se chega é de que o art. 15 da Lei nº 7.802/89 foi preservado. E tanto é verdade que a Lei nº 9.605/98 não faz qualquer menção, explícita ou implícita, ao outro crime da Lei nº 7.802/89, ou seja, à conduta prevista no art. 16 para aqueles que deixam de promover medidas necessárias à proteção da saúde ou do meio ambiente. Não será demais lembrar que a Lei nº 7.802/89 é especial, pois cuida apenas de agrotóxicos, e, por isso, não pode ser considerada revogada pelo art. 56 da Lei nº 9.605/98, regra geral. A propósito, Assis Toledo lembra que ‘considera-se especial (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da geral (lex generalis) e mais o elemento especializador. Há, pois, na norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral’. Continuam, pois, em vigor os dois tipos penais da lei de agrotóxicos (arts. 15 e 16), tratando o dispositivo ora em exame de outros produtos ou substâncias tóxicas diversas”. Sendo inequívoco que o delito previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89 persiste intacto no ordenamento jurídico, cumpre-nos levantar agora alguns problemas que essa constatação suscita. Primeiro, sobre a aplicação dos benefícios previstos na Lei nº 9.099/95 aos crimes da Lei dos Agrotóxicos. Consulte-se a redação do art. 89 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que permite a suspensão da ação penal nos casos de delitos com pena mínima igual ou inferior a 1 (um) ano, ou o art. 76, que prevê a transação penal, aplicável ao crimes de menor potencial lesivo (pena máxima não superior a 2 (dois) anos).(6) Essas medidas de despenalização, embora perfeitamente aplicáveis aos delitos da Lei nº 9.605/98 (arts. 27 e 28), não podem ser adotadas na hipótese do cometimento do crime previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89, pois a pena mínima é de 2 anos e a máxima de 4 anos. Assim, quem agride o meio ambiente, utilizando-se de substância tóxica diversa, incidindo na vedação do art. 56 da Lei nº 9.605/98 (delito assemelhado), terá o benefício do sursis processual, ainda que o produto possa ser mais agressivo do que o agrotóxico. Somente por essa constatação já se percebe que estamos necessitando de atuação legislativa que adapte o tipo penal da Lei dos Agrotóxicos ao novo contexto jurídico da matéria ambiental. A possibilidade de transação penal, com a obrigação de reparar o dano ambiental, é medida de alta relevância em matéria de delitos ambientais, como instrumento de proteção direta do bem jurídico tutelado, dispensando a propositura de uma demanda na seara cível. É certo que, não obstante inviabilizado o acordo para composição do dano (que não precisa ser prévia, consoante entende a melhor doutrina), a sentença poderá, com base no art. 20 da Lei nº 9.605/98, impor ao condenado pela prática do delito do art. 15 da Lei nº 7.802/89 a obrigação de reparar o dano ambiental, se houver. De qualquer sorte, o art. 91, I, do CP dispõe que é efeito automático da condenação tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, e o art. 584, II, do CPC refere que a sentença penal condenatória transitada em julgado constitui título executivo. Há uma outra observação a ser feita. O princípio da especialidade não impede que alguém que manipule agrotóxicos possa cometer os demais delitos previstos na Lei nº 9.605/98. Quem, por exemplo, se ponha a lavar, à beira de rios e lagos, os tanques de aviões utilizados para a aplicação de agrotóxicos nas lavouras – e isso é problema corrente, que muitos danos tem trazido ao meio ambiente – poderá estar cometendo os delitos previstos nos artigos 33 ou 54 da nova lei ambiental. Não se pode perder de vista que, em matéria ambiental, a Lei dos Agrotóxicos sobrevive apenas como norma especial, punindo a conduta de quem produza, comercialize, transporte, aplique, preste serviço ou dê destinação a resíduos ou embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, descumprindo as exigências das leis e de seus respectivos regulamentos. Qualquer conduta que exceda os limites expressamente fixados pelo legislador pode se converter imediatamente em crime tipificado na Lei nº 9.605/98. Poderá parecer demasiadamente óbvia essa constatação. Acontece que as normas jurídicas se prestam às mais variadas interpretações. Não seria impossível que uma pessoa acusada por estar lavando tanques de aviões à beira de um rio viesse alegar em juízo, por exemplo, que sua atividade (de manipulação de agrotóxicos) não encontrava óbice na lei específica dos agrotóxicos. É hora, então, de examinarmos o artigo 15 da Lei nº 7.802/89 (com a redação que lhe deu a Lei nº 9.974, de 06.06.2000). 2.1. Tipo penal “Art. 15. Aquele que produzir, comercializar, transportar, aplicar, prestar serviço, der destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, em descumprimento às exigências estabelecidas na legislação pertinente estará sujeito à pena de reclusão de dois a quatro anos, além de multa”. 2.2. Objeto jurídico Gilberto Passos de Freitas observa que, “para encontrar qual o bem jurídico protegido em qualquer tipo penal, deve o intérprete ou o aplicador do Direito colocar-se em posição que lhe permita analisar o delito numa perspectiva sociológica e constitucional, procurando compreender as razões que levaram o legislador a tipificar determinadas condutas”. (7) No caso do delito em questão, é desnecessário indagar-se acerca do propósito do legislador. O próprio diploma legal, quando, no seu art. 14, trata da responsabilidade civil, refere-se expressamente à saúde das pessoas e ao meio ambiente. São esses, portanto, os bens jurídicos protegidos pelo tipo penal transcrito. O delito é pluriofensivo, pois ofende, ao mesmo tempo, dois bens jurídicos. Meio ambiente, conforme definição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, é o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, I). “Saúde pública”, de sua vez, na lição de Helita Barreira Custódio, “é expressão usada para indicar o estado de sanidade da população de um país, de uma região, de uma zona ou de uma cidade. Em seu amplo sentido jurídico, em princípio, considera-se saúde um bem público de interesse nacional, caracterizado pelo estado de pleno bem-estar físico e biológico, psíquico ou mental, social (em seus diversos aspectos educacionais, econômicos, familiares, espirituais, morais), cultural e ambiental da pessoa humana, individual e coletiva e publicamente considerada”. (8) 2.3. Ação nuclear O delito do art. 15 da Lei dos Agrotóxicos enquadra-se dentre os crimes de ação múltipla, aqueles cujo tipo contém várias modalidades de condutas, em diversos verbos, qualquer deles caracterizando a prática de crime. Evidentemente, quem realiza mais de um dos núcleos que compõem o tipo penal comete apenas um delito. Vamos analisar, em breves linhas, estas condutas. Produzir é originar, criar, fazer surgir a substância agrotóxica, seus componentes ou afins. São comuns as manipulações e misturas de fórmulas de agrotóxicos visando a dar maior potencialidade e/ou rendimento ao produto. A alteração de quaisquer das propriedades originais do agrotóxico, propriedades estas que foram avaliadas no ato do registro e que constarão necessariamente das prescrições, das recomendações do fabricante, do receituário agronômico e da bula do produto, equivale a produzir ou dar origem a um novo produto à revelia das determinações legais. Assim, o ato de produzir não é próprio do fabricante, podendo ser praticado por qualquer pessoa que se proponha a dar origem a uma substância que se enquadre no conceito amplo de agrotóxico. Comercializar é pôr em circuito comercial. Quanto a este aspecto, mostra-se irrelevante, a nosso ver, que o comércio da substância agrotóxica seja feito por comerciante regularmente constituído ou não. Também o chamado comerciante irregular – e mesmo o de fato - pode ser sujeito ativo do delito. Aqui, pode-se destacar a conduta de quem vende ou expõe à venda agrotóxicos, seus componentes e afins, sem que na embalagem constem os rótulos próprios e bulas, redigidos em português e contendo os dados previstos no art. 7º da Lei nº 7.802/89. Ficou excluída do tipo a conduta de quem cede a título gratuito, que se enquadrará na letra do art. 56 da Lei nº 9.605/98. Este admite como elemento descritivo do tipo a equivalente conduta de fornecer . Transportar é conduzir ou levar de um lugar para o outro. O transporte pode ser interno ou externo, circunstância que pode alterar a competência para o julgamento do crime respectivo. Pouco importa a natureza da pessoa (física ou jurídica) que transporta o agrotóxico. O que interessa, para a verificação da adequação da conduta típica, é o fato de a substância estar sendo transportada sem observância da legislação de regência. Aplicar é utilizar, de qualquer forma (manualmente, com auxílio de máquinas ou por via aérea), o produto agrotóxico, seus componentes e afins. Prestar serviços diz respeito às atividades das pessoas físicas e jurídicas que executam o trabalho de prevenção, destruição e controle de seres vivos, considerados nocivos, aplicando agrotóxicos, seus componentes e afins. Dar destinação ilegal a resíduos e embalagens vazias é descumprir, dentre outras, especialmente as novas disposições acrescentadas pela Lei nº 9.974/2000, que disciplinam o fracionamento e a reembalagem de agrotóxicos, seus componentes e afins, e que impõem aos usuários o dever de efetuar a devolução das embalagens vazias dos produtos aos estabelecimentos comerciais em que foram adquiridos, no prazo de até um ano, contado da data da compra. O primeiro ponto a salientar é que o vocábulo descumprir compreende tanto a conduta de quem não esteja autorizado a manipular agrotóxicos quanto a de quem, embora com autorização regular emitida pelos órgãos públicos, venha a utilizar o produto em desconformidade com as instruções estabelecidas nas leis e nos seus respectivos regulamentos. Comete o delito, portanto, o produtor que introduz no mercado produto não avalizado previamente pela Administração Pública, quem, nas mesmas circunstâncias, o comercializa e o usuário que aplica a substância agrotóxica ou afim sem observar as prescrições do profissional habilitado – engenheiro agrônomo ou técnico agrícola. Do mesmo modo se dá com o prestador de serviço, que deve não apenas respeitar as prescrições legais e regulamentares, mas também observar as exigências técnicas feitas para a utilização de agrotóxicos, seus componentes e afins. O cumprimento das exigências técnicas, aliás, é obrigatório para qualquer das condutas definidas no tipo, especialmente, diríamos, por parte de quem transporta, utiliza e/ou presta serviço. Não obedecer às instruções dos profissionais habilitados será o mesmo que descumprir as exigências estabelecidas nas leis e nos regulamentos . Sabe-se que o transporte e o uso de agrotóxicos devem ser feitos com o máximo de cuidado. Manipular os produtos e preparar as misturas ao ar livre e em ambiente ventilado, evitar a presença de pessoas desprevenidas nos locais de manipulação, impedir a contaminação do ambiente e dos locais por onde transitam os veículos que transportam agrotóxicos são, por exemplo, medidas que devem ser observadas, de modo especial pelo prestador do serviço (que aplica diretamente o agrotóxico) e pelo transportador. Um número infindável de condutas pode aperfeiçoar o delito, e seria tarefa impossível descrever todas elas. Convém destacar, dentre as diversas situações de descumprimento de proibições legais, as mais ocorrentes. A primeira exigência a ser observada, prevista na própria Lei nº 7.802/89, trata da necessidade de aprovação prévia do produto agrotóxico em três órgãos distintos da Administração, vinculados aos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente. Quem produz agrotóxico sem estar previamente autorizado a fazê-lo, portanto, comete o crime. Incorre também na infração penal em exame o usuário ou o prestador de serviços que adquire o agrotóxico sem a necessária receita, bem assim o comerciante que efetua a venda. Mesmo que adquirido o produto mediante receituário agronômico, sua aplicação em desconformidade com a receita implicará conduta criminosa, a ser cometida tanto pelo usuário que faz a aplicação, como pelo prestador do serviço por aquele contratado. O comerciante, o usuário ou o prestador de serviços que fracionam o produto agrotóxico ou dão destinação não cogitada na lei a resíduos ou às embalagens vazias incidem também na regra penal proibitiva do art. 15. Comete o crime do art. 15 o usuário e/ou prestador de serviços que abandona as embalagens vazias em local inadequado e deixa de devolvê-las ao comerciante, como determina a lei. O prestador de serviços e o comerciante que entram em atividade sem providenciar o registro nos órgãos municipais ou estaduais, tal como exige o art. 4º da Lei nº 7.802/89, praticam o delito em questão. De igual sorte, o usuário que contrata o prestador de serviço não registrado, em concurso de agentes com este. Comete o delito do art. 15 o transportador de agrotóxicos que faz o transporte em desacordo com as recomendações legais, deixando, por exemplo, de providenciar o acondicionamento necessário ou o fazendo juntamente com alimentos ou animais. 2.4. Sujeito ativo Em princípio, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime. Basta que pratique uma das condutas descritas no tipo penal, descumprindo as exigências estabelecidas nas leis e nos seus respectivos regulamentos. A lei, em nenhum momento, qualifica a pessoa do agente. A atenção do legislador dirigiu-se ao ato praticado, independentemente de quem o pratica. Trata-se, assim, de crime comum .O sujeito ativo pode ser a pessoa física ou jurídica. Parece inequívoco que o profissional que emite o receituário agronômico, porque não tem entre suas atribuições profissionais qualquer uma das condutas incriminadas (produzir, transportar, comercializar, aplicar, prestar serviços e dar destinação final às embalagens), em princípio, não comete o delito em questão. É possível a ocorrência do concurso de agentes. Por exemplo, entre o usuário e o prestador de serviços, entre o comerciante e o usuário, entre o comerciante e o prestador de serviços, bastando que se aperfeiçoe qualquer uma das hipóteses do art. 29 do CP. 2.5. Sujeito passivo Nos crimes ambientais, o titular do bem jurídico protegido é a coletividade. A proteção ambiental é medida de interesse coletivo. O direito ao meio ambiente sadio, com sede constitucional (art. 225 da CF), encontra-se entre os interesses difusos da sociedade. Sendo de natureza eminentemente pública, prevalecem sobre os interesses de natureza privada, quando mais não fosse porque a preservação ambiental é fator essencial para, em última instância, assegurar a existência da vida em sociedade. Lembre-se, a propósito, que o art. 225 da Constituição Federal erige o meio ambiente à categoria de bem de uso comum do povo. Quem comete delito ambiental, portanto, ofende primeiramente os interesses da coletividade. O delito analisado, no entanto, pode atingir também bens e interesses das pessoas jurídicas de direito público interno. São bens da União Federal, por exemplo, “os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais” (art. 20, III, CF). Essa constatação tem importância para a análise de eventual problema de competência. Por fim, quanto a este tópico, convém lembrar que, sendo pluriofensivo, o delito previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89 tutela também a saúde pública. O uso ilegal de agrotóxicos, seus componentes e afins, a par dos prejuízos ambientais, é potencialmente causador de sérios danos à saúde das pessoas. 2.6. Elemento subjetivo O delito admitia tanto a forma dolosa quanto a culposa. Ainda que não concordando com a solução legal, parece que, a partir do advento da Lei nº 9.974/2000, desaparece a forma culposa. Vale dizer: comete o crime apenas o agente cuja vontade esteja dirigida à prática da conduta tipificada. O assunto é elementar, dispensando, desse modo, maiores comentários, senão para dizer que o dolo no caso é genérico (de dano ou de perigo), não exigindo um objetivo específico, particularizado. Parece-nos perfeitamente possível reconhecer a figura do dolo eventual ou indireto na conduta do agente que, praticando qualquer das ações recriminadas, assume o risco de obter o resultado. Nos termos do art. 18, I, parte final, do CP, age com dolo eventual quem “assume o risco” de produzir o resultado. O agente prevê o resultado como possível de suceder e aceita ou consente com sua ocorrência. Vale lembrar que não basta a simples representação do evento (teoria da representação); exige-se que seja este alcançado pela vontade. Mas não de forma direta, como no dolo direto, determinado, e sim de maneira indireta, tolerando-o, anuindo com a sua superveniência, consentindo em sua produção, enfim, sendo-lhe indiferente a ocorrência ou não do resultado previsível. (9) Não será difícil evidenciar, por circunstâncias e indícios, que o agente, ao manipular agrotóxicos ao arrepio das normas legais, como, por exemplo, ao usar produto de contrabando, é conhecedor do risco que estará infligindo aos bens jurídicos tutelados pela norma penal (o meio ambiente e a saúde das pessoas) e, assim, aceitando a realização de uma conduta que sabidamente é de elevado risco. A reiteração da conduta, a longa experiência, as advertências recebidas e outras circunstâncias poderão evidenciar o dolo eventual . O fato de se tratar de delito formal, que não exige qualquer resultado naturalístico, aperfeiçoando-se com a mera ação ou omissão do agente, não deve constituir óbice à incidência do dolo eventual. Consoante ensina Damásio E. de Jesus, “No dolo de perigo o agente não quer o dano nem assume o risco de produzi-lo, desejando ou assumindo o risco de produzir um resultado de perigo (o perigo constitui resultado). Ele quer ou assume o risco de expor o bem jurídico a perigo de dano (dolo de perigo direto e dolo eventual de perigo)”. (10) 2.7. Consumação O crime se consuma quando o agente produz, comercializa, transporta, aplica ou presta serviço na aplicação ou dá destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, descumprindo as exigências estabelecidas na legislação pertinente. A consumação, é preciso afirmar, dá-se com o simples descumprimento das exigências legais e regulamentares. Trata-se de delito formal , que não exige qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente. Não sendo relevante o resultado material, há ofensa (de dano ou de perigo) presumida pela lei diante da prática da conduta. É, dessarte, crime de perigo abstrato ou presumido. A própria lei presume (juris et jure) que a conduta do agente é perigosa. Cuidando-se da tutela da saúde humana e do meio ambiente, assume relevante importância a técnica de incriminação consubstanciada nos crimes de perigo, consagrando uma espécie de tutela penal preventiva ou inibitória, que se antecipa ao evento danoso aos bens jurídicos tutelados. O delito guarda, pois, consonância com a política de prevenção do dano ambiental. Em matéria de meio ambiente, o mais importante é prevenir o dano. O tipo contém norma penal em branco, que se expressa pela necessidade de cumprimento das exigências estabelecidas nas leis e nos seus regulamentos. A técnica de incriminação baseada em norma penal em branco constitui garantia de flexibilização da norma incriminadora, possibilitando a sua adaptação às novas situações e avanços técnico-científicos disciplinados por atos normativos administrativos submetidos a processo legislativo mais célere e consentâneo com o interesse público, circunstância que confere à norma maior efetividade. Vale lembrar que na denúncia, em caso de enquadramento nos delitos da Lei dos Agrotóxicos, que constituem normas penais em branco, não é indispensável a indicação da norma complementar integrativa do tipo penal, bastando a descrição da conduta nela vedada. Consulte-se, a propósito, o precedente do STJ: “PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. LEI Nº 7.802/89. NORMA PENAL EM BRANCO. AÇÃO PENAL: INDIVISIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE. Na hipótese de denúncia pela prática de crime fundado em norma penal em branco, como os previstos nos arts. 15 e 16 da Lei nº 7.802/89 – aplicação de agrotóxicos, sem o uso de medidas de proteção ao meio ambiente, não é de rigor a indicação da norma complementar integrativa do tipo penal, bastando a descrição da conduta nela vedada. Não ocorre violação aos princípios da indivisibilidade e da obrigatoriedade da ação penal se o órgão do Ministério Público não oferece denúncia contra quem, ao seu entender, não é responsável pelo fato delituoso. Recurso ordinário desprovido.” (6 a Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 1999/80736-7, DJU 28/02/2000, p. 125, RSTJ vol.130, p. 483, Min. Vicente Leal) 2.8. Hipóteses de concurso de delitos Com uma única conduta o agente poderá praticar dois ou mais delitos. Trata-se do concurso formal. Quem pratique qualquer das condutas vedadas pelo art. 15 da Lei nº 7.802/89 (ut retro), delito de perigo e que não exige resultado finalístico, poderá, também, causar poluição, incidindo no tipo penal previsto no art. 54 da Lei dos Crimes Ambientais (“causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em dano à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou destruição significativa da flora”). Vale lembrar que o delito de poluição exige, para aperfeiçoar-se, o resultado naturalístico (elemento objetivo do tipo), ou seja, que a poluição atinja níveis de que possam resultar perigo ou dano à saúde humana ou mortandade de animais ou destruição significativa da flora. Assim, por exemplo, alguém que, adquirindo e usando agrotóxicos sem o devido receituário agronômico, contamine alimentos e cause prejuízo à saúde humana, ou, contaminando as águas de um rio, cause mortandade de peixes, estará cometendo ambos os delitos (arts. 15 da Lei dos Agrotóxicos e 54 da Lei dos Crimes Ambientais). Incide, todavia, a regra do concurso formal prevista art. 70 do CP, em razão da unidade de conduta (ação ou omissão) e da pluralidade de infrações penais, impondo a aplicação de apenas uma pena, a do art. 15 (mais grave), agravada de um sexto até a metade, a menos que os crimes concorrentes decorram de desígnios autônomos, caso em que as penas serão aplicadas cumulativamente (art. 70 do CP, parte final). Se de qualquer das condutas dolosas previstas no art. 15 da Lei dos Agrotóxicos decorrer a morte de animais silvestres ou danos à flora, haverá o concurso com os delitos contra a fauna e flora (arts. 29, 38, 40, 48, 49 ou 50 da Lei nº 9.605/98), aplicando-se também a regra do concurso formal ou material, conforme haja, ou não, a autonomia de desígnios. Poderá o usuário de agrotóxicos, em prática comum no meio rural, ao lavar embalagens ou equipamentos usados na aplicação de agrotóxicos em rios, lagos, lagoas, açudes ou outros cursos d’água causar o perecimento de espécimes da fauna aquática. Pois bem. Esta moldura fática, que aperfeiçoa o crime do art. 15 da Lei dos Agrotóxicos, corresponde também ao delito previsto no art. 33 da Lei dos Crimes Ambientais: “Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras”. Estaríamos, então, diante de conflito aparente de normas? Parece-nos que não. A hipótese é de concurso formal, isso porque os objetos jurídicos são diferentes. O art. 33 protege especificamente a fauna aquática em suas variadas espécies. O art. 15 tutela a saúde e o meio ambiente. Os arts. 270 e 271 do CP incriminam as condutas de envenenar (adicionar substância tóxica) e corromper (alterar, desnaturar, estragar) água potável. É punida a forma culposa. Parece-nos inequívoco que, sendo empregado agrotóxico para envenenar ou corromper a água potável, haverá de incidir, em vista do princípio da subsidiariedade (lex primaria derogat subsidiariae), a regra proibitiva do Código Penal. Aqui, temos a regra do art. 15 atuando como norma subsidiária, porquanto descreve fato menos amplo e menos grave do que o descrito pelos arts. 270 e 271 do CP. Embora definido como delito autônomo, está compreendido no delito mais grave, como mera fase de execução deste. Aquele que tenta envenenar uma pessoa ou uma família utilizando agrotóxico adicionado à alimentação não comete o crime do art. 15 da Lei dos Agrotóxicos, embora esteja a fazer uso ilegal do produto, porque não há violação da saúde pública e do meio ambiente. Consulte-se, a propósito, o seguinte precedente do TJSP: “Crime contra a saúde pública. Envenenamento de substância alimentícia. Delito não configurado. Indivíduo que adiciona na panela contendo feijão já cozido uma porção de inseticida organoclorado. Número limitado de pessoas, entretanto, que poderiam ser atingidas com a sua ação. Fato que poderia constituir, porém, uma tentativa de homicídio. Absolvição decretada. Inteligência do art. 270 do Código Penal. O objeto da tutela jurídica do delito do art. 270 do Código Penal é a saúde pública, que se protege contra o perigo de envenenamento. O crime, que se consuma independentemente de resultado, só se aperfeiçoa quando o perigo atinge a vida ou a saúde de um número indefinido de pessoas, não apenas um número limitado delas.” (Apelação Criminal nº 117.959, Rel. Des. Humberto da Nova, RT, 453/355) Decorrendo das condutas tipificadas no art. 15 da Lei dos Agrotóxicos lesão corporal ou morte (homicídio) de pessoa, haverá também concurso formal (perfeito ou imperfeito, conforme haja ou não desígnios autônomos). 3. O contrabando de agrotóxicos: enquadramento típico, conflito de normas e incongruências da legislação A importação de produtos agrotóxicos reclama, no âmbito do Direito Penal, análise de pelo menos três normas do ordenamento: art. 334 do CP, art. 15 da Lei nº 7.802/89 e art. 56 da Lei nº 9.605/98. Tome-se o delito do art. 334 do CP: “Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.” A importação irregular de substância agrotóxica não pode ser punida a título de descaminho. No descaminho, a importação (ou exportação) é lícita. Pune-se apenas o não-recolhimento dos tributos devidos. Sendo proibida a importação (ou exportação) de substância agrotóxica sem registro regular, não se terá por configurado o fato gerador da incidência tributária, não sendo possível, em conseqüência, falar-se de “ilusão, no todo ou em parte, do pagamento de direito ou imposto devido”. De fato, tributo, na definição do Código Tributário Nacional (art. 3º), “é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nele se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. “Quando se diz que o tributo não constitui sanção de ato ilícito”, assinala Hugo de Brito Machado, “isto quer dizer que a lei não pode incluir na hipótese de incidência tributária o elemento ilícito. Não pode estabelecer como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação de pagar um tributo uma situação que não seja lícita. Se o faz, não está instituindo um tributo, mas uma penalidade. Todavia, um fato gerador de um tributo pode ocorrer em circunstâncias ilícitas, mas essas circunstâncias são estranhas à hipótese de incidência do tributo e, por isso mesmo, irrelevantes do ponto de vista tributário” (inCurso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 53). A conduta de quem introduz em solo nacional, ou dele exporta, substância agrotóxica, sem que esteja autorizado a assim proceder pela legislação de regência, atrairia, em princípio, a incidência do tipo penal de contrabando, não fosse o fato de que essa conduta encontra previsão no tipo penal do art. 56 da Lei nº 9.605/98, cuja aplicabilidade, por se tratar de norma especial relativamente àquela do art. 334 do Código Penal, faz-se imperativa. Na observação de Cezar Roberto Bitencourt, considera-se “especial uma norma penal, em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes”. Isto é, a norma especial acrescenta elemento próprio à descrição típica prevista em norma geral. Assim, como afirma Jescheck, “toda a ação que realiza o tipo do delito especial realiza também necessariamente, ao mesmo tempo, o tipo do geral, enquanto que o inverso não é verdadeiro. A relação especial tem a finalidade, precisamente, de excluir a lei geral, e, por isso, deve precedê-la. O princípio da especialidade evita o bis in idem, determinando a prevalência da norma especial em comparação com a geral, e pode ser estabelecido in abstracto, enquanto os outros princípios exigem o confronto in concreto das leis que definem o mesmo fato” (inManual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 130). O critério especializante, que atrai, na hipótese, a incidência do art. 56 da Lei Ambiental é o fato de que ali se pune importação não de qualquer “mercadoria proibida” (art. 334 do CP), senão que de “produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana e ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos”. O tratamento penal da utilização ilegal de agrotóxicos é dado, em caráter primordial, pelo art. 15 da Lei nº 7.802/89 – com a redação que lhe deu a Lei nº 9.974/00. O tipo penal em referência, que contém seis núcleos (“produzir”, “comercializar”, “transportar”, “aplicar”, “prestar serviço”, “dar destinação a resíduos e embalagens vazias”), é especial em relação ao delito previsto no art. 56 da Lei nº 9.605/98, antes citado, que contém 12 núcleos (“produzir”, “processar”, “embalar”, “importar”, “exportar”, “comercializar”, “fornecer”, “transportar”, “armazenar”, “guardar”, “ter em depósito” e “usar”). Dos seis núcleos contidos no tipo da Lei dos Agrotóxicos, três estão reproduzidos no art. 56 da Lei nº 9.605/98. Quanto a esse ponto, não há problema algum, pois, no que coincidirem, aplica-se o critério da especialidade. No entanto, se alguém importar agrotóxicos, por exemplo, sem estar autorizado a fazê-lo pela legislação de regência, cometerá o crime do art. 56 da Lei nº 9.605/98, visto que o núcleo em referência (“importar”) não se encontra previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89. A circunstância de o tipo penal específico não conter as condutas “importar” e “exportar” pode gerar situações verdadeiramente injustas. Basta ver o benefício do art. 89 da Lei nº 9.099/95, conhecido como sursis processual. Consoante já se disse, ele é perfeitamente aplicável ao delito previsto na Lei Ambiental (art. 56), cuja pena mínima é igual a 1 (um) ano. Não se aplica, contudo, ao crime previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89. Desse modo, um grande contrabandista de agrotóxicos terá, em tese, se acionado criminalmente, direito à suspensão condicional do processo, benefício que não se oferecerá, no entanto, tendo em conta o quantitativo da pena mínima (02 anos), àquele que, não tendo importado, se dedica ao transporte, em território nacional, da mencionada substância. Se é que a conduta de importação não é mais grave que a de transporte, ao menos se deve admitir que ambas têm o mesmo potencial de lesividade, não se justificando, de maneira alguma, o tratamento legislativo diferenciado. Ou se desloca, para o tipo penal da lei ambiental, as condutas previstas no diploma específico, ou, o que parece mais correto, se altera a Lei nº 7.802/89, para nela incluir os núcleos faltantes, especialmente aquelas modalidades de “importar” e “exportar”. Merece alguma referência a situação de quem “adquire”, invariavelmente por preço inferior ao do mercado regular, para uso próprio ou comercialização, o agrotóxico que é produto de contrabando, vale dizer, introduzido irregularmente no país. À primeira vista, poder-se-ia pensar que a conduta se enquadra no art. 180 do CP, que cuida do crime de receptação. Afinal, trata-se de mercadoria que se sabe ou deveria saber, pelas condições, ser produto de crime. Aqui, novamente, urge invocar o princípio da especialidade. Parece-nos de meridiana clareza que, praticando o agente qualquer um dos verbos do art. 15 da Lei nº 7.802/89, esta será a regra punitiva a incidir. Deduz-se que, depois de adquirir, o agente irá transportar, comercializar ou usar o produto. Dessarte, sempre que não se aperfeiçoe a hipótese de co-autoria (art. 29 do CP), o enquadramento deverá buscar a subsunção no art. 15 da Lei dos Agrotóxicos e, no que tange às condutas não contempladas por este tipo penal, no art. 56 da Lei dos Crimes Ambientais. 4. Competência para o crime de contrabando de agrotóxicos e delitos conseqüentes À semelhança do que ocorre com crimes contra o meio ambiente, em regra, a competência para processar e julgar os delitos tipificados nos arts. 15 e 16 da Lei nº 7.802/89 (Lei dos Agrotóxicos) é da Justiça Estadual. A competência da Justiça Estadual, tal como prevista constitucionalmente, é residual em relação à da Justiça Federal. Dessarte, observada a regra matriz constitucional de competência em matéria penal (art. 109, IV), somente se o delito afetar bens, serviços ou interesses da União, de suas autarquias, fundações ou empresas públicas é que a competência passará a ser da Justiça Federal. Os crimes que afetem a saúde pública, de igual sorte, somente na hipótese mencionada atrairão a competência federal. Assim, por exemplo, na conduta de utilização criminosa de agrotóxicos, que cause danos à fauna aquática de um rio pertencente à União, será da competência da Justiça Federal o respectivo processo-crime. São bens da União Federal, lembrando, “os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais” (art. 20, III, da CF). O fato de estarem os agrotóxicos obrigados a registro em órgãos e entidades federais (ANVISA, IBAMA e MAPA) não trespassa a competência para a Justiça Federal. Consoante entendimento hoje sedimentado na jurisprudência, o interesse federal a justificar a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, IV, da CF, deve ser concreto e específico, e não genérico. A análise da jurisprudência acerca do assunto demonstra que o STF e o STJ adotam este posicionamento: "COMPETÊNCIA. CRIME PREVISTO NO ARTIGO 46, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 9.605/98. DEPÓSITO DE MADEIRA NATIVA PROVENIENTE DA MATA ATLÂNTICA. ARTIGO 225, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Não é a Mata Atlântica, que integra o patrimônio nacional a que alude o artigo 225, § 4º, da Constituição Federal, bem da União. Por outro lado, o interesse da União para que ocorra a competência da Justiça Federal prevista no artigo 109, IV, da Carta Magna tem de ser direto e específico, e não, como ocorre no caso, interesse genérico da coletividade, embora aí também incluído genericamente o interesse da União. Conseqüentemente, a competência, no caso, é da Justiça Comum estadual. Recurso extraordinário não conhecido." (STF, RE nº 300244/SC, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJU 19-12-01, p. 27) "PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A FAUNA E A FLORA. ART. 46, CAPUT, C/C PARÁGRAFO ÚNICO; ART. 29, CAPUT, C/C § 1º, III, AMBOS DA LEI Nº 9.605/98. MATA ATLÂNTICA. NÃO-DEMONSTRAÇÃO DE LESÃO A BEM, INTERESSE OU SERVIÇO DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. I - A competência da Justiça Federal, expressa no art. 109, IV, da Constituição Federal, restringe-se às hipóteses em que os crimes ambientais são perpetrados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas autarquias ou empresas públicas. II - Não restando configurada, na espécie, a ocorrência de lesão a bens, serviços ou interesses da União, a competência para processar e julgar o feito é da Justiça Estadual (Precedentes). Habeas corpus denegado." (STJ, HC nº 27093/SC, Rel. Min. Félix Fischer, Quinta Turma, DJU 28.10.2003, p. 314) Nem mesmo o fato de estarem as atividades relacionadas com agrotóxicos, seus componentes e afins, submetidas à fiscalização do IBAMA e da ANVISA (assim como também dos órgãos de fiscalização ambiental e sanitária municipais e estaduais, prioritariamente(11)) seria motivo suficiente para atrair a competência da Justiça Federal, consoante tem entendido o STF: "Habeas Corpus. Crime previsto no art. 46, parágrafo único, da Lei nº 9.065/98, de 1998 (Lei de Crimes Ambientais). Competência da Justiça Comum. (2) Denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal com base em auto de infração expedido pelo IBAMA. (3) A atividade de fiscalização ambiental exercida pelo IBAMA, ainda que relativa ao cumprimento do art. 46 da Lei de Crimes Ambientais, configura interesse genérico, mediato ou indireto da União, para os fins do art. 109, IV, da Constituição. (4) A presença de interesse direto e específico da União, de suas entidades autárquicas e empresas públicas - o que não se verifica, no caso -, constitui pressuposto para que ocorra a competência da Justiça Federal prevista no art. 109, IV, da Constituição. (5) Habeas Corpus conhecido e provido." (STF, HC nº 81.916/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2 a Turma, DJU 11.10.2002) Somente será competente a Justiça Federal para o delito praticado contrariamente a interesse específico de entidade federal. O mero poder fiscalizatório, até porque, abstratamente, está distribuído entre as três esferas políticas, não é fundamento para definir a competência federal. Todavia, o descumprimento de ato concreto da Administração Federal (IBAMA ou ANVISA, v.g.), refletindo prejuízo inequívoco ao interesse federal concretamente manifestado, enseja a competência da Justiça Federal. Se, por exemplo, a ANVISA cancela o registro de determinado agrotóxico, ficando sua fabricação e tudo o mais proibidos, o descumprimento deste ato, que constitui verdadeiro embargo, afeta negativamente o interesse federal e, portanto, a competência para processar e julgar o processo-crime respectivo será da Justiça Federal. Neste sentido, registro recente precedente do STJ: “(...). 3. Pelo descumprimento do embargo à atividade regular, afora o sancionamento administrativo, também respondem os agentes penalmente pelo crime do art. 56 da Lei nº 9.605/98 (...). 4. A persecução penal foi instaurada com base na constatação de que os ora pacientes, sem autorização do IBAMA e em desrespeito ao embargo implementado, estavam exercendo atividades nocivas ao meio ambiente, infringindo interesse direto da Autarquia Federal, o que atrai a competência da Justiça Federal. 5. (...).” (STJ, 5 a Turma, ROHC nº 14.341/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julg. 26.10.2004) No caso de contrabando de agrotóxicos, a competência para o julgamento do processo-crime será da Justiça Federal.(12) É certo que uma análise estrita da matéria levaria o intérprete ao reconhecimento da competência da Justiça Estadual. Mas essa não é a única análise possível e nem a mais afinada com o sistema da competência penal. Sendo proibida a importação de agrotóxico sem registro, a conduta delituosa, ainda que não possa, pelo princípio da especialidade, ser enquadrada como contrabando, atinge, sem dúvida alguma, o bem jurídico tutelado pela norma inscrita no art. 334 do Código Penal. Sobre o tema, eis a lição de Márcia Dometila Lima de Carvalho: “O caput do art. 334 do Código Penal contém duas normas e dois preceitos diversos. Na primeira delas, atinente ao contrabando, o preceito consiste em proibir que determinadas mercadorias entrem ou saiam do território nacional. O preceito veda, portanto, tratando-se de contrabando a exportação ou importação em si mesmas, não cogitando de encargos fiscais. A segunda norma, relativa ao descaminho, não veda especificamente a exportação, importação ou consumo de mercadorias, mas sim a prática de tais atos sem o cumprimento das obrigações fiscais respectivas. Nesta última hipótese, destarte, o preceito impõe a satisfação de encargos aduaneiros, sempre que exporte, importe ou consuma mercadorias. No tocante ao objeto jurídico, a norma concernente ao descaminho envolve primordialmente interesses do Fisco, embora, consoante já ressaltado, a intensidade da carga tributária, em matéria de exportação ou importação, seja norteada por finalidades extrafiscais. No que tange ao contrabando, a norma tem por objeto a tutela de interesses diversos, como, por exemplo, a higiene, a moral comunitária e, principalmente, a segurança e a autonomia nacionais ” (grifo nosso) (In: Crimes de Contrabando e Descaminho. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 10/11). Se a norma penal (art. 334 do CP) tutela “interesses diversos”, entre os quais se incluem a saúde pública, a higiene e, por que não dizer, o meio ambiente, então a importação de agrotóxicos é delito cujo processamento e julgamento deve, a exemplo do que ocorre com o contrabando de qualquer outro bem, ficar sob a responsabilidade da Justiça Federal. Quando se fala em importação de substância agrotóxica, o que se tem é um contrabando sob a forma especializada, previsto em norma penal própria. O fato de o legislador deslocar, para um tipo penal específico, uma conduta que em tudo se enquadraria no delito de contrabando não afasta a competência federal, pois o bem tutelado pela norma continua o mesmo. O Tribunal Federal da 4 a Região já teve oportunidade de se manifestar sobre o tema, por ocasião de análise do delito previsto no art. 273 do Código Penal – com a redação que lhe deu a Lei nº 9.677, de 02.07.98. O acórdão ficou assim ementado: “PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTO SEM REGISTRO NO ÓRGÃO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. PRAMIL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. COMPETÊNCIA FEDERAL. CONTRABANDO SOB FORMA ESPECIALIZADA. (...). Os crimes que afetem a saúde pública não atraem, só por isso, a competência federal. A importação de remédio sem autorização do órgão de vigilância sanitária, no entanto, poder ser entendida como contrabando sob forma especializada. Por opção legislativa (Lei nº 9.677/98), uma conduta que antes se amoldava ao tipo previsto no art. 334 do CP, passou a ser prevista em tipo penal próprio (art. 273 do CP), providência que não alterou, todavia, a competência federal para processamento e julgamento do feito.” (HC nº 2004.04.01.012508-0-PR, Relator Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Oitava Turma, unânime, DJU 28.04.2004, p. 739) No voto que analisou a questão, ficou consignado o seguinte: “A restrição que se opõe à possibilidade de o agente ser denunciado também pelo delito previsto no art. 334 do Código Penal, no entanto, não se revela idônea a afastar a competência federal para processamento e julgamento do feito. Certo que os crimes que afetem a saúde pública não atraem, só por isso, a competência federal, conforme já assentara a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda na época em que os delitos previstos nos artigos 272 e 273 não haviam sofrido a alteração que lhes imprimiu a Lei nº 9.677/98 (CC nº 34540-SP, Terceira Seção, relator Ministro Félix Fischer, 23.09.02). Se fosse por esse motivo, não haveria mesmo como se admitir a manutenção do feito sob jurisdição federal. Ocorre que a importação de remédio falsificado não deixa de ser também delito de contrabando. Aconteceu apenas de o legislador, decerto preocupado com a gravidade da conduta, deslocar, para um tipo penal próprio, uma conduta que já se encontrava descrita no art. 334 do Código Penal, dando-lhe tratamento penal mais severo. A ninguém escaparia que a conduta, se praticada antes da alteração legislativa, seria classificada como contrabando. Na modalidade de importar, portanto, o processamento e julgamento do delito previsto no § 1º e no § 1º-B do art. 273 do CP é de competência federal.” O mesmo raciocínio deve ser empregado para as hipóteses de importação de substância agrotóxica. Também aqui o que se tem é contrabando sob forma especializada pelo objeto, sendo plenamente sustentável, por esse motivo, a tese que advoga a competência federal. E o que dizer sobre a competência nas hipóteses de receptação de agrotóxico importado? Embora o agente que esteja de posse de substância agrotóxica incida, quase que automaticamente, em uma das condutas previstas no art. 15 da Lei nº 7.802/89 (transportar, usar ou vender, por exemplo) ou no art. 56 da Lei Ambiental (guardar ou ter em depósito, por exemplo), não se podendo, em vista disso, falar em configuração do delito previsto no art. 180 do Código Penal, deve-se, para fins de fixação de competência, dar o mesmo tratamento que a jurisprudência do STJ, há muito tempo, confere à receptação de mercadoria contrabandeada, sob o fundamento de que, havendo “anterior delito de contrabando, da competência da Justiça Federal, compete a esta julgar e processar delito de receptação de arma contrabandeada, que, na espécie, é delito de autonomia relativa” (CC 15.156/RJ, Rel. Ministro William Patterson, DJU 06/11/95). Se o delito de contrabando de agrotóxico é da competência federal – pelos motivos já explicitados -, a receptação, ainda que punida por um tipo próprio, deve também ser da competência federal. Em se tratando de matéria meramente instrumental (competência), o exercício analógico é perfeitamente possível, sendo certo que a lei processual penal admite interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito (art. 3º do CPP). Consulte-se, sobre o tema, o precedente do TRF da 3 a Região: “COMPETENTE PARA O JULGAMENTO DOS CRIMES DE RECEPTAÇÃO DE MERCADORIA CONTRABANDEADA E DE CONTRABANDO. (...). 1. Quando a União proíbe o ingresso – ou o retorno – de determinada mercadoria no País, sob pena da caracterização do crime de contrabando, é porque vê naquele bem uma potencial causa geradora de danos aos interesses nacionais. Essa proibição se dá pelos mais diversos motivos, dentre os quais, posso citar: a tutela do desenvolvimento da indústria nacional, razões de saúde pública, ou mesmo, a defesa de nossa biodiversidade. Assim, parece indiscutível que cabe à Justiça Federal julgar aquele que comete o crime de receptação de mercadoria contrabandeada, haja vista que é patente o interesse da União em punir aquele que, mesmo não tendo promovido o ingresso do bem no País, acaba por adquiri-lo, ferindo também, ainda que indiretamente, o interesse titularizado pela União Federal. Preliminar de incompetência da Justiça Federal rechaçada. (...).” (TRF da 3 a Região, 5 a Turma, Apelação Criminal nº 97.03.04.72842/SP, Rel. Des. Federal Ramza Tartuce, DJU 14.09.2004, p. 393.) Para quem entende que a hipótese de internalização irregular de agrotóxicos no país caracteriza o concurso formal de delitos(13) (art. 334 do CP, que tipifica o contrabando, e art. 15 da Lei 7.802/89), tese sobre a qual temos reservas, a competência da Justiça Federal, em razão do crime de contrabando (que atrai a competência federal para o outro delito), é indubitável. 5. Conclusão Do exposto, pode-se afirmar que a conduta de introduzir em solo nacional, de forma ilegal, agrotóxicos, seus componentes e afins, constitui, em tese, o delito previsto no art. 56 da Lei n º 9.605/98, sendo da Justiça Federal a competência para o julgamento do respectivo processo-crime, assim como o dos delitos conseqüentes do contrabando, porquanto a eles se estende, em termos de repressão, o interesse da União. NOTAS DE RODAPÉ 1. Um dos maiores roubos de agrotóxicos ocorreu em Londrina-PR. Um grupo de 15 homens, armado com pistolas, revólveres e escopetas, atacou a distribuidora de produtos agrícolas Luftuma, roubando 2,8 toneladas de herbicidas. A quantia roubada, avaliada em R$ 2,8 milhões, equivale a 5% do total de agrotóxicos consumidos no Paraná. 2. Comprovando a existência de falsificação, A BASF S.A., indústria química, publicou, no Jornal Zero Hora de Porto Alegre, em 15.09.2004, um alerta sobre a falsificação do agrotóxico Regent no Rio Grande do Sul. Este produto, falsificado, pode ser adquirido por telefone ou pela internet. 3. Neste sentido, o expressivo artigo de Aurélio Veiga Rios sob o título O Mercosul, os Agrotóxicos e o Princípio da Precaução, Revista de Direito Ambiental, n. 28, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 41/57. 4. Crime do art. 56 da Lei nº 9.605/98: “Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em lei ou nos seus regulamentos. Pena – reclusão, de 1 a 4 anos, e multa”. 5. Duas eram as correntes doutrinárias sobre a questão: 1ª Corrente Sustentava que todas as condutas contidas no tipo do art. 15 da Lei dos Agrotóxicos foram contempladas pelo tipo previsto no art. 56 da Lei dos Crimes Ambientais; portanto, estaria o art. 15 revogado por este último. Aplicar-se-ia, destarte, a regra do art. 2º, § 1º, da LICC, dispondo que a lei posterior revoga a anterior quando regule inteiramente a matéria por esta tratada. Esta posição era defendida por Paulo Affonso Leme Machado, Paulo de Bessa Antunes e Édis Milaré, entre outros. 2ª Corrente Defendia que o delito previsto no art. 15 da Lei dos Agrotóxicos, lei especial, não estaria revogado pela Lei dos Crimes Ambientais (lei geral). Filiamo-nos a esta corrente. - Enquanto na Lei nº 9.605/98 a sanção penal é dirigida contra quem pratica conduta lesiva ao meio ambiente manipulando substância tóxica, no tipo descrito no art. 15 da Lei nº 7.802/89, a punição se volta contra o manuseio de agrotóxicos. Seria desnecessário dizer que o primeiro vocábulo tem um significado mais amplo do que o segundo. Se observado o núcleo primário do delito previsto no art. 15 da Lei nº 7.802/89, vamos concluir também que a conduta aplicar ou prestar serviço não foi reprisada no art. 56 da Lei 9.605/98, sendo certo que não tem o mesmo significado semântico de usar. 6. Houve redefinição de crime de menor potencial lesivo pela Lei nº 10.259, 12.07.2001, que criou os Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, considerando de menor potencial lesivo os delitos a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos. Sendo a definição constante da lei mais recente de direito penal material e mais benéfica ao réu, certamente há de se sobrepor à definição do art. 61 da Lei nº 9.099/95, por aquela derrogado, sob pena de se caracterizarem situações verdadeiramente absurdas, violando os princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade. Neste sentido é a remansosa jurisprudência: “HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. LEI 10.259/01. CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA PELA JUSTIÇA COMUM. APELAÇÃO. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. A superveniente alteração da definição legal de crime de menor potencial ofensivo não tem o condão de deslocar para a Turma Recursal a competência para conhecer da apelação proposta contra sentença condenatória proferida pela Justiça Comum em processo cuja instrução se iniciou antes da vigência da Lei nº 10.259/01. 2. Ordem deferida para anular o acórdão proferido pela Turma Recursal, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça para o julgamento da apelação” (STF, 2 a Turma, HC 85550/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 01.07.2005, p. 87). “ PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL LESIVO. SURSIS. PROCESSUAL PENAL. LEI Nº 10.259/01 E LEI Nº 9.099/95. I - A Lei nº 10.259/01, em seu art. 2º, parágrafo único, alterando a concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no art. 61 da Lei nº 9.099/95. II - Entretanto, tal alteração não afetou o patamar para o sursis processual, que continua sendo disciplinado pelos preceitos inscritos no art. 89 da Lei nº 9.099. Recurso desprovido.” (STJ, RHC 13229 (2002.00.99.8920/RS), 5 a TURMA, j. 06/02/2003, DJU 10/03/2003, p. 247, Relator Min. FÉLIX FISCHER) 7. Crime de Poluição, Direito Ambiental em Evolução. Curitiba: Juruá, 1998. p. 108. 8. CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito à Saúde e Problemática dos Agrotóxicos. Revista de Direito Sanitário, v. 2, n. 3, p.12-13, nov. 2002. 9. Cf. JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 70. 11. O STJ, por sua 3 a Seção, solucionando o Conflito de Competência nº 6511/SP, em 14.08.96 (LexSTJ, vol. 90, p. 248, Rel. Ministro Cid Flaquer Scartezzini), entendeu que o crime de comercialização de agrotóxico irregular, sendo da competência dos Estados legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno de agrotóxicos, seus componentes e afins, é competência da Justiça Estadual, em detrimento da competência da Justiça Federal. 12. O contrabando, de qualquer espécie e seja qual for o seu objeto, é delito que interessa precipuamente à União reprimir, pois que sempre será afetada, mediata e imediatamente, em seus serviços e interesses. Ademais, o Brasil é signatário da Convenção Sobre a Repressão do Contrabando, assinada em Buenos Aires, em 1935, fazendo incidir a regra do art. 109, V, da CF. Vale lembrar, sobre o tema, o enunciado sumular nº 105 do STJ: “A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens”. 13. Neste sentido, Márcio Adriano Anselmo: “Temos, portanto, que no caso da prática do crime de contrabando o sujeito passivo pratica também o delito previsto no artigo 15 da Lei de Agrotóxicos em concurso formal. Trata-se de concurso formal heterogêneo, ou seja, ocorre quando o agente, mediante uma só ação, pratica dois crimes previstos em normas penais diversas (um previsto no Código Penal e outro na Lei de Agrotóxicos)”. (Contrabando e aplicação do art. 15 da Lei nº 7.802/89, Jus Navegandi, http:www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp/id=5316)
|
REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |