Direito Civil A Parte Geral do Novo Código Civil(1) Autor: Miguel Reale |
Eminente Desembargador Federal Nylson Paim de Abreu, ilustre Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, ilustre Professora Judith Martins Costa, ilustres magistrados aqui presentes, desembargadores, advogados, caríssimos estudantes. Em primeiro lugar, eu desejo agradecer de coração esta manifestação generosa do nosso Presidente Paim de Abreu, que se excedeu na referência a minha pessoa. Tenho sido apenas um professor, é dessa qualidade que mais me orgulho, e que tem por si só a devida qualificação. Professor consciente da sua responsabilidade dupla de comunicar o saber e de formar as personalidades. Personalidades quer no sentido individual, quer no sentido do pesquisador e do cientista, a quem nos dirigimos sempre com a esperança de novas indagações e novas descobertas. Com essas palavras quero também manifestar o grande prazer que tenho de falar deste Tribunal, porquanto o Rio Grande do Sul tem se revelado de uma forma extraordinária no campo do Direito, não apenas através de seus grandes mestres, como seria desnecessário lembrar, tamanha é a consciência deles por parte dos rio-grandenses, mas também pela repercussão de seus ensinamentos, de um Armando Câmara, de um Cirne Lima, etc. Seria absurdo lembrar todos os nomes que devem ser, como Carlos Maximiliano e Clóvis do Couto e Silva, tão oportunamente e necessariamente lembrados. Cabe-me falar sobre a Parte Geral do novo Código Civil, e a simples escolha deste assunto revela a sabedoria dos organizadores desta I Jornada de Direito Civil, porquanto há toda uma história a contar relativamente à Parte Geral do Código Civil. Como sabem os presentes, houve três tentativas de elaboração de um novo Código, ou melhor, de uma revisão e elaboração de um novo Código. A que foi por mim presidida, na qualidade de Revisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, foi a terceira. Ela foi precedida por duas outras. A primeira teve a idéia de destacar do Código Civil o Código das Obrigações, reduzindo, assim, o contexto do Código Civil de 1916. Não obstante a preeminência dos elaboradores dessa primeira tentativa, Philadelpho de Azevedo, Orozimbo Nonato, Hahnemann Guimarães, essa proposta não foi aceita porquanto havia um desmembramento do Código elaborado por Clóvis Bevilácqua, e que já era um patrimônio da cultura brasileira. Falhada a primeira tentativa, houve uma segunda, com uma pequena divergência, ou melhor, com uma pequena variação. Consistiu ela sempre na idéia persistente de se fazer um Código das Obrigações autônomo e um Código Civil mais restrito, dele eliminada a Parte Geral, tal como foi o Código preparado pelo grande jurista Orlando Gomes. E o Código das Obrigações coube a uma comissão presidida pelo ilustre jurista Caio Mário da Silva Pereira. Também essa segunda proposta, sobretudo pela eliminação da Parte Geral, provocou uma reação por parte da elite jurídica nacional, que não concordou com essa proposta. E fez muito bem, data venia, fez muito bem a cultura jurídica nacional de não aceitar essas duas propostas. De maneira que, quando me coube a honra de elaborar ou de organizar uma revisão do Código Civil, a minha primeira preocupação, bem como de meus companheiros de trabalho, foi preservar o Código de 1916 o mais possível, a começar pela sua estrutura. Na realidade, a estrutura do Código de 2002 é a estrutura do Código de 1916 com uma retificação fundamental determinada pelo avanço do tempo, pelas circunstâncias históricas. É a inserção de uma nova parte, intitulada Direito da Empresa. É que, na realidade, houve uma profunda transformação, repercutida em todo o mundo, daquilo que se chamava o Direito Comercial. O Direito Comercial, como sabem, é um Direito Corporativo, que surgiu nas matrizes das corporações medievais e depois se desenvolveu na época moderna, sempre tendo o comércio como a sua referência. Mas a era moderna viu aparecerem outras formas de produção e circulação da riqueza, muito além da própria atividade puramente mercantil, e tivemos o gigantismo da atividade industrial. E não menor repercussão dos serviços sob todas as suas formas e, especialmente, os serviços como cibernética, como informática, que chega ao ponto de se declarar que a nossa era é a era da informação, é a era da informática. E, então, o comércio não podia mais ser a linha dominante de uma codificação. Daí a idéia da empresa, empresa mercantil, empresa industrial, empresa de serviço, cujos princípios fundamentais são dados no Código Civil por ser este o Código matriz. Nós não tivemos em vista, meus caros amigos, a elaboração de um direito privado unificado, o que seria absolutamente inadmissível. A nossa preocupação foi outra, a de fazer a unificação do Direito das Obrigações, dando consolidação àquilo que já era uma realidade nacional, porquanto, em virtude do obsoletismo do Código Comercial de 1850, os próprios comercialistas não mais se referiam ao Código de 1850, mas faziam referência, ao contrário, ao Direito das Obrigações do Código Civil. E assim era a orientação da doutrina e a consagração pela jurisprudência nacional em todas as suas modalidades. De maneira que, como estão vendo, nós não tivemos a preocupação da novidade, mas, ao contrário, tivemos a preocupação da verificação de uma realidade que precisava ser levada às suas últimas conseqüências. Essa é a razão de ser do nosso Código. Ora, foi conservada, por conseguinte, a Parte Geral. A Parte Geral está ligada à genialidade de Teixeira de Freitas, que, antes mesmo dos alemães e do Código Civil alemão, que entrou em vigor em 1900, antecipou a codificação do seu esboço genial relativamente a uma Parte Geral. Depois, ele simplificou, mas, de certa maneira, expressou a Consolidação das Leis Civis, que foi, durante muitos anos, o nosso próprio Código Civil. Traduzido para o francês ou para o alemão, ele não foi traduzido como consolidação, mas como Código Civil Brasileiro. Porque, na realidade, o foi. E essa obra, bom, não vamos desviar o assunto, essa obra de Teixeira de Freitas era de fato uma codificação que permitiu a realização do trabalho de Clóvis Bevilácqua. Nesse contexto, a Parte Geral adquire uma importância ainda maior do que aquela que tinha no código que chamaremos o Código Bevilácqua. É que, como sabem, Clóvis Bevilácqua foi altamente influenciado, ao elaborar o seu trabalho inicial, na última década do século XIX, notem bem, última década do século XIX, foi altamente influenciado não apenas pela tradição do direito luso-brasileiro, mas também pela escola da exegese e, em maior grau, pela escola dos pandectistas. O pandectismo, que era uma espécie de idolatria do direito romano, tal como se expressavam as pandectas de Justiniano, essa escola pandectista se caracterizava pela preocupação de dar aos problemas jurídicos uma estrutura rigorosamente jurídica, ou seja, solucionar os problemas jurídicos com categorias do direito. Era, de certa maneira, uma sistematização cerrada, fechada, na compreensão do direito. Ao contrário, nós, ao concebermos esta nova estrutura jurídica básica como matriz do Direito Privado, pensamos em um sistema aberto. O Código atual, a começar pela Parte Geral, caracteriza-se pelas suas cláusulas abertas, pelas normas que não são estrita e rigorosamente jurídicas no sentido de dar uma solução plena e completa aos problemas observados, mas que deixa sempre de forma tal que fique sendo uma parte para a doutrina e para os juízes. A norma aberta é uma norma destinada à criação posterior do intérprete, mesmo porque, eu tenho até talvez, de certa maneira, exagerado, não se compreende a norma sem a interpretação. E cheguei mesmo a dizer que a norma é a sua interpretação. Enquanto não objeto de uma hermenêutica apreciando seus resultados e desenvolvendo o que nela está implícito, a norma é apenas um esboço de um comando, que passa a atuar de maneira efetiva em razão da interpretação vivida pela doutrina e pela jurisprudência. Há, portanto, uma visão global, uma visão totalizante, mais aberta daquilo que se pode chamar um sistema. Com esses dados elementares, sobre os quais haveria muito mais a dizer, lembro que a nova Parte Geral começa com um grande pórtico, que é o pórtico dos direitos da personalidade. Esse rigorismo jurídico pandectista não era efetivamente compatível com o enunciado do direito da personalidade. O que significa esta colocação inicial do direito da personalidade? Eu diria que é a ultrapassagem ou a transcendência do conceito de direito subjetivo como “a grande vedete” do sistema jurídico. Não mais o sujeito do direito como titular de regras coercitivas encerradas, mas, ao contrário, a pessoa humana. A personalidade aí está para indicar a presença da pessoa humana como autoconsciência do indivíduo em si mesmo e nas suas relações para com os outros. Direito de personalidade, visto o indivíduo no contexto de suas circunstâncias. Então, nós podemos dizer que estamos diante de duas realidades conexas: uma sociologia da situação e uma ética da situação. São dois valores que estão presentes na feitura do Código: conceber o homem não isoladamente como um sujeito de direito, mas como um destinatário de uma norma que por si mesma leva em consideração o homem situado. O homem situado no conjunto de suas circunstâncias, o que implica, como disse, tanto a sociologia da situação como a ética da situação. Essa colocação inicial põe à vista dois princípios básicos que orientaram a elaboração do Código: o princípio da socialidade, vinculado à idéia de circunstância social em que se situa a pessoa humana; e a idéia de eticidade, que é o dever-ser, que surge em razão dessa situação mesma. O terceiro princípio é o da operabilidade, que vem a dinamizar as soluções do ponto de vista prático. O pragmatismo, digamos assim, que tanta importância tem no plano da ação. E foi por esse espírito que nós resolvemos elaborar o Código. E, na Parte Geral, os senhores notam uma diferença bastante grande no que diz respeito aos enunciados dos princípios e das normas. É que se preferiu a linguagem coloquial dos advogados e dos juízes, é que se deu preferência a uma fala espontânea e criadora através do saber dos juristas e dos doutrinadores, ao invés de uma linguagem rebuscada num catecismo que remonta ao Padre Antônio Vieira. Nós não temos a convicção de que o Código Civil seja um livro escrito para ensinar a língua portuguesa. Não tivemos, portanto, vacilação alguma em mudar a linguagem do Código. Mudou-se muito, como aos poucos se vai verificando. Quando surgiu o novo Código, houve quem falasse em velhice antecipada da codificação pelo fato de ter demorado vinte e seis anos para ser ele elaborado. Na realidade, não foram vinte e seis anos, se nós descontarmos os dez anos em que ele ficou adormecido no Senado, a revelar a vocação real que parecem ter os nossos legisladores, não na elaboração das normas jurídicas, mas na teatralidade das atitudes. Mas o importante é que, com essas modificações, vieram à luz esses dois princípios a que fiz referência e dos quais quero dar exemplo através de determinações jurídicas fundamentais. Como disse, o Código de 1916 é adstrito a uma solução puramente jurídica, enquanto que nós reconhecemos a necessidade, a todo instante, de recorrermos a princípios éticos e princípios sociais. É o que se nota no art. 113, na Parte Geral, que eleva a boa-fé ao princípio diretor de todo o sistema. Judith Martins Costa chega a dizer que há uma revolução em função do princípio da boa-fé. E eu estou de acordo quanto à projeção desse conceito, que aparece logo no art. 113, que diz: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Eis o conceito e os dois princípios. Conforme a boa-fé é o princípio fundante do dever moral, e os usos do lugar determinam aquilo que é a situação do direito como um elemento estrutural da cultura. E daí, desse conceito, surge uma nova visão de ato lícito e de ato ilícito. O nosso Código anterior não vacilava em estabelecer uma sinonímia perigosa ao dizer: o ato jurídico é o ato lícito dos quais surgem conseqüências. Pois bem, essa sinonímia não é aceita absolutamente pelo novo Código. Desde Hans Kelsen houve uma ampliação poderosa do normativo. Nós devemos olhar a escola pura do direito sob dois ângulos: em primeiro lugar, deve-se reconhecer a Hans Kelsen o mérito insuperável de ter nos mostrado que a norma não se reduz à norma legal, mas que a norma tem uma expansão maior, sendo norma jurisprudencial, sendo norma consuetudinária e sendo norma negocial. A amplitude do conceito de norma foi inegavelmente a grande contribuição imortal de Hans Kelsen, sem dúvida o maior jurista do século, jurisconsulto filósofo do século passado. Pois bem, se elogiamos Kelsen por essa amplidão ou amplificação do normativo, dele discordamos quando pretendemos reduzir o direito apenas ao normativo, ainda que amplificado da forma como o fez. E se alguma coisa tenho como merecedor, pelo menos, de atenção, é exatamente a crítica ao Kelsianismo e ao normativismo puro, no sentido de mostrar que no direito há algo mais que norma, porque existe a circunstancialidade factual ou fática e, acima de tudo, os imperativos axiológicos, a presença desse elemento, “o valor”, que acabaria, no século XIX, XX, se revelando como a nova fonte inspiradora das ciências sociais e do direito em particular. E, então, não há que se fazer sinonímia entre ato jurídico e ato lícito, mesmo porque está aí, à vista de todos, o Código Penal, que é o Código relativo ao ilícito e que, se fôssemos estabelecer sinonímia, ficaria sem sentido a codificação penal e processual penal toda vez que vem uma sanção delimitar e punir as conseqüências do ilícito. Mas há um novo conceito do ilícito: é o conceito do ilícito que brota do valor da eticidade. É o que está neste art. 187, que é tão novo na sua expressão que eu fiquei perplexo quando ouvi um professor dizer que o art. 187 nada traz de novo. O art. 187 assim se enuncia: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social [, pela boa-fé] ou pelos bons costumes”. Essa compreensão do ilícito é muito importante, porquanto o sujeito de direito era considerado intocável no exercício das atribuições que lhe fossem conferidas. Ao contrário, nós reconhecemos que o titular de direitos não é um absoluto, não pode fazer o que bem entende, e que o direito próprio está subordinado ao direito de outrem, baseado naquela fórmula spenceriana ou mesmo, substancialmente, kantiana de que o direito vai até onde começa o direito de outrem. De maneira que o ato ilícito surge no exercício do direito próprio. A novidade está aí: a ilicitude no exercício do próprio direito. Não há necessidade da invocação do direito de terceiros, ferido e lesado, para se caracterizar a ilicitude. A ilicitude surge da conduta mesmo do agente. O agente que, nos termos do art. 187, excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou social e pelos bons costumes. Estamos vendo, portanto, que a ilicitude está no âmago da experiência jurídica, a compreender-se que o direito, na realidade, efetivamente é uma realidade complexa que não se exaure na mera expressão lógico-formal do normativo. Essa compreensão da boa-fé como matriz de toda a experiência jurídica repercute no Código, nas partes especiais do Código, tanto no Direito das Obrigações como no Direito das Coisas, no Direito de Empresa e no Direito das Sucessões. Para dar apenas um exemplo, eu citarei aqui, em complemento natural ao art. 187, o art. 422 do Direito das Obrigações, que diz: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. A esta altura, não posso deixar de observar a profunda diferença que há entre a codificação nova e a antiga. O Código de 1916 é limitado em demasia ao levar em consideração o princípio da boa-fé. Só se fala expressamente em posse de má-fé e posse de boa-fé. Como se a boa-fé estivesse apenas limitada a essas formulações do direito e não representasse uma categorização universal de toda a juridicidade. E, mesmo ao tratar da posse de boa-fé e da posse de má-fé, o Código traz uma novidade que é apreciar a posse sob seu aspecto social, ao estabelecer uma graduação muito mais severa, ou melhor, mais ampla da posse. Da posse, por exemplo, daquele que, não tendo nenhum imóvel, nenhuma propriedade, toma posse de uma área abandonada, até cinco alqueires, como prevêem o Código e o Estatuto da Terra, e nela realiza a projeção de seu trabalho e de seu poder criador, quer por nessa área estabelecer a sua morada, quer por nela estabelecer uma plantação. E aquele que, sem justo título e boa-fé, toma posse, o faz, quer por motivos jurídicos, quer por motivos econômicos e quer por motivos éticos. Esta presença sempre da tríade da juridicidade, da economicidade e da socialidade e da eticidade, e tudo isso a compor o modo de agir do homem na nova compreensão atual do direito. Ora, nessa compreensão ética da boa-fé, era natural que surgissem, do esquecimento em que se encontravam, dois institutos jurídicos fundamentais. O Código não hesitou em albergar na sua estrutura as novas tendências científicas do direito. Mas não vacilou também em trazer para a plenitude da experiência jurídica contemporânea determinadas soluções do direito medieval, para não falar, mesmo, talvez, no direito romano. Eu me refiro aos artigos que restabeleceram o estado de perigo e o direito de lesão. O estado de perigo, que fora afastado do Código de 1916, renasce e ressurge, não como um abencerrage, como disse Pontes de Miranda. Pontes de Miranda, por quem eu tenho uma extraordinária admiração, considerado um dos gênios da ciência jurídica nacional, quando se refere à boa-fé fala em abencerrage jurídico, o que está bem de acordo com seu positivismo estrito na compreensão do direito. E, então, estado de perigo e lesão ressurgem. No art. 156, que estabelece: “Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”. É o reconhecimento de que as relações jurídicas são presididas por um equilíbrio ético-econômico e não apenas um equilíbrio econômico, uma equação financeira como exigência do contrato, mas o equilíbrio ético-econômico. Estão vendo, portanto, a necessidade do estado de perigo para completar o sentido real do direito, que não pode aceitar que, em virtude de novas situações, sobretudo se imprevisíveis, a obrigação de uma das partes se torne excessivamente onerosa. O Código verá, a seu tempo, no Direito das Obrigações, uma série de dispositivos exatamente sobre a onerosidade excessiva como condição de resolução do contrato que tenha violado o princípio fundamental do equilíbrio, a que fiz referência. E passemos à outra afirmação, do problema da lesão [art. 157]: “Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência”, notem bem, o que há de novo aqui é a referência à inexperiência, do que o conceito antigo de lesão falava apenas na premente necessidade, “sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”. Então, nós estamos vendo que foi dado um banho de socialidade e de eticidade ao Código anterior, implicando conseqüências múltiplas ao longo de toda a sua manifestação. Ora, esta compreensão ético-econômica é completada pelo princípio da operabilidade, que nos dá, exatamente na Parte Geral, um exemplo magnífico. A operabilidade inspira-se não no pragmatismo norte-americano, mas no conceito de ação de Ihering. É exatamente aquele pragmatismo porque, em sentido amplo, Ihering é o filósofo jurídico da ação e da experiência, como depois notaram sobretudo os grandes mestres italianos que vieram a tratar do direito como experiência, coisa que sempre me impressionou, a tal ponto que a minha obra jurídica fundamental não é “Teoria Tridimensional do Direito”. A minha obra fundamental se chama “O Direito como Experiência”. A Teoria Tridimensional já é uma conseqüência, um resultado da prévia compreensão do direito como experiência. Então, a operabilidade é aquela orientação técnica no sentido de dar soluções operacionais. Nós somos chamados de operadores do direito exatamente por dar soluções de operabilidade com um mínimo de custo e um máximo de resultado. E, então, vou dar um exemplo de uma solução determinada pela operabilidade. Os juristas que estão me ouvindo, e não apenas os estudantes, hão de reconhecer a impossibilidade que sempre houve de fazer uma distinção que pacificasse a nossa consciência dogmática a respeito do que seja prescrição ou decadência. O que é prescrição, o que é decadência? Uma das coisas que me impressionaram muito foi ter presenciado em São Paulo duas decisões de um tribunal, de dois tribunais distintos. Uma câmara de um tribunal, apreciando a mesma espécie jurídica, negara provimento a uma ação, por entender que havia ocorrido prazo de prescrição, enquanto que em uma outra câmara chegava-se à solução contrária por considerar que a questão era de decadência. Então, é preciso, ilustres magistrados, reconhecer que nós estávamos expostos a estes contrastes entre prescrição e decadência, em busca de uma conceituação pacificadora de nosso intelecto a respeito da matéria. E, então, ocorreu-nos uma solução prática e até certo ponto simples: vamos, na Parte Geral do Código, estabelecer o elenco dos casos de prescrição. Prescrição, segundo a lição do direito alemão, é prescrição da pretensão. Não é prescrição da ação. É a prescrição da pretensão que dá lugar à ação. Barbosa Moreira, apreciando recentemente o artigo “A contribuição do Código Civil”, elogia exatamente essa colocação, essa vinculação do conceito de prescrição e de pretensão. E procura determinar, Barbosa Moreira, e com acerto, que quando se fala em pretensão significa poder de agir. Prescreve é o poder de agir como inerente à idéia mesma de pretensão. E, então, por que deixar em permanente atuação essa confusão entre prescrição e decadência? Não há dúvida com o novo Código. Ou o caso se insere na enumeração numerus clausus sobre a matéria de prescrição ou se trata de decadência. Decadência de quê? Decadência do direito. E, então, a solução prática é a seguinte: tanto na Parte Geral, como no Direito das Obrigações, como na Parte Especial do Código, surgem casos de decadência do direito, por exemplo, a responsabilidade de um construtor pela obra que ele tenha construído. De um lado, estabelece a responsabilidade e, imediatamente, em conexão com a norma que trata do assunto, em conexão com ela e fazendo corpo com ela, estabelece o prazo de decadência. O prazo de decadência, então, não é previsto genericamente e numericamente, mas surge toda vez que a norma implica uma sanção, estabelecendo o equilíbrio jurídico necessário por um certo tempo. Estamos vendo, portanto, que o problema de prescrição e decadência foi resolvido, não à luz dos princípios dogmáticos, lógico-dogmáticos, mas à luz da operabilidade do direito. Lembro esse fato para mostrar qual é o significado fundamental do que chamo de princípio de operabilidade. Com tudo isso, com todos esses exemplos, o que se pode concluir é que o Código Civil obedece à concretude do direito. Tudo aquilo que foi objeto de análise, de estudo, pelos mestres do direito como experiência, ou do direito concreto, como Karl Englert, como Lorentz, como Emílio Betti e tantos outros, toda essa compreensão do direito como experiência repercute na nova codificação. Exame, portanto, de direito concreto, de concreção fundamental. É a mesma razão pela qual, pela razão da operabilidade, nós preferimos não disciplinar os fatos jurídicos da sua multiplicidade e variabilidade, mas uma instituição, uma visão institucional concreta. A Parte Geral trata longa e especificamente dos negócios jurídicos. O negócio jurídico como expressão da vontade, é uma declaração de vontade, mas uma declaração de vontade feita na concreção do relacionamento com outrem. O conceito de negócio jurídico, por conseguinte, é um conceito de concreção jurídica e não é uma mera expressão lógico-formal do comportamento de contratantes, ou de todos aqueles que entram em contato uns com os outros por motivos outros que não os da mera contratação. Esta visão concreta, que corresponde, no fundo, e volto aqui ao inicial para encerrar esta palestra, para levar em conta o homem situado, inspirou-nos, sobretudo, nesta resposta normativa, a lição do grande pensador espanhol Ortega y Gasset, quando proclama: “Yo soy yo y mi circunstancia” – “Eu sou eu e minha circunstância”. A começar pela corporeidade de quem fala, e, então, este Código é o Código do homem situado e não do homem na sua abstração lógico-dogmática. Importante, portanto, é ter-se o espírito do Código. O que eu pretendi, nesta palestra, foi mostrar qual é o espírito do Código. Qual foi o espírito da nova codificação, porque, quando se tem consciência deste espírito, abrem-se as portas para uma nova hermenêutica. Não se muda de Código Civil como se muda de roupa. A mudança houve pelo advento de novos paradigmas, de novos princípios determinados, quer pela evolução histórica da sociedade civil, quer pelo advento de soluções tecnológicas e científicas à altura da cultura de nosso tempo. De maneira que, ao falar sobre o Código Civil, sinto-me profundamente tomado por uma preocupação. É a preocupação de que possa esse novo Código, com seu espírito, ser interpretado com as categorias jurídicas do Código anterior. “Nova norma, nova hermenêutica”, como disse Hans Gadamer, o maior tratador da teoria hermenêutica em nossos dias. Falecido, aliás, há pouco tempo, com 102 anos, e que, enquanto vivo, a meu ver, foi o maior filósofo contemporâneo. Compreensão de concretude que quer dizer compreensão humanística, o que estava implícito ao partir-se da fonte criadora que é a pessoa. A pessoa que, no meu modo contínuo de dizer, é a fonte de todos os valores, é o ponto de partida de todos os valores. Este Código, em poucas palavras, não é o Código do indivíduo isolado e no seu egoísmo individualista, mas é o Código da pessoa humana na sua correlação transcendental da existência com os demais membros da coletividade. |
Notas: 01. Transcrição integral da conferência proferida em 23 de maio de 2003, na abertura da I Jornada de Direito Civil – “O Novo Código Civil e a Justiça Federal”, promovida pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região com apoio da Diretoria de Recursos Humanos do TRF4 e do Núcleo de Recursos Humanos da Seção Judiciária do RS. |
Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |