Sumário:
Introdução. 1. A ação controlada (Lei 9.034/1995), a entrega vigiada (Lei 11.343/2006) e o flagrante diferido; 2. A ação controlada e a entrega vigiada nas convenções internacionais; 2.1 Na Convenção de Viena de 1988 (contra o tráfico de drogas); 2.2 Na Convenção de Palermo (contra o crime organizado transnacional); 2.3 Na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção; 2.4 Na CIFTA (convenção interamericana contra tráfico de armas); 2.5 Na Recomendação do GAFI; 2.6 Pontos divergentes nas convenções internacionais; 3. A ação controlada: requisitos e execução; 4. A ação controlada nos Tribunais: campana e vigilância policial. Conclusão. Referências bibliográficas.
Resumo: Dentre os meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, a Lei nº 9.034/95 trata da “ação controlada”, instrumento de larga utilização, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.
Palavras-chave: crime organizado, combate, repressão, meios operacionais, ação controlada, entrega vigiada, infiltração policial, Convenção de Palermo, cooperação internacional, confisco de bens, congelamento, embargo preventivo, lavagem de dinheiro, obstrução de justiça, corrupção, grupo criminoso organizado, crimes sérios.
Abstract: Amongst the operational ways for the prevention and repression of actions practised for criminal organizations, the brazilian federal law 9.034/1995 deal with the controlled action, instrument of wide use, that consists of delaying the interdiction police of that if it assumes action practised for criminal organizations, since that kept under comment and accompaniment so that the legal measure if materialize at the moment most efficient of the point of view of the formation of tests and supply of information.
Key-words: organized crime, combat, repression, operational ways, controlled action, controlled delivery, undercover operations, Palermo Convention, international cooperation, forfeiture, freezing, seizure, money laundry, obstruction of justice, corruption, organized criminal group, serious crimes.
Introdução
Quando se menciona “crime organizado” lembramos logo o comércio de drogas e armas em morros ou favelas e facções criminosas dentro de presídios, com estatuto próprio, compartimentação, divisão de tarefas e hierarquia, a exemplo do PCC (Primeiro Comando da Capital), CV (Comando Vermelho), ADA (Amigos dos Amigos), suas facções e fusões.
Dentre diversos e múltiplos conceitos jurídicos, econômicos, político-sociais, há um consenso. A existência do crime organizado é uma demonstração de um poder paralelo não legitimado pelo povo, que ocupa lacunas deixadas pelas deficiências do Estado Democrático de Direito e demonstra a falência do modelo estatal de repressão à macrocriminalidade, que, no dia-a-dia, vem se mostrando um Estado anêmico.
O dinheiro lavado (money laundry) por ano no mundo atinge um quarto da economia do planeta. No Brasil, a estimativa anual é de 10 a 15 bilhões de reais.
Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – IBPT, a sonegação fiscal e o caixa dois - gêmeos siameses na economia brasileira - cresceram desde 2001. Diz-se “gêmeos siameses” porque não há sonegação fiscal sem “caixa dois”. O “caixa dois” das empresas alcançou a cifra de R$ 1,028 trilhão, em 2004, e, em 2001, cerca de R$ 587,7 bilhões, o que permite que 39,27% da arrecadação anual do país saia do alcance da atual Receita Federal do Brasil. O destino mais comum do dinheiro do crime organizado são os paraísos fiscais.
De modo sintético, pode-se dizer que estruturas de sustentação, ramificações do grupo, divisões de funções e preexistência são características peculiares de uma organização criminosa. A grande questão é como prevenir, controlar e reprimir o crescimento do crime organizado.
Para isso, um dos instrumentos de combate ao crime organizado utilizados é a “ação controlada” por meio da “entrega vigiada” ou flagrante diferido.
1. A ação controlada (Lei 9.034/1995), a entrega vigiada (Lei 11.343/2006) e o flagrante diferido
Ação controlada, segundo a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995 (lei federal brasileira que trata do crime organizado, posteriormente alterada pelas Leis 9.080/1995 e 10.217/2001), é a técnica investigativa que consiste no retardamento da ação, necessariamente policial (em sentido estrito), repressiva, em favor do controle e do acompanhamento das ações ilícitas, até o momento mais oportuno para a intervenção.
O art. 2º, inciso II, da Lei 9.034/1995 trata desse mecanismo específico de combate ao crime organizado sem aludir à dimensão internacional:
“Art. 2º Em qualquer fase da persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas são permitidos (...):
II – a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;” (grifou-se)
Para o emérito professor e doutrinador Damásio E. de Jesus (2002), em referência à “entrega vigiada”:
“O objetivo dessa forma de investigação é permitir que todos os integrantes da rede de narcotraficantes sejam identificados e presos. Além disso, garantir maior eficiência na investigação, pois, quando a remessa da droga é interceptada antes de chegar ao seu destino, ignora-se quem é o destinatário ou, mesmo que ele seja conhecido, não pode ser incriminado.
A entrega vigiada torna-se uma verdadeira exceção ao princípio de que toda autoridade que tem conhecimento de um delito no exercício de suas funções deve denunciá-lo e persegui-lo. Por uma questão de política criminal, considera-se mais conveniente não interceptar imediatamente esse carregamento de droga para conseguir um resultado mais positivo, ou seja, o desbaratamento de toda a organização criminosa.”
A emérita Juíza do TJPE, Blanche Maymone Pontes Matos, em artigo publicado no Infojus, em 12.04.2002, intitulado “Crime organizado: considerações acerca de sua definição e dos meios operacionais de investigação e prova disciplinados pela lei específica”, leciona que a ação controlada:
“Tem como característica principal o retardamento da intervenção policial, apesar de o fato criminoso já se encontrar numa situação de flagrância, permitindo a efetivação do chamado ´flagrante prorrogado ou diferido´.
Conforme ensina Luiz Flávio Gomes, não se deve confundir flagrante prorrogado e flagrante esperado, já previsto em nosso direito. No segundo, a intervenção da autoridade se dá num momento certo, sem nenhuma vigilância permanente, a situação de flagrante não é duradoura e a prisão tem que acontecer imediatamente, diante da situação de flagrância. No primeiro, a situação de flagrância é duradoura e a vigilância policial também o é, sendo que a autoridade policial somente espera o melhor momento de efetuar a prisão.”
A ação controlada e a entrega vigiada são terminologias diversas, embora usadas indistintamente, talvez porque ambas tenham idêntico objetivo: maior eficácia probatória e repressiva, na medida em que possibilitam a identificação do maior número de integrantes de uma quadrilha ou organização criminosa.
O conceito de ação controlada é mais amplo, pois permite o controle e a vigilância (observação e acompanhamento, no texto legal) de qualquer ação criminosa, e não apenas a entrega vigiada de entorpecentes(1) e de armas,(2) pois é instrumento de largo espectro que pode ser utilizado na repressão de organizações criminosas ligadas ao contrabando e no pagamento ou recebimento de propina, na forma da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, incorporada legalmente por meio do Decreto 5.687/2006. Pode-se considerar, assim, que a entrega vigiada é uma das modalidades de ação controlada.
Encontra-se em vigor, desde o mês de outubro de 2006, a novíssima lei de entorpecentes que revogou a Lei 10.409/2002, com novas disposições sobre a “ação controlada” ou “não-interdição policial”, na terminologia da lei.
A Lei 11.343/2006, em seu art. 53, permite a utilização desse misto de mecanismo e técnica legal e investigativo policial com os seguintes traços peculiares:
- é procedimento investigatório;
- imprescinde de autorização judicial;
- oitiva do representante do Ministério Público;
- repressão de crime de tráfico de drogas e outros reprimidos pela Lei 11.343/2006;
- não-atuação policial permitida em lei;
- aplicação na repressão contra portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção;
- exige que o objeto do delito e autores se encontrem no território brasileiro (não necessariamente todos os integrantes do grupo de traficantes ou da organização criminosa);
- finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível;
- autorização mediante conhecimento do itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.
A questão será mais detidamente analisada no tópico sobre requisitos e condições de execução da ação controlada.
2. A ação controlada e a entrega vigiada nas convenções internacionais
2.1 Na Convenção de Viena de 1988 (contra o tráfico de drogas)
A entrega vigiada (na Lei 9.034/1995 é referida como “ação controlada”) é aludida como procedimento previsto e recomendado pelas Nações Unidas, na Convenção de Viena de 1988 (Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas).
Os artigos 1º, alínea l, e 11 da referida convenção internacional conceituam entrega vigiada, nos seguintes termos:
“Artigo 1º: (...)
l) Por ‘entrega vigiada’ se entende a técnica de deixar que remessas ilícitas ou suspeitas de entorpecentes, substâncias psicotrópicas, substâncias que figuram no Quadro I e no Quadro II anexos nesta Convenção, ou substâncias que tenham substituído as anteriormente mencionadas, saiam do território de um ou mais países, que o atravessem ou que nele ingressem, com o conhecimento e sob a supervisão de suas autoridades competentes, com o fim de identificar as pessoas envolvidas em praticar delitos especificados no parágrafo 1º do Artigo 3º desta Convenção.” (grifou-se)
“Artigo 11. Entrega Vigiada
1. (...) as Partes adotarão as medidas necessárias, dentro de suas possibilidades, para que se possa recorrer, de forma adequada, no plano internacional, à entrega vigiada, com base nos acordos e ajustes mutuamente negociados, com a finalidade de descobrir as pessoas implicadas em delitos estabelecidos de acordo com o parágrafo 1º do Artigo 3º e de encetar ações legais contra estes. (...) 3. As remessas ilícitas, cuja entrega vigiada tenha sido negociada, poderão, com o consentimento das Partes interessadas, ser interceptadas e autorizadas a prosseguir intactas ou tendo sido retirados ou subtraídos, total ou parcialmente, os entorpecentes ou substâncias psicotrópicas que continham.”
2.2 Na Convenção de Palermo (contra o crime organizado transnacional)
Em 12.03.2004 foi editado o Decreto 5.015/2004, que incorpora ao ordenamento jurídico brasileiro a “Convenção de Palermo” ou “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”, adotada por 147 países, em vigor, internacionalmente, no mês de setembro do ano de 2003. Além de trazer uma definição para “participação em grupo criminoso organizado”, também aborda a “entrega vigiada”, nos seguintes termos:
“técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática”. (grifou-se)
De plano, observa-se que a “entrega vigiada”, muito mais do que uma técnica operacional e de combate ao crime organizado, é uma técnica de investigação de infrações, ou seja, o órgão do Estado com atribuições para seu uso como recurso eficiente contra ações de organizações criminosas deve ser o de investigação penal, sob a supervisão do Ministério Público e do Poder Judiciário, com agentes de investigação especialmente treinados para tal atividade, o que, inevitavelmente, leva à conclusão de que deva ser exercida pela Polícia Judiciária.
É a Convenção de Palermo que dá a definição de organização criminosa ou participação em grupo criminoso organizado, na terminologia adotada internacionalmente. É a partir dessa definição que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região baixaram resoluções e recomendações fixando nova competência e especialização das varas no julgamento de ações empenhadas por organizações criminosas. (Resolução 517 do CJF e Recomendação 3 do CNJ)
2.3 Na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção
Reza o art. 2º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção que “Por ‘entrega vigiada’ se entenderá a técnica consistente em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, o atravessem ou entrem nele, com o conhecimento e sob a supervisão de suas autoridades competentes, com o fim de investigar um delito e identificar as pessoas envolvidas em sua ocorrência.”
2.4 Na CIFTA (convenção interamericana contra tráfico de armas)
O art. 7º da Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos (CIFTA) estabelece:
“7. Entrega vigiada: técnica que consiste em deixar que remessas ilícitas ou suspeitas de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob a supervisão de suas autoridades competentes, com o fim de identificar as pessoas envolvidas no cometimento de delitos mencionados no artigo IV desta Convenção.”
2.5 Na Recomendação do GAFI
Entre as 40 recomendações do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro/Financial Action Task Force on Money Laundering (GAFI/FATF) está a entrega controlada de valores conhecidos ou presumidos como sendo produto do crime.
Veja-se a Recomendação nº 36:
“36. A cooperação entre as autoridades competentes adequadas dos diversos países deveria ser fomentada no âmbito das investigações. Neste domínio, uma técnica de investigação válida e eficaz consistiria na entrega controlada de valores conhecidos ou presumidos como sendo produto do crime. Os países seriam incitados a apoiar essa técnica, sempre que possível.”
Posteriormente, foram editadas notas interpretativas a essas recomendações. A Nota Interpretativa 04 da Recomendação 36 estatui que “a utilização dessas técnicas [entrega controlada] deverá ser fortemente incrementada” e que “A entrega controlada de fundos provenientes, de modo certo ou presumido, de atividades criminosas constitui uma técnica operacional válida e eficaz para obter esclarecimentos e provas sobre operações internacionais de branqueamento de capitais.”
2.6 Pontos divergentes nas convenções internacionais
Ao contrário do que ocorre em relação à ação controlada quanto ao tráfico de drogas (Convenção de Viena de 1988 e Lei de Entorpecentes - Lei 11.403/2006) e à ação controlada quanto ao tráfico de armas (Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos - CIFTA), a Convenção de Palermo e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção não especificam qual o objeto da remessa ilícita ou suspeita, ou seja, não há determinação de um objeto específico que deva ter a remessa e o deslocamento controlado pelo órgão policial, admitindo, implicitamente, que seja o mais amplo possível, desde que associado a práticas relacionadas ao crime organizado.
A Convenção de Palermo, como convenção vocacionada ao combate do crime organizado transnacional, é um dos instrumentos atuais mais avançados existentes no mundo, com especial destaque para as medidas de cooperação jurídica ou assistência jurídica mútua e confisco de bens.
Não há que se olvidar os demais instrumentos normativos, mencionados alhures, que cuidam dessa técnica investigativa especial ou mecanismo específico de combate ao crime organizado, referidos acima, como o Decreto 3.229, de 29.10.1999, que promulga a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos (CIFTA), e o Decreto 5.687, de 31.01.2006, que promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
3. A ação controlada: requisitos e execução
A técnica especial de investigação policial chamada ação controlada comporta aplicações múltiplas, o que lhe garante alto grau de eficácia. Pode ser utilizada, por exemplo, na entrega de cargas, de mercadorias ou de drogas ilegais e tem características próprias, como a) coordenação das ações: exige uniformidade e disciplina dos executores; b) cooperação: plena entre as agências envolvidas, tanto entre as autoridades da origem como as responsáveis pelo acompanhamento da remessa da carga, mercadoria ou droga no destino final; e c) celeridade: adequação e urgência da resposta penal do aparelho estatal ao princípio da oportunidade investigativa para otimização da colheita probatória.
A ação controlada admite alternativas de execução, permitindo eleger, como procedimento operacional, a interdição, a substituição ou o acompanhamento da remessa, conforme seja mais oportuno ou adequado.
Na interdição, a entrega de carga, de mercadoria ou de drogas ilegais é interrompida com a apreensão dessas. Na alternativa de substituição, a carga, a mercadoria ou a droga ilegal é substituída, antes de ser entregue ao destinatário final, por um outro produto qualquer, um simulacro, sem risco de perda ou extravio, o que se convencionou chamar de “entrega limpa”. Na modalidade acompanhamento, a mercadoria ilícita não tem o encaminhamento e o transporte interrompidos nem é substituída: a operação clandestina é acompanhada o tempo todo, sob vigilância, com a identificação do maior número possível de integrantes da organização criminosa, do modus operandi e de uma quantidade maior de mercadorias ilícitas.
A Lei 9.034/1995, a respeito de “ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculada”, prevê como únicas restrições à utilização do mecanismo da “ação controlada” a observação e o acompanhamento com o objetivo de que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e de fornecimento de informações. Não explicita a necessidade de autorização judicial, ao contrário do que acontece com a infiltração policial e a interceptação ambiental.
Mas na fiscalização, prevenção e repressão ao uso, produção e tráfico de drogas ilícitas, há a estipulação de determinadas condições, antes previstas no art. 33, inciso II, da Lei 10.409/2002 e atualmente previstas na Lei 11.343/2006, em seu art. 53, inciso II e seu parágrafo único, com aperfeiçoamento técnico, efetividade da norma e flexibilização da rotina policial.
A Lei 11.343/2006, publicada no Diário Oficial da União - DOU, em 24.08.2006, em seu art. 75, revogou expressamente a Lei 10.409/2002. A mencionada lei entrou em vigor em 08.10.2006, ou seja, 45 dias após a sua publicação.
Na revogada Lei 10.409/2002, assim como na atual Lei 11.343/2006, não há menção expressa à “entrega controlada” ou “ação vigiada”. O legislador preferiu a terminologia “não-atuação policial” a fim de “identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição”, sem adentrar na polêmica caracterização dos traficantes em atuação na forma de associação para tráfico, quadrilha/bando ou organização criminosa.
A terminologia “ação controlada”, em termos de técnica operativo-policial, é mais abrangente e representa melhor a idéia do trabalho de acompanhamento, vigilância e investigação policial, pois não se trata apenas de “não-atuação policial”. Outra vantagem da terminologia “ação controlada” é que a mesma carrega o conceito de “controle” de ações de associações, quadrilhas e organizações criminosas que são voltadas para o tráfico de drogas, seus precursores químicos, como também de armas, contrabando e propina.
Dispunha o art. 33 da revogada Lei 10.409/2002:
“Art. 33. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos na Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
(...)
II – a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no território brasileiro, dele saiam ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com outros países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II, a autorização será concedida, desde que:
I - sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores;
II - as autoridades competentes dos países de origem ou de trânsito ofereçam garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas.” (Grifou-se)
No novo ordenamento jurídico, em pleno vigor a novíssima lei de entorpecentes, o art. 53 da Lei 11.343/2006 impõe a seguinte ordem normativa:
“Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
(...)
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.”
São condições comuns para a execução de uma operação controlada, decorrentes da Lei nº 11.343/2006 e da revogada Lei 10.409/2002 (entorpecentes) e da praxe policial: a) oitiva do Ministério Público; b) autorização judicial; c) conhecimento do itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores; d) planejamento operacional; e) controle interno pelo registro e ciência aos órgãos de inteligência policial.
Deixou de ser condição para execução da ação controlada a solicitação formal ou prévio ajuste de compromisso entre as autoridades responsáveis, na origem e no destino, que ofereçam garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio das drogas ilícitas. Embora a garantia contra a fuga e o extravio de drogas tenha deixado de ser uma exigência legal, persiste sua utilidade como recomendação para que o policial observe esses parâmetros, a fim de evitar questionamentos futuros. A alteração é bem-vinda, pois, na redação anterior, havia doutrinadores do quilate de Luiz Flávio Gomes que propalavam que o mecanismo de ação controlada só poderia ser utilizado na hipótese de tráfico internacional de drogas, o que nulificava o avanço legislativo de 5 anos antes e tornava morto o texto legal, na medida em que a Autoridade Policial brasileira, por princípio de soberania, deve proceder à investigação nos limites do território brasileiro, ponto de partida da investigação. Ao pensar de forma contrária, os policiais brasileiros só poderiam recorrer à ação controlada quando a investigação fosse iniciada por autoridade estrangeira, tornando a investigação uma ação passiva, mediante provocação, e não proativa, como urge.
A novel Lei 11.343/2006 traz como novidade que a “não-atuação policial”, ou melhor, a ação controlada, poderá ser executada também para identificação de portadores dos precursores químicos (produtos químicos que podem ser desviados para a fabricação de drogas ilícitas ou substâncias psicotrópicas), isso porque a fiscalização da comercialização de produtos químicos que possam ser utilizados como insumos na produção de drogas (como, por exemplo, o permanganato de potássio, que pode ser usado tanto na indústria do vestuário como no refino da cocaína) é regulamentada na forma da lei, mediante fiscalização da Polícia Federal, sendo de fundamental importância que seja mantida sob controle, principalmente porque o Brasil é o país sul-americano com setor químico-industrial mais desenvolvido.
O controle de produtos químicos no Brasil teve início com a edição da Medida Provisória 756, de 08.12.1994, convertida na Lei 9.017, de 30.03.1995, que estabeleceu normas de controle e fiscalização sobre produtos e insumos químicos que possam ser destinados à elaboração de cocaína em suas diversas formas e de outras substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. Atualmente, vige a Lei 10.357, de 27.12.2001, regulamentada pelo Decreto 4.262, de 10.06.2002.
O Anexo I da Portaria nº 1.274/MJ, de 21 de agosto de 2003, relaciona em quatro listas os produtos químicos sujeitos a controle e fiscalização da Polícia Federal (acetona, ácido clorídrico, ácido lisérgico, anidrido propiônico, cloreto de etila, efedrina, dentre outros).
São imprescindíveis o Certificado de Licença de Funcionamento - CLF, que é o documento que habilita a pessoa jurídica a exercer atividade não eventual com produtos químicos sujeitos a controle e fiscalização (válido por um ano, contado da data de sua emissão), e a Autorização Especial - AE, que é o documento que habilita a pessoa física ou jurídica a exercer, eventualmente, atividade com produtos químicos sujeitos a controle e fiscalização, sempre quando se tratar de fabricação, produção, armazenamento, transformação, embalagem, compra, venda, comercialização, aquisição, posse, doação, empréstimo, permuta, remessa, transporte, distribuição, importação, exportação, reexportação, cessão, reaproveitamento, reciclagem, transferência e utilização de produtos químicos sujeitos a controle e fiscalização.
Um ponto de crítica da antiga Lei 10.409/2002 e que persiste na Lei 11.343/2006 é o requisito exigido para a autorização judicial “que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores”. A razão é que a técnica da ação controlada busca a real identificação dos integrantes de grupos de traficantes e se esses já fossem conhecidos e passíveis de individualização, ao tempo da representação policial, o recurso à ação controlada seria dispensável. Por outro lado, a não ser que haja informante ou interceptação telefônica, o Estado não tem como determinar um itinerário provável da droga; terá, na realidade, uma vaga idéia do itinerário, não mais que isso.
A “entrega vigiada”, como técnica investigativa, não gera ação policial repressiva, embora possa a ter como conseqüência, num momento futuro, e, assim, não há que ser confundida com o “flagrante esperado”. Como há um mero “acompanhamento” ou “vigilância”, o efetivo policial destinado para a ação controlada é restrito, limitado, sem recursos materiais e humanos adequados para uma atuação repressiva estatal imediata que acarrete a prisão dos suspeitos identificados, o que feriria os fins da Lei 9.034/1995, do Decreto 5.015/2004 e de instrumentos legislativos correlatos, pois não revelada, ainda, toda a cadeia de domínio e divisão de tarefas.
4. A ação controlada nos tribunais: campana e vigilância policial
No HC 40.436, relatora Ministra Laurita Vaz, 5ª. Turma do STJ, publ. no DJ de 02.05.2006, p. 343, se decidiu que:
“(...) 1. Não se deve confundir flagrante preparado com esperado - em que a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar qualquer mecanismo causal da infração.
2. A "campana" realizada pelos policiais à espera dos fatos não se amolda à figura do flagrante preparado, porquanto não houve a instigação e tampouco a preparação do ato, mas apenas o exercício pelos milicianos de vigilância na conduta do agente criminoso, tão-somente à espera da prática da infração penal.” No mesmo sentido: HC 32.708, relatora Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma do STJ, publ. no DJ de 02.08.2004, p. 448.
Ou seja, o acompanhamento da movimentação e das ações do grupo criminoso organizado pelos órgãos policiais para atuação posterior, de forma mais eficiente para a colheita probatória, não torna o futuro flagrante um ato nulo, nem torna o crime impossível. O mesmo raciocínio vale para a vigilância eletrônica:
“Recurso especial. Penal. Furto. Supermercado. Segurança por meio de vigilância eletrônica. Crime impossível. Absoluta ineficácia do meio empregado. Não configuração.
1. A presença de sistema eletrônico de vigilância no estabelecimento comercial não torna o agente completamente incapaz de consumar o furto, logo, não há que se afastar a punição, a ponto de reconhecer configurado o crime impossível, pela absoluta ineficácia dos meios empregados. Precedentes. 2. Recurso provido.” (REsp 554.233, relatora Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma do STJ, publ. no DJ de 26.09.2005, p. 436). No mesmo sentido: REsp 751.156, idem, publicado no DJ de 13.11.2006, p. 289.
“Recurso especial. Penal. Tentativa de furto em supermercado. Delito praticado sob vigilância. Crime impossível não configurado. (...)” (REsp 508.224, relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, 6ª Turma do STJ, publ. no DJ de 09.05.2005, p. 485).
“(...) Não obstante o estabelecimento comercial estar equipado com sistemas de segurança, não se exclui a possibilidade de lesão. Os sistemas de vigilância são auxiliares do estabelecimento comercial no combate aos delitos, não garantindo, de forma peremptória, que certos crimes jamais ocorrerão”. (REsp 633.656, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma do STJ, publ. no DJ de 08.11.2004, p. 285).
Os precedentes estão em harmonia com os julgados do STJ e do STF que, no caso de roubo, entendem que o delito se consuma com a posse da res furtiva, mediante violência, não importando se o bem expropriado está ou não sob a vigilância da vítima. Portanto, é reforçado o entendimento de que a “vigilância” ou “campana”, em si, não torna o crime impossível ou o flagrante preparado:
“Embargos de divergência no recurso especial. Penal. Crime contra o patrimônio. Consumação do crime de roubo. Posse tranqüila da res. Desnecessidade. Precedentes do STJ e do STF.
1. O crime de roubo se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da res furtiva mediante grave ameaça ou violência, ainda que não obtenha a posse tranqüila do bem, sendo prescindível que saia da esfera de vigilância da vítima. Precedentes do STJ e do STF. 2. Embargos acolhidos”. (EREsp 235.205 – Embargos de Divergência no Recurso Especial –, relatora Ministra Laurita Vaz, 3ª Seção do STJ, publ. no DJ de 29.11.2004, p. 223).
Conclusão
Embora haja dificuldades materiais, com as quais o Estado continuará se deparando para alcançar todos os integrantes da organização de criminosos, como a insuficiência de informações sobre o destino final das cargas, mercadorias ou drogas ilícitas, a proporcionalidade e disponibilidade de recursos e a possibilidade de falta de acordo com as autoridades internacionais, a legislação federal assegura um instrumento eficaz de combate ao crime organizado que é a utilização da ação controlada, que deve estar atrelada às ações de inteligência policial.
Bibliografia
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Notas:
1. Convenção de Viena de 1988 - Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, aprovada pelo Decreto Legislativo 162, de 14.09.91, e incorporada ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 154, de 26.06.1991.
2. Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos, adotada pelo Decreto 3.229/99, complementado pelo Decreto 5.941/2006.
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