Ilegitimidade do direito penal de autor à luz do princípio de culpabilidade

Autor: Nivaldo Brunoni
Juiz Federal
Publicado na Edição 21 - 19.12.2007

Introdução

O Direito penal moderno, alicerçado sobre o fato do agente, é resultado de uma longa e árdua conquista da humanidade. A história é repleta de exemplos em que a pena constituía a conseqüência daquilo que o indivíduo era e não do que havia feito.

Na Escola Positiva os fatores que determinavam a criminalidade eram analisados desde a perspectiva do sujeito. Os positivistas acreditavam ser possível comprovar que fatores que levam a um indivíduo delinqüir são psíquicos-orgânicos, com o que reduziam o âmbito da criminalidade quase que totalmente ao patológico: determinadas anomalias faziam do tipo delinqüente um tipo patológico.

Nessa linha, LOMBROSO(1) colocava em proeminência a pessoa do delinqüente, estimando que a natureza, de quando em quando, produz um ser humano anti-social. Nela, o criminoso era considerado um anormal e a responsabilidade devia fundar-se na sua periculosidade. Por seu turno, FRANZ v. LISZT(2) proclamava que se devia castigar o autor antes que o fato cometido por ele, bem como que os juizes deviam expedir sentenças penais indeterminadas cujo cumprimento dependeria em grande medida da personalidade do delinqüente.(3)

Para a Escola Positiva, pois, o Direito penal deveria basear-se exclusivamente na necessidade de defesa social e abandonar, por conseguinte, toda a pretensão ética. Nela, o autor é considerado um ser inferior e degenerado, e o delito fruto do estado de perigosidade. Estabelece-se, assim, um maniqueísmo penal: o passa a ser tido por um ser perigoso, o qual deve ser patologizado ou neutralizado.

O que se deve reprovar não é o ato, mas a existência em si mesma. A culpabilidade é substituída pela aferição do grau de determinação (temibilidade ou perigosidade). O delito não passa de um signo ou sintoma da personalidade perniciosa do autor, fruto de sua má condução de vida. Em suma, “o positivismo naturalista deu cobertura a uma política defesa social que legitimou o Estado desmontar todas as garantias e direitos das pessoas”.(4)

Inúmeras reminiscências da Escola Positiva ainda são encontradas em nossa legislação, algumas das quais serão abordadas neste trabalho, sendo aplicadas sem muitos questionamentos por parte da doutrina e sobretudo pelos Tribunais.

Não obstante, em face do princípio de culpabilidade, que decorre da dignidade humana e encontra guarida constitucional, ao nosso ver, no art. 5º, XLV, da Carta Magna, é imperioso que se analise sobre a legitimidade dessas manifestações de Direito Penal de autor.

1 Definição de Direito Penal do autor

Malgrado não haja consenso sobre o conceito de Direito Penal de autor, é possível afirmar que por ele o que verdadeiramente configura o delito é o modo de ser do agente, como sintoma de sua personalidade: a essência do delito radica em uma característica do autor que explica a pena.(5) Ou seja, “a pena se associa de modo imediato à periculosidade do autor, pelo que para a justificação da sanção aquela deve ser atribuível à ”.(6) Por esta concepção o Direito Penal não deve castigar o ato, que em si mesmo não expressa muito valor, mas sim a atitude interna jurídica corrompida do agente. O delito em si tem um significado sintomático. “O ato é apenas uma lente que permite ver alguma coisa daquilo onde verdadeiramente estaria o desvalor e que se encontra em uma característica do autor”.(7) Por ser um ser inferiorizado e perigoso, como nas hipóteses do sujeito nocivo para o povo e do delinqüente habitual, o autor deve ser punido ou neutralizado, porque representa um perigo à sociedade. Neste sentido, o Direito Penal de autor foi acunhado de Direito Penal de ânimo, sendo a defesa social, em suma, o que nele justifica a pena.

Com o Direito Penal de autor surge o denominado tipo de autor, pelo qual o criminalizado é a personalidade, e não a conduta. A tipologia etiológica tem por fim último detectar os autores sem que seja preciso esperar o acontecimento da conduta. Ou seja, não se coíbe o subtrair coisa alheia móvel, mas ser ladrão; não se proíbe matar, mas ser homicida, etc. Não se despreza o fato, o qual, no entanto, tem apenas significação sintomática: presta-se apenas como ponto de partida ou como pressuposto da aplicação penal. Nela também se possibilita a criminalização da má vida ou estado perigoso, independentemente da ocorrência do delito, por meio da seleção de indivíduos portadores de determinados caracteres estereotipados: vagabundos, prostitutas, dependentes tóxicos, jogadores, ébrios, etc. Ou, também, a aplicação de penas pós-delituais, em função de determinadas características do autor, por meio de tipos normativos de autor: reincidentes, habituais, profissionais, etc.

Como tipos de autor se destacam o tipo normativo de autor e o tipo criminológico de autor. De acordo com a concepção do tipo normativo de autor, o fato somente se subsume ao tipo caso se ajuste à imagem ou modelo do autor: o que se faz é comparar o fato concreto com o modelo de conduta representado da ação que se espera de um típico autor do delito. É normativo, portanto, porque estabelece uma escala de valores da qual se utiliza como base para valorar os fatos realizados pelo autor. Diferentemente, na concepção do tipo criminológico de autor o que conta não é um juízo de valor, mas sim a constatação empírica de que a personalidade do autor concorda com as características do criminoso habitual.

2 Direito Penal do fato como corolário do princípio de culpabilidade

O Direito Penal de autor, além de enxovalhar o princípio de legalidade, ao possibilitar que sejam censurados atos anteriores estranhos ao delito, macula o próprio valor da dignidade humana. Na lição de ZAFARONI-BASTISTA-ALAGIA-SLOKAR,(8) “o discurso do direito penal de autor propõe aos operadores jurídicos a negação de sua própria condição de pessoa”, uma vez que o criminalizado é considerado um ser inferior, seja moral, seja mecanicamente, devendo, pois, ser censurado ou neutralizado. Para referidos autores, até mesmo no moderno direito penal do risco, o qual tipifica atos de tentativa e preparatórios no afã de controlar a lealdade das pessoas ao sistema encontra-se um matiz moralizante, pois a responsabilização estriba-se antes nas expectativas normativas que no aspecto volitivo do agente.

Nessa linha, observa MOCCIA(9) que um questionamento baseado na valoração da mera atitude interior resulta funcional para a realização de exigências de tipo repressivo-intimidatório, vinculadas à pretensão de um controle, via Direito Penal, da própria esfera interna da pessoa. Contudo, resulta inadmissível em um ordenamento inspirado nos princípios garantistas de um Estado Social de Direito, que privilegiam a exaltação de momentos de autonomia e dignidade da pessoa, e que encontra expressão, no que concerne à função da intervenção penal, na satisfação de autênticas instâncias de integração social.

A moderna doutrina(10) tem colocado em evidência que como corolário lógico do principio de culpabilidade emerge o direito penal do ato ou fato, o qual proclama que ninguém é culpado de forma geral, mas somente em relação a um determinado fato ilícito. “O Direito penal de ato concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como decisão autônoma de um ente responsável (pessoa) ao qual se lhe pode reprovar e, portanto, retribuir-lhe o mal na medida da culpabilidade (da autonomia de vontade com que atuou)”.(11) Refere-se, inclusive, ao princípio do fato, o qual pode ser violado por meio de duas formas: pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade, utilizados como sintoma de ânimo.(12)

A culpabilidade é sempre referida a um fato determinado, respeitando-se a autonomia de vontade do autor.(13) No direito penal do fato a culpabilidade constitui um juízo sobre a relação do autor para com o fato concretamente realizado, e não em função da forma de conduzir sua vida – de sua personalidade – ou dos perigos que no futuro se lhe esperam.

De acordo com ROXIN,(14) “um ordenamento jurídico que se baseie em princípios próprios de um Estado de Direito liberal se inclinará sempre em direção a um Direito penal do fato”. E quando o Estado de Direito comete a ousadia de pretender sancionar seus súditos pelo que são, assume feição teocrática. Com isso, “logra construir uma conexão punitiva desde o delito em forma de periculosidade espiritualizada: substitui ao estado perigoso pelo estado de pecado penal”.(15)

O primeiro mandamento, pois, que se extrai da consagração do princípio de culpabilidade é que o legislador constituinte optou pelo Direito Penal do fato, não sendo possível, por conseguinte, tipificar ou sancionar o caráter ou modo de ser, pois no âmbito do Direito Penal não se deve julgar a pessoa, mas exclusivamente seus atos. O Direito penal deve partir do dogma do fato,(16) de tal modo que não caiba a responsabilização de outros aspectos que não sejam condutas objetivamente perceptíveis. Com propriedade observam ZAFFARONI-PIERANGELI(17) que “um Direito que reconheça, mas que também respeite, a autonomia moral da pessoa jamais pode penalizar o ser de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação”. Até porque, para que fossem conseqüentes, os partidários do Direito Penal de autor deveriam defender que é suficiente a atitude interna para se castigar o autor e não se ter que aguardar o cometimento do delito.(18)

3 Ilegitimidade do Direito Penal de autor

A distinção entre direito penal de autor e direito penal de fato não tem apenas valor didático e doutrinário, como pensam alguns.(19) Ainda que na prática hajam várias disposições legisladas que se amoldam a uma concepção ligada ao direito penal de autor (reincidência, personalidade, antecedentes, etc), isso não significa que deva ser adotado sem qualquer questionamento. O principio de culpabilidade goza de status constitucional, cuja principal implicação é a de justamente não recepcionar uma culpabilidade que não se estribe no Direito Penal do fato. É preciso, como se disse alhures, mudar a visão do Direito Penal e situar o fato delituoso ao lado e por cima da pessoa do agente. Para tanto, é mister que se realize uma depuração da legislação infraconstitucional de modo a que sejam desconsideradas as manifestações de Direito penal de autor, notadamente quando da aferição da pena.

O Tribunal Constitucional Espanhol em várias oportunidades(20) deixou assentado tal aspecto, ao declarar “que não seria constitucionalmente legítimo um direito penal de autor que determinasse as penas em atenção à personalidade do réu, e não segundo a culpabilidade deste na comissão dos fatos”. Afirma, ainda, a imperiosa necessidade de se partir de um conceito de culpabilidade pelo fato. E esse ponto de partida nega a possibilidade de um juízo sobre a vida anterior do autor, para julgá-lo pelo que fez e não pelo que é, que é o que verdadeiramente interessa ao conceito de culpabilidade que não se baseie num juízo sobre a personalidade do autor, mas sim num juízo sobre o fato ilícito concretamente por ele decidido.(21)

Em Alemanha, a jurisprudência constante do Tribunal Supremo Federal é no sentido de que se deve partir do princípio de culpabilidade pelo fato e não extrair a culpabilidade na medição da pena de defeitos de caráter que se manifestem na condução da vida geral.(22) E na literatura alemã já quase não se encontram defensores das teorias da culpabilidade pelo caráter ou pela condução de vida.

Tampouco é possível a combinação do direito penal do fato com o direito penal de autor, a fim de se possibilitar a reprovação de ambos os aspectos. Como põe de manifesto PIERANGELI,(23) ou se reprova pelo ato concreto praticado, ou como fato que resulta de uma conduta de vida. Impossível conciliar o livre-arbítrio aristotélico com uma gama de determinismo para a formulação do juízo de censura.

4 Princípio da regulatividade (vedação de normas penais constitutivas)

FERRAJOLI,(24) com base na análise dos elementos constitutivos do delito, formulou o princípio da regulatividade, o qual designa a estrutura deôntica das leis penais e se identifica com o pressuposto lógico das garantias substanciais da materialidade e da culpabilidade. Amparado na distinção elaborada pela filosofia jurídica analítica, sustenta que as normas podem ser classificadas em regulativas ou constitutivas. As primeiras são aquelas que regulam um comportamento qualificando-o deonticamente como permitido, proibido ou obrigatório, e condicionando à sua comissão ou omissão a produção de efeitos jurídicos que prevê. Em poucas palavras: pressupõe a possibilidade de serem observadas ou violadas por parte de seus destinatários. Já as segundas (constitutivas) são as que punem imediatamente a pessoa, sem a mediação de comportamentos cuja comissão ou omissão suponham sua observância ou sua infração, qualificações e/ou efeitos jurídicos.

Pelo princípio da regulatividade, conseqüentemente, restam proscritas: a) as leis penais constitutivas, que não regulam comportamentos, não contêm proibições e não admitem a alternativa entre a observância e a inobservância, senão que constituem diretamente os pressupostos da pena, estigmatizando ou qualificando como réus um sujeito ou uma classe de sujeitos, muito mais em razão da sua forma de ser do que pela sua forma de atuar; b) as sentenças penais constitutivas, que não comprovam os pressupostos fáticos legalmente predeterminados, senão que se constituem em qualificações penais, previstas em abstrato por leis penais quase constitutivas, mediante juízos de valor que tem por objeto a pessoa.

Em muitos ordenamentos as pessoas são responsabilizadas pela forma de ser – bruxas, ébrios, anarquistas, subversivos, meliantes, inimigos do povo, perigosos, suspeitos, etc. – e não pela sua forma de agir. Tal mecanismo punitivo observa FERRAJOLI,(25) choca-se com a garantia de culpabilidade e com o caráter regulativo que ela supõe. São garantias que, no geral, se opõem a todas as perversões positivistas e espiritualistas dirigidas a conferir relevância penal autônoma à personalidade do réu. “Num sistema garantista assim configurado não tem lugar nem a categoria periculosidade, nem qualquer outra tipologia subjetiva ou de autor elaboradas pela criminologia antropológica ou ética, tais como a capacidade criminal, a reincidência, a tendência para delinqüir, a imoralidade ou a falta de lealdade.”(26)

A regulatividade, na visão de FERRAJOLI, além de consistir uma condição para a generalidade um pressuposto para a igualdade penal, caracteriza-se como um pressuposto indispensável da tutela da dignidade do homem. O caráter constitutivo da norma penal implica, em princípio, desigualdade e discriminação. “Ao castigar e reprimir a identidade desviante independentemente das ações realizadas, as normas penais constitutivas pressupõem que somos, natural ou socialmente, diferentes, e expressam, com isso, a intolerância para com as pessoas anormais ou simplesmente diferentes, identificadas por características intrínsecas, quaisquer que sejam os critérios para sua diferenciação.”(27)

Para FERRAJOLI, são constitutivas as normas que consideram como possíveis destinatários de medidas de prevenção os desocupados, vagabundos, dedicados ao tráfico ilícito, propensos a delinqüir e semelhantes. Contudo, reconhece que os tipos mais importantes são os da reincidência, da vadiagem e da periculosidade. Enfatiza que as normas contra desocupados e vagabundos são ainda mais absurdas e socialmente discriminatórias, e que também a periculosidade (assim como a reincidência) “é uma forma de ser mais do que uma forma de agir, que atua, indevidamente, como um substitutivo da culpabilidade no qual se expressa a atual subjetivação do direito penal. Só que aquela é, da mesma forma que o status social do suspeito, valorada pelo juiz e adstrita ao sujeito julgado não diretamente pela lei, senão por uma sentença constitutiva.”(28)

Tais normas constitutivas atentam, ademais, contra o sistema processual acusatório, o qual deve buscar erradicar os resquícios inquisitivos, reduzir ao máximo o arbítrio judicial e propiciar uma investigação e individualização da pena pautada em função do fato concretamente realizado. Isso não ocorre, como lembra RIGHI,(29) se no processo se pretende investigar a personalidade do autor, a eventual reincidência e o efeito dissuasivo que teria a pena imposta ao acusado, pois já não se mira ao ocorrido. O que nestes casos se procura é prognosticar o futuro, o que fatalmente conduz a concentrar funções nos órgãos jurisdicionais, aumentar sua discricionariedade e fortalecer métodos inquisitivos, com menoscabo da contradição e a defesa em juízo.

Na esteira de tal ponto de vista, se abordará a personalidade, a reincidência e os maus antecedentes, aspectos que, juntamente com a conduta social, têm sido objeto de severas críticas por parte de um setor da doutrina, precisamente em função de seu caráter constitutivo.

5 Personalidade

Na criminologia, a teoria psicanalítica do delito encontra na estruturação da personalidade do delinqüente as causas do crime, cujos fatores preponderantes seriam os seguintes: 1º – o homem é, por natureza, um ser a-social. Por isso é que Freud refere a criança como um perverso polimórfico, e Stekel, como um criminoso universal; 2º – a causa do crime é, em última instância, social. O crime – escreve Glover – representa uma das parcelas do preço pago pela domesticação de um animal selvagem por natureza; ou, numa formulação mais atenuada, é uma das conseqüências de uma domesticação sem êxito; 3º – durante a infância é que se modela a personalidade. É, noutros termos, durante a infância que se definem os equilíbrios ou desequilíbrios que, com caráter duradouro, hão de dar origem ao comportamento desviante ou às condutas socialmente aceitas.(30)

O certo é que, apesar de todos os avanços científicos, ainda não se logrou estabelecer uma definição segura acerca da personalidade normal. Em razão das dificuldades, tem-se preferido, ao invés de uma clara concepção sobre a normalidade, a busca de critérios para identificá-la, que segundo CABRERA FORNEIRO-FUERTES ROCAÑIN(31) se encontram presentes nos seguintes aspectos: a) ausência de patologia incluída na clínica habitual e nas classificações internacionais; b) maturidade da personalidade; c) capacidade de adaptação aos diferentes imprevistos da vida.

De acordo com a Psiquiatria, pois, é o critério da adaptação da pessoa ao seu ambiente social que estabelece o padrão de personalidade, muito embora haja quem coloque em dúvida se existe efetivamente alguma pessoa que possa ser considerada normal.(32)

Não obstante, muitos penalistas ainda propugnam que o substrato material de culpabilidade seja definido com base no caráter da pessoa, o qual constitui a exteriorização da estrutura de base da personalidade, quando não o próprio legislador a prevê (a personalidade) como fator de mensuração da pena (art. 59 do Código Penal). Nessa linha, defende SILVA FRANCO(33) que “o exame da personalidade permitirá ao juiz verificar em que medida o comportamento criminoso é reflexo dela, tornando-o mais ou menos reprovável”.

O próprio WELZEL,(34) ao tentar caracterizar a essência da culpabilidade, entendia que a falta de autodeterminação conforme ao sentido pode basear-se tanto em um fracasso único do Eu-centro responsável da pessoa como também na estrutura defeituosa da capa da personalidade, isto é, num defeito reprovável do caráter, o que levou algum setor da doutrina a estimar que o pensamento Welziano realizou uma tentativa de compatibilizar o determinismo da criminologia etiológica com a culpabilidade como reprovabilidade.(35)

Na jurisprudência, muitas decisões contêm afirmações – não raras vezes desprovidas de exame e baseadas em elementos frágeis – do tipo personalidade inclinada à delinqüência, personalidade desajustada ou personalidade impulsiva, em atendimento ao disposto no art. 59 do Código Penal, quando não referidas a distorções psicológicas de cunho religioso.(36) De acordo com o STJ, é de mister “examinar se a repetição do agente evidencia tendência genérica ou específica para a criminalidade, ferindo-se, assim, a personalidade do autor”.(37) Até mesmo o Supremo Tribunal Federal faz referência à má personalidade,(38) personalidade especificamente voltada para o crime(39) ou à personalidade deformada do paciente, incompatível com a vida em sociedade, para concluir pela suficiência ou não do agravamento da pena.(40)

Defende-se ser possível, a partir da variação dos traços emocionais e comportamentais, proceder-se ao diagnóstico de uma personalidade desviada do mínimo ético. Contudo, recorrer a exames criminológicos para se efetuar um juízo de censura da personalidade do indivíduo é uma tarefa assaz difícil de se realizar.(41) Como visto, a normalidade no fundo não passa de um conceito obtido por eliminação, calcado na média do grupo ou da sociedade.(42)

Em razão disso, a doutrina de vanguarda tem posto de manifesto que não existem garantias seguras de que a investigação sobre a personalidade venha a render resultados satisfatórios, seja em decorrência de seu caráter dinâmico,(43) seja pela inviabilidade de se estabelecer um padrão de normalidade, ou mesmo porque para tal desiderato influem inúmeras variáveis, como a influência familiar e o ambiente social.

Além do que, a personalidade do homem integra-se não só com caracteres adquiridos mediante vivência ou condutas anteriores, mas também com elementos herdados, isto é, com elementos que provêem de uma carga genética recebida. Assim, uma censura da personalidade implicaria uma reprovação daquilo que herdamos geneticamente, vale dizer, redundaria na reprovação de algo que é absolutamente estranho à conduta do sujeito.(44)

Mas não é só. Como assinalam JESCHECK-WEIGEND(45) também existiria o perigo de que a indagação sobre a personalidade conduzisse a um sacrifício da esfera íntima do acusado não correspondente com a importância da causa penal, “algo que nem estaria a serviço da Justiça nem tampouco da reintegração do réu na comunidade”.

O fundamental para se reprovar uma conduta é que o autor tenha conhecido o injusto do fato e podido decidir-se conforme ao Direito numa determinada situação concreta, sem qualquer consideração acerca de sua conduta de vida ou caráter. Com propriedade observa JUAREZ TAVARES(46) que ao Direito Penal é indiferente a formação da personalidade ou o caráter do autor, para o fim de caracterizar sua conduta como criminosa. A culpabilidade - de acordo com o referido penalista pátrio – “deve basear-se no fato antijurídico, atribuído pessoalmente ao autor, onde assume relevância o critério regulador da exigibilidade (fundamento objetivo) de uma conduta adequada à norma”.(47)

O Estado merecedor do qualificativo de Estado de Direito deve se ocupar da comunicação social, e não da esfera íntima das pessoas. Por conseguinte, razão assiste a SALO DE CARVALHO(48) quando afirma que antes das dificuldades do diagnóstico o problema tem mais a ver com a ilegitimidade, pois, pelo prisma de um Direito Penal de garantias balizado pelo princípio da secularização, é vedado ao julgador invadir discricionariamente uma área da esfera individual na qual é ilegítimo opinar: a interioridade da pessoa.

Cuida-se, portanto, de conseguir que o cidadão se mantenha no respeito ao dever ser ideal e não a que o assuma como próprio, dado que ao Direito não lhe importa as razões pelas quais se obedece à norma: lhe basta que obedeça.(49) Nisto consiste o que a doutrina passou a denominar de mandado de neutralidade do Direito frente aos motivos de sua observância: são discricionários os motivos ou razões a partir dos quais há de se cumprir a norma.(50)

Nessa linha de pensamento, observa BOSCHI(51) que o reconhecimento de que a pena ou sua maior intensificação tem por finalidade alcançar a compulsória modificação do condenado, mesmo daquele que apresenta transtorno de personalidade, significa reconhecer, em última análise, que o Estado é titular do poder totalitário de mudar os outros, anulando o direito de todos à diferença. Ocorre que Estado pode exigir unicamente que seus cidadãos se pautem de acordo com as regras por ele emanadas; jamais que mudem a sua concepção de vida e seus valores interiores.

É próprio do Direito – afirmava KANT(52) – contentar-se com que os indivíduos, aos quais a norma jurídica é dirigida, executem o que a norma prescreve sem indagar o animus com o qual é cumprida. O Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruins, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente, o direito de alterar-reeducar, redimir, recuperar, ressocializar, etc. – a personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é.(53)

Resulta criticável, pois, a assertiva de que para delinqüentes com graves perturbações de personalidade está mais indicada uma pena de vários anos e para delinqüentes sem graves problemas de socialização o recomendado é um patamar menor. Isso significaria fixar a pena em função de uma actio inmoral in causa, por meio da qual se pode chegar a reprovar os atos mais íntimos do indivíduo, correndo-se o risco de se acabar com o conceito tradicional de culpabilidade penal e transformar-se o direito penal em uma espécie de terapêutica psicológica ou psiquiátrica.(54)

De acordo com ROXIN,(55) o melhor caminho para sustentar uma concepção da culpabilidade que proclama o dever de responder pela própria condição do ser seria, desde logo o de renunciar totalmente à retribuição e ao reproche moral contra o sujeito, reduzir o Direito Penal a finalidades preventivas e entender a culpabilidade mais no sentido de uma responsabilidade social. Conseqüentemente, “o que se pudesse seguir qualificando a seus pressupostos de culpabilidade e a tal conseqüência jurídica de pena seria mais uma questão terminológica”.

Em resumo, poucos conceitos podem ser mais destrutivos para uma sã concepção do Direito Penal que o de personalidade. Aliás, poucos términos são objeto de definições tão díspares na Psicologia e na Psiquiatria, nas quais é possível encontrar várias dezenas delas.(56) Seguramente pensando nisso é que em Espanha o Supremo Tribunal deixou assentado na Sentença 150/91 que “não seria legítimo um Direito Penal de autor, que determinasse as penas em atenção à personalidade do réu e não segundo a culpabilidade deste na comissão dos fatos”.

Na valoração da pena adequada à culpabilidade devem ser descartados todo e qualquer fator que diga respeito à personalidade do autor. Devem eliminar-se os momentos referidos à personalidade (a vida do autor anterior ao fato e as penas sofridas, a periculosidade, o caráter). Só assim será possível aventar uma pura culpabilidade pelo fato.(57)

Frise-se, porém, que a personalidade – entendida como as condições pessoais e biográficas da pessoa – pode e deve ser considerada de acordo com a culpabilidade de ato como fator de aferição do âmbito de autodeterminação do autor. Ou seja, deve-se levar em conta as diferenças que fazem mais fácil ou mais difícil a um determinado sujeito pautar sua conduta de acordo com a norma. Tal consideração – deve-se ter sempre presente – nada tem a ver, por ser coisa bem distinta, com a reprovação da personalidade em si mesma (inadmissível em face do princípio de culpabilidade). Como esclarecem ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR,(58) “não se trata de formular um reproche de sua personalidade, mas de determinar, aos efeitos do reproche da conduta, o catálogo de condutas possíveis que lhe permitiam as características de sua personalidade na constelação situacional concreta”. Em suma, leva-se em conta as características pessoais do autor, mas pura e simplesmente para se aferir o grau de autodeterminação que possuía diante da constelação de condutas que tinha à disposição. Sinteticamente: pelas condições pessoais afere-se a autodeterminação sem proceder-se a um exame de toda a trajetória vital do autor – renunciando-se a juízos globais acerca de seu caráter ou conduta de vida.(59)

6 Reincidência

A recaída no crime tem sido objeto de intenso debate doutrinário ao longo do tempo. Perante a alta idade média era suficiente a habitualidade criminosa para a caracterização da reincidência, mas paulatinamente se passou a exigir a condenação prévia como forma de caracterizar uma especial tendência anti-social, ao entendimento de que com o menosprezo à advertência anterior o agente revelava inclinação ao crime. Perante o Iluminismo, alicerçado nos princípios da secularização e da tolerância, se considerará infamante a possibilidade de uma pessoa ser censurada por delito anterior cuja pena já tivesse sido cumprida. Porém, com a criminologia etiológica da Escola Positiva se voltará a defender ferrenhamente um direito penal de autor estruturado com base na tendência criminosa de determinados delinqüentes, cuja periculosidade constitui o seu signo principal.

Hodiernamente, a teoria da culpabilidade do fato tenta justificar a reincidência em face do menosprezo ao valor admonitório da condenação anterior. A maior culpabilidade estaria no conhecimento mais profundo e direto da antijuridicidade, dado que com a segunda ação o sujeito reviveria a infração da norma. Ou seja, o não ter tomado como advertência a anterior condenação conduz a um aumento da censurabilidade e isso se lhe pode reprovar ao autor em relação ao delito que se há de julgar.(60) A consciência de merecimento de pena – costuma-se afirmar – adquire-se empiricamente. Portanto, a elevada energia criminal, fruto de um conhecimento agravado da proibição (não se ter deixado motivar pela advertência formal), pode perfeitamente ser objeto de agravação de acordo com a culpabilidade pelo fato.

Ocorre que, como tem posto de manifesto um setor da doutrina, as tentativas de explicar a reincidência dentro dos limites de um direito penal de ato são todas insatisfatórias,(61) pois, por mais que se afirme que ela só afeta a pena por ser algo externo ao delito como formulação jurídica, o certo é que o agente terá a pena agravada por fatores alheios ao fato concretamente realizado, ou seja, em razão de sua tendência criminosa. Ademais, o conhecimento acentuado da proibição não justifica um aumento de pena porque do que se trata, em todo caso, é da vivência do sofrimento de pena, cujo processamento positivo, desde o ponto de vista jurídico, é assunto do autor.(62)

Com a reincidência rompe-se a proporcionalidade entre crime e pena, dado que o plus por ela acrescido equivale a uma pena sem culpabilidade. Além disso, proporciona nova punição ao fato anterior, resultando a agravação numa medida de segurança de índole particular. Portanto, não convence o argumento de que os réus com condenações anteriores têm um específico dever de não delinqüir novamente. Esse argumento, como chama a atenção HÖRNLE,(63) “é estabelecido como premissa prévia num autoritário ponto de vista que deveria ser rechaçado. Desde uma perspectiva liberal, não é possível justificar um específico dever adicional ao dever geral de respeitar os direitos dos demais”.

A teoria da dupla lesão tenta justificar o incremento de pena pela reincidência ao argumento de que com o segundo delito ocorre não só uma lesão imediata ao bem jurídico individual, mas também, em decorrência do maior alarma social deflagrado, uma lesão de cunho político, defendido de forma mediata. A principal crítica que se lança a tal postura é que ela rompe com o conceito de bem jurídico, calcado no princípio da lesividade, já que o dano político é muito pouco provável de se verificar: na prática, somente os operadores jurídicos é que têm conhecimento acerca da reincidência de alguém.

A recidiva, conforme põe de manifesto a moderna doutrina, só pode ser fundamentada com base na teoria da maior periculosidade ou periculosidade presumida, fruto da criminologia caracteriológica da Escola Positiva, que vê no criminoso reincidente uma pessoa perversa, perigosa e necessitada de tratamento, que deve ser ressocializada(64) . Periculosidade fundada na forte probabilidade de que o delinqüente reitere na prática delituosa, o que a doutrina moderna denominará de exercício de futurologia e de instrumento de manutenção de determinadas estruturas de poder,(65) quando não de estratégia de neutralização.(66) Com precisão, observa ROXIN(67) que a educação de um multireincidente para um comportamento normal é um processo extraordinariamente complexo cuja exata duração não se pode prever no caso concreto.

De acordo com ZAFFARONI,(68) nenhum dos argumentos justificantes que, pelo desvio autoritário materialista (perigosista) ou espiritualista (tipo ou culpabilidade de autor) quiseram explicar a maior gravidade da pena do segundo delito conseguiu enfrentar a questão de que o plus de gravidade é uma nova reprovação ao primeiro delito. A pouco convincente tentativa de duplicar a norma de cada tipo (e com ela o bem jurídico) de ARMIN KAUFMANN, de acordo com o referido autor, é, sem dúvida, a única que tentou se ocupar do problema em profundidade, embora com o péssimo resultado de implicar a invenção de um bem jurídico que seria o velho e autoritário suposto direito subjetivo estatal à obediência pura. Por isso conclui que “toda maior gravidade da conseqüência jurídica do segundo delito (em forma de pena, de medida ou de privação de benefícios) é uma concessão ao direito penal autoritário, abrindo as portas para conceitos espúrios e perigosos para todas as garantias penais”.(69)

Também a criminologia da reação social e um setor da sociologia norte-americana, contrapondo-se às teses anti-garantistas e autoritárias da Escola Positiva, lançarão renovadas críticas à averiguação do passado da pessoa e contestarão a admissão do instituto da reincidência pelo legislador, por ser inadequada num sistema penal respeitoso com o foro interno e que se limite a proteger bens jurídicos. Afirma-se que com a consideração da reincidência estabelece-se um processo de rotulação e etiquetamento, pelo qual o criminoso é identificado como um ser perigoso, inadaptado e perverso. O reincidente passa a fazer parte de uma categoria específica diferenciada pelo estigma, que no fundo se presta como instrumento de apartheid social. Em suma, o estigma da reincidência estabelece nas relações sociais um status social negativo, que além de obstar a adaptação do delinqüente o impulsiona à reiteração criminosa.(70)

Um setor da doutrina vai além e defende, com amparo em estudos psicológicos e sociológicos, que o sujeito reincidente atua exatamente com menor culpabilidade devido a sua menor capacidade para resistir ao delito.(71) De acordo com HAFKE,(72) “a investigação profunda e sutil da personalidade do autor conduzirá, segundo todos os conhecimentos disponíveis sobre o autor reincidente, previsivelmente a afirmar que sua culpabilidade pelo fato deve ser, por regra, atenuada”. Tal assertiva, aliada à constatação da ação deformadora do cárcere sobre o apenado,(73) é o mote para que seja propugnada a inversão dos efeitos da reincidência: ao invés de agravar, a reincidência (real) deveria funcionar como circunstância atenuante.(74)

No ordenamento jurídico alemão o dispositivo que previa a agravante da reincidência fazia alusão expressa à idéia de que as anteriores condenações não haviam servido de advertência ao autor. Porém, foi derrogado por ser incompatível com o princípio de culpabilidade pelo fato.(75) Na América Latina, o exemplo da abolição da reincidência vem do legislador Colombiano.(76)

Tais posturas deveriam ser a regra, e não exceção em Estados Democráticos de Direito, pois como visto a manutenção do instituto da reincidência constitui intolerável afastamento do Direito Penal de garantias. Em razão disso põe de manifesto ZAFFARONI(77) que um instituto que leva a exaltar como valores a ordem e a obediência em si mesmas; que leva o Estado a se atribuir a função de julgar o que cada ser humano escolhe ser e o que cada ser humano é; que implica um bis in idem; que contribui para afastar discurso jurídico da realidade, ignorando dados que se manifestam há séculos e que as ciências sociais demonstram de maneira incontestável; que, com tudo isto, contraria a letra e o espírito da consciência jurídica da comunidade internacional, moldada nos instrumentos jus humanistas; um instituto como este “deveria desaparecer do campo jurídico, da mesma forma que desapareceram, a seu tempo, a tortura no âmbito processual ou a analogia no campo penal”.

6.1 A Reincidência no ordenamento jurídico pátrio

O Código Penal não define a reincidência, apenas estabelece os requisitos para a sua constatação: cometimento de nova infração depois de transitada em julgado a anterior e lapso temporal inferior a cinco anos (art. 63).(78) A sua consideração é obrigatória e produz vários efeitos.(79)

A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, de maneira geral, tem admitido a consideração da reincidência sob a avaliação de que o instituto não configura ofensa ao princípio ne bis in idem,(80) mas sem qualquer questionamento acerca de sua constitucionalidade à luz do princípio de culpabilidade pelo fato, inclusive com o reconhecimento de que ela consubstancia “uma situação que demonstra tendência para a prática de delitos”.(81)

A exceção vem do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual, mostrando-se receptivo à tese de que o instituto da reincidência não foi recepcionado pela Constituição de 1988, por representar punição pelo modo de ser do indivíduo – entre outros fundamentos –, afastou a sua incidência em algumas oportunidades.(82)

Na doutrina, há quem estime que a exacerbação da pena se justifica porque o reincidente demonstra que a sanção anteriormente recebida foi insuficiente para intimidá-lo e recuperá-lo, havendo, inclusive, um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reitera na prática criminosa.(83) Sustenta-se, inclusive, que a consideração da reincidência por ocasião da individualização da pena “não significa qualquer rompimento com a teoria da culpabilidade pelo ato ou pelo fato, porque a censura decorre do injusto praticado com liberdade de atuação e a sua personalidade funciona apenas como critério, nunca como objeto de censura”.(84)

Para um outro setor, no entanto, a reincidência é incompatível com o modelo garantista proposto pela Carta Magna de 1988, fundado num direito penal democrático e humanitário, seja porque ela impõe tomar em consideração a infração anterior no juízo de censura penal e com isso uma culpabilidade pela condução de vida, seja porque o próprio Estado a propicia por meio de um sistema penitenciário desumano e marginalizador.(85) Nas palavras de KARAM,(86) “quanto mais reiterado o contato com o sistema penal, maior o impulso do processo de criminalização que acaba por se tornar irreversível”.

Há, não obstante, quem defenda a relativização do instituto da reincidência de modo a possibilitar a sua incidência de forma não automática, mas sim até ao limite que não supere a gravidade da culpabilidade. Dito de outra forma, a reincidência, para conciliar-se com o princípio de culpabilidade, não poderia ser imperativo de aumento, baseada em dados meramente objetivos; seria imperiosa a conjugação dos crimes, de maneira que a reincidência somente pudesse agravar a pena se entre os delitos houvesse conexão que recomendasse recrudescer a sanctio iuris.(87)

De nossa parte, em que pese seja um avanço a proposta de relativizar o instituto da reincidência, estamos de pleno acordo com o setor da doutrina que esgrime sua inconstitucionalidade por sua manifesta irracionalidade(88) e por se amparar num Direito Penal de autor. Com razão, pois, sustenta SALO DE CARVALHO(89) que a avaliação do instituto merece receber tonalidade constitucional de molde a alcançar sua absoluta deslegitimação, tendo em conta que “viola frontalmente a estrutura principiológica constitucional fundada sobre o pressuposto da secularização”. Isso principalmente porque o Direito não pode se afastar da realidade, da qual se constata a falência de nosso sistema carcerário, fator que contribui decisivamente para o círculo perverso de o delinqüente não encontrar seu espaço na sociedade e reiterar na prática delituosa.

7 Maus antecedentes

Antecedentes são os precedentes judiciais (técnicos ou jurídicos) que antecedem à prática do fato criminoso. Todas as críticas que foram dirigidas à reincidência são pertinentes à questão dos antecedentes criminais, já que a “natureza dos antecedentes guarda estreita sintonia com o da reincidência, ou seja, ambos versam sobre graduações valorativas (negativas) da vida pregressa do acusado”.(90) Aliás, de há muito um setor da doutrina vem advertindo que a rotina da atividade judiciária atribui relevância excepcional e demasiada aos antecedentes,(91) com tendência inclusive de pré-determinar juízos de condenação.(92)

Diferentemente da reincidência, no entanto, os maus antecedentes são cunhados ainda pela característica da perpetuidade, pois para eles inexiste limitação temporal para que sejam considerados pelo magistrado. Assim, aderimos ao setor da doutrina que, sem negar que a Carta Magna não recepcionou os maus antecedentes como fator de aumento de pena (art. 59 do CP), pugna de forma imediata a relativização do instituto para fixar a sua temporalidade nos moldes da reincidência, por meio do recurso da analogia in bonam partem. O estigma da condenação criminal não pode ser perene; a perpetuidade é contrária ao princípio da dignidade da pessoa e da humanidade das penas.(93)

Nesse sentido há inclusive precedente do Superior Tribunal de Justiça,(94) o qual deixou assentado que “o artigo 61, I, do CP determina que, para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou da extinção da pena e a infração anterior houver decorrido período superior a cinco anos. O dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos. O estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo. Transcorrido o tempo referido, evidencia-se a ausência de periculosidade, denotando, em princípio, criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação com a Justiça Penal. Conclusão é válida também para os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente par recrudescer a sanção aplicada”.

Tal providência teria o condão de afastar o risco de malgrado não persistir a sentença condenatória para fins de reincidência, por ter sido declarada extinta a punibilidade, ser ela admitida para fins de antecedentes, conforme tem admitido um setor da jurisprudência.(95) Aliás, nessa linha de entendimento, é bem possível que se venha a sustentar dentro em breve que até mesmo a absolvição por falta de provas pode servir como maus antecedentes, em sentido diametralmente oposto à tão proclamada humanização do Direito penal.

Os institutos dos antecedentes e da reincidência têm sido estimados pela doutrina de vanguarda como “algumas das maiores máculas do modelo penal de garantias proposto pela Carta Constitucional de 1988”, precisamente em razão de seu caráter constitutivo.(96) A eliminação de ditas normas (constitutivas) teria a vantagem, segundo ZAFFARONI,(97) de “eliminar os antecedentes penais (que se tornariam desnecessários), com o que desapareceria a consagração legal da estigmatização. A recuperação de um Direito Penal de garantias pleno daria um passo exatamente significativo com a abolição da reincidência e dos conceitos que lhe são próximos, conceitos estes sempre evocativos dos desvios autoritários dos princípios fundamentais do direito penal liberal, e especialmente, do estrito direito penal do ato”. Tal postura, ainda, traria reflexos na órbita da legislação adjetiva penal, de duas ordens: o juiz não teria mais que se preocupar em trazer aos autos informações acerca dos antecedentes e também poderia indeferir a oitiva das denominadas testemunhas abonatórias, fatores que nada acrescentam para o deslinde da causa e que contribuem decisivamente para a procrastinação e prescrição dos feitos criminais.

Teria, ademais, outra vantagem de ordem prática, qual seja, a de despojar o julgador de influências alheias aos elementos de convicção jungidos aos autos. Com efeito, em reiteradas decisões tem-se reconhecido de forma explicita os antecedentes como fatores que podem reforçar a convicção em desfavor do réu,(98) como valiosos elementos para a formação do convencimento do juiz(99) ou mesmo como importante adminículo para a formação do convencimento,(100) com o que não se pode concordar em absoluto. Tal postura representa a adoção dos nefastos postulados da Escola Positiva fundados na periculosidade do agente e implica grave lesão ao princípio da presunção de não-culpabilidade. Ainda que o acusado seja reincidente e registre antecedentes, tem o direito fundamental de ter um julgamento justo e imparcial.

Assim, resulta inconstitucional a restrição contida no art. 76, § 2º, III, da Lei 9.099/95, a qual obsta que o Ministério Público proponha a transação penal quando o autor do fato registrar antecedentes ou a conduta social e a personalidade não a recomendarem. Além de enxovalhar o princípio de culpabilidade pelo fato, tal postura não tem em conta que o objetivo da lei é não só a solução rápida do conflito, como também evitar a estigmatização pelo processo-crime. Como pondera CASTRO SANTOS,(101) “o que importa é o crime em si, a culpabilidade em relação ao fato (e não a culpabilidade pelo modus vivendi), a necessidade da pena em virtude da ação do infrator e não de seus antecedentes, de sua conduta social e de sua personalidade”. A crítica é extensível ao disposto no art. 89 da referida lei, que também veda que o Ministério Público proponha a suspensão do processo caso o acusado tenha sido condenado ou esteja sendo processado.

8 Conduta social

É fora de dúvida que a conduta social do agente, prevista no art. 59 do Código Penal como uma das variáveis subjetivas que podem influir na determinação do grau de censura, ampara-se numa culpabilidade de caráter, e por isso macula o princípio de culpabilidade, que impõe um Direito Penal do fato.

Efetivamente, a conduta social, fator autônomo de determinação da pena que não pode ser confundido com os antecedentes,(102) reflete a maneira de viver e de relacionar-se em sociedade (relacionamento familiar e social), ou seja, reflete o caráter da pessoa. Com a sua consideração deixa-se de focar o fato para se perquirir acerca do sujeito agente dele.

De maneira que, se no juízo de culpabilidade já existe uma tendência em subverter o direito penal do fato em prol de um direito penal do autor, quando da avaliação dos antecedentes e da conduta social esta opção fica nítida.(103) Com isso se propicia precedentes absolutamente despropositados como o que considera “fundamentada a decisão que, entre o mínimo de três anos e o máximo de quinze anos (art. 12 da Lei 6.368/76), revela a fixação em nove anos, consideradas a conduta social do agente e a personalidade voltada ao delito”,(104) quando sequer tais fatores poderiam se prestar à exasperação da pena, pois, como visto, se consubstanciam num Direito Penal de autor (sem falar na dificuldade de demonstração e definição do que consiste a personalidade voltada ao delito).

9 Outras hipóteses polêmicas de Direito Penal de autor

Se em face do princípio de culpabilidade o Direito Penal deve nortear-se pelo fato, cumpre examinar alguns aspectos polêmicos de possível influência do Direito Penal de autor.

a) À luz do Direito Penal de garantias, resulta altamente criticável o estendido entendimento jurisprudencial que nega a aplicação do princípio da insignificância no delito de descaminho quando constatada a reiteração ou habitualidade da conduta.(105) Cuida-se de típico caso de Direito Penal de autor, já que o sujeito está sendo punido pelo seu modus vivendi, e não pelo fato praticado. O autoritarismo de tal posicionamento se agrava ainda mais se considerarmos que o descaminho é um delito praticado na grande maioria das vezes por pessoas pobres, desempregadas, que sequer têm o direito de ver extinta a punibilidade pelo pagamento como ocorre com os demais delitos fiscais estabelecidos na Lei 8.137/90.(106) Felizmente o STF(107) adotou posicionamento acerca do tema em prol do Direito penal do fato, ao concluir que para a caracterização de ato jurídico como insignificante são incabíveis considerações de ordem subjetiva. De acordo o STF, para a incidência do princípio de insignificância somente devem ser considerados aspectos objetivos, referentes à infração praticada, tais como mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica causada.

b) Em relação ao delito de rufianismo, segundo entendimento consolidado, tal figura típica não se baseia no Direito penal de autor, já que não se castiga o modo de vida anti-social do rufião, mas antes se protege a independência econômica e pessoal das pessoas que praticam a prostituição. E somente é possível se levar perigo à liberdade das pessoas prostituídas com a habitualidade ou profissionalidade do rufião.

c) Não são manifestações de Direito Penal de autor as figuras típicas que estabelecem determinados motivos ou atitudes internas do sujeito ativo, como a crueldade. Neste caso, pouco importa que o agente seja efetivamente um sujeito cruel ou uma pessoa pacata; é suficiente que na comissão do fato tenha infligido sofrimento atroz à vitima e demonstrado falta de sentimentos, ainda que isso não seja condizente com a representação de sua personalidade. O mesmo sucede com outros elementos típicos como a má-fé, a premeditação, a malícia, a traição, a torpeza ou o meio insidioso, os quais não pressupõem tais qualidades no sujeito ativo, mas apenas revelam tais traços quando da perpetração do evento delituoso. Ou seja, sem a necessidade de se valorar a personalidade do autor.

d) No tocante às agravações da pena com base nas qualificações pela comissão profissional e habitual, há divergência a respeito. Segundo ROXIN,(108) “a qualificação da comissão quase profissional não é ainda suficiente para fundamentar um Direito penal de autor; para tanto deveria acrescentar-se a atenção a elementos especiais da personalidade”. Contudo, forçoso é concordar com a corrente que entende que as agravações da pena com base nos aspectos acima referidos são exemplos de genuíno direito penal de autor, por levar em conta, em última análise, a conduta de vida do sujeito. A habitualidade, aliás, pode configurar hipótese de menor culpabilidade, em razão do reduzido âmbito de autodeterminação do autor.(109)

e) Em relação à imprudência inconsciente há quem estime que se o autor não evitou o resultado lesivo na situação concreta é porque no passado não se preocupou em dotar-se dos conhecimentos e atitudes que lhe haviam capacitado superar o perigo, o que estaria de acordo com a culpabilidade pela condução de vida.(110) Contudo, não há necessidade de se recorrer à evolução da atitude interna do autor para fundamentar a culpabilidade; esta pode ser fundamentada pela só constatação de que o autor não se absteve de realizar o comportamento a pesar de que podia inteirar-se de que não estava capacitado para realizá-lo.(111)

Nem mesmo em relação à denominada provocação culpável por empreendimento ou assunção,(112) apesar da semelhança estrutural com a actio libera in causa, há necessidade de recorrer uma reprovação pela conduta de vida para fundamentar a imprudência. Neste caso, não é preciso recorrer ao momento anterior ao começo da atividade perigosa não permitida, mas apenas no aspecto relacionado a se o sujeito teve a oportunidade de se advertir de que não seria capaz de fazer frente à atividade que empreendeu ou assumiu. “Apenas neste aspecto (possibilidade de advertir sobre a incapacidade) e não em eventuais descuidos do passado deve-se basear então o reproche de culpabilidade”.(113)

f) De igual forma, não se deve recorrer a uma culpabilidade pela condução de vida para fundamentar a vencibilidade de um erro de proibição, ainda que a acessibilidade ao conhecimento da antijuridicidade dependa de conhecimentos prévios. Em outras palavras, não se pode estimar que o erro de proibição é vencível ao fundamento de que o sujeito devia ter-se educado para ser uma pessoa com mais conhecimentos jurídicos, mas sim porque no fato concreto tinha a possibilidade e algum motivo para certificar-se da licitude de sua conduta.(114) A censura da culpabilidade não pode se pautar na evolução do caráter do sujeito ou na maneira como conduziu sua vida, mas em infrações previas de cuidado perfeitamente delimitadas, mesmo que o sujeito se tenha omitido anteriormente de adquirir conhecimentos especiais.(115)

g) Uma corrente, capitaneada por FERRAJOLI,(116) sustenta que os delitos de associação, como são exemplos os crimes de quadrilha ou bando e associação criminosa, por consubstanciarem-se no Direito penal de autor, deveriam ser suprimidos da legislação ou quando muito consubstanciarem formas agravadas de outros delitos ou tentativas dos denominados delitos comuns. Argumenta-se que os delitos associativos em geral são normas constitutivas, dirigidas não a fatos, mas sim diretamente a pessoas. De acordo com tal ponto de vista, ainda, a proibição não se afasta do Direito Penal de autor ainda que um dos requisitos do tipo seja a prática concreta de crime, pois, conforme sublinha CASTANHEIRA,(117) “a razão da incriminação continuaria a ser o viver criminoso e a potencialidade perigosa do autor, o que não afasta o juízo sobre a personalidade”.

Vale lembrar que a vedação de se punir atos preparatórios admite exceções. Assim, a incriminação de tais comportamentos associativos se dá com base no princípio da precaução,(118) segundo o qual é legítimo ao Estado se antecipar e tipificar determinadas condutas especialmente perigosas para a manutenção da paz pública, sem se ter em conta, por conseguinte, a personalidade ou a maneira pela qual os integrantes têm conduzido suas vidas. Como põe de relevo CARBONELL MATEU,(119) “se a função do Direito penal é a tutela de bens jurídicos, é razoável que, em ocasiões, atue preventivamente, proibindo a realização de condutas perigosas, adiantando a barreira de proteção”. Ademais, decisivo é o ato de associar-se, independentemente do tipo de vida ou do caráter do agente.

A matéria requer uma melhor concreção. O Estado pode perfeitamente imiscuir-se no âmbito privado do cidadão em favor do estabelecimento de controles públicos, conquanto a atividade seja tendente ao dano e, portanto, não tolerada. Contudo, não se pode negar o direito do cidadão a uma esfera isenta de controle, que se contrapõe às antecipações de punibilidade, cuja linha divisória é a seguinte. A criminalização de um comportamento num estágio prévio à lesão de um bem jurídico só é legítima se ele perturba per se, independentemente dos propósitos atuais do autor ou autores. Somente uma conduta que causa perturbação possibilita o questionamento acerca do âmbito interno do agente. Quando isso não é observado, quer dizer, quando não se leva em conta tal abstenção (os propósitos do autor), estar-se-á efetivamente punindo autores perigosos e não fatos perigosos. Isso decorre do princípio de que não constituem perturbação social os assuntos exclusivamente internos de um sujeito. A tal afirmação poder-se-ia objetar que todo ato preparatório de uma infração penal pode ser definida como conduta não privada, “mas então não se tem já nenhum motivo para deter-se ante a criminalização de pensamentos”.(120)

Assim, malgrado os atos preparatórios de constituição de associação criminosa não ultrapassem a esfera privada dos sujeitos nela envolvidos, é inegável que são perturbadores independentemente de outra consideração (per se). Vale dizer: é perturbador sem mais o fato de pessoas se reunirem com o propósito de cometer delitos, o que legitima o poder punitivo se adiantar e criminalizar a conduta a fim de se evitar conseqüências lamentáveis.

h) No que concerne à medida de segurança, ainda que sua função última, assim como a pena, seja a de proteção de bens jurídicos,(121) não cabe dúvida de que estão elas orientadas pelo Direito penal de autor. Seu desenvolvimento é fruto de um direito penal preventivo-especial e tem como norte a personalidade perigosa do autor, ainda que o fato seja levado em conta como fundamento da reação estatal. Ao contrário do que sucede com a pena, pois, na medida de segurança a personalidade do autor está em primeiro plano, já que o Direito não pode deixar de considerar a desigualdade dos inimputáveis. Tal aspecto, aliás, tem levado um setor da doutrina a defender a exclusão das medidas de segurança do âmbito penal.(122)

Conclusões

Das breves considerações realizadas, é possível concluir que hodiernamente o princípio de culpabilidade constitui um dos pilares de todo e qualquer Estado que queira receber o qualificativo de Estado Democrático de Direito. De tal princípio dimanam várias conseqüências, dentre as quais a ora focada ilegitimidade do Direito Penal de autor.

A ilegitimidade do Direito Penal de autor implica o reconhecimento de que não é possível uma culpabilidade (na categoria do delito) de autor. É dizer: uma culpabilidade cuja censura se consubstanciasse na conduta de vida ou no caráter do sujeito, e não no fato concretamente realizado. Tal postura implicaria o enxovalhamento do próprio valor da dignidade humana, do qual o princípio de culpabilidade decorre: o Estado não tem o Direito de interferir na esfera íntima e pretender mudar as pessoas; apenas que suas leis sejam obedecidas, lhe sendo indiferente os motivos da obediência.

Além disso, resultam ilegítimos vários institutos e circunstâncias que só podem ser explicados com base na maneira de ser do agente, como são as hipóteses da reincidência, antecedentes e a conduta social. Tais aspectos são frontalmente contrários ao princípio da culpabilidade pelo fato e não devem ser objeto de valoração quando da aferição da magnitude da pena.

Não se desconhece, evidentemente, as dificuldades em transformar um sistema penal em um puro sistema penal do fato, no qual não se pudesse de forma alguma ser reprovada a pessoa do delinqüente. Como tem posto de manifesto a doutrina, nenhum sistema apresenta tal pureza. O que há são sistemas que mais se aproximam de um (Direito Penal do fato) ou de outro (Direito Penal de autor) desses dois extremos.(123)

A questão, portanto, cinge-se numa mudança de postura por parte dos operadores do Direito, os quais devem submeter o Direito Penal ao processo de concretização constitucional. Conforme observam ZAFFARONI-PIERANGELI,(124) “sabemos que, na prática, o sistema penal e seu regime de filtros fazem com que o direito penal de ato não se realize plenamente nenhum país. Sem embargo, uma coisa é constatar esse dado de realidade e outra, muito diferente, é sustentar teorias que não só não tratem de conter ou controlar a deformação do direito penal de ato pela prática do sistema, como também constituam verdadeiras racionalizações justificantes de tais práticas”.

O que não se concebe é que se apregoe o princípio de culpabilidade pelo fato e, ao mesmo tempo, se lhe negue as suas conseqüências materiais por meio da admissão de teorias e institutos que lhe são frontalmente contrários. Aliás, dado que “o critério de seleção dominante para a jurisprudência não é a coerência dogmática, mas a praticidade do resultado”,(125) percebe-se que o discurso penal é de ato, mas o exercício do poder punitivo é de autor.(126) Em face de tal constatação e demonstrando preocupação com a postura de inércia, ressalta NILO BATISTA:(127) “ai de vós, penalistas, que proclamais o direito penal de autor quando aplicais a pena! Ai de vós que vos louvarem, porque assim procederam seus pais os falsos profetas”.

O giro copernicano para uma postura verdadeiramente garantista do Direito Penal (desconsideração das reminiscências positivistas) só será possível com o despertar da magistratura, notadamente a de segundo grau.(128) De nada vale invocar o “quadrante democrático que afastou as tendências totalitárias do chamado Direito Penal de autor”,(129) se na prática a jurisprudência continua a aceitar sem reservas institutos que se amparam na condução de vida ou no caráter do sujeito que se julga.

Portanto, à magistratura cabe o papel fundamental de limitar racionalmente a seletividade arbitrária do sistema penal e tal mister requer essencialmente a concretização dos princípios básicos do Direito Penal, dentre os quais destacadamente se insere o de culpabilidade.(130)

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Notas:

1. Lombroso é considerado o pioneiro da Escola Positiva, que teve outros vultos como Enrique Ferri e Rafael Garófalo, e criador da antropologia criminal. Estudou o delinqüente sob o ponto de vista biológico, considerando o crime manifestação da personalidade humana e produto de várias causas. Concebeu o criminoso nato, em face de tendência que certos indivíduos têm para o crime. Via o criminoso como um ser atávico, patológico e estereotipado: toda pessoa era feia. Suas principais idéias são as seguintes: a) o crime é um fenômeno biológico e não um ente jurídico; b) o criminoso nato apresenta determinadas características físicas e morfológicas específicas, sendo insensível fisicamente; c) a epilepsia é a causa da degeneração que conduz ao nascimento do criminoso; d) o criminoso se assemelha ao louco moral e, portanto, deve ser tratado antes que punido. Sua obra L’uomo delinquente é considerada a fundadora da criminologia etiológica, em que pese para ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 314, tal papel lhe coube quatro séculos antes ao livro da Inquisição Malleus Maleficarum.

2. Assinala CARBONELL MATEU, Derecho penal, p. 239, que “a Escola Positiva, assentada ideologicamente no determinismo, afirmará que o delinqüente não passa de um homem determinado a produzir aquela conduta, da qual não deve responder, por não haver sido livre. Seus traços biológicos ou patológicos são os que induzem a um ser humano à comissão de delitos, de condutas anti-sociais. O que importa destacar não é a culpabilidade, mas a eventual perigosidade dos cidadãos, frente aos quais há que se adotar medidas de seguridade”. Por seu turno, ZAFFARONI, En torno de la cuestión penal, p. 39, destaca que “o racismo positivista é discurso completamente prestado por sua corporação associada, ou seja, pela ideologia médica de seu tempo”.

3. Observa ROXIN, Derecho penal, p. 179, que “os seguidores de Liszt não foram mais além do dualismo prefigurado por aquele, e segundo o qual os pressupostos da punibilidade devem determinar-se com critérios de Direito Penal do fato, enquanto as conseqüências jurídicas devem determinar-se mais bem por critérios de Direito penal de autor. Para tanto podem bastar umas simples indicações. Como fundadores da denominada concepção sintomática do delito destacam Tesar y Kollmann. Ambos sustentam (desde diversos pontos de partida metodológicos no particular) a tese de que não se deve avaliar o fato por sua repercussão no mundo exterior, mas sim pelo que nos revela sobre o interior do autor. Por tanto, o fato é só um da personalidade do autor. Mas como ambos seguem mantendo que o fato concreto é pressuposto da sanção e de sua teoria sintomática do delito só extraem conseqüências a respeito da classe e configuração das sanções, seguem estando dentro do marco previamente traçado por Liszt. Algo similar sucede com os defensores da denominada concepção caractereológica da culpabilidade, tal e como se encontra em muitos discípulos de Liszt (Readbruch, Eb. Schimidt, Kohlrausch, Grunhut): o fato se concebe como plasmação do caráter, como expressão da personalidade do autor; e a culpabilidade do autor reside (desde uma perspectiva determinista) na responsabilidade do homem por seu caráter, pelo que a periculosidade do delinqüente condicionada por sua personalidade se apresenta diretamente como elemento da culpabilidade. Porém, os caractereológicos também mantiveram, por razões próprias do Estado de Direito, o fato concreto como pressuposto das sanções jurídico-penais, vale dizer, que não seguiram a via de um Direito Penal de autor radical, mas que quiseram limitar seu influxo às conseqüências jurídicas do fato punível”.

4. BUSTOS RAMIREZ-HORMAZÁBAL MALARÉE, El nuevo sistema, p. 26.

5. Assim: ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 66. Observa CASTANHEIRA, Organizações criminosas, p. 120, que “estabelecer um marco divisor entre e não é tarefa fácil, mas estão de acordo a maior parte dos penalistas, quando apontam que o é ‘uma corrupção do direito penal em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade”.

6. JESCHECK-WEIGEND, Tratado, p. 58.

7. ZAFFARONI-BATISTA-ALAGIA-SLOKAR, Direito penal, p. 131; HUNGRIA, Comentários, p. 386: “a teoria da culpabilidade do caráter ou culpabilidade do autor confunde noções que se diferenciam, identificando culpabilidade com capacidade de delinqüir”.

8. Direito penal, p. 131-133. Agregam referidos autores que o Direito Penal de autor supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, a função de divindade pessoal, e os segundos, a de divindade impessoal e mecânica. Para aqueles que assumem uma identidade divina pessoal, a pena deve adequar-se ao grau de perversão pecaminosa que sua condução de vida tenha alcançado, e o Estado é uma escola autoritária, na qual o valor fundamental é a disciplina, de acordo com as pautas que as pessoas devem introjetar (não apenas cumprir). Para o direito penal identificado como uma divindade impessoal e mecânica, o delito é signo de uma falha em um aparato complexo (sociedade), indicando um estado de periculosidade.

9. Responsabilidad objetiva, p. 544.

10. Neste sentido: DEL TESO, Principio de culpabilidad, p. 59, para quem “a garantia da responsabilidade pelo fato, em seu aspecto positivo obriga a estabelecer a sanção tendo em conta o grau de culpabilidade do sujeito e, em seu aspecto negativo, impede que a sanção se determine em atenção à personalidade do infrator”; STRATENWERTH, Derecho penal, p. 63, segundo o qual “querer extrair conclusões mais vastas, acerca de se um fato determinado se corresponde à personalidade do auto, e, em seu caso, em que medida, conduz novamente a todas as inseguranças nas que se encontra desde sempre a investigação sobre prognósticos”; REGIS PRADO, Curso, p. 118: “O Direito Penal só pune fatos (ação ou omissão), daí estabelecer uma responsabilidade por fato próprio (Direito penal do fato), opondo-se a um Direito penal de autor fundado no modo de vida ou no caráter”; KARAM, Aplicação da pena, p. 124, segundo a qual, “para exercer sua função garantidora, a culpabilidade só pode ser entendida como culpabilidade pelo fato realizado (culpabilidade pelo ato ou pelo injusto), único entendimento, aliás, constitucionalmente admissível”. MAYRINK DA COSTA, Direito Penal - parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 158: “o direito penal do autor é incompatível com as exigências de certeza e segurança jurídicas próprias do estado de direito”. ZEIDAN, Direitos fundamentais, p. 60, segundo o qual “um ser humano responde legalmente por seu comportamento, não pelo que é ou pensa. Isso significa que o Direito regula a coexistência externa dos indivíduos, não a sua existência ou consciência”. Contra: JAKOBS, Estudios, p. 99, para quem, “deixando à margem que a culpabilidade pelo fato não estabelece medida alguma, na hipótese que oferecesse seria desnecessariamente elevada por não tomar em conta a inculpabilidade pela condução de vida”.

11. ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 66.

12. ZEIDAN, Direitos fundamentais, p. 60.

13. Neste sentido: SOLER, Derecho penal, p. 10-11; ZAFFARONI-BATISTA, Direito penal, p. 133.; PIERANGELI, Culpabilidade, p. 450, para quem “por culpabilidade de ato, ou de fato, entende-se que o que se reprova no homem é a sua ação, na medida de sua possibilidade de autodeterminação envolvido numa situação concreta”.

14. ROXIN, Derecho penal, p. 177.

15. ZAFFARONI, En torno de la cuestión penal, p. 235.

16. As vantagens do Direito penal do fato são colocadas de manifesto por ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 67: “requer que os conflitos se limitem aos provocados por ações humanas (nullum crimen sine conducta), uma estrita delimitação dos conflitos na criminalização primária (nullum crimen sine lege) e a culpabilidade pelo ato como limite da pena (nullum crimen sine culpa). No plano processual exige um debate de partes referido ao que seja matéria de acusação, e desse modo separa as funções do acusador, do defensor e do juiz (acusatório). Ainda que nenhum destes princípios se cumpre estritamente, não cabe dúvida de que as agências jurídicas que os assumem decidem com menor irracionalidade e violência que o resto”.

17. Manual, p. 119-120.

18. Observa ANÍBAL BRUNO, Direito penal, tomo 2, p. 193-195, que, “na linha lógica do seu desenvolvimento, a teoria do estado perigoso não poderia ficar limitada pela exigência da prática de um fato punível. Este é mero sintoma da perigosidade. É o sinal de alarma de um estado permanente que precede e acompanha o crime, como um estado mórbido precede e acompanha um sintoma intercorrente. Como o fim da defesa social pela prevenção do crime provável tem de tomar em consideração a perigosidade do sujeito, e não o crime, temos de considerar a perigosidade criminal desde que ela exista, independente da prática de fato punível, a perigosidade mesmo pré-delitual, portanto, para o necessário tratamento”. Contudo, os autores em geral, mesmo os positivistas, não chegam a admitir no Direito Penal a perigosidade ante delictum, com exceção de JIMÉNEZ DE ASÚA, quem, “em posição coerente dentro do sistema, pretende a declaração da perigosidade antes que o sujeito perigoso tenha transgredido a lei, inclui perigosidade pré-delitual e pós-delitual no campo do Direito Penal e toma o ‘poder judiciário como a única jurisdição adequada para declarar o estado perigoso de um sujeito’, mesmo antes de um crime”.

19. Assim se manifesta ASSIS TOLEDO, para quem, citando BAUMANN, “a distinção tem valor didático, além de doutrinário. Todavia, na prática, não se apresenta com tal nitidez”.

20. Por exemplo, nas Sentenças 65/1986, 14/1988 e 150/91.

21. JAÉN VALLEJO, Principios, p. 43.

22. HÖRNLE, Determinación de la pena, p. 61.

23. Culpabilidade, p. 451.

24. Direito e razão, p. 402-429.

25. Direito e razão, p. 400.

26. Direito e razão, p. 400.

27. Direito e razão, p. 404.

28. Direito e razão, p. 406.

29. Culpabilidad, p. 72.

30. FIGUEIREDO DIAS-COSTA ANDRADE, citados por NASSIF, Reincidência, p. 14.

31. Apud BONFIM, Inimputabilidad, p. 570.

32. Assim: ALCÁCER GUIRAO, Rafael. ¿Lesión de bien jurídico o lesión de deber? – apuntes sobre el concepto material del delito. Barcelona: Atelier, 2003, p. 15.

33. Código penal, p. 1054.

34. El nuevo sistema, p. 149-151. O , segundo WELZEL, pode atuar sempre só para umas poucas tarefas atualmente decisivas; todas as demais têm que estar já decididas no semi-inconsciente e no inconsciente. Esta decisão previa forma parte da função de uma , a qual consiste num depósito das decisões adotadas anteriormente e que se convertem na atitude interna inconsciente da personalidade. De modo que, esta , incorporada pelas decisões e as ações realizadas anteriormente e que passou ao inconsciente, é o que se denomina caráter adquirido, vale dizer, aquela capa da personalidade na qual as disposições e capacidades inatas e específicas do homem, de tipo lingüístico, intelectual, artístico e religioso chegam ao seu mais variável desenvolvimento.

35. Neste sentido: ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 661; SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 40.

36. “A gravidade do delito de assalto revela desde logo no agente uma distorção psicológica, rompendo os freios da moral e da religião, procurando o sujeito, num gesto egoísta, na maior parte das vezes, tirar da ociosidade um serviço fácil, violentando pela super-autoconfiança o patrimônio alheio.” (JUTACRIM 42/190)

37. STJ, DJU de 22.06.98, p. 192.

38. STF, DJU de 29.06.98, p. 04.

39. STF, RT 764/499.

40. HC 76.396-2, DJU de 22.05.98, Rel. Maurício Correa.

41. Observa EMILIO MYRA Y LOPES. Manual de psicologia jurídica. São Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 76, que “o estudo psiquiátrico serve somente para convencer-se da artificiosidade de toda separação essencial entre a saúde e a doença mental; não há um só sintoma psicótico que não possa ser encontrado em indivíduos normais, de modo que é preciso conceber a mente patológica só como resultado de um desvio quantitativo da normal; isto é, produzida pela desproporção de alguns traços integrantes da personalidade comum”.

42. De acordo com BONFIM, Inimputabilidad, p. 570, a normalidade “não é outra coisa que a adequação aos modelos estatisticamente estabelecidos ou ao modelo ideal em uma concepção valorativa; ou seja, deve-se buscar a por meio de comportamento standard social que encontramos no homo medius”.

43. De acordo com BOSCHI, Das penas, p. 208, “a personalidade não é algo que com o indivíduo e que nele se estabiliza. Dizendo melhor, ela com ele e também se modifica, continuamente – com variações na intensidade – abrangendo, além das manifestações genéticas, também os traços emocionais e comportamentais, herdados ou continuamente adquiridos, naquele sentido de totalidade que permite a alguém se distinguir de todos os outros indivíduos do planeta”.

44. Assim: ZAFFARONI-PIERANGELI, Manual, p. 612; ASSIS TOLEDO, Manual, p.250, para quem resulta arbitrário tentar apontar na história experimental total do indivíduo, que se entende vergada por toda uma série de fatores genéticos e ambientais, algo que se lhe pudesse censurar a título de culpa.

45. Tratado, p. 454.

46. Teorias do delito, p. 79-80. Para o referido autor, “a fim de não se regressar ao funesto Direito Penal da vontade, de tão arbitrárias conseqüências, deve-se fixar o entendimento correto do problema da culpabilidade, considerando que a reprovação de culpabilidade deve recair precisamente sobre o agente, por haver este, volitivamente (com dolo) ou de modo contrário ao cuidado exigido (com culpa), realizado uma ação antijurídica, embora, segundo suas possibilidades concretas e reais, pudesse atuar de outra forma. O juízo de culpabilidade deve ser sempre um juízo positivo de reprovação sobre o autor de um fato antijurídico”.

47. Na mesma linha: DOTTI, Curso, p. 341: “No sistema jurídico-penal não se poderá falar em uma culpabilidade pelo caráter posto que tal enfoque não se concilia com o pressuposto da responsabilidade penal em função do fato isolado. Nem mesmo para a medida concreta da pena essa qualidade inerente à pessoa humana é tomada em consideração”. MIRABETE, Manual, p. 57: “é indispensável que a pena seja imposta ao agente por sua própria ação (culpabilidade pelo fato) e não por eventual defeito de caráter adquirido culpavelmente pela sua vida pregressa (culpabilidade pela forma de vida)”.

48. Observa SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 53-60, ao analisar as reais possibilidades de avaliação da personalidade do acusado, que nenhuma definição substantiva da personalizada pode ser generalizada, o que significa dizer que a maneira pela qual determinadas pessoas definem a personalidade dependerá inteiramente de sua preferência. Assim, “antes de qualquer coisa, então, para proceder levantamento apurado e, principalmente, para poder fundamentar o juízo sobre a personalidade do réu, deveria o juiz indicar qual o conceito de personalidade em que se baseou para a tarefa, qual metodologia utilizada, quais foram os critérios e os passos seguidos e, em conseqüência, em qual momento processual foi-lhe possibilitada a averiguação”. Não basta o magistrado suscitar um elemento categórico, encobrindo-o por termos vagos e imprecisos, pois o requisito constitucional da fundamentação impõe a explicitação dos critérios, métodos e conceitos utilizados. Conclui que inexistem condições mínimas de o julgador estabelecer o juízo sobre a personalidade do acusado e que normalmente a personalidade auferida pelo magistrado padece de profunda anemia significativa.

49. CARBONELL MATEU, Derecho penal, p. 72.

50. Assim: MOCCIA, Función, p. 84-85, para quem “a justiça estatal pode tender a assegurar a simples legalidade do comportamento individual e não também sua moralidade que, entre outras coisas, é por definição . A imposição de um determinado sistema moral se colocaria em nítido contraste com os princípios, constitucionalmente garantidos, postos em tutela da liberdade e a dignidade do indivíduo; RIGHI, Culpabilidad, p. 33: “A ordem jurídica não pode impor motivações racionais nem tampouco morais, pelo que ainda existe o dever de adequar a conduta ao preceito normativo, o mandado de neutralidade concreta uma limitação relativa às razões de sua observância, sendo assim discricionário o motivo pelo qual um sujeito cumpre a norma”; KINDHÄUSER, Culpa penal, p. 19, observa que é em face do que não pode ser aceita concepção de culpa desenvolvida pela corrente filosófica do . O comunitarismo – observa – “nega o preceito de neutralidade do Direito, dado que exige o respeito à norma a partir da virtude cidadã, e com isso sobrecarrega ao autor com qualidades estranhas ao Direito”; COUSO SALAS, Fundamentos, p. 490: “A linguagem do Direito só se propõe nos deixar claro que nos ordena algo sob ameaça de pena, que compreendamos essa mensagem, mas não pode pretender centrar nossa consciência ético-social, nem provocar efeitos em nosso subconsciente, que nos determinem a aderir aos valores do Direito e a repulsar o delito e ao delinqüente”.

51. Das penas, p. 213: Em suas palavras, ainda: “A constatação pelo Estado-Juiz de que o acusado é portador de transtorno da personalidade (mesmo admitindo – para argumentar – a legitimidade da avaliação e a possibilidade de resposta efetiva pelos peritos), deveria determinar, por outro lado, não a exasperação da pena-base pelo fato cometido, e sim o exercício de direito subjetivo de reclamar o indispensável apoio técnico, para libertar-se do problema e alcançar a elevação social e humana. Aliás, nos termos em que estamos colocando a questão, não seria absurdo afirmar que o acusado portador de transtorno de personalidade deveria beneficiar-se com abrandamento da censura penal, salvo naqueles casos em que, conscientemente, faz do crime um meio de vida”.

52. BOBBIO, Direito e estado, p. 57.

53. FERRAJOLI, Direito e razão, p. 179. No mesmo sentido é o pensamento de PETROCELLI, citado por HUNGRIA, Comentários, p. 384: “À ordem jurídica não importa (ou não importa diretamente) que alguém tenha um sentimento anti-social ou um defeito de sentimento do dever, etc; o que he interessa é que essas situações do indivíduo não se manifestem em um ato concreto de anti-sociabilidade, de transgressão do dever jurídico etc. Na verdade, pode apresentar-se um indivíduo íntima e acabadamente pervertido, provido de sentimentos associais ou anti-sociais, e permanecer sempre imune a uma atribuição de culpabilidade, enquanto se vigia suficientemente a si mesmo para não cometer ação alguma considerada anti-social pelo Direito, e vice-versa”; SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 13, segundo o qual “se o cidadão tem o dever de cumprir a lei, ao mesmo tempo tem o direito de ser interiormente perverso e continuar sendo sem a ingerência dos aparatos de controle social”.

54. Assim: ASSIS TOLEDO, Princípios básicos, p. 246.

55. Derecho penal, p. 803.

56. Observa SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 53-60, ao analisar as reais possibilidades de avaliação da personalidade do acusado, que nenhuma definição substantiva da personalizada pode ser generalizada, o que significa dizer que a maneira pela qual determinadas pessoas definem a personalidade dependerá inteiramente de sua preferência. Assim, “antes de qualquer coisa, então, para proceder levantamento apurado e, principalmente, para poder fundamentar o juízo sobre a personalidade do réu, deveria o juiz indicar qual o conceito de personalidade em que se baseou para a tarefa, qual metodologia utilizada, quais foram os critérios e os passos seguidos e, em conseqüência, em qual momento processual foi-lhe possibilitada a averiguação”. Não basta o magistrado suscitar um elemento categórico, encobrindo-o por termos vagos e imprecisos, pois o requisito constitucional da fundamentação impõe a explicitação dos critérios, métodos e conceitos utilizados. Conclui que inexistem condições mínimas de o julgador estabelecer o juízo sobre a personalidade do acusado e que normalmente a personalidade auferida pelo magistrado padece de profunda anemia significativa.

57. Assim: STRATENWERTH, Culpabilidad, p. 73 e s.; CHOCLÁN MONTALVO, Culpabilidad, p. 91.

58. Derecho penal, p. 1052.

59. Nesta linha: KARAM, Aplicação da pena, p. 124, que a concepção da culpabilidade pelo ato “impõe a consideração da personalidade do agente tão-somente no que se refere ao fato realizado, implicando unicamente a investigação do maior ou menor âmbito de autodeterminação que esta personalidade, determinada por circunstâncias diversas, lhe deixou para atuar de outro modo”; JESCHECK-WEIGEND, Tratado, p. 959: “os elementos da personalidade do autor só podem ser de importância para a medida da culpabilidade pelo fato conquanto hajam encontrado expressão na comissão do delito”.

60. Assim: ANÍBAL BRUNO, Direito penal, tomo 3º, p. 114: Hoje se pode justificar a exacerbação da pena, ao segundo crime, pelo maior culpabilidade do agente, pela maior reprovabilidade que sobre ele recai em razão de sua vontade rebelde particularmente intensa e persistente, que resistiu à ação inibidora da ameaça da sanção penal e mesmo da advertência pessoal, mais severa, da condenação afligida, que para um homem normalmente ajustável à ordem de Direito, isto é, de temperamento e vontade menos decisivamente adversos aos impeditivos da norma, seria estímulo suficiente para afastá-lo da prática de novo crime”.

61. Assim: ZAFFARORINI, Reincidência, p. 53; BACIGALUPO, Princípios, p. 22, segundo o qual “os conhecimentos atuais (e não atuais) sobre ela (reincidência) indicam que só pode ter fundamento na personalidade do autor e não em uma maior culpabilidade”, demonstrando a realidade que “o fato posterior castiga novamente uma culpabilidade já extinta pela pena sofrida”; CHOCLÁN MONTALVO, Culpabilidad, p. 95, segundo o qual o conhecimento da antijuridicidade que exige a culpabilidade penal requer só a capacidade de compreensão do significado da norma, e, se bem um defeito desse conhecimento comporta uma culpabilidade diminuída, a circunstância de que a norma penal haja sido especialmente recordada na sentença condenatória não faz com que o fato novo se realize com maior grau de culpabilidade, pois a culpabilidade não é maior em razão de que se tenha um conhecimento mais intenso da norma. Nem sequer se prescindíssemos da teoria do bem jurídico e fundamentássemos o injusto penal na só infração normativa – continua o referido autor – poderia afirmar-se maior injusto na reincidência. A infração da norma não é mais intensa porque se tenha um maior conhecimento dela. Infringe-se o mandato de não matar, de igual forma, tanto se se mata pela primeira vez como no caso de que já se tenha matado anteriormente. Portanto, o maior desprezo e rebeldia que representa a insistência no delito, apesar da admoestação que supõe a condenação precedente, não resulta equivalente a uma maior culpabilidade pelo fato cometido, salvo que a culpabilidade seja entendida como culpabilidade de caráter ou pela condução de vida.

62. JAKOBS, Estudios, p. 93.

63. Determinación de la pena, p. 111.

64. Neste sentido: CHOCLÁN MONTALVO, Culpabilidad, pp. 94-95.

65. Na lição de SALO DE CARVALHO, Reincidência, p. 02, a assunção do modelo anti-secular de direito penal do autor pela criminologia etiológica revigorará e fundamentará, sob o manto da cientificidade, inúmeros institutos que permitem a subjetivização dos julgamentos, entre eles a reincidência e os antecedentes criminais que, juntamente com os juízos sobre a personalidade e os mecanismos de classificação de criminosos, consubstanciarão a noção maniqueísta de .

66. Assim: HÖRNLE, Determinación de la pena, p. 32, para quem “as penas mais altas para reincidentes provavelmente são, em certa medida, uma expressão de desamparo, mas também parte de uma estratégia de neutralização”.

67. Culpabilidad y prevención, p. 135.

68. Reincidência, p. 56.

69. Reincidência, p. 57.

70. De acordo com ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 60, a função deslegitimante mais importante e irreversível do discurso jurídico-penal tem sido realizada pelo , que fundamentou a criminologia da reação social. A tese central desta corrente pode ser definida, segundo o penalista argentino, “em termos muito gerais, pela afirmação de que cada um de nós se torna aquilo que os outros vêem em nós e, de acordo com essa mecânica, a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinqüente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo como o mesmo. Todo o aparato do sistema penal está preparado para essa rotulação e para o reforço desses papéis”. Para ZAFFARONI, idem, p. 133, os sistemas penais latino-americanos reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa. E “os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes e exigindo-lhes esses comportamentos, tratando-os como se se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado”; BOSCHI, Das penas, p. 251, com apoio na teoria da co-culpabilidade, “que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime, insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, pode e deve ser compreendida, também, como a expressão final do processo perverso de estigmatização do homem pela prisão e da absoluta falta de políticas oficiais de amparo ao egresso”.

71. Neste sentido: ZAFFARONI, Reincidência, p. 54, segundo o qual, se fossem levados em conta dados elementares da criminologia, “veríamos que o suposto maior dano político ou mediato do segundo delito, a presumida maior probabilidade de um novo delito ou a pretensa maior perversão da personalidade do autor, seria um efeito da intervenção punitiva anterior, ou seja, seriam atribuíveis ao próprio Estado, de forma que, ao invés de uma imaginária maior consciência da antijuridicidade, haveria, em geral, na reincidência, uma menor culpabilidade em função da redução do âmbito de autodeterminação gerado pela prévia intervenção punitiva, estigmatizante e redutora do espaço social do apenado. Queremos dizer com isso simplesmente que os argumentos justificadores que criticamos, além das objeções internas que formulamos, mostram-se paradoxais, quando confrontados com os dados proporcionados pelas ciências sociais”.

72. Apud BACIGALUPO, Justicia penal, p. 118.

73. A doutrina moderna tem colocado de manifesto o efeito dessocializador dos sistemas penais, os quais constituiriam verdadeiros aparatos de fabricar reincidência. Neste sentido: HÖRNLE, Determinación de la pena, p. 111, para quem parece mais provável que a penalidade incrementada atualmente acelere a dessocialização do delinqüente; SILVA FRANCO, Código Penal, p. 1.179, “o próprio Estado, que pune, não deixa de ser um dos estimuladores da reincidência, na medida em que submete o condenado a um processo dessocializador desestruturando sua personalidade por meio de um sistema penitenciário desumano e marginalizador. Não parece, por isso, razoável que depois, o mesmo Estado exacerbe a punição sob pretexto de que o agente desrespeitou a sentença anterior, desprezou a formal advertência expressa nessa condenação e, assim, revelou uma culpabilidade mais intensa”. NASSIF, Reincidência, p. 10: “é unívoco, seja pela corrente que pretende ser mais liberal, seja pela legalista, o entendimento de que a pena, mormente quando carcerária, tem apresentado resultados altamente insatisfatórios e, mais que isto, a privativa faliu como instituição recuperadora”. Na mesma linha, ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 1061.

74. Nesta linha, STRATENWERTH, Culpabilidad, p. 28, cita a HENKE, quem, já no início do século XIX, se rebelava contra o clichê utilizado naquela época de que a reincidência demonstraria uma grande obstinação contra a lei, além de mostrar que o papel do próprio estabelecimento penal, onde freqüentemente o preso piora ao invés de melhorar, e a situação de abandono em que na grande maioria dos casos se encontra ao ser colocado em liberdade, deveriam ser seriamente considerados”; CIRNO DOS SANTOS, Direito penal, p. 245, para quem, “se a pena criminal não tem eficácia preventiva – mas, ao contrário, possui eficácia invertida pela ação criminógena exercida – então a reincidência criminal não pode constituir circunstância agravante”. Ao contrario, seria necessário reconhecer que o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deve conduzir à inclusão da reincidência entre as circunstâncias atenuantes. Em outro lugar, CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 120-121, observa: “a questão é simples: se a prevenção especial positiva de correção do condenado é ineficaz e se a prevenção especial negativa de neutralização do condenado funciona, realmente, como prisionalização deformadora da personalidade do condenado, então a reincidência real não pode constituir circunstância agravante. É necessário reconhecer: a) se novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal, o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuantes, como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre sujeitos criminalizados; se novo crime é cometido após simples formalidade do trânsito em julgado de condenação anterior, a reincidência ficta não indica qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância agravante. Em conclusão, nenhuma das hipóteses de reincidência real ou de reincidência ficta indica situação de rebeldia contra a ordem social garantida pelo Direito Penal; a reincidência real deveria ser circunstância atenuante e a reincidência ficta é, de fato, um indiferente penal.

75. JESCHECK-WEIGEND, Tratado, p. 962; ROXIN, Derecho penal, p. 186.

76. Reza o art. 8o do Código Penal Colombiano que “a ninguém se lhe poderá imputar mais de uma vez a mesma conduta punível, qualquer que seja a denominação jurídica que se lhe der ou haja dado, salvo o estabelecido nos instrumentos internacionais”.

77. Reincidência, p. 59.

78. No regime anterior ao de 1984, os reincidentes em crimes dolosos eram considerados presumivelmente perigosos (art. 78) e somente com a edição da Lei 6.416 é que os efeitos da reincidência ficariam restritos ao prazo de cinco anos.

79. Os principais efeitos da reincidência são: a) o de agravar a pena (art. 61, I, do CP); b) o de funcionar como circunstância preponderante no concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes (art. 67 do CP); c) o de impedir a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, se específica em crime doloso (art. 44, II, CP); d) impedir a substituição da pena privativa de liberdade pela multa (art. 60, par. 2º, CP); e) obstruir o sursis, quando da prática de crime doloso (art. 77, I, CP); f) aumentar o prazo de cumprimento da pena para obtenção do livramento condicional (art. 83, II, CP); g) funcionar como causa de interrupção da prescrição da pretensão punitiva e executória (arts. 117, VI, e 110, respectivamente, do CP); h) revogar o sursis e o livramento condicional (arts. 81 e 87, respectivamente, do CP); i) revogar a reabilitação (art. 95 do CP); j) impossibilitar a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95); k) impedir a prestação de fiança (art. 323, III, CPP).

80. “A condenação em processo anterior opera como agravante: há reincidência no sentido técnico, e o juiz não tem escolha quanto às suas conseqüências. Não ocorre ofensa ao princípio ne bis in idem. Precedentes do STF (HHCC 71.593 e 72.664, entre outros). Habeas corpus indeferido”. (STF, HC 73.150-3, Rel. Min. Francisco Rezek).

81. STJ, DJU de 25.08.97, p. 39.406.

82. Apelações 70001004530 e 70001014810.

83. Assim: MIRABETE, Manual, p. 301.

84. PIERANGELI, Culpabilidade, p. 450.

85. Assim: SILVA FRANCO, Código penal, p. 1.179/1.180, para quem “não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica”; ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual, p. 841: segundo os quais “estabelece-se o corolário lógico de que a agravação pela reincidência não é compatível com os princípios de um direito penal de garantias, e a sua constitucionalidade é sumamente discutível”; ZAFFARONI e BATISTA, Direito penal, p. 139, para quem “sua manifesta irracionalidade, por exceder a medida do injusto e da culpabilidade do ato e pela manifesta infração ao ne bis in idem, correspondendo claramente a um tipo de autor, torna-a inconstitucional”. No ponto de vista de referidos autores, a razão da pena lastreada na reincidência “é outra demanda de caráter burocrático das agências policiais: os infratores de escassa importância não podem ser legalmente eliminados, motivo pelo qual as agências policiais requerem uma pena eliminatória sem relação com a magnitude dos delitos”.

86. Aplicação da pena, p. 126.

87. CERNICCHIARO, Reincidência, p. 40, quem, curiosamente, no entanto, defende que “o juiz precisa auscultar a hipótese sub judice, considerá-la com a anterior e extrair, então, os termos da culpabilidade, se evidencia, por exemplo, tendência para a criminalidade”, o que só pode ser explicado por um direito penal de autor.

88. Assim: ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 70, para quem o instituto da reincidência “é inconstitucional por sua manifesta irracionalidade, por exceder a medida do injusto e da culpabilidade do ato, violar o non bis in idem e responder a um tipo de autor”.

89. Reincidência, p. 07.

90. SALO DE CARVALHO, Reincidência, p. 11. Para referido autor, Reincidência, p. 11, “de acordo com o estatuído na lei penal brasileira, a antecedência criminal adquire como principais características a amplitude, negatividade, subjetividade, relatividade e perpetuidade. Essencialmente negativa e indeterminada conceitualmente, constitui instrumento de imposição de rótulos e consolidação de estigmas acerca da vida do acusado, viabilizando ao juiz valoração irrefutável probatoriamente sobre o autor do fato, e não sobre o fato em si”. Amparado na lição de BISSOLI FILHO, aduz que “o conceito de antecedentes é amplo, pois qualquer fato pretérito envolvendo o acusado pode ser levantado pelo juiz. Sua negatividade decorre da tendência judicial em considerar apenas os do autor. É subjetivo porque é o próprio julgador que seleciona os fatos anteactos e os valores a serem avaliados sendo, portanto, relativos, uma vez que são considerados basicamente registros policiais e civis. São perpétuos dado que, diferentemente da reincidência, não são limitados temporalmente pela legislação vigente”.

91. Assim: FRAGOSO, Lições, p. 296.

92. Observa SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 51, que “a valoração histórica do acusado, da forma com que se estabeleceu no ordenamento jurídico pátrio, cria um mecanismo incontrolável do arbítrio judicial, pois tende a (pré) determinar juízos de condenação – geralmente, chegando o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência de decidir) por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendência a condenar está fortemente influênciada pela extensão da folha de antecedentes do réu...”; BITENCOURT, Tratado, p. 294, que “toda vez que perdemos de vista uma certa objetividade, ou seja, o fato em si, e nos detivermos fundamentalmente no autor do fato, surte a possibilidade bastante grande de aumentar o arbítrio estatal, ocorrendo um enfraquecimento das garantias individuais”.

93. Neste sentido: BOSCHI, Das penas, p. 205, para quem “carece de sentido que o tempo faça desaparecer a reincidência e não tenha a mesma força para fazer desaparecer os efeitos de causa legal de menor expressão jurídica, no caso, os antecedentes”; SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 52: “cremos urgente instituir sua temporalidade, fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos limitar o prazo de incidência dos antecedentes no marco dos cinco anos – delimitação temporal da reincidência – visto ser a única orientação permitida pela sistemática do Código Penal”; CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 112, quem adere ao posicionamento dos citados autores.

94. (RHC 2.227-2-MG, DJU de 29.03.93, p. 5.268).

95. “Admissibilidade da consideração, a título de maus antecedentes, da sentença condenatória, malgrado a conseqüente declaração da extinção da punibilidade, por força de prescrição retroativa segundo a pena concretizada” (STF, DJU de 06.05.94, p. 10.470). “Não subsiste a sentença condenatória para fins de reincidência, conquanto declarada a prescrição da pretensão punitiva. Entretanto, perduram os antecedentes no exame das circunstâncias judiciais”. (TRF-4ªR., AC 94.04.51142-0/RS, DJU de 05.10.95)

96. Assim: SALO DE CARVALHO, Reincidência, p. 07.

97. Reincidência, p. 60.

98. TACRIM, RJTACrim 34/69 e 40/54.

99. TACRIM, RJTACrim 42/194.

100. TACRIM, RJDTACrim 43/144.

101. Culpabilidade, p. 139.

102. “Antecedentes, para os efeitos de fixação da pena, são apenas os judiciais, importando estes nas condenações passadas em julgado, que não geram reincidência ou em que tenham desaparecidos seus efeitos. Conduta social não se confunde com os antecedentes, pois compreende a vida do agente em família, no trabalho e na coletividade onde vive”. (TARGS, citado por BOSCHI, Das penas, p. 206, nota 74). A doutrina tem entendido que a conduta social diz respeito “aos diversos papéis desempenhados pelo agente junto à comunidade, tais como suas atividades relativas ao trabalho, à vida familiar, etc”. Por isso, resulta altamente criticável a postura do STF ao decidir que “ainda que outras sentenças condenatórias tenham sido alcançadas pela prescrição retroativa, podem ser levadas em consideração no momento da avaliação da conduta social e da personalidade do agente para a individualização da pena”(STF, DJU de 14.08.98), pois, além de levar em conta algo que não poderia, confunde conceitos absolutamente distintos.

103. Cfr. SALO DE CARVALHO, Garantismo, p. 53.

104. STF, Relator Ministro Marco Aurélio, HC 76.591-0, DJU de 04.09.98.

105. HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REITERAÇÃO E HABITUALIDADE DO COMETIMENTO DA CONDUTA LESIVA AO ERÁRIO PÚBLICO. OCUPAÇÃO ILÍCITA. PRECEDENTES DO STJ. 1. Comprovada, nos autos, a habitualidade da conduta do paciente no cometimento do ilícito, não há como aplicar, in casu, em seu favor, o princípio da insignificância. 2. Para o reconhecimento do aludido corolário não se deve considerar tão-somente a lesividade mínima da conduta do agente, sendo necessário apreciar outras circunstâncias de cunho subjetivo, especialmente àquelas relacionadas à vida pregressa e ao comportamento social do sujeito ativo, não sendo possível absolvê-lo da imputação descrita na inicial acusatória, se é reincidente, portador de maus antecedentes ou, como na espécie ocorre, reiteradamente pratica o questionado ilícito como ocupação. Precedentes do STJ. 3. Ordem denegada. (STJ, DJU de 09.08.2004, p. 280, Rel. Min. LAURITA VAZ).

“Não se mostra compatível com o princípio da insignificância a verificação de que o acusado possui antecedentes em crimes da mesma natureza, denotando grau de profissionalismo e habitualidade na conduta delituosa”. (STJ, DJU de 04.07.2004, p. 558)

106. Por isso é que se tem que aplaudir a decisão quase isolada do STJ, em que foi Relator o Ministro FÉLIX FISCHER, na qual se entendeu que “circunstâncias de caráter eminentemente pessoal, tais como reincidência, maus antecedentes e, também, o fato de haver processos em curso visando a apuração da mesma prática delituosa, não interferem no reconhecimento de hipóteses de desinteresse penal específico. (STJ. DJU de 17.12.2004, p. 585)

107. (AI-559904 QO/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 07.06.2005, Informativo STF nº 391).

108. Derecho penal, p. 185.

109. Neste sentido: ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 675.

110. Defendem que a fundamenta a imprudência, de acordo com FEIJÓO SÁNCHEZ, El delito imprudente, p. 53-55, dentre outros, autores como ENGELMANN, KÖHLER, MEZGER e WELZEL. Para WELZEL “a imprudência pode consistir tanto na insuficiência de um ato atual de concentração da vontade como na educação insuficiente na estrutura do comportamento da personalidade. A diferenciação entre culpabilidade em virtude do fato e culpabilidade em virtude do autor se estende, portanto, ao âmbito da imprudência. Também a imprudência é, em certa extensão, culpabilidade em virtude do autor”. Não obstante, FEIJÓO SÁNCHEZ observa com precisão não ser necessário insistir que estas conclusões de WELZEL, que têm que renunciar à responsabilidade pelo fato, não são compatíveis com um Direito Penal respeitoso com os princípios do Estado de Direito. O reproche penal de autor tem sido duramente criticado pela melhor doutrina. Ademais, a pena se converteria, na linha de ALMENDIGEN, numa medida de segurança. Num sistema de liberdades não pode existir uma culpabilidade que tenha sua base na personalidade do autor em vez da comissão de um fato, nem mesmo em relação aos cuja decisão é de viver sem respeitar as exigências mínimas de cuidado. De acordo com FEIJÓO SÀNCHEZ, El delito imprudente, p. 54, “desde uma concepção normativa da culpabilidade estes casos não suscitam maiores problemas. Os infringem o dever de cuidado ainda que não se lhes representem a periculosidade de sua atuação, e se deverá analisar com posterioridade se lhes era exigível uma motivação distinta a que tinham de não respeitar por sistema a norma de cuidado; ou seja, se resulta assumível pelo ordenamento jurídico seu bloqueio voluntário da motivação exigida para comportar-se respeitando a norma de cuidado”.

111. Como observa ROXIN, Derecho penal, p. 1038, “pode converter-se em objeto de reparos desde o ponto de vista do Estado de Direito se para fundamentar a culpa em sentido estrito se recorre a uma culpabilidade pela condução de vida possivelmente muito distante no tempo; v.g. a que o cirurgião que fracassa na operação por falta de capacidades suficientes não se havia dedicado em seu dia a sua formação médica com o cuidado necessário, que o condutor que atua com desconhecimento das regras de circulação não havia prestado a suficiente atenção na classe de conduzir, etc. Esses reparos se podem evitar não recorrendo nunca a um momento anterior ao começo da atividade perigosa não permitida, mas atendendo só a se o cirurgião ao dispor-se à operação, o condutor ao empreender a viagem, etc., podiam advertir que seriam capazes de fazer frente à atividade que empreendiam ou assumiam; unicamente nisso e não em eventuais descuidos do passado há de basear-se então o reproche de culpabilidade”.

112. A chamada ocorre quando o sujeito se adverte ou tem condições de se advertir de sua incapacidade físicas ou intelectuais para fazer frente à atividade que empreende ou assume. Parte-se, aqui, da premissa de que quem não pode fazer algo, deve deixá-lo. Assim, o sujeito que por enfermidade ou deficiência de visão não é capaz de atender às exigências do tráfico viário deve se abster de empreender viagem. Se o faz, a imprudência consiste já no fato de ter empreendido viagem, caso venha a lesionar bens jurídicos de outrem.

113. ROXIN, Derecho penal, p. 1038.

114. Assim: STRATENWERTH, Derecho penal, p. 262, para quem “não cabe fundamentar a responsabilidade pelo fato concreto sobre a base da chamada culpabilidade pela condução de vida. Melhor, novamente resta só a solução de fazer responder ao autor por um delito doloso cometido em estado de exclusão da culpabilidade também em aqueles casos em que haja provocado tal estado de modo evitável, podendo ao menos prever o posterior delito”.

115. O Tribunal Supremo Alemão, no entanto, estima ser lícito e necessário recorrer-se à culpabilidade de autor ou pela condução de vida nas hipóteses de hostilidade ao Direito. De acordo com aquele alto Tribunal, “o delinqüente habitual insensibilizado perdeu mediante uma condução punível da vida a acessibilidade e, portanto, a capacidade de alcançar ao conhecimento da antijuridicidade mediante a extensão da consciência (esforço de consciência). Sua culpabilidade é culpabilidade pela condução da vida” (BGHSt 2, 208). Observa ROXIN, Derecho penal, p. 883, no entanto, que esta é uma construção alheia à realidade, pois, “os , que supostamente no momento do fato são incapazes de aceder a um conhecimento da antijuridicidade, deveriam então, com uma boa-fé sem escrúpulos, executar seus delitos aos olhos do público, e não pensá-los em absoluto. Sem embargo, os delinqüentes habituais não se encontram em absoluto em erro de proibição ao executar seus atos. Do contrário não procederiam sigilosamente e não intentariam escapar às instancias encarregadas da persecução penal”.

116. Direito e razão, p. 383.

117. Organizações criminosas, p. 121.

118. Como observa RIPOLLÉS, Seguridad Ciudadana, p. 14, “cada vez mais se generaliza a aceitação de que as condutas associativas não delitivas, que se desenvolvem no campo da marginalidade, são ineludivelmente a ante-sala da delinqüência”. Na mesma linha, observa GRACIA MARTIN, Consideraciones, p. 21, que “ainda que se tenha que partir da impunidade geral dos atos preparatórios, isto não supõe que o Direito Penal não possa apenar excepcionalmente alguns atos preparatórios diferenciados por sua especial perigosidade, como é o caso por exemplo da conspiração , da proposição e da provocação para delinqüir em relação com certos delitos graves”. Contra: ZAFFARONI-ALOGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 811, para quem nas antecipações punitivas de modo geral toda a tipicidade sofre um adiantamento imposto por um básico dado da realidade, uma vez que o esgotamento do delito importaria uma impossibilidade de intervenção, ao menos temporal. Daí que os próprios delitos consumados sejam onticamente atos de tentativa (cujo esgotamento é um dado conjuntural), o que explica que o perigo se adiante a alguns atos preparatórios. Contudo, esta originalíssima e particular característica não se estende a outras antecipações que se convertem em tipicidades independentes, como é o exemplo da associação ilícita. Segundo referidos autores, a associação ilícita é de “constitucionalidade altamente duvidosa”, pois revela uma ampliação do âmbito da proibição que não pode se iludir senão com violação ao princípio de lesividade, e sem que a seu respeito caibam legitimações baseadas no perigo para todos os direitos e liberdades que a organização democrática estatal trata de garantir a toda a sociedade”.

119. Derecho penal, p. 80.

120. JAKOBS, Estudios, p. 299. Referido autor observa, ainda, que “a relação social preparatória de um delito é tão genuinamente privada como qualquer outra relação e como qualquer outra conduta que recaia no âmbito privado”. Em um Estado de liberdades estão isentas de responsabilidade não só as cogitationes, mas toda conduta que se realize no âmbito privado e, ademais, toda conduta externa que seja per se irrelevante. E arremata: “Naturalmente é perturbador saber que várias pessoas acordaram um delito; mas também perturba saber que alguém prepara com precisão, como autor único, sua comissão; apesar disso, as duas variantes de atos preparatórios ultimamente citados estão, em todo caso, isentas de pena e, por certo, sem que isso haja conduzido a conseqüências lamentáveis”.

121. Assim: MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. 2. ed. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2003, p. 78, para quem não há dúvida alguma de que no Direito positivo as medidas de segurança tendem à prevenção especial, o que, sem embargo, deixa sem explicar qual é a função última da prevenção especial. “A prevenção especial é só um meio de proteção dos bens jurídicos. A função das medidas de segurança e, pois, a proteção dos bens jurídicos”.

122. Neste sentido: NILO BATISTA, Introdução, p. 93-94: “levadas às últimas conseqüências”; URRUELA MORA, Imputabilidad, p. 403, quem estima que as medidas de segurança não deveriam estruturar-se como medidas de natureza penal, mas sim fixadas no âmbito da política sanitária geral.

123. Cfr. ASSIS TOLEDO, Princípios básicos, p. 251. Na mesma linha: ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual, p. 120: “sabemos que, na prática, o sistema penal e seu regime de fazem com que o direito penal de ato não se realize plenamente em nenhum país. Sem embargo, uma coisa é constatar esse dado de realidade e outra, muito diferente, é sustentar teorias que não só não tratem de conter ou controlar a deformação do direito penal de ato pela prática do sistema, como também constituam verdadeiras racionalizações justificantes de tais práticas”.

124. Manual, p. 120.

125. SCHÜNEMANN, Consideraciones, p. 51.

126. Nesta linha, observam ZAFFARONI-ALAGIA-SLOKAR, Derecho penal, p. 444, que “neste momento ninguém postula doutrinariamente os tipos de autor, porém é claro que o poder punitivo trata de converter em tipos de autor todos os tipos de ato e de estabelecer novos tipos de autor, tanto que tampouco falta um novo Direito Penal de autor que, à diferença do velho – que ao menos tinha o mérito de sua ingênua sinceridade –, aprendeu a ataviar sofisticadamente a tipicidade de autor com roupagens de tipos de perigos remotos o fictícios, confusões com a moral, remissões a pautas éticas, assunção de paternalismo tutelar, etc.”.

127. Em SALO DE CARVALHO, Garantismo, Prefácio, p. XV.

128. Observa FERRAJOLI, Direito e razão, p. 57, que o problema do garantismo penal é elaborar técnicas no plano teórico, torná-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prático.

129. STJ- Resp 9839.

130. A respeito, observa ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 235, que os sistemas penais estão preparados estruturalmente para desrespeitar os princípios básicos do Direito Penal, porém, “o que se pode pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde o seu poder permitir, o número e a intensidade dessas violações, operando internamente o nível de contradição com o próprio sistema, a fim de obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização operativa desses princípios”.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2007. Disponível em:
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