O sistema de seguridade social e o princípio da solidariedade: reflexões sobre o financiamento dos benefícios

Autor: Rodrigo Garcia Schwarz
Juiz do Trabalho, Mestre em Direito, Professor da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul
Publicado na Edição 25 - 29.08.2008


Resumo

O presente trabalho demonstra que o sistema de seguridade social brasileiro, tal como concebido no ordenamento jurídico imposto pela Constituição de 1988, pauta-se em uma idéia de solidariedade que é inerente ao “Estado Providência” e à social-democracia, que não se confunde com os ideais de fraternidade e de solidariedade, pautados na idéia de igualdade entre os homens. Consagrando o dever dos cidadãos de concorrer para o custeio dos benefícios postos à disposição de toda a sociedade, o sistema de seguridade social brasileiro traz, em si, um princípio estrutural de solidariedade fiscal. No entanto, embora o princípio estrutural da solidariedade seja intrínseco ao custeio das atividades do “Estado Providência”, ele encontra seus limites em outros princípios de direito tributário igualmente relevantes, como os princípios da legalidade e da capacidade contributiva. O princípio da solidariedade fiscal constitui efetivo elemento de construção de uma sociedade solidária, com a redução das desigualdades sociais e regionais, mas o ordenamento constitucional também preconiza a construção de uma sociedade livre e justa, que, nesse contexto, não prescinde do respeito à legalidade e à capacidade contributiva.

Palavras-chave: Contribuições sociais. Seguridade social. Solidariedade fiscal.

Resumen

El presente trabajo demuestra que el sistema de seguridad social brasileño, tal como concebido en el ordenamiento jurídico impuesto por la Constitución de 1988, pautase en una idea de solidaridad que es inherente al “Estado Providencia” y a la social-democracia, que no se aturulla con los ideales de fraternidad y de solidaridad, pautados en la idea de igualdad entre los hombres. Consagrando el deber de los ciudadanos de afluir para el costeo de los beneficios puestos a la disposición de toda la sociedad, el sistema de seguridad social brasileño trae, en sí, un principio estructural de solidaridad fiscal. Sin embargo, aunque el principio estructural de la solidaridad sea intrínseco al costeo de las actividades del “Estado Providencia”, encuentra sus límites en otros principios de derecho tributario igualmente relevantes, como los principios de la legalidad y de la capacidad contributiva. El principio de la solidaridad fiscal constituye efectivo elemento de construcción de una sociedad solidaria, con la reducción de las desigualdades sociales y regionales, pero el ordenamiento constitucional también preconiza la construcción de una sociedad libre y justa, que, en ese contexto, no prescinde de lo respeto a la legalidad y a la capacidad contributiva.

Palabras-llave: Contribuciones sociales. Seguridad social. Solidaridad fiscal.

Sumário: Introdução. 1 Os ideais de fraternidade e solidariedade. 2 O sistema de seguridade social: da fraternidade à solidariedade estrutural. 3 A evolução do sistema de seguridade social no Brasil. 4 O princípio estrutural da solidariedade e o custeio da seguridade social no Brasil. 5 A natureza jurídica das contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social no Brasil. 6 Os limites constitucionais ao princípio estrutural da solidariedade no custeio da seguridade social no Brasil. Considerações finais. Referências e obras consultadas.

Introdução

As profundas reformas estruturais por que vem passando o sistema de seguridade social brasileiro, pautadas, sobretudo, na necessidade de compatibilizar-se, a partir do advento da Constituição de 1988 (que reconhece, como um dos objetivos da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária), a considerável ampliação do alcance constitucional dos direitos sociais com a sua possível efetividade e com o respectivo custeio, num quadro de escassez de recursos e, portanto, de clara crise fiscal do “Estado Providência”, interventor e promotor de uma ordem voltada à redução das desigualdades sociais e regionais, provocam o crescente interesse no estudo dos institutos dos direitos econômico, financeiro e tributário, afins às contribuições que dão suporte ao financiamento da seguridade social.

Nesse contexto, o presente artigo tem como principal objetivo demonstrar, à luz dos ideais de fraternidade e de solidariedade, pautados na idéia de igualdadeentre os homens, que o sistema de seguridade social brasileiro, tal como concebido no ordenamento jurídico imposto pela Constituição de 1988, pauta-se em uma idéia de solidariedade que é inerente ao “Estado Providência” e à social-democracia, que, ao contrário do que faz supor o senso comum, se fundamenta a partir do reconhecimento da desigualdade entre os homens, os quais, vivendo em sociedade, obrigam-se, independentemente de sentimentos altruístas ou de verdadeiros propósitos caritativos, a concorrer para o financiamento de benefícios postos à disposição de toda a sociedade, inclusive à disposição daquelas pessoas que, não possuindo capacidade contributiva, não contribuíram para o financiamento desses mesmos benefícios.

Além disso, o presente artigo também tem como objetivo demonstrar que, para que se possa compreender, no âmbito do sistema de seguridade social brasileiro, a conciliação possível entre princípios como o da universalidade da cobertura e do atendimento, no que diz respeito à extensão dos benefícios sociais, e o da diversidade da base de financiamento, no que diz respeito ao custeio desses mesmos benefícios, cujo ônus recai, a partir de 1988, sobre toda a sociedade (implicando limitações ao direito de propriedade), deve-se atentar para a efetiva existência de um princípio estrutural de solidariedade fiscal, solidariedade que se consubstancia na imposição legal (constitucional), e não moral, de pagamento de contribuições que financiem a atividade estatal, em prol de toda a coletividade.

Por fim, o presente artigo tem, ainda, como objetivo demonstrar que o princípio estrutural da solidariedade, intrínseco ao custeio das atividades do “Estado Providência”, encontra limites em outros princípios de direito tributário reconhecidos pela Constituição de 1988, como os princípios da legalidade e da capacidade contributiva. O princípio da solidariedade fiscal constitui efetivo elemento de construção de uma sociedade solidária, com a redução das desigualdades sociais e regionais, mas o ordenamento constitucional também preconiza a construção de uma sociedade livre e justa, que, nesse contexto, não prescinde do respeito à legalidade e à capacidade contributiva.

1 Os ideais de fraternidade e solidariedade

Os ideais de fraternidade e solidariedade, que fundamentam racionalmente a idéia pertinente à celebração de um pacto social e político instituinte – o contrato social – nas obras de Locke e Rousseau, bem como a pauta do movimento iluminista dos séculos XVII e XVIII no embate contra o absolutismo (do que a Revolução Francesa de 1789 é a maior expressão), pressupõem que o homem fez uma escolha consciente pela vida em sociedade, estabelecendo com os seus semelhantes uma relação de igualdade, visto que, em essência, nada há que hierarquicamente diferencie os homens entre si: são como irmãos.(1)

A idéia de fraternidade, nesse contexto, é historicamente apropriada pelas ciências política e jurídica e conduz à própria idéia de cidadania, pois, por princípio, os homens são iguais – são como irmãos que interagem e, portanto, devem pautar as suas relações sociais em um sentimento de fraternidade e de alteridade. O homem depende de outros homens, e a fraternidade e a alteridade levam ao reconhecimento do “outro” na plenitude da sua dignidade e dos seus “direitos”.

Nesse sentido, Nabais ressalta que:

“A cidadania pode ser definida como a qualidade dos indivíduos que, enquanto membros ativos e passivos de um Estado-nação, são titulares ou destinatários de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade. Uma noção de cidadania em que, como é fácil de ver, encontramos três elementos constitutivos, a saber: 1) a titularidade de um determinado número de direitos e deveres numa sociedade específica; 2) a pertença a uma determinada comunidade política (normalmente o Estado), em geral vinculada à idéia de nacionalidade; e 3) a possibilidade de contribuir para a vida pública dessa comunidade através da participação.” (2005, p. 119)

De certa forma, a fraternidade não é um ideal independente dos ideais de liberdade e igualdade, pois, para a efetivação de cada um desses ideais (liberté, égalité, fraternité), é preciso que a efetivação dos demais seja plausível. Em síntese, a liberdade, a igualdade e a fraternidade estão intrinsecamente associadas desde o pensamento iluminista e liberal. A fraternidade, assim, como princípio universal, está reconhecida no Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948): “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (grifei).

Segundo Yamashita, no Estado social:

“[...] a fraternidade vincula a compreensão da liberdade e da igualdade de tal maneira que se destaca, além do componente formal, o componente material, devendo-se proporcionar: i) condições reais de desenvolvimento da liberdade; ii) igualdade de chances fáticas, especialmente no acesso à profissão e à propriedade; e iii) distribuição equilibrada de riquezas.” (2005, p. 56)

Pautada no senso comum, é freqüente a associação, em bases empíricas, dos ideais de fraternidade e de solidariedade. Nessa acepção, o termo solidariedade está relacionado a uma expressão de altruísmo, e a ação solidária corresponderia a uma ação com propósitos caritativos, derivada dos sentimentos de fraternidade e alteridade. Por esse ponto de vista, é solidário aquele que tem consciência da necessidade de busca de um ideal de distribuição eqüitativa dos recursos em prol de toda a sociedade, e cuja ação voluntária corresponde, ainda, a tal consciência – é solidário, nesse contexto, quem, de certa forma, entrega algo espontaneamente a outrem, com o propósito moral de repartir o que recebeu.

No entanto, a par do reconhecimento, no preâmbulo da Constituição de 1988, do ambicioso projeto político traçado pelos representantes do povo brasileiro, de construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, projeto que foge ao alcance do direito e se alça a patamares éticos e morais por envolver a efetiva erradicação da pobreza e a construção de uma igualdade substantiva entre os homens (e não meramente adjetiva), o sistema de seguridade social brasileiro, tal como concebido no ordenamento jurídico imposto pela Constituição de 1988, pauta-se em uma idéia de solidariedade – socialidade – que é inerente ao “Estado Providência” e à social-democracia,(2) e que – ao contrário do que faz supor o senso comum – se fundamenta no reconhecimento da desigualdade entre os homens e na “decisão socialista”, na medida em que parte do pressuposto de que alguns deles, privilegiados em relação aos outros, têm o dever – dever que é jurídico e que, assim, não necessariamente corresponde a um dever puramente moral – de repartir os frutos da sua atividade com os demais.

Reconhecida, no texto da Constituição de 1988, como princípio fundamental, a idéia de solidariedade social ancora-se, em alguma medida, ao menos originariamente, nos ideais de fraternidade e de alteridade; todavia, correspondendo a um dever jurídico, e não a um encargo moral, a solidariedade, nesse sentido, não corresponde a qualquer ato de altruísmo e distancia-se substancialmente dos ideais de fraternidade e de alteridade.

A solidariedade social corresponde, portanto, a um princípio estrutural, presente em todas as constituições dos Estados Sociais (ou Estados Providência) formados a partir das crises decorrentes das grandes guerras mundiais que pautaram a primeira metade do século XX, marcados pelo reconhecimento constitucional de direitos sociais, especialmente aqueles relacionados à regulação do trabalho e à seguridade social, mas que atualmente está presente, com maior ou menor intensidade, em todos aqueles modelos de Estado que se convencionou chamar de Estados Democráticos de Direito.(3)

O dever de solidariedade, nesse contexto, é político, econômico e social. Como decorrência do princípio da solidariedade, destaca-se que o indivíduo tem o dever de concorrer para a subsistência do Estado pelo simples fato de ser membro da comunidade, independentemente de comutação, contraprestação ou benefício, pois “A repartição das despesas públicas só pode ser, in primis, perante bens e serviços indivisíveis, portanto, bens e serviços que devem ser colocados à disposição de todos” (Sacchetto, 2005, p. 23).

2 O sistema de seguridade social: da fraternidade à solidariedade estrutural

O homem, por natureza, não é dotado de auto-suficiência. Assim, mesmo no auge da sua capacidade produtiva, não foge à dependência em relação a outros homens, pois nem lhe é viável produzir, pelo trabalho, tudo o que tem capacidade ou mesmo necessidade de consumir, nem consumir tudo o que tem capacidade de produzir (Simões, 1967, p. 15).

Essa realidade, que se mantém imutável no curso da sua existência, é fruto da própria natureza social do homem, mas avulta-se substancialmente diante de adversidades ou contingências – eventos como doenças ou o avançar da idade – que lhe reduzem, ou mesmo retiram, a capacidade produtiva e, em conseqüência, a capacidade de prover a sua própria subsistência. Nesse contexto, a seguridade social é a resposta a um anseio por segurança, sobretudo quanto ao futuro, inerente ao homem enquanto ser dotado de capacidade produtiva, que se reflete sobre todo o grupo social, substituindo o sentimento fraterno por uma solidariedade de cunho mais amplo, induzida ou mesmo imposta por lei.

O sistema de seguridade social é, portanto, um instrumento de solidariedade desde as suas origens, mas que apenas em suas origens mais remotas comporta certa afinidade com a idéia de fraternidade. Na América pré-colombiana, no Império Inca, encontramos, por exemplo, uma das primeiras manifestações de um sistema de seguridade social, entendido como um sistema racional de conjugação de esforços organizados da sociedade para prover uma espécie de seguro social: o regime de propriedade então existente previa o cultivo, através do trabalho comum, de determinadas terras, cujo produto tinha a finalidade de atender às necessidades alimentares dos anciãos, dos doentes ou inválidos e dos órfãos, desprovidos de capacidade produtiva (Oliveira, 1989-B, p. 181).

A seguridade social, todavia, como a conhecemos, é fruto de conquistas históricas e recentes dos trabalhadores, consubstanciadas em marcantes produções legislativas. Nasce, na sua concepção contemporânea, ao final do século XIX, na Alemanha de Bismarck, em meio às tumultuadas greves e à pesada repressão policial que marcam o último quartel daquele século na Europa continental. No Brasil, o sistema só efetivou-se a partir dos conflitos trabalhistas que marcaram o início do século XX (greves de 1917/19), estendendo-se inicialmente apenas a algumas categorias profissionais, detentoras de maior poder de reivindicação. A elaboração dos modernos sistemas de seguridade social está, portanto, desde a sua gênese, quer na Europa, quer, de forma tardia, no Brasil, vinculada à capacidade de reivindicação organizada de determinados segmentos do operariado,(4) fato que corrobora a idéia de que os direitos sociais relacionados à regulação do trabalho e à seguridade social são, na realidade, um direito conquistado pelos trabalhadores (em especial por determinados grupos com maior capacidade de organização à época) no âmbito do conflito subjacente à luta de classes.

O surgimento dos modernos sistemas de seguridade social está estruturalmente associado aos problemas decorrentes do advento do capitalismo industrial,(5) que redundou em profundas transformações no modo de vida e na estrutura produtiva, contexto em que se verifica uma cisão completa entre a titularidade do trabalho e a dos meios de produção, com a imposição, pelo Estado, de uma solidariedade estrutural que servisse, inclusive, de freio aos crescentes conflitos entre o capital e o trabalho – não por acaso, as famosas leis sociais de Bismarck foram levadas a cabo após a repressão franco-germânica à Comuna de Paris; da mesma forma, através da criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1917, o capitalismo europeu tratou de dar uma resposta à Revolução Soviética.

Nesse contexto, a radical alteração do modo de vida, com forte migração do campo para a cidade, e os problemas sociais a partir daí gerados, deu causa à necessidade de uma nova forma de solidariedade, de forma que se pudesse substituir a solidariedade familiar, bastante comum no meio rural, por uma outra, de cunho social, mais abrangente. Se no campo havia a possibilidade de auxílio recíproco nas necessidades decorrentes da velhice, da doença e da falta, por qualquer outro motivo, de capacidade produtiva, na cidade o grupo familiar dispersava-se, gerando a indigência dos mais velhos e debilitados.

Podemos apontar, assim, quatro aspectos relevantes, senão fundamentais, para o surgimento e a expansão dos modernos sistemas de seguridade social: a superação do modelo de produção inerente ao feudalismo, preponderantemente rurícola, pelo modelo capitalista, fundado no trabalho livre, por conta alheia e subordinado; a superação do paradigma político absolutista pelo ideário liberal, necessário ao advento do capitalismo, porém causador de crescentes tensões sociais ao buscar retirar do Estado a força necessária à intervenção na realidade social; a forte migração populacional do campo para as incipientes cidades, causadora de graves problemas de infra-estrutura e de desamparo; e os crescentes conflitos entre trabalhadores, que começavam a se organizar em associações, e empregadores, que levantaram a questão da segurança pública, conflitos que mais tarde deram causa ao surgimento da noção de justiça social.

Nesse contexto, a solidariedade pode ser entendida:

“[...] quer em sentido objetivo, em que se alude à relação de pertença e, por conseguinte, de partilha e de co-responsabilidade que liga cada um dos indivíduos à sorte e vicissitudes dos demais membros da comunidade, quer em sentido subjetivo e de ética social, em que a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa mesma pertença à comunidade.” (Nabais, 2005, p. 112)

No Brasil, o princípio da solidariedade concretiza-se nos direitos sociais, mas não se esgota neles, irradiando-se sobre a Constituição como um todo (Yamashita, 2005, p. 56).  O Estado Democrático de Direito consiste, nesse contexto, na persecução de justiça social, segurança social e assistência social, desvelando-se a solidariedade, a partir disso, mais do que simples expressão de um dever fraterno, moral, como direito e dever dos membros de um determinado grupo social (solidariedade de grupos sociais homogêneos) ou de toda a sociedade (solidariedade genérica).

3 A evolução do sistema de seguridade social no Brasil

No Brasil, o sistema de seguridade social tem as suas primeiras manifestações no Decreto Legislativo 4.682 (1912), bastante conhecido por “Lei Eloy Chaves”, que instituiu os benefícios de aposentadoria ordinária ou por invalidez, assistência médica e pensões para os ferroviários, e no Decreto 3.724 (1919), que instituiu o seguro obrigatório contra acidentes do trabalho.

A partir de 1926, o alcance da “Lei Eloy Chaves” foi paulatinamente ampliado, estendendo-se o sistema de seguridade social aos trabalhadores das empresas marítimas e fluviais e, anos depois, aos empregados das empresas prestadoras de serviços públicos. À época, o sistema organizava-se sob a forma de Caixas de Aposentadorias e Pensões, por categorias profissionais específicas e, ainda, por empresas, de forma que os membros de cada categoria profissional contribuíam, separadamente, de acordo com a empresa a que estivessem vinculados, para o financiamento de benefícios específicos, concedidos por uma entidade também específica, atribuídos apenas aos membros daquela categoria, no âmbito de determinada empresa – o sistema consagrava, assim, a supremacia da idéia de solidariedade de grupo, tanto para o custeio como para a efetiva fruição dos benefícios.

Com a criação, na Era Vargas, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, os problemas pertinentes à seguridade social passaram a ter importância crescente na agenda política e foram levados de forma mais assídua à pauta do Estado. Em 1931, Lindolfo Collor, Ministro de Getúlio Vargas, deu início à reformulação do sistema de seguridade social. Toma curso, então, a expansão do sistema, notadamente do sistema previdenciário, com a criação dos grandes institutos de assistência e previdência, com âmbito nacional – os Institutos de Aposentadorias e Pensões.

A nova sistemática abandonava o critério da criação de Caixas por empresas, determinando a filiação, ainda por categoria profissional, mas em nível nacional, aos grandes institutos. Surgem, assim, sucessivamente, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (1933), o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (1934), o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (1934), o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (1936) e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (1938).

Em 1960, emerge outro marco significativo na trajetória do sistema, com a sua uniformização legislativa: a partir daí, todos os trabalhadores segurados, pertencentes aos diversos institutos, tiveram os direitos uniformizados, com um plano único de benefícios, de custeio e de administração. Nessa época, praticamente toda a população assalariada urbana já estava abrangida pela seguridade social, através da filiação aos institutos, com exceção dos trabalhadores autônomos, que passaram, então, a segurados obrigatórios, e dos empregados domésticos, que nele foram incluídos, em caráter obrigatório, apenas a partir da Lei 5.869 (1972).

Em 1966, os diversos Institutos são fundidos em uma só entidade – o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Em 1967, são criados, ainda, o IAPAS e o INAMPS, entidades destinadas, respectivamente, à administração da arrecadação dos recursos destinados ao financiamento da seguridade social e à prestação de assistência médica aos seus beneficiários, e entidades como a LBA e a FUNABEM, relacionadas à prestação de assistência social, cujo acesso aos serviços, por parte dos seus beneficiários, não dependia de prévia contribuição.

Sob a égide da Constituição de 1988, organiza-se um novo sistema de seguridade social, integrado, pautado (I) pela universalidade da cobertura e do atendimento, (II) pela uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, (III) pela seletividade e distributividade na prestação dos respectivos benefícios e serviços, (IV) pela eqüidade na forma de participação no custeio, (V) pela diversidade do financiamento e (VI) pelo caráter democrático e descentralizado da respectiva administração (artigo 194 da Constituição).

Em junho de 1990, é criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal vinculada ao atual Ministério da Previdência Social, com o objetivo de promover tanto a arrecadação das contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social como a concessão e manutenção dos respectivos benefícios.

A Constituição de 1988, sob o signo do Estado Providência, inaugura formidáveis avanços no que diz respeito à seguridade social. Assim, além de atingir qualquer cidadão, e não mais apenas o trabalhador, contempla um plano de cobertura de riscos comparável aos dos países fortemente industrializados. Como assinala Moraes Filho (1983, p. 89), para que se tenha uma noção da grandeza do sistema de seguridade social brasileiro na atualidade, basta que, por abstração, o excluamos da vida de nossos dias: praticamente, a totalidade da população se veria mergulhada na miséria e no desamparo.

Chama a nossa atenção, todavia, o disposto no artigo 195 da Constituição de 1988, a respeito do financiamento da seguridade social. Nele, há uma declaração de bastante amplitude, a saber: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta”. É de notar-se, assim, que a Constituição atribui expressamente à própria sociedade a responsabilidade pelo custeio da seguridade social, o que constitui declaração inédita em texto legal ou constitucional (Oliveira, 1989-A, p. 145).

4 O princípio estrutural da solidariedade e o custeio da seguridade social no Brasil

O conceito de seguridade social não é universal nem estático: antes, é determinado pela forma como cada Estado estrutura-se para atender à questão dos problemas sociais. Na Constituição de 1988, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações dos poderes públicos e da sociedade civil, destinadas a assegurar direitos nas áreas de saúde, previdência e assistência social, segundo objetivos determinados pela própria Constituição, em que se destaca a universalidade de prestações e a eqüidade no respectivo custeio.

Nesse contexto, devemos ressaltar que o sistema de seguridade social brasileiro, a partir de 1988, atua como verdadeiro agente promotor de redistribuição da renda nacional, assegurando a manutenção continuada de certo nível aquisitivo aos que trabalham, fazendo sustentarem-se os doentes, os inválidos, as viúvas e os órfãos pelos que permanecem com a sua capacidade de trabalho e de ganho. O sistema redistribui, ainda, parte da renda das regiões mais industrializadas e prósperas do país às de menores condições econômicas, bastando assinalarmos, quanto a isso, a arrecadação das contribuições oriundas do Estado de São Paulo, que sustenta o pagamento dos benefícios e serviços da seguridade social a muitos dos demais estados, onde a arrecadação é insuficiente (Oliveira, 1989, p. 326).

A questão que reiteradamente tem vindo à pauta, inclusive sob a forma de reformas constitucionais, na agenda da manutenção do sistema de seguridade social, atualmente, diz respeito à necessidade de obter-se a conciliação possível entre a considerável ampliação do alcance constitucional dos direitos sociais, proposta pela Constituição de 1988, com a sua efetividade e com o respectivo custeio, num quadro de escassez de recursos e, portanto, de clara crise fiscal do “Estado Providência”.(6)

Em síntese, o problema que se apresenta é o da conciliação possível entre princípios como o da universalidade da cobertura e do atendimento, no que diz respeito à extensão dos benefícios sociais, e o da diversidade da base de financiamento, no que diz respeito ao custeio desses mesmos benefícios.

O modelo de sistema de seguridade social definido em 1988, na Constituição, tomou por base modelos voltados para a garantia de prestações sociais amplas e universais, surgidos com a evolução dos sistemas de proteção social até a década de 1980. Entretanto, diversas mudanças, decorrentes do processo de globalização, da alteração da estrutura demográfica da população e da prevalência mundial de um neoliberalismo, alteraram esse quadro, levando quase todos os países ocidentais a repensarem o modelo inspirador dos respectivos sistemas de seguridade social. O Brasil também reformulou seu sistema de seguridade social através das recentes alterações constitucionais, que continuam em curso.

A evolução do sistema de seguridade social aponta para diferentes modelos de custeio, que pode se dar pela instituição de fontes de financiamento próprias, pelo repasse de verbas provenientes da arrecadação de impostos ou por um sistema misto. No Brasil, observamos um sistema misto de financiamento da seguridade social, onde parte dos recursos advém dos orçamentos públicos – da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – e a outra parte das receitas provém da arrecadação de contribuições com destinação específica, direcionada ao custeio da seguridade social.

Nesse contexto, destacamos a idéia de que, em relação às contribuições que dão suporte ao financiamento da seguridade social, o princípio da solidariedade é albergado, de forma estrutural, pela Constituição. Isso porque, segundo o artigo 195 da Constituição, a seguridade social é financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, quer através de recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quer através de contribuições sociais, (I) a cargo das empresas, incidentes sobre os salários e demais rendimentos do trabalho, a receita ou o faturamento e o lucro, (II) a cargo dos trabalhadores, incidentes sobre os salários e demais rendimentos do trabalho, (III) sobre a receita de concursos de prognósticos, e (IV) sobre bens ou serviços importados.

5 A natureza jurídica das contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social no Brasil

O critério do tratamento constitucional demonstra-se insuficiente para determinar a natureza jurídica das contribuições sociais pertinentes ao custeio da seguridade social, pois o regime jurídico a que se submetem as contribuições sociais destinadas ao financiamento da seguridade social (a partir do artigo 149 da Constituição) não se confunde com a natureza de tais contribuições: regime jurídico e natureza jurídica são aspectos distintos.

O regime jurídico é determinado pelo direito positivo e consiste, em síntese, na forma como a lei disciplina determinado instituto; a natureza jurídica, ao contrário, refere-se à própria essência de um instituto. Para a definição do regime jurídico, a principal fonte será a interpretação do direito positivo; para a definição da natureza jurídica de um instituto, é imprescindível verificar todos os seus aspectos, não só os formalizados no direito positivo, mas também os aspectos que decorrem de sua ação sobre o mundo dos fatos, de sua evolução histórica e do respectivo tratamento em outros sistemas jurídicos.

A análise do tratamento constitucional pode determinar, portanto, o regime jurídico aplicável, mas é claramente insuficiente para determinar a natureza jurídica do instituto, aqui compreendidas as características essenciais que o individualizam e distinguem de outros institutos jurídicos.

Nesse contexto, é conveniente ressaltar que a Constituição de 1988 não determinou a natureza tributária das contribuições sociais – não se ocupou de defini-las como tributos, nem de defini-las como uma nova espécie tributária. Ao contrário, optou por afastar-se de qualquer definição de natureza jurídica ao valer-se da expressão “contribuições” como gênero, que tem por espécie tributos e demais prestações compulsórias de natureza não-tributária. Ofereceu, assim, aos destinatários da exação, garantias mínimas, idênticas às asseguradas aos contribuintes tributários.

Indiferente tornou-se, portanto, o fato de a União desempenhar diretamente a atividade de intervenção, quando tais fontes de custeio teriam a forma de tributo, ou de a União delegar tal atividade a qualquer outra pessoa em uma fonte de financiamento não-tributária, pois, em qualquer hipótese, deverão ser observados os princípios tributários mencionados no artigo 149 da Constituição de 1988.

A ausência de rigor técnico desvela-se nos incisos do artigo 195 da Constituição, pois, ao enumerar diversas contribuições, o ordenamento enuncia distintas incidências como impostos (inciso I), autênticas contribuições (inciso II) e meros repasses de receitas originárias (inciso III). A Constituição de 1988 utiliza-se do termo “contribuições” na acepção genérica de exações ou fontes de financiamento, em relação à seguridade social, sem posicionar-se quanto à respectiva natureza, tributária ou não-tributária, sequer mencionando serem tais contribuições espécies autônomas de tributo, ou não. Tal fato exige que seja efetuada uma distinção entre contribuição, enquanto espécie do gênero tributo, de contribuição, enquanto gênero cuja espécie é o tributo.

Os artigos 149 e 195 da Constituição utilizam-se do termo “contribuições” e ainda vinculam tais exações a alguns princípios constitucionais tributários, independente de a contribuição (gênero) ser efetivamente um tributo. Serão tais contribuições verdadeiro tributo se corresponderem a uma receita pública exigida compulsoriamente dos particulares para custeio das atividades estatais; por outro lado, serão simplesmente contribuições, sem natureza tributária, se possuírem características diferenciadas, como não corresponderem a atividades estatais, ou na hipótese de ausência de pagamento compulsório. Dentre as contribuições que, também, sejam tributárias, podem ser identificadas algumas que são impostos, outras que são taxas e outras que são autênticas contribuições (espécie). Se tributárias as fontes de custeio da seguridade social, além das disposições contidas no artigo 149 da Constituição, as exações deverão observar todas as demais limitações ao poder de tributar. Se não forem tais contribuições verdadeiro tributo, ao menos deverão ser observados os princípios enumerados no artigo 149 da Constituição.(7)

As expressões contribuição especial, contribuição “parafiscal” e contribuição social têm sido utilizadas indistintamente para qualificar as diversas fontes de financiamento da seguridade social, embora tenham significados próprios. As contribuições especiais correspondem àquelas contribuições que, ao contrário das tradicionais contribuições de melhoria, estão relacionadas ao financiamento da intervenção estatal no domínio econômico, no interesse de categorias profissionais, ou na área social. Essas contribuições também são conhecidas por “parafiscais”, pois têm como característica serem arrecadadas por entes paraestatais e não serem, originariamente, incluídas no orçamento. A Emenda Constitucional 8 (1977), por outro lado, destacou as contribuições sociais das contribuições especiais, qualificando-as como contribuições destinadas ao financiamento da intervenção do Estado na área social; assim, as contribuições especiais poderiam ter natureza tributária, mas as contribuições sociais não. Atualmente, as contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social são as referidas no artigo 195 da Constituição de 1988.

O fato de uma exação (contribuição) ser parafiscal, todavia, em nada afeta a sua natureza jurídica, tributária ou não-tributária. Essa depende, fundamentalmente, da sua vinculação às atividades que financia, do fundamento constitucional de sua exigência, da estrutura da norma que a instituiu e, em regra, de todos os demais aspectos relacionados ao fenômeno tributário. É, portanto, irrelevante a discussão a respeito da natureza tributária ou não de uma contribuição “parafiscal”. A parafiscalidade é, simplesmente, uma técnica adotada para o financiamento de atividades de órgãos descentralizados da Administração: consiste, pois, em simplificar a entrega de recursos para as atividades desses órgãos, pois lhes são destinados valores diretamente, evitando a demora nas transferências de receitas.           A parafiscalidade, portanto, nem afasta, nem atribui natureza tributária às contribuições, sendo apenas uma forma singular de administração de recursos. No entanto, a parafiscalidade não é mais característica peculiar às contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social segundo a Constituição de 1988, pois as receitas destinadas à seguridade social foram inseridas no orçamento. Assim, os valores arrecadados com as contribuições destinadas ao custeio da seguridade social destinam-se tanto ao financiamento de atividades essenciais ao Estado Providência, como às atividades referentes à medicina preventiva e outras atividades complementares.

Por fim, a destinação da receita das contribuições sociais às atividades essenciais do Estado, como à garantia do mínimo existencial e às políticas sociais na área de saúde, torna ineficaz a idéia de diferenciar as contribuições das demais receitas do Estado por destinarem-se, as primeiras, à manutenção de atividades não-essenciais. No sistema vigente no Brasil a partir de 1988, não há tal distinção.

A destinação das contribuições sociais é requisito de validade para sua instituição, podendo sua ausência ou alteração afetar a própria constitucionalidade da incidência da exação. Entretanto, a destinação não constitui elemento hábil, por si só, para diferenciá-las de outras espécies tributárias, nem mesmo de outras exações não-tributárias. Um imposto pode, no sistema tributário brasileiro, ter a sua destinação vinculada a uma determinada despesa, sem que isto o descaracterize (impostos com destinação especial). Efetivamente, a vedação constitucional à vinculação da receita dos impostos refere-se à vinculação legal, o que não impede uma vinculação constitucional, não afastando a possibilidade de existência de impostos com tal característica. Da mesma forma, as taxas podem ter – e normalmente têm – sua arrecadação vinculada ao serviço público ou à atividade de exercício do poder de polícia que as fundamenta. Ou seja, não é peculiar às contribuições sociais uma destinação especial. Mesmo as contribuições reconhecidamente não-tributárias, como as destinadas ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, podem ter uma destinação específica sem que isso, por si só, permita a definição da sua natureza jurídica.

Observadas as características atribuídas normalmente pela doutrina aos tributos, no entanto, é atribuída às contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social uma natureza tributária: prestações pecuniárias compulsórias, direcionadas ao Estado com o objetivo de supri-lo de recursos para a realização de seus fins constitucionais.

A doutrina costuma ressaltar, todavia, que a dificuldade a respeito da definição da natureza jurídica das contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social reside na procura de uma característica comum a todas essas contribuições, quando são diversas as suas hipóteses de incidência. Uma hipótese de incidência característica às contribuições, como espécie tributária, diz respeito a uma prestação exigida de quem integre, direta ou indiretamente, um grupo beneficiado por uma determinada atividade estatal, ou ainda, um grupo que tenha causado a atividade estatal especial financiada com tal prestação. Contudo, forçoso é reconhecer que nem todas as fontes de financiamento da seguridade social, genericamente denominadas na Constituição de 1988 como “contribuições”, são também tributos da espécie contribuição.

Uma definição adequada de contribuições sociais deve buscar princípios que lhes sejam inerentes. A doutrina ainda tenta responder tal questão com os princípios da referibilidade, que diz respeito a uma relação mediata entre o contribuinte e a atividade que será financiada pelo Estado, e da solidariedade, que impõe a obrigação de contribuir a partir do simples fato de o contribuinte pertencer a um grupo que será beneficiado com a atividade estatal financiada com a contribuição. Referenda-se, assim, a idéia de que a contribuição pressupõe uma correlação entre o grupo a que o contribuinte pertence e a atividade estatal.

Com efeito, as contribuições para a manutenção da seguridade social fundamentam-se no princípio da solidariedade. Entretanto, a solidariedade, em si, pode ser compreendida, como já se tratou de expor, em duas acepções: a solidariedade com os membros de um grupo social e a solidariedade entre os diversos membros da sociedade.

Solidariedade, assim, pode ser entendida como a que aproxima os membros de um determinado grupo, criando entre eles laço de afinidade, capaz de justificar que cada membro do grupo contribua para a manutenção de um sistema de proteção especial voltado para tal grupo. É essa concepção de solidariedade que justifica a cobrança das contribuições sociais propriamente ditas, ou seja, as pertencentes à espécie tributária “contribuições”.

A crise das formas tradicionais de custeio da seguridade social, todavia, fundadas na solidariedade dos economicamente ativos com os inativos, culminou em uma ampliação da acepção de solidariedade, que alcança, a partir daí, mais do que apenas os integrantes do grupo de beneficiados, toda a sociedade. Essa é a solidariedade que justifica a manutenção, pelo Estado, de um sistema de prestações públicas na área do direito social, ainda que de forma independente de qualquer prestação por parte dos beneficiados. É a solidariedade, em síntese, que justifica a universalidade das prestações da seguridade social.

No sistema tributário brasileiro, o princípio da solidariedade, em sua acepção mais ampla, ainda não foi devidamente aprofundado, mas poderia ser o ponto de partida para uma melhor compreensão do sistema de seguridade social que temos, que ora financia-se com impostos claramente fundados na capacidade contributiva, e ora busca recursos em tributos da espécie contribuição, exigidos com fundamento na solidariedade de grupo.

6 Os limites constitucionais ao princípio estrutural da solidariedade no custeio da seguridade social no Brasil

Uma das mais relevantes questões atuais, a partir da apreensão de que o princípio da solidariedade, relacionado ao custeio da seguridade social no Brasil, é albergado, de forma estrutural, pela Constituição de 1988, diz respeito à compreensão dos limites que são impostos pelo próprio sistema tributário constitucional ao princípio da solidariedade, de forma que este não anule outros princípios constitucionais tributários destinados a garantir o contribuinte-cidadão contra o arbítrio do Estado, sobretudo os princípios da legalidade e da capacidade contributiva.

A despeito da pluralidade de domínios que são abrangidos por um ordenamento, a ordem jurídica de um Estado constitui uma unidade, decorrência natural da sua soberania. E é a Constituição, como norma fundamental, que confere unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico: a idéia de unidade da ordem jurídica irradia-se desde a Constituição, e sobre ela também se projeta. A Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo e político ideologicamente fundado num núcleo irredutível, que condiciona a inteligência de todas as suas partes. Nenhuma disposição constitucional pode, portanto, ser considerada ou interpretada por si só, isoladamente, mas a partir de uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição. O direito, especialmente o direito constitucional, não tolera antinomias, cabendo ao intérprete da Constituição buscar a conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma em favor da outra. Daí a importância de estudar o tema, a fim de oferecer propostas para uma racionalização do sistema tributário brasileiro.

O Estado não pode justificar a tributação com base direta e exclusiva no princípio da solidariedade social: o poder de tributar, na Constituição, “foi delimitado, de um lado, por meio de regras que descrevem os aspectos materiais das hipóteses de incidência e, de outro, por meio da técnica da divisão de competências em ordinárias e residuais” (Ávila, 2005, p. 69).

No campo da solidariedade tributária, o sujeito torna-se solidário em razão de uma circunstância externa, independente à sua vontade de contribuir. Uma vez realizado o fato gerador típico de uma obrigação tributária, a medida da solidariedade é objetivamente determinada, por lei, para pagamento em dinheiro ou outra forma. O sujeito é convocado a ser solidário, portanto, ainda que, no seu íntimo, não tenha pendores de alteridade e simplesmente ignore a existência do “outro”. Trata-se, portanto, aqui, de uma solidariedade vazia de conteúdo.

Nesse contexto, destacamos os princípios da legalidade e da capacidade contributiva como princípios que protegem os cidadãos dos abusos de poder do Estado. O princípio da legalidade, consubstanciado no artigo 150, inciso I, da Constituição, diz respeito à impossibilidade de instituição ou majoração de tributos senão em virtude de lei. Tal garantia dá segurança às relações entre o contribuinte e o Estado, cabendo à lei prever todos os elementos do fato gerador para a produção de efeitos tributários. Em face desse princípio, não há regulamento que inove a ordem jurídica tributária.

No mesmo passo, o parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição dispõe que os tributos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte – é o princípio da capacidade contributiva. Segundo Machado (2005, p. 59), a inobservância desse princípio pode ser objeto de controle, tanto por ação direta, como em qualquer das outras ações pelas quais ordinariamente podem ser apreciadas as questões tributárias. O princípio reconhece que o cidadão deve contribuir, mas sempre segundo o montante de renda disponível para tanto – a contribuição opera-se na proporção da respectiva capacidade do contribuinte.

Os princípios da legalidade e da capacidade contributiva congregam efetivas limitações ao poder de tributar do Estado. Vale lembrar que a capacidade contributiva é o princípio que serve de critério à concretização dos direitos fundamentais individuais, como a igualdade, o direito de propriedade e a vedação do confisco.

O princípio da solidariedade constitui fundamento para a atuação do Estado, que há de promover a solidariedade social. Porém, na sua atividade, o Estado não pode, sob nenhum pretexto, desconsiderar o princípio da legalidade ou da capacidade contributiva, nem justificar a ilegalidade na solidariedade e na capacidade contributiva, até porque esses princípios não se contrapõem, na verdade. É exatamente porque devemos construir uma sociedade mais justa que admitimos a atuação do Estado promovendo a redistribuição de renda. Mas nossa Constituição preconiza também uma sociedade livre, e assim não se pode prescindir da legalidade.

A invocação do princípio da solidariedade pelos governantes, em questões tributárias, pode ser e geralmente é mero pretexto para a ampliação dos limites impostos pelo princípio da legalidade.            A tese que coloca a solidariedade como algo capaz de justificar a cobrança de tributos sem apoio na lei, amparada na capacidade contributiva, é, todavia, írrita. Não obstante apresentada como tese moderna, ela na verdade apenas ressuscita o autoritarismo. Solidariedade e capacidade contributiva, a rigor, são princípios dirigidos ao legislador: nenhum deles pode ser visto como pretexto para burlar o princípio da legalidade. Ao contrário, eles devem ser postos em prática pelos caminhos ditados pelo princípio da legalidade.

Os princípios constitucionais em geral são limitações ao poder. No que diz respeito à tributação, os princípios constitucionais são limitações ao poder de tributar. Assim, tanto quanto o princípio da legalidade, o princípio da capacidade contributiva deve ser visto como um limite ao arbítrio dos governantes. Não como um pretexto para sua ampliação. Por isso, mesmo quando instituído ou aumentado por lei, não se deve admitir a cobrança de um tributo se não há capacidade contributiva – saber quando isso acontece é outra questão. Por outro lado, a capacidade contributiva não justifica a cobrança de tributo que não tenha sido instituído ou majorado por lei.

Considerações finais

Pautada no senso comum, é freqüente a associação, em bases empíricas, dos ideais de fraternidade e de solidariedade. No entanto, o sistema de seguridade social brasileiro, tal como concebido no ordenamento jurídico imposto pela Constituição de 1988, pauta-se em uma idéia de solidariedade que é inerente ao “Estado Providência”: solidariedade como dever político, econômico e social, pelo qual o indivíduo está obrigado a concorrer para a atividade do Estado Social a partir do simples fato de pertencer a uma comunidade, independentemente de contrapartida.

Transposto para os direitos econômico, financeiro e tributário, que propiciam a intervenção do Estado no domínio econômico, o princípio da solidariedade vem à tona, no que diz respeito ao sistema de seguridade social brasileiro, no momento em que se reconhece que os homens, vivendo em sociedade, obrigam-se, independentemente de sentimentos altruístas ou de verdadeiros propósitos caritativos, a concorrer para o financiamento de benefícios postos à disposição de toda a sociedade, inclusive à disposição daquelas pessoas que, não possuindo capacidade contributiva, não contribuíram para o financiamento desses mesmos benefícios.

Assim, reconhece-se a existência de um princípio estrutural da solidariedadeno âmbito da Constituição de 1988, que funda a diversidade da base de financiamento da seguridade social: o ônus do custeio dos benefícios da seguridade social recai, a partir de 1988, sobre toda a sociedade.

No entanto, o princípio estrutural da solidariedade, intrínseco ao custeio das atividades do “Estado Providência”, encontra limites em outros princípios de direito tributário reconhecidos pela Constituição de 1988, como os princípios da legalidade e da capacidade contributiva. O princípio da solidariedade fiscal constitui efetivo elemento de construção de uma sociedade solidária, com a redução das desigualdades sociais e regionais, mas o ordenamento constitucional também preconiza a construção de uma sociedade livre e justa, que, nesse contexto, não prescinde do respeito à legalidade e à capacidade contributiva.

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Notas

1. Segundo Santos (2006, p. 295), “O contrato social é a grande narrativa em que se funda a obrigação política moderna ocidental, uma obrigação complexa e contraditória porque foi estabelecida entre homens livres e [...] para maximizar, e não para minimizar essa liberdade”.

2. O princípio da socialidade está presente, por exemplo, na Constituição alemã e na opção socialista de que trata o Artigo 2º da Constituição portuguesa de 1976. Em ambos os casos, o princípio corresponde à percepção de que a democracia social e econômica é indissociável do problema da reconversão da estrutura dos meios de produção num sentido socialista. 

3. Segundo Canotilho (2002, p. 333), “quase todos os estados europeus integraram, de uma forma ou doutra, o princípio da solidariedade no núcleo firme do Estado Constitucional democrático”.

4. Cf. Esping-Andersen (1998).

5. Cf. Offe (1991).

6. Segundo Freitas Jr. (2007, p. 59), “o Estado Providência e os seus mecanismos impositivos e estatizantes de distribuição de riqueza apresentam em nossos dias um quadro de crise (em que pese a incerteza quanto à natureza estrutural, conjuntural ou mesmo paradigmática desta crise)”.

7. Cf. Tognetti (2005).

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2008. Disponível em:
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