O princípio da vedação de retrocesso na jurisprudência pátria - análise de precedentes do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Regionais Federais e da Turma Nacional de Uniformização


Autor: Sérgio Renato Tejada Garcia

Juiz Federal convocado como auxiliar da Presidência do TRF da 4ª Região, Presidente da comissão de estudos para implantação do processo eletrônico da Justiça Comum Federal. Mestrando em Direito do Estado pela PUC/RS.

 publicado em 30.6.2010

Resumo

A noção de direitos fundamentais surgiu a partir do movimento do liberalismo e, mais recentemente, representou uma reação aos desmandos do Estado no período da 2ª Guerra Mundial e do nazismo. Os direitos sociais enquadram-se nos direitos fundamentais, como direitos de segunda geração e, uma vez alcançados pela sociedade, exigem um mecanismo capaz de evitar que venham a desaparecer, o que configuraria evidente retrocesso. O princípio da vedação de retrocesso constitui-se em proteção do núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas, vedando quaisquer medidas tendentes a anular, revogar ou aniquilar esse núcleo essencial, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios. A aplicação desse princípio na jurisprudência pátria, embora ainda incipiente, vem ganhando espaço nos mais diversos Tribunais e em todas as instâncias.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Vedação de retrocesso. Precedentes jurisprudenciais.

Sumário: Introdução. 1 Direitos fundamentais. 1.1 Direitos humanos e direitos sociais. 2 Princípio de vedação de retrocesso. 3 O princípio da vedação de retrocesso na jurisprudência pátria. 3.1 Supremo Tribunal Federal. 3.2 Tribunais Regionais Federais. 3.3 Turma Nacional de Uniformização. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

Visa o presente estudo a tecer comentários acerca do princípio da vedação de retrocesso social, discorrer sobre sua origem, sua conceituação e sua aplicação, bem como analisar alguns precedentes jurisprudenciais nos quais já vem sendo aplicado o referido princípio, em decisões judiciais prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Tribunais Regionais Federais e pela Turma Nacional de Uniformização.

Não se pretende uma análise especialmente profunda do tema, nem o seu esgotamento, mas a condensação de ideias de alguns doutrinadores e julgadores que vêm se debruçando sobre a matéria no Brasil, o que enseja, inclusive, a utilização desse conceito pela jurisprudência de forma crescente – o que deve ser feito sempre mirando a defesa dos direitos sociais já alcançados pela sociedade.

1 Direitos fundamentais

O conceito de direitos fundamentais tem origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e decorreu do movimento liberal, surgido após o período do absolutismo.

Miozzo refere que “os direitos humanos, uma vez positivados em determinado sistema jurídico, passam a ser denominados direitos fundamentais”.

Os direitos de 1ª geração são os direitos clássicos, de caráter civil e político, representados pelas liberdades negativas, próprias do Estado Liberal (dever de abstenção do poder público). Baseiam-se no princípio da liberdade. São exemplos da sua aplicação a busca por certidão de nascimento, de casamento, etc.

Os direitos de 2ª geração são aqueles de caráter econômico-social, os direitos do trabalho, cultural e econômico, compostos por liberdades positivas, como saúde, educação (dever do Estado a um dare, facere ou praestare). Baseiam-se no princípio da igualdade e são decorrentes do intervencionismo.

Os direitos de 3ª geração são os direitos de solidariedade ou fraternidade decorrentes dos interesses sociais da divisão anterior, direito ao desenvolvimento com justiça social, ao meio ambiente saudável, crescimento econômico, desenvolvimento sustentável. Têm por base o princípio da fraternidade.

Os direitos de 4ª geração decorrem dos avanços no campo da tecnologia. São o acesso à tecnologia, os direitos decorrentes da engenharia genética. É o primeiro grupo a se desvencilhar dos ideais da Revolução Francesa, o que indica um rompimento com o que vinha sendo praticado e produzido até então.

A concepção contemporânea dos direitos humanos surgiu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e foi reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993. Adveio de um movimento internacional de rejeição à destruição causada pela 2ª Guerra Mundial e pelo nazismo, quando o Estado foi visto como o maior violador dos direitos humanos, resultando numa nova forma de pensar o constitucionalismo.

Tal pensamento, que passou a ser conhecido como constitucionalismo dirigente, tentou absorver do Estado Liberal e do Estado Social o que tinham de melhor, com vistas a superar as dificuldades que foram encontradas nos movimentos anteriores. A Constituição Dirigente, ao mesmo tempo em que limita, dirige a forma de atuação do Estado, num esforço tendente a consolidar as instituições democráticas e realizar os direitos fundamentais.

1.1 Direitos humanos e direitos sociais

Flávia Piovesan aduz que, “No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um constructo, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”.

A autora cita Norberto Bobbio:

“(...) os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.”

Discorrendo sobre os direitos sociais e sua aplicabilidade, registra:

“A ideia da não acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos, e não como caridade, generosidade ou compaixão.

(...) a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais não é apenas uma obrigação moral dos Estados, mas uma obrigação jurídica, que tem por fundamento os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

(...) os direitos sociais, econômicos e culturais (...), nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização desses direitos (artigo 2º, § 1º do Pacto).”

Almeida defende, com base nos ensinamentos de Bobbio, que os direitos sociais não podem ser tratados como normas programáticas “a depender do possível de ser realizado, estando, portanto, vinculadas e pendentes de escolha legislativa presa à moral de cada representante”. Refere Barroso, que defende a teoria da máxima aplicabilidade das normas constitucionais, “única forma de dotar a Constituição de caráter normativo real e de fornecer ao cidadão, seu destinatário final, uma proteção efetiva”:

“O fato de uma regra constitucional contemplar determinado direito cujo exercício dependa de legislação integradora não a torna, só por isto, programática. Não há identidade possível entre a norma que confere ao trabalhador direito ao ‘seguro-desemprego’ em caso de desemprego involuntário (CF, art. 7º, II) e a que estatui que a família tem especial proteção do Estado (CF, art. 226). No primeiro caso, existe um verdadeiro direito. Há uma prestação positiva a exigir-se, eventualmente frustrada pelo legislador ordinário. No segundo caso, faltando o Poder Público a um comportamento comissivo, nada lhe será exigível, senão que se abstenha de atos que impliquem a ‘desproteção’ da família.”

Segundo Sarlet:

“Negar reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.”

Almeida refere as lições de Lênio Luís Streck:

“Embora (o princípio da proibição de retrocesso social) ainda não esteja suficientemente difundido entre nós, tem encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina mais afinada com a concepção do Estado democrático de Direito consagrado pela nossa ordem constitucional.”

Duz sustenta:

“(...) o espírito moderno deixa congelada a óptica de que a Constituição Federal de 1988 seja apenas um programa, com metas a serem cumpridas, trazendo à tona a produção de efeitos práticos, no tocante àquelas normas de direitos fundamentais, que possuam densidade normativa suficiente.”

Referindo Canotilho, acrescenta:

“(...) a ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária. Com isto, quer dizer-se que os direitos sociais e os econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia constitucional e um direito subjectivo.”

Não basta aos direitos sociais a simples afirmação, mesmo que em sede constitucional. Devem eles ser efetivados e preservados, afastando-se a ideia de uma Constituição programática, a depender da atitude do legislador ordinário para ganhar eficácia, e que pode ser alterada sem atentar para os avanços já garantidos na seara social.

2 Princípio da vedação de retrocesso

A ideia da vedação do retrocesso tem sua origem na jurisprudência europeia, principalmente da Alemanha e de Portugal, países em que as conquistas sociais já atingiram patamares bastante mais elevados do que no Brasil.

Claro, falando das origens do princípio da vedação de retrocesso social, também chamado de princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais ou princípio da proibição do retrocesso, refere-se ao filósofo francês Michel de Montaigne, que dizia haver

“(...) grande dúvida sobre se podemos obter tão evidente benefício na mudança de uma lei aceita, qualquer que seja ela, quando há prejuízo em mudá-la, porque um governo é como uma construção com diversas peças, interligadas com tal coesão que é impossível mover uma sem que todo o corpo o sinta.”

Citando Luís Roberto Barroso, afirma que

“(...) o princípio da proibição de retrocesso decorre justamente do princípio do Estado Democrático e Social de Direito; do princípio da dignidade da pessoa humana; do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais; do princípio da proteção da confiança e da própria noção do mínimo essencial.”

Ainda:

“Caso se resolva alterar a lei posta pelo Estado, tal mudança não pode ser radical para fins de restringir direitos e garantias, por exemplo, mas terá de ser apresentada uma [nova] lei com caráter deveras ampliativo, para fins de manter a paz social e resguardar o direito adquirido do cidadão, as garantias e direitos fundamentais previstos na Carta Política do país.

(...) o princípio da segurança jurídica – não obstante sua profundidade e extensão – deve ser sempre estudado com muita cautela, pois, não raras vezes, é utilizado pelos detentores do poder, os reacionários, os conservadores, para fins de manter incólume esse mesmo poder constituído.

Da aplicação progressiva dos [direitos] econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição do retrocesso social em matéria de direitos sociais. Para J. J. Gomes Canotilho: ‘O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.’

Logo, em face do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que os Estados-partes (dentre eles o Brasil), no livre e pleno exercício de sua soberania, ratificaram, há que se observar o princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, o que, por si só, implica no princípio da proibição do retrocesso social.

Note-se que o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais apresenta uma peculiar sistemática de monitoramento e implementação dos direitos que contempla. Essa sistemática inclui o mecanismo dos relatórios a serem encaminhados pelos Estados-partes. Os relatórios devem consignar as medidas legislativas, administrativas e judiciais adotadas pelo Estado-parte, no sentido de conferir observância aos direitos reconhecidos pelo Pacto. Devem ainda expressar os fatores e as dificuldades no processo de implementação das obrigações decorrentes do Pacto.”

Lenza ressalta o comportamento positivo que se estabelece no âmbito do Estado Social de Direito com vistas à implementação dos direitos sociais, gerando efeitos na atuação do legislador, do administrador público e do julgador. O legislador deve respeitar o núcleo essencial ao regulamentar os direitos; o administrador deve realizar as políticas públicas dentro da reserva do possível, observando-se, assim, o princípio da vedação ao retrocesso. Da mesma forma que a lei não pode retroceder, tampouco o pode o poder de reforma.

O princípio da vedação de retrocesso também é denominado proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária, por Canotilho, que destaca que, uma vez atingidos os direitos sociais e econômicos, passam eles a constituir uma garantia constitucional e um direito subjetivo.

Leite escreveu sobre o effet cliquet:

“A expressão ‘efeito cliquet’ é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só permite ao alpinista ir para cima, ou seja, subir. A origem da nomenclatura, em âmbito jurídico, é francesa, onde a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (chamado de ‘effet cliquet’) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente.

(...)

Pensa-se, contudo, que apenas no caso de retrocesso social, em que o Estado brasileiro abriria mão de conquistas sociais já atingidas, é que a justificação da reserva do possível não prosperaria. As conquistas sociais têm efeito de catraca (Efeito Cliquet), não podendo retroceder, conforme defendeu o português Canotilho na primeira edição de sua obra.

No julgamento da ADIn 1.946/DF, o STF entendeu que o direito ao salário-maternidade seria uma cláusula pétrea; houve uma aplicação, ainda que não tão evidente, do chamado princípio do não retrocesso.

(...) a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (por ele chamado de ‘effet cliquet’) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente.”

Citando o Juiz Federal George Marmelstein, a autora pontua:

“(...) a ideia por detrás do princípio da proibição de retrocesso é fazer com que o Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de vida da população. Qualquer medida estatal que tenha por finalidade suprimir garantias essenciais já implementadas para a plena realização da dignidade humana deve ser vista com desconfiança e somente pode ser aceita se outros mecanismos mais eficazes para alcançar o mesmo desiderato forem adotados. Esse mandamento está implícito na Constituição brasileira e decorre, dentre outros, do artigo 3º, da CF/88, que inclui a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária entre objetivos da República Federativa do Brasil, sendo inconstitucional qualquer comportamento estatal que vá em direção contrária a esses objetivos.”

Acrescenta:

“(...) muitas vezes pode ser necessário revogar determinados benefícios sociais já concedidos, caso se demonstre concretamente que eles não estão reduzindo as desigualdades sociais nem promovendo uma distribuição de renda, mas, pelo contrário, desestimulando a busca pelo emprego e premiando o ócio. Vale ressaltar que essa demonstração não pode ser meramente retórica. Ou seja, será preciso apresentar dados confiáveis que indiquem a ineficácia da medida social e as vantagens que a sua revogação trará.

Obviamente, o princípio do retrocesso social não deve ser visto como obstáculo para qualquer mudança no âmbito dos direitos fundamentais; demanda-se, na verdade, que qualquer alteração ou supressão de leis que concedam direitos e garantias fundamentais seja amplamente verificada, com vistas a jamais usurpar desenvolvimentos sociais e legais já alcançados.”

Brasil diz que a segurança jurídica centra-se primordialmente na proteção da pessoa e contra medidas jurídicas, legislativas e administrativas que retrocedam as garantias sociais progressivas. Destaca:

“Na qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e irredutíveis, sendo providos de garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los.

(...) a segurança dos direitos fundamentais pelas Constituições é condição sine qua non para a promoção da dignidade da pessoa humana, pois não se trata de uma disponibilização de direitos pelo Estado, mas de fundamentos inerentes ao ser humano, que são garantidos pelo Estado através da segurança jurídica que as Constituições propõem quando baseadas no princípio da proibição do retrocesso social.”

Cita Ingo Wolfgang Sarlet:

“A garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial de matérias (nominadas de cláusulas pétreas), além de assegurar a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, especialmente o referido princípio da dignidade da pessoa humana, resguarda também a Carta Constitucional dos ‘casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares’.”

Ressalta, ainda, a autora:

“Esta vedação seria uma forma de evitar, por meio de uma proibição, que normas de cunho eminentemente social, em especial de cunho fundamental, sofram reduções ou supressões dos níveis de efetividade e eficácia, por meio de reformas constitucionais, legislativas e até mesmo administrativas, cuja garantia se dá com a efetiva estabilidade disposta pela segurança jurídica.

Cumpre ressaltar que o princípio da proibição do retrocesso social sofre um paradoxo no que Ingo Wolfgang Sarlet falar em seu texto de ‘Estado pós-social impregnado de contrastes e de complexidade da pós-modernidade’, entre adaptação às transformações sociais e a necessidade da segurança efetiva dos direitos sociais.

(...) o retrocesso social não é imune à transformação social, mas está assegurado pela certeza jurídica, cuja estabilidade não evitará mudanças progressivas ansiadas pelo contexto social, só garantirá que esta se proceda de forma justa e quando necessária (...).

Na prática, as medidas tomadas em prol dos direitos sociais devem ser mantidas e aprimoradas, nunca restringidas.”

Sobre a relativização do princípio, menciona Canotilho, que pontua ser a proibição apenas limitada pelo núcleo já realizado, em direitos sociais impostos. Ou seja:

“(...) a supressão dos direitos fundamentais, quando invadem a essência primordial da pessoa humana como núcleo essencial dos direitos sociais (violação do mínimo existente social) encontrará óbice na proibição do retrocesso e neste contexto não se pode falar em relativização do princípio.”

Em resumo:

“(...) a dignidade da pessoa humana deve ser vista como nata em cada sociedade e garantida por normas fundamentais, cujas amplitudes poderão sofrer flexibilizações apesar de estáveis, mas nunca a essência da própria dignidade humana.”

Fileti trata do:

“(...) ainda incipiente princípio da proibição de retrocesso social, implícito na Constituição brasileira de 1988, decorrente do sistema jurídico-constitucional pátrio, e que tem por escopo a vedação da supressão ou da redução de direitos fundamentais sociais, em níveis já alcançados e garantidos aos brasileiros.

(...) o fenômeno da proibição de retrocesso não está adstrito aos direitos fundamentais sociais, ocorrendo também, no Brasil, por exemplo, no direito ambiental; (...) [há] outras denominações – cláusula de proibição de evolução reacionária, regra do não retorno da concretização, princípio da proibição da retrogradação (...).

O tratamento da proibição de retrocesso social encontra-se mais desenvolvido em países como Alemanha, Itália e Portugal. (...) [Para Canotilho] os direitos sociais apresentam uma dimensão subjetiva, decorrente da sua consagração como verdadeiros direitos fundamentais e da radicação subjetiva das prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos reconhecidos na Constituição, isto é, dos chamados direitos derivados a prestações, justificando a sindicabilidade judicial da manutenção de seu nível de realização, restando qualquer tentativa de retrocesso social. Assumem, pois, a condição de verdadeiros direitos de defesa contra as medidas de natureza retrocessiva, cujo objetivo seria a sua destruição ou redução.

A concepção lusitana do princípio da proibição de retrocesso social, na origem, era distinta daquela desenvolvida na Alemanha. Em Portugal adotou-se, inicialmente, a concepção do princípio sem restringi-lo às prestações de seguridade social, alcançando prestações do Estado, ainda que não decorrentes de contribuição pecuniária do titular, tratando da problemática nos limites da ação do legislador e dos atos comissivos do Poder Legislativo que pudessem gerar efeitos semelhantes aos de sua omissão no mister de cumprir determinações constitucionais.

No Brasil, o desbravamento do princípio sob estudo é atribuído a José Afonso da Silva, para quem as normas constitucionais definidoras de direitos sociais seriam normas de eficácia limitada e ligadas ao princípio programático que, inobstante tenham caráter vinculativo e imperativo, exigem a intervenção legislativa infraconstitucional para a sua concretização, vinculam os órgãos estatais e demandam uma proibição de retroceder na concretização desses direitos. Logo, o autor reconhece indiretamente a existência do princípio da proibição de retrocesso social.”

Refere que a proibição de retrocesso social tem inegável natureza principiológica, porquanto possui elemento finalístico (garantia do nível de concretização dos direitos fundamentais sociais e a permanente imposição constitucional de desenvolvimento dessa concretização). Conteúdo positivo: dever de o legislador manter-se no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo as orçamentárias), o grau de concretização dos direitos fundamentais. Conteúdo negativo: prevalece sobre o positivo e consiste na vedação, ao legislador, de suprimir ou reduzir (ao menos de modo desproporcional ou irrazoável) o grau de densidade normativa que os direitos fundamentais sociais já alcançaram.

Afirma que o princípio da proibição de retrocesso social tem caráter retrospectivo e decorre da imposição dos direitos fundamentais sociais, da redução das desigualdades sociais e da construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social. Sua negação significaria que o legislador poderia livremente tomar decisões, ainda que em flagrante desrespeito à vontade expressa do legislador constituinte.

O autor propõe uma definição para o princípio:

“(...) princípio que se encontra inserido implicitamente na Constituição brasileira de 1988, decorrendo do sistema jurídico-constitucional, com caráter retrospectivo, tendo como escopo a limitação da liberdade de conformação do legislador infraconstitucional, impedindo que este possa eliminar ou reduzir, total ou parcialmente, de forma arbitrária e sem acompanhamento de política substitutiva ou equivalente, o nível de concretização alcançado por um determinado direito fundamental social.”

Lista, ainda, objeções que são feitas ao princípio: a) inexistência de definição constitucional acerca do conteúdo do objeto dos direitos fundamentais sociais (a aceitação dessa concepção outorgaria ao legislador poder de disposição do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, violando a Constituição por ofensa à dignidade humana); b) alegada equivalência entre retrocesso social e omissão legislativa (são correlatas: o retrocesso social pressupõe ato comissivo, e a omissão não é ato sujeito a refutação); c) constituição do direito legal (a Constituição pode ser modificada por processo informal a cargo do legislador); d) força maior e maior proteção aos direitos sociais em detrimento dos direitos de liberdade (ambos têm a mesma proteção na CF/88); e) caráter relativo (para além do núcleo essencial, admite-se alteração do grau de concretização legislativa).

Portanto, desde que observado o núcleo essencial, podem outros princípios prevalecer sobre o da vedação de retrocesso, sendo vedada a supressão pura e simples da concretização de norma constitucional que permita a fruição de um direito social, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios.

Maciel informa que esse princípio foi expressamente acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro através do Pacto de São José da Costa Rica e caracteriza-se pela impossibilidade de redução dos direitos sociais amparados na Constituição, garantindo ao cidadão o acúmulo de patrimônio jurídico. Pretende evitar que o legislador venha a negar a essência da norma constitucional que buscou tutelar um direito social. Firma-se a vedação de redução de qualquer direito social assegurado constitucionalmente, sob pena de violação do princípio de proteção da confiança e segurança dos cidadãos no âmbito social, bem como de inconstitucionalidade.

Menciona Barroso: em que pese o princípio não estar explícito, assim como o da dignidade da pessoa humana (para alguns, o que é questão controvertida), detém plena aplicabilidade, porque é consequência do sistema jurídico-constitucional.

Para Miozzo, ao contrário, o princípio da vedação de retrocesso tem expressa previsão constitucional no inciso II do art. 3º da Constituição Federal de 1988, que estabelece como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “(...) garantir o desenvolvimento nacional”. Defende que, embora se trate de conceito vago, deve ser compreendido como progresso jurídico, este consistente na concretização dos direitos fundamentais.

A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado e impõe não apenas o dever de abstenção, mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo, concretizando os direitos fundamentais.

Almeida assevera:

“A visão de que os direitos sociais são também direitos fundamentais exsurge como um escudo de proteção a estes direitos, inclusive por meio de ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), impingindo um dever de observância e realização material dos mesmos.
(...) a adoção do entendimento de que tanto os direitos individuais quanto os coletivos são cláusulas pétreas exsurge viável, até mesmo pela orientação hermenêutica emanada do próprio art. 5º, § 2º, da CF.
(...) o Pacto de São José da Costa Rica. Neste último, o Brasil acolheu expressamente o princípio do não retrocesso social, também chamado de aplicação progressiva dos direitos sociais.

O princípio do não retrocesso social ou aplicação progressiva dos direitos sociais caracteriza-se pela impossibilidade de redução dos direitos sociais amparados na Constituição, garantindo ao cidadão o acúmulo de patrimônio jurídico.

Canotilho oferece uma definição para o princípio da proibição de retrocesso social:

“O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.”

Colhe-se ainda de seu texto:

“(...) o princípio da vedação de retrocesso dos direitos sociais é um corolário para o que o ser humano deve dar valor: a sua dignidade.

(...) os próprios limites materiais no tocante ao poder de reforma da Constituição significam um entrave à sanha reformista do legislador, sempre preocupado, como se observa no Brasil, em criar novas leis ou reformular as antigas, dando pouca atenção à efetividade e à Constituição.

(...) O direito à proibição de retrocesso social consiste em importante conquista civilizatória. O conteúdo impeditivo deste princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais. Funciona até mesmo como forma de mensuração para o controle da constitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de assistência social do Estado e as organizações envolvidas neste processo.

(...) Como salienta Antônio Henrique Pérez Luño, os direitos sociais, denominados por Norberto Bobbio como de segunda geração, exsurgem do reconhecimento de que ‘liberdade sem igualdade não conduz a uma sociedade livre e pluralista, mas a uma oligarquia, vale dizer, à liberdade de alguns e à não liberdade de muitos’, o que condiz com a ideia de mínimo existencial garantido por meio da intervenção positiva do Estado.

(...)”

3 O princípio da vedação de retrocesso na jurisprudência

A seguir, colacionam-se decisões do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª e 4ª Regiões e da Turma Nacional de Uniformização em que há referência ao princípio da vedação de retrocesso social. Tais precedentes foram selecionados no site do STF e por meio da ferramenta de pesquisa jurisprudencial disponibilizada no Portal da Justiça Federal, abrangendo decisões proferidas entre 2000 e 2008.

3.1 Supremo Tribunal Federal

Algumas decisões do Supremo Tribunal Federal que tratam do tema são a ADI nº 1.946/DF, a ADI nº 2.065-0/DF (tida como a primeira manifestação daquela Corte sobre a matéria, datada de 17 de fevereiro de 2000), a ADI nº 3.104/DF, a ADI nº 3.105-8/DF, a ADI nº 3.128-7/DF e o MS nº 24.875-1/DF.

Na ADI nº 1.946/DF, o Plenário, por unanimidade, decidiu “dar ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal”. É que, não tendo sido revogado por norma constitucional derivada, o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal não poderia ser tornado insubsistente pela mera aplicação do art. 14 da Emenda Constitucional nº 20/98, sob pena de se incorrer em retrocesso histórico.

A ADI nº 2.065/DF não foi conhecida por decisão da maioria, vencido o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, que entendeu que merecia aplicação o princípio da vedação de retrocesso social em relação à Medida Provisória nº 1.911-8, que extinguiu órgãos de deliberação colegiada, revogando dispositivos das Leis nos 8.212 e 8.213/91, que dispunham sobre o caráter democrático da gestão da Seguridade Social. O Relator, acompanhado pelos Ministros Marco Aurélio, Néri da Silveira e Carlos Velloso, pretendeu assegurar eficácia negativa mínima às normas programáticas, tendo afirmado: “Inconstitucional é exatamente gerar omissão inconstitucional que já não existia”.

A ADI nº 3.104/DF, da relatoria da Ministra Cármen Lúcia, foi julgada improcedente por decisão da maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal. Questionava-se a constitucionalidade do art. 2º da Emenda Constitucional nº 41/2003, e entendeu aquela Corte que o art. 8º da Emenda Constitucional nº 20/98 não criou direito subjetivo aos servidores que não haviam implementado os requisitos para aposentadoria à data de sua publicação. Registrou a Relatora, ao manifestar-se sobre as sustentações orais feitas pelos amici curiae, que haveria ofensa ao princípio da vedação de retrocesso social caso fosse extinta a possibilidade de aposentadoria, esse sim um direito social, não incidindo o referido princípio em se tratando de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se veio a estabelecer”. Prevaleceu, no caso, o entendimento de que não há direito adquirido a regime remuneratório para os servidores públicos estatutários.

Na ADI nº 3.105-8/DF e na ADI nº 3.128-7/DF, foi julgado improcedente, por maioria, o pedido de declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 4º da Emenda Constitucional nº 41/2003. Reconheceu-se, então, ser devida a cobrança de contribuição previdenciária dos servidores públicos federais aposentados. Em voto vencido, em que julgava procedente o pedido, acompanhando a Relatora, Ministra Ellen Gracie, o Ministro Celso de Mello abordou o princípio da vedação de retrocesso social, lembrando o “caráter de fundamentalidade de que se revestem os direitos de natureza previdenciária”.

Assim se manifestou o Ministro Celso de Mello sobre o princípio em tela:

“Refiro-me, neste passo, ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, e uma vez alcançado determinado nível de concretização de tais prerrogativas (como estas reconhecidas e asseguradas, antes do advento da EC nº 41/2003, aos inativos e aos pensionistas), impedem que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, 1. ed., 2. tir. 2002, Brasília Jurídica, p. 127-128; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, Almedina, item n. 03, p. 320-322; ANDREAS JOACHIM KRELL, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 40; INGO W. SARLET, Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988, in Revista Interesse Público, n. 12, 2001, p. 99).

Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais.”

No MS nº 24.875-1/DF, em que Ministros aposentados do Supremo Tribunal Federal buscavam garantir o direito de continuar recebendo os valores discriminados como “adicional por tempo de serviço e vantagem artigo 184 – III – inativo”, feito no qual se travou discussão sobre o teto remuneratório, o Ministro Celso de Mello utilizou-se dos mesmos argumentos adotados nos processos antes referidos, para, no entanto, dizer serem eles inaplicáveis ao caso em discussão no mandamus, em que, por decisão da maioria, foi concedida em parte a segurança:

“Não obstante reafirmando as premissas subjacentes a tal voto, entendo-as inaplicáveis ao caso ora em exame, consideradas as razões que fundamentam, de modo consistente, o primoroso voto proferido pelo eminente Relator, que afastou, de forma adequada, as alegadas ofensas aos postulados da isonomia, da razoabilidade e da garantia do direito adquirido, embora reconhecendo, com absoluta correção, a ocorrência, na espécie, de transgressão à garantia da irredutibilidade de vencimentos (ou de proventos), que representa, na verdade, no contexto desta causa, o núcleo essencial pertinente ao exame da presente controvérsia.”

3.2 Tribunais Regionais Federais

3.2.1 Tribunal Regional Federal da 1ª Região


O Tribunal Regional Federal da 1ª Região abordou o princípio da vedação de retrocesso na Apelação em Mandado de Segurança nº 2002.38.00.016555-2/MG e no Agravo de Instrumento nº 2006.01.00.006423-9/DF.

No julgamento da Apelação em Mandado de Segurança nº 2002.38.00.016555-2/MG, relator o Desembargador Souza Prudente, por unanimidade, a 2ª Turma negou provimento ao recurso e à remessa oficial, em feito no qual se discutia a concessão de aposentadoria com conversão de tempo especial em comum, colhendo-se da ementa:

“VIII – As alterações introduzidas nos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/91 explicitam que a empresa deve manter laudo técnico atualizado, mas, ao segurado, cumpre apenas apresentar os formulários próprios, preenchidos com base em referidos laudos.

IX – A existência no direito constitucional brasileiro, pelo menos, da modalidade mais branda de ‘proibição de retrocesso social’ – que veda a ab-rogação da legislação ordinária destinada a concretizar determinado direito social constitucional – torna o art. 28 da Lei 9.711/98 parcialmente inválido, na parte em que pretende exterminar para o futuro da conversão de tempo especial em normal.

X – Idêntica conclusão decorre da estrutura dos direitos sociais, de sua interpretação teleológica e do princípio segundo o qual o Estado de Direito deve proteção à confiança nele depositada por seus cidadãos.”

No julgamento do Agravo de Instrumento nº 2006.01.00.006423-9/DF, também Relator o Desembargador Souza Prudente, a 6ª Turma, por maioria, decidiu ser devido aos congressistas o pagamento de ajuda de custo em convocação extraordinária do Congresso Nacional:

“I – Afigura-se devido o pagamento da parcela indenizatória devida aos parlamentares das duas Casas do Congresso Nacional, que participaram da sessão legislativa extraordinária, durante o período de 15 de dezembro de 2005 a 14 de fevereiro de 2006, na forma revista no art. 57, § 7º, da Constituição Federal, vigente à época, não tendo o Decreto Legislativo nº 01/2006 força normativa bastante para revogar a aludida disposição constitucional e suprimir tal direito.

II – A vedação do pagamento de indenização, em razão da convocação extraordinária do Congresso Nacional, somente ocorreu com a edição da Emenda Constitucional nº 50/2006, cujos efeitos, em observância ao princípio da irretroatividade das normas e da proibição do retrocesso, devem ser considerados a partir da data de sua promulgação, ocorrida em 15.02.2006.”

3.2.2 Tribunal Regional Federal da 2ª Região

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região abordou o princípio da vedação de retrocesso na Apelação Cível nº 2001.51.01.025096-9/RJ e na Arguição de Inconstitucionalidade na Apelação Cível nº 2002.51.01.016646-0.

Na Apelação Cível nº 2001.51.01.025096-9/RJ, a 1ª Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso e à remessa oficial, nos termos do voto do Desembargador Federal Ricardo Regueira, prolatado em feito no qual se buscava o reconhecimento de imunidade tributária a entidade de ensino sem fins lucrativos. Consta da ementa do voto:

“Ainda que a Lei 9732/98 tivesse natureza jurídica de lei complementar, padeceria de vício de inconstitucionalidade material, já que está restringindo imunidade conferida pelo constituinte originário. – Em razão do princípio da proibição do retrocesso, somente é lícito ao legislador regulamentar o art. 195, § 7º, da Constituição Federal, para estabelecer condições que venham a conferir uma maior efetividade à imunidade em questão, e não para esvaziar seu conteúdo normativo.”

Já na Arguição de Inconstitucionalidade na Apelação Cível nº 2002.51.01.016646-0, da relatoria do Desembargador Federal Reis Friede, o Plenário, por unanimidade, decidiu que “a edição dos dispositivos previstos no art. 17 da Lei nº 9.427/96, bem como no art. 94 da Resolução nº 456/2000 da Aneel, ultrapassou as balizas constitucionais permitidas, devendo ser conferida aos referidos dispositivos interpretação conforme a Constituição Federal”:

“I – Arguição de Inconstitucionalidade do art. 17 da Lei nº 9.427/96 e do art. 94 da Resolução nº 456/2000, da Aneel, os quais, literalmente, autorizariam a suspensão de fornecimento de energia elétrica ao Poder Público inadimplente, até mesmo quando prestador de serviço público essencial, tais como transporte coletivo (Supervia) e fornecimento de água (Cedae).

(...)

IV – No entanto, adequada interpretação revela que o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor está perfeitamente adequado aos ditames constitucionais, dentre eles o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Proteção ao Consumidor, o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, o Princípio da Continuidade do Serviço Público Essencial.”

3.2.3 Tribunal Regional Federal da 4ª Região

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região abordou o princípio da vedação de retrocesso na Apelação Cível nº 2003.71.00.027032-0/RS e na Apelação Cível nº 2006.72.99.000635-6/SC.

No julgamento da Apelação Cível nº 2003.71.00.027032-0/RS, feito no qual a parte autora, servidor público federal, pretendia o ressarcimento de despesas com tratamento de saúde havidas em decorrência de alteração de portarias editadas pelo Ministério da Fazenda, a 3ª Turma do TRF da 4ª Região, por maioria, deu provimento ao recurso da parte autora, nos termos do voto divergente do Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, que afirmou:

“A meu sentir, no entretanto, em se tratando de direitos sociais dos trabalhadores, impera o princípio do ‘não retrocesso’; as conquistas sociais incorporam-se ao patrimônio jurídico dos servidores, passando a constituir direito adquirido, que não pode ser diminuído ou simplesmente eliminado. Vejamos.

Embora o princípio do ‘não retrocesso’ não seja difundido de maneira ampla entre nós e não esteja explícito na Carta Magna Brasileira, está a cada dia ganhando mais corpo e conquistando mais defensores, tendo tido como precursor o insigne doutrinador português JJ GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional: teoria da constituição, 1998, p. 321 e 2001, p. 81), que definiu em sua obra o princípio da proibição de retrocesso social como:

(...) o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa 'anulação', 'revogação' ou 'aniquilação' pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.

O citado doutrinador assevera, ainda, acerca da matéria, que ‘a ideia da proibição de retrocesso social também tem sido designada como proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária; com isto quer-se dizer que os direitos sociais econômicos (ex: direitos dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo.’ (Direito Constitucional: teoria da constituição. Coimbra, 3. ed., p. 326)

Saliente-se, por pertinente, que ‘o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito fundamental que assiste a todas as pessoas representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. (....).’ (AGRG. No Recurso Extraordinário nº 271.286/RS, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 24.11.2000).”

Já no julgamento da Apelação Cível nº 2006.72.99.000635-6/SC, entendeu a 6ª Turma do TRF da 4ª Região por manter a decisão que concedeu benefício de pensão por morte a menor sob guarda, figura que a Lei nº 9.528/97 excluiu da equiparação a filho para fins previdenciários. Invocando o Estatuto da Criança e do Adolescente e indicando a existência de entendimentos divergentes sobre a matéria no Superior Tribunal de Justiça, o Juiz Relator, Dr. Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, assim se manifestou em seu voto:

“Na pendência dessa controvérsia, ainda existente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, tenho que se deve dar primazia ao entendimento que confere proteção à criança e ao adolescente, que tem relevância constitucional (artigo 227 da CF/88).

Seria o caso, inclusive, de dar-se efetividade ao princípio da proibição de retrocesso, uma vez que uma norma que faz cumprir o norte constitucional de proteção à infância não pode ser mitigada por norma superveniente, que lhe deixa totalmente ao desabrigo na ausência do seu guardião. Assim, a única interpretação possível, que compatibiliza a Lei n.º 9.528, de 1997, com a Constituição da República é aquela segundo a qual não houve revogação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Veja-se que o manejo desse princípio, a par de estar consagrado em relevante doutrina (v.g. LÊNIO STRECK), também não é novidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.”

3.3 Turma Nacional de Uniformização

A Turma Nacional de Uniformização referiu o princípio da vedação de retrocesso social no julgamento dos Recursos Cíveis nº 2003.60.84.002478-2, 2003.60.84.002388-1 e 2003.60.84.002458-7. Em todos os feitos em que se postulava a concessão de benefício assistencial, o INSS buscava a reforma da decisão da 1ª Turma Recursal do Mato Grosso do Sul, consistindo a controvérsia no fato de a família da parte-autora auferir renda per capita superior ao limite legal de 1/4 do salário mínimo. Embora, segundo decisão do STF na ADIN nº 1.232/DF, tal limite seja objetivo, entendeu a Turma que não deveriam ser desconsideradas as leis ordinárias posteriores, que elasteciam aquele limite, concedendo outros benefícios de cunho social, como o renda mínima, o bolsa-escola e o auxílio-gás a famílias com renda per capita superior. Colhe-se da fundamentação do voto:

“(...) a legislação previdenciária não pode revogar conquistas já alcançadas pelos seus beneficiários. Trata-se do princípio supraconstitucional da vedação do retrocesso, indubitavelmente aplicável em matéria de largo alcance social, como no caso. Os avanços civilizatórios não podem transigir.”

Conclusão

O princípio da vedação de retrocesso, também conhecido como princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, constitui-se em proteção do núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas, vedando quaisquer medidas tendentes a anular, revogar ou aniquilar esse núcleo essencial sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios.

No Brasil, vem sendo aplicado de forma cada vez mais frequente, e pelo menos desde o ano 2000, embora ainda seja visto como uma novidade por alguns doutrinadores e julgadores. Quando surge uma situação prática em que princípios colidem, adotando-se a técnica da ponderação, vislumbra-se possível a defesa dos direitos sociais já alcançados por meio do princípio da vedação de retrocesso. Por óbvio que não se trata de princípio absoluto, vez que, eventualmente pode ceder quando em colisão com outro princípio. Entretanto, legisladores, administradores e julgadores devem levá-lo em consideração na prática de seus atos, sejam eles comissivos ou omissivos, sob pena de incidirem em inconstitucionalidade.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Dayse Coelho. A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso. Inclusão Social, Brasília, v. 2, n. 1, p. 118-124, out. 2006/mar.2007.

BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito Brasileiro. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio (organizador). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.

BRASIL, Francisca Narjana de Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como efetividade da segurança jurídica. Disponível em: <http://www.abdir.com.br/doutrina/ver.asp?art_id=&categoria=Filosofia do Direito>.  Acesso em: 22 jun. 2009.

CLARO, Carlos Roberto. Montaigne e o princípio do não retrocesso social. Revista Jurídica Netlegis, 09 de setembro de 2008.

DUZ, Clausner Donizeti. O princípio constitucional da vedação ao retrocesso frente à constitucionalidade do artigo 5º, § 3º, da CF/88. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, n. 150. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1016>. Acesso em: 17 jun. 2009.

FILETI, Narbal Antônio Mendonça. O princípio da proibição de retrocesso social: breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, a. 13, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12359>. Acesso em: 22 jun. 2009.

LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. Do efeito cliquet ou princípio da vedação de retrocesso, Revista Jus Vigilantibus, 13 de maio de 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MACIEL, Álvaro dos Santos. Do princípio do não retrocesso social. Boletim Jurídico. Uberaba/MG, a. 5, n. 260. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp>. Acesso em: 17 jun. 2009.

MIOZZO, Pablo Castro. O princípio da proibição do retrocesso social e sua previsão constitucional: uma mudança de paradigma no tocante ao dever estatal de concretização dos direitos fundamentais no Brasil. Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/dhumanos/mhonrosa1.doc>. Acesso em: 23 jun. 2009.

PIOVESAN, Flávia. Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, mar./abr./maio 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 23 jun. 2009.

Notas

1. MIOZZO, Pablo Castro. O princípio da proibição do retrocesso social e sua previsão constitucional: uma mudança de paradigma no tocante ao dever estatal de concretização dos direitos fundamentais no Brasil. Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/dhumanos/mhonrosa1.do>. Acesso em: 23 jun. 2009.

2. PIOVESAN, Flávia. Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2002.

3. ALMEIDA, Dayse Coelho. A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso. Inclusão Social, Brasília, v. 2. nº 1, p. 118-124, out. 2006/mar. 2007.

4. SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 23 jun. 2009.

5. Obra citada.

6. DUZ, Clausner Donizeti. O princípio constitucional da vedação ao retrocesso frente à constitucionalidade do artigo 5º, § 3º, da CF/88. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, n. 150. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1016>. Acesso em: 17 jun. 2009.

7. CLARO, Carlos Roberto. Montaigne e o princípio do não retrocesso social. Revista Jurídica Netlegis, 09 de setembro de 2008.

8. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

9. LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. Do efeito cliquet ou princípio da vedação de retrocesso. Revista Jus Vigilantibus, 13 de maio de 2009.

10. BRASIL, Francisca Narjana de Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como efetividade da segurança jurídica. Disponível em: <http://www.abdir.com.br/doutrina/ver.asp?art_id=&categoria=Filosofia do Direito>. Acesso em: 22 jun. 2009.

11. FILETI, Narbal Antônio Mendonça. O princípio da proibição de retrocesso social: breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, a. 13, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12359>. Acesso em: 22 jun. 2009.

12. MACIEL, Álvaro dos Santos. Do princípio do não retrocesso social. Boletim Jurídico. Uberaba/MG, a. 5, n. 260. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1926>. Acesso em: 17 jun. 2009

13. Obra citada.

14. ALMEIDA, Dayse Coelho. A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso. Inclusão Social, Brasília, v. 2. n. 1, p. 118-124, out. 2006/mar.2007.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2010. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS