Breves notas sobre a não autoincriminação


Autor: Eugênio Pacelli de Oliveira

Procurador Regional da República, Doutor em Direito pela UFMG e Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público

publicado em 29.04.2011

É lição antiga – e sempre renovada – não ser possível discutir o processo penal desapaixonadamente. A aludida palavra, a insinuar o ato sem paixão, deveria mesmo existir. É que, superado, há tempos, o mito da neutralidade do sujeito cognoscente– superada também a filosofia da consciência do sujeito –, as letras jurídicas, sobretudo aquelas voltadas para a práxis, ressentem-se de uma tradução mais clara que a simples ideia de racionalidade. Por isso, uma abordagem desapaixonada seria aquela na qual o intérprete, à saída, levasse a sério o compromisso de descobrir ou de desvelar o outro na interpretação, isto é, a alteridade do texto (leis, Constituição, universo normativo, enfim).

Tais considerações vêm a propósito de recente (e crescente) movimentação constatada em domínios brasileiros do Direito Processual Penal, na qual se busca, por vezes sem sequer o abrigo seguro da argumentação a justificação para o superdimensionamento do alcance de determinados princípios constitucionais. Em tempos de pós-positivismo e de ampliação dos espaços democráticos, a formatação dos horizontes de sentido das normas constitucionais submete-se às variações de humores e leituras, segundo a perspectiva com a qual se vai ao texto, passando a exigir, então, maiores cuidados e cautelas.

A Constituição da República assegura o direito de permanecer em silêncio a todos quantos se vejam submetidos à persecução penal. Protege-se, efetivamente, da consciência moral (o não constrangimento da mentira), a integridade física e psíquica dos cidadãos, contra ingerências corporais abusivas e desnecessárias, passando pelo controle de racionalidade e de eficiência da decisão judicial, particularmente nos julgamentos perante os tribunais do júri – como ocorre nos EUA – dispensados do dever de fundamentação de seus julgados. Aliás, ai daquele que se recusar a depor perante um tribunal dessa natureza; submeter-se-á ao indefectível quem cala consente...

Mas, enfim, quais seriam os limites de aplicação do nosso nemo tenetur se detegere? Acaso manteríamos a paridade com os ordenamentos que nos serviram de inspiração? Acaso necessitaríamos de uma adaptação aos eventuais abusos nacionais?

Em obra doutrinária de nossa autoria, na companhia de Douglas Fischer, intitulada Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, em 2ª edição, 2011, publicada pela Editora Lumen Juris, fizemos breves anotações acerca da garantia da não incriminação, presente em todos os ordenamentos do mundo civilizado.
Aqui, ao voltarmos ao tema, reproduziremos o texto da citada obra, para, em seguida, acrescentarmos as notícias pertinentes ao tema, vindas de outros sistemas normativos, incluindo os Tratados Internacionais que versem sobre direitos humanos. Para, ao final, ratificarmos nossas conclusões: no Brasil e somente aqui, se chega a extremos interpretativos do texto constitucional, pugnando-se por uma aplicação de garantias e supostos direitos não encontrados nos mesmos povos civilizados a que nos referimos.

Eis o trecho da obra:

“187.3. Direito de mentir?: Não é incomum encontrar-se opiniões no sentido de que o princípio do nemo tenetur se detegere abrangeria também um suposto direito à mentira, sobretudo em relação aos fatos, devendo o réu, porém, informar corretamente sua identidade.

Bem, que não há direito algum à prestação de informações falsas não pode restar dúvidas. Aliás, se o réu acusar terceiro como autor do fato, sabendo-o inocente, poderá até responder por denunciação caluniosa, na medida em que pode não se mostrar inteiramente justificada (excludente de ilicitude) a conduta, mesmo que em defesa de seu interesse. Pode-se mesmo aceitar que o réu elabore qualquer versão em seu favor; o limite seria o tangenciamento voluntário a direitos alheios, quando ciente da inocência alheia. É claro, por certo, que haverá situações, sobretudo envolvendo concurso de agentes, em que a atribuição de fato ou responsabilidade a outro, igualmente processado, ou em situação de sê-lo, estará plenamente justificada pelo contexto das circunstâncias.

De modo que não existe direito algum à prática de violação ao Direito. Não existe também qualquer direito à fuga como já mencionado em alguns setores de nossa prática forense. Uma coisa é admitir-se a situação de premência pessoal daquele ameaçado pela privação da liberdade; pode-se aceitar o seu comportamento de fuga – sem danos a terceiros – como ato inerente à humanidade intrínseca. Do ponto de vista do Direito, porém, não se cuidará de direito subjetivo, mas de ato eventualmente justificado pelas circunstâncias (e não pelo Direito). Do mesmo modo, não constitui direito do réu a apresentação de documentação falsa para eximir-se do processo, até porque o falsum não esgotaria sua potencialidade lesiva naquele processo.

Causa-nos profunda estranheza e pesar – por que não dizê-lo – recente decisão de Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Arg. Incons. 990.10.159020-4 – 2010), no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade do art. 305 da Lei 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro – afirmando, então, a suposta existência de um direito à omissão de socorro, que estaria legitimado pela finalidade de se evitar a autoincriminação. O equívoco na decisão é manifesto, seja quanto à fundamentação, seja quanto à extensão, e, sobretudo, quanto às consequências do julgado. Confundiu-se, ali e, infelizmente, como ocorre em outros tribunais, conceitos básicos da teoria do direito. Ao recusar a validade abstrata da exigência de prestação de socorro, retirou-se, com efeito, o dever de assistência à vítima do acidente de trânsito. Aliás, o equívoco do tribunal – e de boa parte da doutrina nacional – vai na contramão de direção de toda a legislação e toda a doutrina do Direito Comparado. Está-se criando no Brasil – e somente aqui! – um conceito absolutamente novo da não autoincriminação, ausente nos demais povos civilizados. Não há mesmo precedente em outro universo normativo. A prestação de socorro à vítima não decorre de mero dever de solidariedade humana; vai além, decorre de dever jurídico, imposto pelas legislações mundo afora (rapidamente: Alemanha, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Argentina, etc.).

E mais. Não se encontra o aludido direito à não autoincriminação em nenhum Tratado Internacional. O que neles se contém é o direito a permanecer em silêncio e a não sofrer ingerências abusivas e ilegais, o que nada tem que ver com o quanto decidido pelo Tribunal paulista.

O autor do fato da omissão tem o mesmo dever jurídico de prestar socorro, quando puder fazê-lo sem risco pessoal, tenha ele causado ou não a situação de risco (acidente). O receio quanto a ser pego, processado e condenado criminalmente, se é que, nesse caso, poderia ser considerado relevante, se enquadraria no âmbito da culpabilidadeinexigibilidade de conduta; jamais no campo do direito subjetivo. Antes de ser direito, é dever (de socorro), oponível a todos: excepcionalmente, ao exame de cada situação concreta, é que se poderia pensar no reconhecimento de justa causa (excludente supralegal de ilicitude) ou, repita-se, de exclusão da culpabilidade.

Esperamos que, no futuro, não se vá reconhecer eventual direito subjetivo ao homicídio, para fins de evitação da prisão pela prática de outro crime qualquer...”

Ao referido texto faríamos apenas uns breves acréscimos, com o objetivo – único – de oferecer informações sobre o nemo tenetur se detegere: nenhum texto de tratado internacional abriga as pretensões de extensão da não autoincriminação para além de suas forças, isto é, como o direito (esse sim!) de não depor contra si nem declarar-se culpado e como garantia individual de proteção contra intervenções corporais ilegítimas. Nos EUA, na Alemanha, na Espanha, na Itália, na Inglaterra, na França, em Portugal etc. etc., colhem-se impressões datiloscópicas, material para exame de DNA, fotografias (frente e verso), desde que autorizado na forma constitucional (em geral, pelo Judiciário). Nada há que sustente um suposto direito à fuga, ou um suposto direito a não prestar socorro, bem se vê. Ora, se o réu tivesse direito subjetivo à fuga, seriam varridas do mapa as prisões em flagrante e por mandado judicial (o que até, talvez, não seja má ideia, mas jamais sob tal frágil fundamentação!).

Tais ações, quando muito, e sempre condicionadas às circunstâncias concretas de cada situação e agente, poderão ser justificadas, isto é, toleradas, tal como ocorre, por exemplo, com o estado de necessidade. Não qualificam, porém, direito subjetivo. Se fosse assim, o dono da coisa que estivesse sob o risco de destruição por terceiro, a atuar em estado de necessidade de outro, não poderia protegê-la. Ou alguém dirá que ele tem o dever de agir em estado de necessidade?

A exigência legal de submissão a determinadas ingerências corporais nada tem de inconstitucional, a priori. Poderá sê-lo, todavia, quando a) desnecessárias, b) gravosas e c) interfiram na capacidade de autodeterminação da pessoa.

Mas, ainda assim, quando forem inconstitucionais, o que não é o caso de nenhuma intervenção prevista no Brasil atualmente (incluindo o bafômetro), não se terá violado o direito de permanecer em silêncio, mas, sim, outros princípios de mesma índole (constitucional), a depender de cada caso concreto.

Nada obstante, a recusa ao exame legalmente previsto não poderá servir de suporte à formação do convencimento judicial: o processo penal brasileiro exige prova provada, e não convicção por presunção. A recusa, porém, não constituirá exercício de qualquer direito, mas violação a uma regra de dever, cujas consequências deverão ser previstas em lei. E uma delas certamente não é a utilização de força física para o uso do bafômetro; em tal situação, o caso seria de exclusiva e indevida violência policial ou de outra ordem estatal.

Textos internacionais

1. Declaração Universal dos Direito Humanos – 10.12.1984

art. 5º – Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante;

2. Pacto de San José da Costa Rica – de 1969, com vigência internacional em 1978 e, no Brasil pelo Decreto 678/92

Art. 5º – 1. Direito ao respeito à sua integridade física, psíquica e moral.

Art. 5º – 2. Respeito à dignidade inerente ao ser humano para o preso.

Art. 8º – 9. Direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem declarar-se culpada.

Art. 11 – 2. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas à sua honra ou reputação.

3. Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos (Nações Unidas – 1966 – Decreto 592/92)

Art. 14 – 3. g – De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Art. 17 – Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem ofensas à sua honra ou reputação.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abr. 2011. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS