A decadência na revisão do ato concessório de benefício previdenciário sob o enfoque do direito intertemporal


Autor: Roberto Luis Luchi Demo

Juiz Federal Substituto em Brasília-DF

publicado em 16.12.2011


Sumário:
Prolegômenos. 1 A decadência na legislação previdenciária. 2 O direito intertemporal brasileiro. 3 A decadência do direito do beneficiário requerer a revisão do ato concessório de benefício previdenciário. 4 A decadência do direito-poder-dever de o INSS efetuar a revisão do ato concessório de benefício previdenciário. Epílogo. Referências bibliográficas.

Prolegômenos

A concessão de benefício previdenciário no âmbito do regime geral de previdência social, que é uma das atribuições do INSS enquanto autarquia responsável pela gestão desse regime, nos termos do art. 1º do Anexo I do Decreto 7.556/2011, qualifica-se como ato administrativo federal. Desse modo, sujeita-se à revisão, assim por iniciativa do titular do benefício (segurado ou dependente que passa então a ser denominado beneficiário), bem como de ofício pela própria Administração. Aliás, a revisão do ato concessório de benefício previdenciário é objeto de uma quantidade significativa das ações previdenciárias revisionais, ou seja, das ações ajuizadas pelo beneficiário e que buscam majorar o valor da renda mensal inicial do benefício, em trâmite na Justiça Federal e particularmente no Juizado Especial Federal. De outra parte, há também ações judiciais – em menor quantidade, é certo – questionando o ato do INSS que, ao revisar administrativamente o benefício previdenciário, anulou sua concessão ou reduziu o valor da sua renda mensal inicial.

Nesse contexto, o tempo é um importante aspecto a ser considerado, na medida em que o beneficiário nem sempre conhece a legislação previdenciária e por isso requer a revisão de seu benefício após algum tempo da respectiva concessão, quando procurado por advogados ou quando tem conhecimento de seu direito por meio da imprensa, que amiúde divulga as decisões judiciais mais importantes em matéria previdenciária. O tempo também repercute nas revisões efetuadas de ofício pelo INSS, que, em virtude da quantidade enorme de benefícios previdenciários em manutenção (totalizando cerca de 28,8 milhões, mais precisamente, 28.828.225 benefícios em setembro de 2011)(1) e do número limitado de servidores públicos destacados para essa atividade, são iniciadas depois de algum tempo da concessão do benefício.

Daí, decorrido algum tempo, geralmente alguns anos – ou, às vezes, muitos anos –, para que o beneficiário requeira ou o INSS efetue a revisão do ato concessório de benefício previdenciário, normalmente a decadência é agitada nas ações judiciais que têm como pano de fundo essa revisão. Por isso, entendo oportuna uma análise da decadência em matéria previdenciária, mormente quando se considera a polêmica jurisprudencial em torno de uma das facetas desse instituto que, inclusive, levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecer o fenômeno da repercussão geral, estando a questão pendente de análise naquela Corte, como se verá alhures.

1 A decadência na legislação previdenciária

Inicialmente, faço um rápido cotejo entre a prescrição e a decadência. Quanto à natureza, ambas são institutos jurídicos que se constituem em causa e disciplina da extinção de direitos. A prescrição atinge os direitos subjetivos a uma prestação, veiculados, em regra, por meio de ação preponderantemente condenatória; a decadência atinge os direitos sem pretensão, ou seja, os direitos potestativos, veiculados, em regra, mediante ação preponderantemente constitutiva. Na prescrição, o legislador visa a consolidar um estado de fato, transformando-o em estado de direito; na decadência, limita-se no tempo a possibilidade de exercício de direito, modificando-se uma situação jurídica. Com a prescrição, pune-se a inércia no exercício de pretensão que devia ser exercida em determinado período; na decadência, priva-se do direito quem deixou de exercê-lo na única vez que a lei concede. Enfim, a prescrição é perda da ação atribuída a um direito e de toda sua capacidade defensiva; com a decadência, por sua vez, há a perda do direito e consequentemente da ação.

Daí, bem se vê a afinidade desses institutos que regulam a extinção de direitos pelo decurso do tempo e a tênue diferença entre eles. Talvez por isso mesmo, apenas a prescrição quinquenal era tradicionalmente prevista na legislação previdenciária. Com efeito, a prescrição inicialmente era disciplinada pelo art. 57 da Lei Orgânica da Previdência Social – Lops (Lei 3.807/1960). Nesse dispositivo, já estava assentada a regra segundo a qual “não prescreverá o direito ao benefício”, vale dizer, a regra da inexistência de prescrição de direitos relacionados aos benefícios. Portanto, já na Lops havia previsão expressa que afastava, na legislação previdenciária, a prescrição do fundo de direito, de modo que a prescrição atingia somente os pagamentos periódicos decorrentes desse direito mesmo.

Posteriormente, a mesma regra de ausência de prescrição do fundo de direito ao benefício e de prescrição quinquenal dos pagamentos periódicos figurou no art. 109 da Consolidação das Leis da Previdência Social – CLPS/1976 (Decreto 77.077/1976), no art. 98 da Consolidação das Leis da Previdência Social – CLPS/1984 (Decreto 89.312/1984) e na redação originária do art. 103 da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei 8.213/1991). Ocorre que, a partir da Medida Provisória 1.523-9, de 27 de junho de 1997, convertida na Lei 9.528/1997, que deu nova redação ao art. 103 da Lei 8.213/1991, a regra da inexistência de prescrição do fundo de direito ao benefício foi excluída e somente passou a ser prevista a regra de prescrição quinquenal dos pagamentos periódicos no parágrafo único do referido art. 103.

A sobredita Medida Provisória 1.523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, além de excluir do art. 103 da Lei 8.213/1991 a previsão expressa de inexistência de prescrição do fundo de direito ao benefício, estabeleceu prazo extintivo para o direito do beneficiário pleitear a revisão do ato concessório, dando a seguinte redação ao caput do mencionado art. 103, litteris: “É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo”. A despeito de a lei nominar decadência, trata-se na verdade de prescrição do fundo de direito subjetivo à correta prestação previdenciária.

Logo, a partir da vigência da Medida Provisória 1.523-9/1997, que ocorreu em 28 de junho de 1997, passou a existir na legislação previdenciária a prescrição do fundo de direito ao benefício, cujo prazo era de 10 anos. Vale ressaltar que esse chamado prazo de decadência foi reduzido para 5 anos, por intermédio da Medida Provisória 1.663-15, de 22 de outubro de 1998, convertida na Lei 9.711/1998, e posteriormente restabelecido em 10 anos, nos termos da Medida Provisória 138, de 19 de novembro de 2003, convertida na Lei 10.839/2004. A decadência propriamente dita foi estabelecida somente pela referida Medida Provisória 1.663-15/1998, convertida na Lei 9.711/1998, ao prever prazo extintivo também de 10 anos para o direito postestativo ou direito-poder-dever de o INSS revisar de ofício o ato concessório, por intermédio de acréscimo do art. 103-A à Lei 8.213/1991, verbis: “O direito da Previdência Social de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

Nota-se dessarte que, na perspectiva da extinção de direitos pelo decurso do tempo, a revisão do ato concessório por iniciativa do beneficiário tem uma moldura normativa diversa da revisão feita de ofício pelo INSS. E isso vale não só quando se considera especificamente a legislação previdenciária, mas também quando se observa a legislação ordinária que regulamentava supletivamente o tema, enquanto a legislação previdenciária era omissa. Assim, a decadência, para adotar a terminologia da legislação previdenciária, em cada uma dessas revisões, há de ser abordada separadamente. Além disso, tem-se a superveniência de lei nova que, incidindo sobre uma relação jurídica que se projeta no tempo, estabelece e altera o prazo de revisão do ato concessório, a caracterizar uma situação de direito intertemporal que, por isso mesmo, também merece ser abordado.

2 O direito intertemporal brasileiro

No iter das relações jurídicas que se projetam no tempo, pode ocorrer que a situação jurídica (entendida como o conjunto de direitos e obrigações de que uma pessoa pode ser titular) das partes envolvidas seja alterada. Desse modo, a situação jurídica dos segurados, dependentes e beneficiários, em face do INSS, que é regulada basicamente pela Lei 8.213/1991, pode ser modificada, até porque não há direito à perpetuação de um determinado estatuto jurídico, ou seja, não há direito adquirido aum determinado regime jurídico, que pode então ser alterado e muita vez é para resolver fatores contingentes socioeconômicos ou por razões de política legislativa várias. As situações jurídicas encerradas, consumadas antes da vigência da leinova, não despertam grandesdificuldades. Assim, também as que se iniciam já quando vigente a lei nova. Sobre aquelas, aplica-se a lei antiga; sobre estas, a lei nova. Em verdade, onúcleo do direito intertemporal se desenvolve em torno dos chamados fatos pendentes, vale dizer, de situações jurídicas que se prolongam no tempo, iniciando sob a égide de um regime jurídico e sendo apanhadas, no seu curso, pela superveniência da lei nova.

Sobre o assunto, Carlos Mário da Silva Velloso enfatiza que as leis devem dispor para o futuro. Os atos anteriores regem-se pela lei do tempo em que foram praticados: tempus regit actum. A partir daí, é possível reconhecer três tipos de retroatividade: máxima, média e mínima. Máxima, quando a lei retroage para atingir a coisa julgada ou os fatos jurídicos consumados; média, quando a lei atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência, vale dizer, direitos já existentes, mas ainda não integrados no patrimônio do titular; e mínima, quando a lei nova atinge os efeitos dos fatos anteriores verificados após a sua edição.(2) Na ordem jurídica brasileira, em termos de direito adquirido, adota-se a doutrina de Gabba, doutrina subjetivista,(3) no art. 6° da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942), assim também e principalmente no âmbito constitucional (desde a Constituição do Império, de 1824, à exceção da Carta Política de 1937), no art. 5°, inc. XXXVI, da Constituição Federal de 1988, que estabelecem a irretroatividade da lei em deferência ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, dando contornos próprios ao direito intertemporal pátrio.

Logo, aquele verdadeiro princípio de sobredireito (ou metadireito ou superdireito) constitucionalizado de respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito ou, simplesmente, de aplicação imediata da lei ou, ainda, de irretroatividade da lei é a pedra de toque para o estudo do direito intertemporal brasileiro. Nesse sentido, é entendimento tranquilo no Supremo Tribunal Federal de que “o disposto no art. 5°, inc. XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva”.(4) Assim, a aplicação imediata da lei há de ser feita sem prejuízo do direito adquirido, principalmente no que toca aos efeitos dos atos consumados anteriormente à vigência da lei nova. Portanto, conforme o magistério de Rubens Limongi França, nos casos em que a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo, consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto, quando essa situação se fizer presente, ocorre a ultratividade da lei antiga, que continua na regência daquelas consequências/efeitos.(5)

Explicitando, uma vez iniciada a eficácia de uma determinada norma, materializando-se o suporte fático de sua incidência, é dizer, o fato nela previsto, há automaticidade, incondicionabilidade e inesgotabilidade no processo de juridicização do fato mesmo.(6) Desse modo, uma vez qualificado juridicamente o fato pela norma vigente ao tempo de sua ocorrência como direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada, é iniciada a eficácia jurídica que só se esgota quando as consequências que a regra imputou ao fato também se materializarem, consumarem-se, mesmo que isso ocorra após sua revogação.

Da teoria geral para a específica, impende salientar que a concessão irregular de um benefício previdenciário faz nascer para o beneficiário a pretensão de revisão para sanar a violação de seu direito subjetivo à correta prestação previdenciária, bem assim o poder-dever de o INSS revisar de ofício o mesmo benefício. Uma lei nova (de duvidosa legitimidade, mas que serve a título ilustrativo) que viesse a extinguir essa possibilidade de revisão ou limitá-la a determinadas hipóteses não poderia ser aplicada em relação aos benefícios concedidos anteriormente, sob pena de retroatividade, porque o fato idôneo ou suporte fático que dá origem à revisão, qual seja, a concessão (irregular) do benefício previdenciário, já se materializou no mundo fenomênico antes da lei nova. Assim, a extinção da revisão ou sua limitação a determinadas hipóteses interfere na causa da revisão, ou seja, interfere no ato de concessão do benefício, violando dessarte o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. Inclusive, essa ilação – de que a lei nova não pode interferir no ato concessório – foi um dos fundamentos pelos quais o Supremo Tribunal Federal reconheceu ser indevida a majoração da renda mensal inicial da pensão por morte, levada a efeito pela Lei 9.032/1995, em relação aos benefícios concedidos anteriormente à nova lei.(7)

Situação bem diversa, entretanto, é a lei que estabelece ou altera o prazo da revisão do ato concessório, a qual se aplica imediatamente, não havendo falar aí em qualquer retroatividade, porque sua incidência não interfere em nada na causa que faz nascer a revisão, vale dizer, não interfere nos efeitos do ato concessório, bem assim porque não há direito adquirido à revisão tal qual prevista em uma determinada lei, mercê da inexistência de direito à perpetuação de um determinado estatuto jurídico, isto é, em virtude da inexistência de direito adquirido a regime jurídico. Nessa ordem de raciocínio, a legislação superveniente pode aumentar ou reduzir determinado prazo decadencial ou prescricional ou até mesmo estabelecer um prazo decadencial ou prescricional inexistente para um determinado direito, sendo que essa lei nova é plenamente aplicável, a partir de sua vigência, às relação jurídicas em curso. Aliás, esse é vetusto entendimento do Supremo Tribunal Federal. Confira-se:

“A prescrição em curso não cria direito adquirido, podendo o seu prazo ser reduzido ou dilatado por lei superveniente, ou ser transformada em prazo de decadência, que é ininterruptível.” (RE 21341, NELSON HUNGRIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21.05.1953)

“Prescrição extintiva. Lei nova que lhe reduz o prazo. Aplica-se à prescrição em curso, mas contando-se o novo prazo a partir da nova lei. Só se aplicará a lei antiga se o seu prazo se consumar antes que se complete o prazo maior da lei nova, contando da vigência desta, pois seria absurdo que, visando a lei nova reduzir o prazo, chegasse ao resultado oposto, de ampliá-lo.” (RE 37223, LUIZ GALLOTTI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10.07.1958)

“Os prazos de prescrição ou de decadência são objeto de disposição infraconstitucional. Assim, não é inconstitucional o dispositivo da Lei nº 9.526/97, que faculta ao interessado, no prazo de seis meses após exaurida a esfera administrativa, o acesso ao Poder Judiciário. Não ofende o princípio constitucional do ato jurídico perfeito a norma legal que estabelece novos prazos prescricionais, porquanto estes são aplicáveis às relações jurídicas em curso, salvo quanto aos processos então pendentes.” (ADI 1715 MC, MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 21.05.1998)

No que concerne particularmente à questão de direito intertemporal a propósito da mudança do prazo decadencial ou prescricional, como ressaltam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, no caso de a lei nova não estabelecer a regra de transição, a solução já é consagrada do seguinte modo: [i] se a lei nova aumenta o prazo de prescrição ou de decadência, aplica-se o novo prazo, computando-se o tempo decorrido na vigência da lei antiga; [ii] se a lei nova reduz o prazo de prescrição ou decadência, há que se distinguir: [ii.a] se o prazo maior da lei antiga se escoar antes de findar o prazo menor estabelecido pela lei nova, adota-se o prazo da lei anterior; [ii.b] se o prazo menor da lei nova se consumar antes de terminado o prazo maior previsto pela lei anterior, aplica-se o prazo da lei nova, contando-se o prazo a partir da vigência desta.(8)

3 A decadência do direito do beneficiário requerer a revisão do ato concessório de benefício previdenciário

Como destacado anteriormente, a partir da vigência da Medida Provisória 1.523-9/1997, que ocorreu em 28 de junho de 1997, passou a existir na legislação previdenciária a prescrição do fundo de direito ao benefício, nominada como decadência.

Aqui, impende salientar que, nas demais relações jurídicas em que a Fazenda Pública figure como devedora, é aplicável tradicionalmente a prescrição do fundo de direito, por força do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Assim, a título de exemplo, no regime próprio de previdência social dos servidores públicos, o “Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de reconhecer a prescrição do próprio fundo de direito como própria às hipóteses de revisão de ato de aposentadoria, em se verificando o transcurso de mais de cinco anos entre o ato de sua concessão e a propositura da ação dirigida à sua modificação.”(9)

Entretanto, a prescrição do fundo do direito prevista no art. 1º do Decreto 20.910/1932 não se aplicava ao direito de o beneficiário pleitear a revisão do ato concessório no âmbito do regime geral de previdência social, porque a legislação previdenciária negava expressamente a prescrição do fundo de direito. E, a partir da Medida Provisória 1523-9/1997, quando ocorreu a exclusão da regra expressa de imprescritibilidade de direitos relacionados aos benefícios, a prescrição do fundo de direito passou a ser regulada especificamente na legislação previdenciária, motivo por que também, a partir daí, não se aplica, no âmbito do regime geral de previdência social, o art. 1º do Decreto 20.910/1932. Incidência do princípio da especialidade (lex specialis derrogat lex generalis).

Ademais, cumpre enfatizar que a prescrição do fundo de direito só se refere à revisão do ato de concessão do benefício, que é um ato administrativo único de efeito concreto, não açambarcando outros direitos supervenientes à relação jurídica de trato sucessivo originada com a concessão do benefício, os quais podem ser pleiteados a qualquer tempo e se submetem tão somente à prescrição quinquenal. Por exemplo, o reajustamento decorrente da aplicação dos novos tetos dos benefícios fixados pelas Emendas Constitucionais 20/1998 e 41/2003 não se submete à prescrição do fundo de direito. Diga-se, a propósito, que esse entendimento é consagrado nas relações jurídicas em que a Fazenda Pública figure como devedora. Assim é que, em se tratando de revisão de aposentadoria de servidor público, “Consoante jurisprudência firmada nesta Corte Superior de Justiça, nas hipóteses de pedido de diferenças salariais originadas da conversão de cruzeiros reais para URV, não se opera a prescrição do fundo de direito, mas apenas das parcelas vencidas no quinquênio anterior ao ajuizamento da ação.”(10)

Portanto, em relação aos benefícios concedidos antes da Medida Provisória 1523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, a decadência ou prescrição do fundo de direito do beneficiário pleitear a revisão do ato concessório passou a incidir a partir de 1º de agosto de 1997, que corresponde ao dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação na vigência da referida medida provisória. Sobreveio então a Medida Provisória 1.663-15, de 22 de outubro de 1998, convertida na Lei 9.711/1998, que reduziu o prazo decadencial para 5 anos. Antes, porém, que transcorresse o quinquênio, contado da primeira previsão de prazo decadencial, foi editada a Medida Provisória 138, de 19 de novembro de 2003, convertida na Lei 10.839/2004, restabelecendo aquele prazo decadencial em dez anos.

Dessa forma: [i] em relação aos benefícios previdenciários concedidos antes da vigência da Medida Provisória 1523-9/1997, somente ocorrerá a decadência do direito de o beneficiário pleitear a revisão do respectivo ato concessório em 1º de agosto de 2007, que corresponde ao prazo de 10 anos contados do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação na vigência da referida medida provisória; e, [ii] em relação aos benefícios previdenciários concedidos depois da Medida Provisória 1523-9/1997, ocorrerá a decadência do direito de o beneficiário pleitear a revisão após 10 anos contados do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.

Nesse sentido, registro a atual orientação da Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais:

“PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. APLICABILIDADE DO PRAZO DECADENCIAL DO ART. 103 DA LEI Nº 8.213/1991 AOS BENEFÍCIOS ANTERIORES E POSTERIORES À EDIÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.523-9/1997. POSSIBILIDADE. 1. Tomando, por analogia, o raciocínio utilizado pelo STJ na interpretação do art. 54 da Lei 9.784/99 (REsp n° 658.130/SP), no caso dos benefícios concedidos anteriormente à entrada em vigência da medida provisória, deve ser tomado como termo a quo para a contagem do prazo decadencial não a DIB (data de início do benefício), mas a data da entrada em vigor do diploma legal. 2. Em 01.08.2007, 10 anos contados do ‘dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação’ recebida após o início da vigência da Medida Provisória nº 1.523-9/1997, restou consubstanciada a decadência das ações que visem à revisão de ato concessório de benefício previdenciário instituído anteriormente a 26.06.1997, data da entrada em vigor da referida MP. 3. Pedido de Uniformização conhecido e provido.”

(TNU, PEDIDO 200670500070639, JUIZ FEDERAL OTÁVIO HENRIQUE MARTINS PORT, DJ 24.06.2010)

4 A decadência do direito-poder-dever de o INSS efetuar a revisão do ato concessório de benefício previdenciário

É cediço que “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (Súmula 473/STF). Ademais, o vocábulo “poder”, quando utilizado em relação à Administração, não alberga semântica de absoluta discricionariedade, pois que, para o agente público, o “poder” significa “poder-dever”. Esse poder-dever de autotutela, no que toca ao controle de legalidade de atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, somente passou a ter limite temporal previsto na legislação ordinária a patir da Lei 9.784/1999, a qual, regulando o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabeleceu que “o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé” (art. 54, caput).

Neste passo, calha referir que, antes da Lei 9.784/1999, não existia norma legal expressa prevendo prazo para o exercício da autotutela administrativa, o que ensejou grande controvérsia sobre a existência ou não de prazo para a Administração anular seus atos antes dessa lei, havendo posições que negam qualquer prazo, em virtude da supremacia do interesse público, outras que aplicam os prazos prescricionais do Código Civil e, por fim, aquelas que aplicam o prazo de 5 anos do Decreto 20.910/1932.

A propósito, vale salientar que a última posição parece ser a mais adequada, em razão do princípio da simetria: se o administrado dispunha de 5 anos para questionar um ato administrativo, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932, deve-se impor igual restrição temporal para a Administração anular o mesmo ato, até por força do princípio da segurança jurídica. De igual modo, especificamente em matéria previdenciária, considerando que não existia prazo para o segurado pleitear a revisão do ato concessório de seu benefício até a Medida Provisória 1523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, somente se justifica a existência de prazo para o INSS efetuar essa revisão de ofício a partir da referida medida provisória. Entretanto, prevalece na jurisprudência o entendimento segundo o qual, “até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar a qualquer tempo os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas 346 e 473/STF”.(11)

Nessa ordem de considerações, é de se assentar que, quanto aos atos praticados antes da Lei 9.784/1999, o INSS podia efetuar sua revisão a qualquer tempo, dada a inexistência de normal legal expressa prevendo prazo para tal poder-dever. Somente após a referida Lei 9.784/1999 é que passou a incidir o prazo decadencial de 5 anos nela previsto, tendo como termo inicial a data de sua vigência, qual seja, 1º de fevereiro de 1999, e abrangendo inclusive os atos praticados anteriormente, pois, como já salientado, novos prazos extintivos, sejam decadenciais, sejam prescricionais, são plenamente aplicáveis às relações jurídicas em curso. Ocorre que, antes de decorridos os 5 anos da Lei 9.784/1999, a matéria passou a ser tratada especificamente na legislação previdenciária, pela edição da Medida Provisória 138, de 19 de novembro de 2003, convertida na Lei 10.839/2004, que acrescentou o art. 103-A à Lei 8.213/91 e fixou em 10 anos o prazo decadencial para o INSS rever os seus atos de que decorram efeitos favoráveis aos benefíciários.

Desse modo: [i] em relação aos benefícios concedidos antes da Lei 9.784/1999, somente ocorrerá a decadência do poder-dever de o INSS efetuar a revisão do respectivo ato concessório em 1º de fevereiro de 2009; e [ii] em relação aos benefícios concedidos depois da Lei 9.784/1999, ocorrerá a decadência do poder-dever de o INSS efetuar a revisão após 10 anos do respectivo ato concessório (que, é bom lembrar, não coincide necessariamente com a data de início do benefício – DIB).

Nessa linha, registro o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça julgado sob o regime do recurso repetititvo:

“RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA A, DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DA RENDA MENSAL INICIAL DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS CONCEDIDOS EM DATA ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 9.787/99. PRAZO DECADENCIAL DE 5 ANOS, A CONTAR DA DATA DA VIGÊNCIA DA LEI 9.784/99. RESSALVA DO PONTO DE VISTA DO RELATOR. ART. 103-A DA LEI 8.213/91, ACRESCENTADO PELA MP 19.11.2003, CONVERTIDA NA LEI 10.839/2004. AUMENTO DO PRAZO DECADENCIAL PARA 10 ANOS. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PELO DESPROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO, NO ENTANTO. 1. A colenda Corte Especial do STJ firmou o entendimento de que os atos administrativos praticados antes da Lei 9.784/99 podem ser revistos pela Administração a qualquer tempo, por inexistir norma legal expressa prevendo prazo para tal iniciativa. Somente após a Lei 9.784/99 incide o prazo decadencial de 5 anos nela previsto, tendo como termo inicial a data de sua vigência (01.02.99). Ressalva do ponto de vista do Relator. 2. Antes de decorridos 5 anos da Lei 9.784/99, a matéria passou a ser tratada no âmbito previdenciário pela MP 138, de 19.11.2003, convertida na Lei 10.839/2004, que acrescentou o art. 103-A à Lei 8.213/91 (LBPS) e fixou em 10 anos o prazo decadencial para o INSS rever os seus atos de que decorram efeitos favoráveis a seus benefíciários. 3. Tendo o benefício do autor sido concedido em 30.07.1997 e o procedimento de revisão administrativa sido iniciado em janeiro de 2006, não se consumou o prazo decadencial de 10 anos para a Autarquia Previdenciária rever o seu ato. 4. Recurso Especial do INSS provido para afastar a incidência da decadência declarada e determinar o retorno dos autos ao TRF da 5ª Região, para análise da alegada inobservância do contraditório e da ampla defesa do procedimento que culminou com a suspensão do benefício previdenciário do autor.” (STJ, REsp 1114938/AL, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14.04.2010, DJe 02.08.2010)

Epílogo

No tocante à aplicação da decadência ao direito-poder-dever de o INSS efetuar a revisão do ato concessório ou da renda mensal inicial de benefício previdenciário concedido antes da Lei 9.784/1999, não há divergência jurisprudencial. Ao revés, o mesmo não se pode afirmar a propósito da aplicação da decadência ou prescrição do fundo de direito do beneficiário requerer a revisão do ato concessório ou da renda mensal inicial de benefício concedido antes da Medida Provisória 1.523-9/1997, que instituiu o respectivo prazo. Com efeito, prevalece na jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual “O prazo decadencial previsto no caput do artigo 103 da Lei de Benefícios, introduzido pela Medida Provisória 1.523-9/97, convertida na Lei 9.528/97, por tratar-se de instituto de direito material, surte efeitos, apenas, sobre as relações jurídicas constituídas a partir de sua entrada em vigor”.(12)

Em virtude dessa divergência jurisprudencial, foi reconhecida a repercussão geral no RE 626.489, em 17 de setembro de 2010, de modo que cabe agora ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra sobre o assunto, sob o ângulo constitucional, considerado particularmente o art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal vai dizer se a aplicação da prescrição do fundo de direito ou da decadência estabelecida pela Medida Provisória 1.523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, aos benefícios concedidos anteriormente à sua vigência configura retroatividade da lei. E neste ponto registro que essa discussão de direito intertemporal me lembra dois precedentes antológicos da Suprema Corte. Vejamos.

No primeiro deles, a ADI 493, RelatorMin. Moreira Alves, julgada pelo Plenário em 25.06.1992, foi reconhecido que a aplicação da Taxa Referencial – TR na correção de futuras prestações de contratos de financiamento imobiliário do Sistema Financeiro da Habitação – SFH anteriores à lei nova caracterizava retroatividade vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal. Diversamente, no RE 226.855, Relator Min. Moreira Alves, julgado pelo Plenário em 31.08.2000, foi reconhecido que a aplicação da TR nas futuras correções dos depósitos de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS anteriores à lei nova não caracterizava retroatividade vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal.

Cumpre gizar que a diferença de solução encontrada pelo Supremo Tribunal Federal para questões de direito intertemporal aparentemente iguais se fundamentou na circunstância de que a lei nova não pode atingir efeitos futuros de contratos anteriores, sob pena de violação ao direito adquirido, mas pode atingir efeitos futuros de relações jurídicas estatutárias, pois não há direito adquirido a regime jurídico. Com efeito, como bem ressaltou Moreira Alves, em seu voto proferido no RE 226.855, “O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da lei e por ela ser disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico”.

Ora bem, a relação jurídica entre o beneficiário e o INSS é regulada basicamente pela Lei 8.213/1991, ou seja, tem natureza jurídica estatutária. A concessão irregular de um benefício previdenciário faz nascer para o beneficiário a pretensão de revisão para sanar a violação de seu direito subjetivo à correta prestação previdenciária, bem assim o poder-dever de o INSS revisar de ofício o mesmo benefício. Essa revisão tem natureza jurídica estatutária, ou seja, seu regime jurídico pode ser alterado, sendo que a lei que estabelece ou altera prazo para o seu exercício não interfere em nada na causa que faz nascer a revisão, vale dizer, não interfere nos efeitos do ato de concessão do benefício previdenciário. Logo, não há como reconhecer ofensa ao art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal, na aplicação da Medida Provisória 1.523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, à revisão da renda mensal inicial de benefícios concedidos anteriormente à sua vigência.

Referências bibliográficas

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 13. ed. Florianópolis: Conceito, 2011.

DEMO, Roberto Luis Luchi. Direito processual intertemporal. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, n. 27, p. 466-484, dez. 1999 / mar. 2000.

FRANÇA, Rubens Limongi. Direito Intertemporal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1968.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. v. 1. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2004.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. I.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A irretroatividade da Lei Tributária.Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 36, n. 133, p. 5-26, nov. 1988.

Notas

1. Fonte: Boletim Estatístico da Previdência Social de setembro de 2011.

2. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A irretroatividade da Lei Tributária. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 36, n. 133, p. 5-26, nov.1988.

3. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. I. p. 104.

4. STF, ADI 493, RelatorMin. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 25.06.1992.

5. FRANÇA, Rubens Limongi. Direito Intertemporal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1968. p. 208.

6. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 59-63.

7. STF, RE 415454, GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe 25.10.2007.

8. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, v. 1, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 507-508.

9. STJ, AgRg no REsp 746.253/RS, HAMILTON CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ 12.09.05.

10. STJ, AGRESP 200600458389, MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJE 12.04.2010.

11. STJ, MS 9112/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, CORTE ESPECIAL, DJ 14.11.2005.

12. STJ, AgRg no Ag 1398170/PR, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU, QUINTA TURMA, julgado em 14.06.2011, DJe 04.08.2011.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2011. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS