A verdade material no processo penal |
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Autor: Marcelo Paulo Wacheleski Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC, Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires, Professor de Direito Penal e Administrativo da FUnC-Mafra publicado em 03.05.2012 |
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Palavras-chave: Verdade. Processo penal. Garantismo. Sumário: Introdução. 1 O problema da verdade no processo judicial. 1.1 Dúvida, certeza e probabilidade. 2 Verdade material e verdade formal. 3 A verdade no processo penal. 4 O fundamento das garantias processuais: a semântica e o garantismo. Conclusão. Referências bibliográficas. Introdução A discussão travada no trabalho não alcançou consenso doutrinário até o momento e ganhou maior polêmica com a assunção dos Estados Democráticos de Direito e o estabelecimento das garantias e direitos individuais dos acusados nos processos penais. 1.1 Dúvida, certeza e probabilidade 2 Verdade material e verdade formal Sempre que se propõe a discussão da prova no processo judicial verifica-se a antinomia entre verdade material e verdade formal, a primeira direcionada ao processo penal, via de regra, em razão dos procedimentos utilizados para alcançá-la, e a segunda, ao processo civil. Contudo, atualmente se desfez o propósito da distinção entre verdade material e formal, tendo em vista que as limitações impostas ao processo penal pelos direitos individuais e as regras processuais garantistas somente permitem discutir verdades relativas, longe das verdades absolutas que se pretendia buscar pelo modelo inquisitivo.(8) Em outra perspectiva, a definição do processo civil como instrumento de pacificação social, que tenha finalidade de resolver um conflito estabelecido entre as partes, mediante a aplicação de preceitos normativos que dispensam, de todo modo, o alcance da verdade dos fatos como objeto do juízo, sendo suficiente o reconhecimento de uma verdade formal. “La diferencia entre ‘verdad material’ y ‘verdad formal’, por lo tanto, siendo el resultado de dos metodologias completamente diversas, puede ser entendida según el diferente contenido que se adscrive a una y a otra. La primera, própria de los modelos penales sustancialistas, está informada no solo por la comprovación de los sucesos llevados a juicio, sino tambíen por otras cuestiones (como por ejemplo la personalidad del delincuente), que imponen la realización de un proceso que, teniendo por fin una verdad ‘absoluta’ que debe ser investigada incluso por quien luego deve resolver el caso, no respeta limites ni garantias. La ‘verdad formal’ por su parte, se refiere a los hechos que son alegados por las partes, donde el juez no cumple ningún rol investigativo y donde aquéllas pueden incluso disponer de los hechos y del derecho. En efecto, en el tipo de procesos donde ella es perseguida (como en el proceso civil), las partes puedes disponer de las pruebas y incluso no introducir hechos que tal vez resultarián relevantes para la decisión.” Dentro do processo penal, nenhum desses dois modelos podem ser considerados coerentes com a processualística moderna de respeito às garantias do acusado, da estrita legalidade e da jurisdicionalidade. A verdade, nesse novo modelo, deixa de ser um fim em si mesma e passa a ser entendida tão somente como uma condição necessária para aplicação da condenação. 3 A verdade no processo penal A partir dessas análises do processo penal, a premissa inicial é de que o ritual não é apto a alcançar a verdade, nem se constitui em seu objetivo, quedando restrito a fórmulas e ritos procedimentais. Nesse aspecto, o processo penal seria o instrumento para solução de conflitos sociais institucionalizados por meio da aplicação de referidos rituais, sem, contudo, estar comprometido com a verdade. “Esto no quiere decir, sin embargo, que el proceso penal tenga que renunciar, por principio y desde un principio, a la búsqueda de la verdad material entendida en sú sentido clasico como adecuatio rei et intellectu, sino solamente que tiene que atemperar esa meta a las limitaciones que derivan no solo de las propias leys del conocimiento, sino de los derechos fundamentales reconocidos en la Constituicion y las normas, formalidades e ‘impurezas’ del proceso penal.”(11) Inobstante essa constatação, é de firme entendimento doutrinário a conclusão de que a verdade material continuará sendo o objeto inatingível pelo processo penal. A análise das provas derivadas de fatores tautológicos raramente autorizam o julgador a decidir em contrariedade à sua constatação. Desse modo, a definição de prática, tentada ou consumada, de um delito de homicídio será afirmada pela ocorrência ou não de lesões que foram causa eficiente da morte da vítima, vinculadas pelo nexo causal ao ato perpetrado pelo agente agressor. O que se afirma, desse modo, é o pressuposto da limitação dos meios investigatórios de alcance da verdade material impostos pelas próprias garantias de direitos individuais e fundamentais de um processo penal constitucional. Não se fala então de uma verdade material, e sim da verdade processual possível de ser obtida pelas regras processuais com respeito aos direitos individuais. Isso é o que se denomina, doutrinariamente, de uma teoria consensual da verdade, que, importa dizer, reflete os limites admissíveis socialmente para afirmação da verdade pelas regras processuais, o que justifica, por certo, repelir as provas ilícitas. A decisão judicial motivada com base na teoria da argumentação lógico-racional discursiva exige o máximo respeito aos limites punitivos do Estado colocados pelo próprio rol de direitos individuais, decidindo-se, na dúvida, em favor do acusado e reafirmando, desse modo, o estado natural de inocência que somente pode ceder com prova em contrário, legitimamente produzida. Qualquer outra forma de busca da verdade é regresso ao modelo totalitário e violador da dignidade do acusado. 4 O fundamento das garantias processuais: a semântica e o garantismo A concepção semântica da verdade exige a predeterminação legal das hipóteses acusatórias, é dizer, da previsão normativa de todas as tipificações delitivas fundadas antes em fatos do que em pessoas. O conteúdo da hipótese acusatória prevista na legislação penal deve ser precisa e exata, afastando todas as ambiguidades e os sentidos vagos. Conforme apontado por Hart,(15) a vagueza dos termos jurídicos institui uma zona de penumbra na interpretação judicial, permitindo margem elevada de discricionariedade judicial que torna absolutamente indispensável a prova dos fatos e reduz a capacidade da defesa de persuadir o juiz da ocorrência ou não da hipótese acusatória. O sentido vago da linguagem natural, aliada à sua remissão a valores, impõe ao juiz uma eleição entre decisões possíveis, que não são irracionais, porém, também não são decorrentes da prova dos fatos, e sim do movimento argumentativo persuasivo. Nenhuma esfera jurídica exige tamanha aproximação do julgador com a estrita legalidade quanto a jurisdição penal. A obediência do julgador ao texto normativo penal e, principalmente, às garantias constitucionais é respeito máximo ao sentido de liberdade e proteção do acusado contra o arbítrio do Estado.(18) Não há qualquer movimento consensual, doutrinário, imprensa ou mesmo manifestação pública que possam suprir a necessidade de formulações probatórias vinculadas estritamente às garantias do acusado, sob pena de deslegitimar qualquer sanção aplicada dentro de um modelo democrático e garantista. No breve panorama lançado sobre a busca da verdade no processo penal, procurou-se analisar os paradigmas prevalecentes na ordem jurídica atual. A busca da verdade sempre esteve fortemente vinculada à legitimidade de uma sentença que impõe pena corporal ao acusado. Nessa perspectiva, o estabelecimento de um Estado Democrático de proteção das liberdades individuais não pode prescindir de um mínimo de garantias para busca da verdade alcançada no processo penal como legitimadora de uma sanção corporal. Contudo, uma digressão no estudo dos sistemas processuais penais na história aponta para estreita ligação entre a busca da verdade e o sistema inquisitivo, em que há clara supressão e descompromisso com a proteção dos direitos individuais do acusado. Referências CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2009. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. TARUFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2009. Notas 2. “La epistemología contemporánea há mostrado la esencial relatividad del conocimiento en los campos más variados, relatividad que nace de la conciencia de su misma falibilidad, es decir, de la posibilidad de ser siempre parcial o totalmente refutado.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 21. 3.“Toda investigación se realiza dentro de un contexto que condiciona la búsqueda de la verdad. Por contexto debe entenderse no solo los médios cognoscitivos disponibles, sino también el conjunto de las presuposiciones, conceptos, nociones y reglas, es decir, el conjunto de las estructuras de referencia en función de las cuales se construyen las versiones de los hechos.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 26. 4. MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. Citado por GUZMAN, Nicolás.La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 27. 5. “La probabilidad puede ser positiva, en el sentido de que los elementos existentes en la causa tornan más probable que el hecho haya existido y que el imputado haya sido su autor, que los elementos que demostrarían lo contrario. La probabilidad será entonces negativa cuando, por el contrario, los elementos reunidos hagan pensar que es más probable que el hecho no haya existido o que el imputado no haya sido su autor.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 28-29. 6. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 29. 7. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 29. 8. “Tal vez hoy ya no tenga demasiado sentido hacer esta división entre verdad material y verdad formal, porque lo cierto es que los mecanismos de que se nutre actualmente el processo penal – y los limites que enfrente en respeto de las garantías – para conocer la verdad y el grado al que há llegado la discusión epistemológica, solo permiten hablar de verdaderas relativas que distan mucho de las míticas verdades absolutas con las que generalmente se emparenta la verdad real (y el modelo inquisitivo en que ella es buscada).” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 31. 9. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 36. 10. Nesse sentido Habermas e também CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 110. 11. CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 111. 12. CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 115. 13. Principalmente em sua obra Teoria do agir comunicativo, Habermas estabelece sua proposta a partir da convivência da dimensão instrumental com a dimensão comunicativa da racionalidade. Ao contrário da primeira, esta é formulada a partir de uma teoria da ação. A razão humana para o filósofo foi distinguindo-se em instrumental e comunicativa a partir de sua constante evolução, distanciando-se das teorias precedentes que apontavam para uma preponderância da razão instrumental como paradigma de racionalidade. “Desde a perspectiva dos participantes, ‘entendimento’ não significa um processo empírico que dá lugar a um consenso fático, senão um processo recíproco de convencimento que coordena as ações dos distintos participantes à base de uma motivação por razões. Entendimento significa a comunicação orientada por um acordoválido.” (HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa I:racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p. 500) 14. “Es por ello que resulta tan importante que, para que la prueba no pierda su función cognoscitiva y para que pueda predicarse la verdad tanto de la hipotesis acusatória (quaestio factis) como de la calificacíon jurídica que corresponde al hecho comprovado (quaestio juris), la norma esté dotada de precisión empírica y que se refiera solo a hechos exactamente determinados y no cuestiones valorativas, pues en caso contrario la cuestión se resuelve solamente en función de valoraciones del juez que, como tales, serán inevitablemente discrecionales.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 69. 15. A vagueza dos termos jurídico é levantada por Hart nos próprios questionamentos que perpassam seu estudo sobre o conceito de Direito. Afirma Hart que “[n]ão existe literatura abundante dedicada a responder às perguntas ‘O que é química?’ ou ‘O que é medicina?’, como sucede com a questão ‘O que é direito?’. Umas escassas linhas na página inicial de qualquer manual elementar, eis tudo o que o estudante dessas ciências é solicitado a considerar; e as respostas que lhe são dadas são de diferente natureza das ministradas ao estudante de direito. Ninguém considerou ser esclarecedor ou importante insistir em que a medicina é ‘aquilo que os médicos fazem acerca das doenças’, ou ‘um prognóstico sobre o que os médicos farão’ ou declarar que aquilo que é normalmente reconhecido como parte característica e central da química, digamos o estudo dos ácidos, na realidade não faz de modo algum parte da química. Todavia, no caso do direito, têm-se dito com frequência coisas que à primeira vista parecem tão estranhas como essas, e não só são ditas, como até sustentadas com eloquência e paixão, como se fossem revelações de verdades sobre o direito, obscurecidas durante muitos anos por erros graves sobre a sua natureza essencial.” HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 5. 16. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 75. 17. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 75. 18. “Todo esto significa que en el derecho penal, puesto que la taxatividad y por tanto la verificabilidad del supuesto típico, es la principal garantia del imputado frente al arbítrio, la fuente de legitimación sustancial, tanto interna como externa, se identifica en gran medida con la formal de la máxima sujeción del juez a la ley, tal como resulta asegurada por la estricta legalidad y en consecuencia por la estricta jurisdiccionalidad penal.” FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2009. p. 544.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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