A verdade material no processo penal


Autor: Marcelo Paulo Wacheleski

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC, Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires, Professor de Direito Penal e Administrativo da FUnC-Mafra

 publicado em 03.05.2012


Resumo

O artigo busca investigar o problema da verdade no processo penal. Para tanto, parte da análise do problema da verdade no processo judicial. Adiante busca pesquisar a possibilidade de manutenção das teorias da verdade material e formal no processo judicial e, especialmente penal. O desenvolvimento do trabalho aponta para a verdade como resultante da impressão extraída dos fatos e provas produzidas no processo com determinada coerência e mediante a obediência a procedimentos prévios que respeitem as garantias dos direitos individuais dos acusados. Os resultados demonstram a necessidade de convivência simultânea entre a busca do esclarecimento dos fatos resultante de uma verdade processual alcançada pela produção probatória com o máximo respeito aos direitos e garantias do acusado no processo penal.

Palavras-chave: Verdade. Processo penal. Garantismo.

Sumário: Introdução. 1 O problema da verdade no processo judicial. 1.1 Dúvida, certeza e probabilidade. 2 Verdade material e verdade formal. 3 A verdade no processo penal. 4 O fundamento das garantias processuais: a semântica e o garantismo. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A discussão travada no trabalho não alcançou consenso doutrinário até o momento e ganhou maior polêmica com a assunção dos Estados Democráticos de Direito e o estabelecimento das garantias e direitos individuais dos acusados nos processos penais.

A preocupação da verdade no processo penal é vinculada basicamente a dois pontos:

a) a verdade é o fundamento legitimador da aplicação da sanção penal;

b) a sanção penal somente será autorizada pelo ordenamento jurídico constitucional quando respeitar integralmente os direitos individuais e as garantias processuais do acusado.

Principia-se discutindo as teorias que se dedicam ao estudo da definição da verdade no processo penal: as doutrinas, predominantemente, afirmam a impossibilidade ontológica de alcançar a verdade, considerando sua impressão subjetiva; a impossibilidade ideológica; e também colocam os direitos e as garantias individuais como limitadores da possibilidade de acesso à verdade no processo judicial, em geral, e penal, em especial.

Utilizando-se, de fundo, dos conceitos de Hart, aponta-se a dificuldade de estabelecimento da verdade no Direito pela amplitude polissêmica dos significados de cada termo num círculo de linguagem. Da proposta de Habermas, são extraídos os conceitos necessários de racionalidade, consenso racional e comunidade ideal de fala, fatores aparentemente indispensáveis para alcançar um paradigma adequado de verdade dentro de um processo penal garantista.

1 O problema da verdade no processo judicial

O tema proposto gira em torno de candente polêmica:

a possibilidade de se estabelecer a verdade dentro do processo judicial. As pesquisas que buscaram estabelecer critérios para indicação da verdade, via de regra, caíram no cepticismo. Em resumo, a estruturação das teorias que discutem a problemática da verdade no processo judicial firma-se em três pontos importantes: a impossibilidade teórica, a impossibilidade ideológica e a impossibilidade prática de alcançar a verdade.(1)

A corrente fundamentada na impossibilidade teórica de afirmação da verdade transpôs os estudos da filosofia que teorizam a negação de uma verdade absoluta. Isso porque a verdade, segundo esse posicionamento, está limitada à construção mental privada e conectada a fenômenos reais e, nesse passo, fica restrita ao sistema cultural e linguístico variável e à pluralidade do sistema em que estiver inserido.

Os apontamentos dessa teoria têm sido rechaçados sob a perspectiva de que o objetivo não é a verdade absoluta, e sim uma verdade sempre relativa, admitida pela epistemologia como racional.(2)

A impossibilidade teórica, portanto, apenas estará presente quando se buscar a verdade absoluta, esta inalcançável e somente presente como ideal. Desse modo, é possível aceitar uma verdade relativa que mantenha a necessária correspondência entre os fatos (realidade objetiva) e a norma aplicável, afastando a impossibilidade teórica.

No que se refere à impossibilidade ideológica, melhor definida por Gonzales como inoportunidade, por estar relacionada ao fim do processo, afirma, em rigor, não estar relacionado ao processo penal, visto que nesse o conhecimento da verdade é pressuposto para aplicação da sanção; porém, é presente no processo civil, onde o fim é a solução pacífica do conflito posto em juízo, e nesse aspecto, tratando-se de matéria privada, permanece sob encargo das partes a produção probatória. Porém, ainda sim, é iniludível que, tanto no processo penal como no processo civil, a busca de uma decisão justa passa, necessariamente, pela verdade como condição primeira de justiça.

O modelo inquisitivo é próximo à impossibilidade ideológica, tendo em vista que seu objetivo claro é o alcance da verdade, porém sem respeito aos direitos ligados à dignidade humana, o que torna, teoricamente, inoportuna a busca pela verdade. Assim, tem-se, nesse ponto, a verdade como valor; e, noutro, o método utilizado para alcançá-la. Somente pode-se refutar o interesse em chegar à verdade, ainda que provável, quando não há respeito às liberdades individuais no método utilizado para obtê-la, nesse aspecto sim, ela pode considerar-se ideologicamente desnecessária.

A terceira objeção refere-se à impossibilidade prática. Nesse ponto, é certo que todos os sistemas processuais, sejam inquisitivos, sejam mistos, sejam contraditórios, estarão limitados por regras processuais e, em última hipótese, respeito aos direitos fundamentais que trazem a impossibilidade de alcançar a verdade absoluta. Contudo, toda verdade, seja judicial, seja extrajudicial, sempre será sustentada dentro de um contexto, e, portanto, não se pode afirmar que a verdade alcançada judicialmente seja inferior àquela extraprocessual.(3)

1.1 Dúvida, certeza e probabilidade

Como afirmado por Gonzalez, a verdade no processo penal deve figurar como a correspondência do enunciado com a realidade. Essa verdade é entendida como a correspondência entre o objeto conhecido e o sujeito cognoscente, ou seja, o juízo reflexivo imposto pelo sujeito que conhece, pois existe “[...] identidad, adecuación o conformidad entre la representación ideológica del objeto por el sujeto que conoce y el objeto mismo, como realidad ontológica”.(4)

A conclusão decorrente dessa afirmação é de que sempre há uma interseção subjetiva entre o sujeito que realiza o juízo e o objeto conhecido. No processo, significa a inexistência de dúvidas de que o enunciado é verdadeiro, ou seja, que tenham sido refutadas as teses que importem na inaplicabilidade das hipóteses acusatórias; assim, somente está-se autorizado a impor uma condenação quando toda dúvida razoável tenha sido eliminada, pois, em sentido contrário, a absolvição é inevitável.

Entre a dúvida e a certeza está a probabilidade. Nesse aspecto, estão presentes elementos que afastam o juízo de certeza autorizador de um decreto condenatório. Isso porque existem elementos que tornam provável o juízo cognitivo de que há materialidade e indícios de autoria que levam à probabilidade de que o fato tenha existido e o sujeito tenha sido seu autor, porém, a presença de outros fatores dentro do processo impedem a formação de um juízo de condenação.(5)

Por fim, verifica-se a dúvida como estado mental em que está o julgador, no qual não pode definir pela existência do fato ou pela responsabilidade do imputado. Trata-se de um estado mental neutro em que se reconhece o fracasso da finalidade cognitiva do fato e o julgador não consegue estabelecer uma certeza ou probabilidade, seja negativa, seja positiva.(6)

Diante das análises realizadas, somente se pode afirmar como possível a emissão de uma condenação quando o estado mental do julgador esteja dentro de uma certeza subjetiva positiva. “Para que ella tenga lugar, no deven existir dudas acerca de la existencia del hecho, de su tipicidad y de la responsabilidad del acusado.”(7)

A probabilidade, por sua vez, encontra tratamento diverso, de modo que a probabilidade positiva somente terá relevância para justificar a realização da instrução probatória, porém, jamais para fundamentar uma condenação. Para autorizar a instrução basta a existência de uma probabilidade de verificação das hipóteses acusatórias.

Por fim, a probabilidade negativa e a dúvida não podem ter outro tratamento senão a absolvição do acusado em qualquer fase do processo em que seja estabelecida. A dúvida, em si, é autorizadora da aplicação do princípio in dubio pro reo.

2 Verdade material e verdade formal

Sempre que se propõe a discussão da prova no processo judicial verifica-se a antinomia entre verdade material e verdade formal, a primeira direcionada ao processo penal, via de regra, em razão dos procedimentos utilizados para alcançá-la, e a segunda, ao processo civil. Contudo, atualmente se desfez o propósito da distinção entre verdade material e formal, tendo em vista que as limitações impostas ao processo penal pelos direitos individuais e as regras processuais garantistas somente permitem discutir verdades relativas, longe das verdades absolutas que se pretendia buscar pelo modelo inquisitivo.(8)

Todas essas definições de verdade material, verdade formal ou verdade histórica estão indistintamente ligadas à disponibilidade que se pode fazer da prova dentro do processo judicial, e não dentro do processo penal. É sobretudo falacioso, segundo Guzmán, acreditar na renúncia da busca da verdade no processo penal, tendo em vista que ela desemboca necessariamente no modelo inquisitivo, como método de conhecimento da verdade.

Isso ocorre, tão somente, porque se está ligado a uma verdade absoluta, e, quando essa é a pretensão, a lei volta-se inclusive à figura do imputado, autorizando a busca de seus antecedentes ou a personalidade desviante pela prática do crime, para justificar a utilização de métodos inquisitivos que autorizem a limitação dos direitos fundamentais.

Em outra perspectiva, a definição do processo civil como instrumento de pacificação social, que tenha finalidade de resolver um conflito estabelecido entre as partes, mediante a aplicação de preceitos normativos que dispensam, de todo modo, o alcance da verdade dos fatos como objeto do juízo, sendo suficiente o reconhecimento de uma verdade formal.

Quando se tem associado ao processo civil o termo verdade formal, encontramos como premissas necessárias a disposição dos fatos, dos bens e das provas pelas partes, e a necessária equidistância do julgador da iniciativa probatória com a finalidade de manter a imparcialidade. Nesse aspecto, resulta evidente o objetivo último do processo civil vinculado à pacificação de conflitos intersubjetivos. No processo penal, como os objetivos buscados transcendem a vontade das partes, o juiz resta autorizado a intervir na fixação das hipóteses acusatórias.

Segundo Guzmán(9):

“La diferencia entre ‘verdad material’ y ‘verdad formal’, por lo tanto, siendo el resultado de dos metodologias completamente diversas, puede ser entendida según el diferente contenido que se adscrive a una y a otra. La primera, própria de los modelos penales sustancialistas, está informada no solo por la comprovación de los sucesos llevados a juicio, sino tambíen por otras cuestiones (como por ejemplo la personalidad del delincuente), que imponen la realización de un proceso que, teniendo por fin una verdad ‘absoluta’ que debe ser investigada incluso por quien luego deve resolver el caso, no respeta limites ni garantias. La ‘verdad formal’ por su parte, se refiere a los hechos que son alegados por las partes, donde el juez no cumple ningún rol investigativo y donde aquéllas pueden incluso disponer de los hechos y del derecho. En efecto, en el tipo de procesos donde ella es perseguida (como en el proceso civil), las partes puedes disponer de las pruebas y incluso no introducir hechos que tal vez resultarián relevantes para la decisión.”

Dentro do processo penal, nenhum desses dois modelos podem ser considerados coerentes com a processualística moderna de respeito às garantias do acusado, da estrita legalidade e da jurisdicionalidade.

A verdade, nesse novo modelo, deixa de ser um fim em si mesma e passa a ser entendida tão somente como uma condição necessária para aplicação da condenação. 

3 A verdade no processo penal

A partir dessas análises do processo penal, a premissa inicial é de que o ritual não é apto a alcançar a verdade, nem se constitui em seu objetivo, quedando restrito a fórmulas e ritos procedimentais. Nesse aspecto, o processo penal seria o instrumento para solução de conflitos sociais institucionalizados por meio da aplicação de referidos rituais, sem, contudo, estar comprometido com a verdade.

Inclusive, a própria desigualdade entre as partes, em que se tem a presença de um acusado e de um órgão acusador, desfaz a busca comprometida pela verdade, tendo em vista que o objetivo das partes não é comum nesse sentido.(10)
 
A par dessa aporia na constituição do processo penal, tem-se apontado outro grande obstáculo ao alcance da verdade denominado de impurezas processuais ou institucionais. Trata-se, notadamente, de impossibilidade econômica, pericial, atitude da própria vítima, antecipação valorativa dos encarregados pela investigação, entre outras interferências, que são determinantes para afastar o sistema processual penal do alcance pleno de uma verdade material.

Esto no quiere decir, sin embargo, que el proceso penal tenga que renunciar, por principio y desde un principio, a la búsqueda de la verdad material entendida en sú sentido clasico como adecuatio rei et intellectu, sino solamente que tiene que atemperar esa meta a las limitaciones que derivan no solo de las propias leys del conocimiento, sino de los derechos fundamentales reconocidos en la Constituicion y las normas, formalidades e ‘impurezas’ del proceso penal.”(11)

Inobstante essa constatação, é de firme entendimento doutrinário a conclusão de que a verdade material continuará sendo o objeto inatingível pelo processo penal. A análise das provas derivadas de fatores tautológicos raramente autorizam o julgador a decidir em contrariedade à sua constatação. Desse modo, a definição de prática, tentada ou consumada, de um delito de homicídio será afirmada pela ocorrência ou não de lesões que foram causa eficiente da morte da vítima, vinculadas pelo nexo causal ao ato perpetrado pelo agente agressor.

Contudo, a dificuldade sobressai quando, a partir da confirmação do óbito, tem-se que alcançar os fatores determinantes da ocorrência da prática delituosa. Ou seja, a pretensão punitiva estatal deve estar esclarecida com o reconhecimento de um crime passional, de vizinhança, com intrigas pretéritas e outras circunstâncias que afastem as excludentes de tipicidade e culpabilidade, como legítima defesa, estado de necessidade, etc.

Os limites da definição dessa verdade material emergida das circunstâncias emocionais que cercam essa realidade estão fundados no próprio direito à intimidade, à privacidade e à integridade física, entre outros. Assim, “[...] la búsqueda de la verdad material deve ser relativizada, y, desde luego, se puede decir entonces, sin temor a equivocarse, que en el Estado del Derecho en ningun caso se debe buscar a la verdad a toda costa o a cualquier precio”.(12)

O que se afirma, desse modo, é o pressuposto da limitação dos meios investigatórios de alcance da verdade material impostos pelas próprias garantias de direitos individuais e fundamentais de um processo penal constitucional. Não se fala então de uma verdade material, e sim da verdade processual possível de ser obtida pelas regras processuais com respeito aos direitos individuais. Isso é o que se denomina, doutrinariamente, de uma teoria consensual da verdade, que, importa dizer, reflete os limites admissíveis socialmente para afirmação da verdade pelas regras processuais, o que justifica, por certo, repelir as provas ilícitas.

A exigência paralela de limitações à busca da verdade processual por meio dos direitos fundamentais está vinculada à necessidade de fundamentar o decreto condenatório empiricamente subsumindo os fatos à norma penal incriminadora. Somente por essa operação é que se torna compatível a livre convicção motivada do magistrado com o seu dever de motivar todas as decisões judiciais (art. 93, IX, da CF/88). Em outras palavras, as garantias processuais somente serão respeitadas quando o julgador obtiver sua decisão fundamentada, respeitando os limites de alcance da verdade material.

Substancialmente, o que se tem de conclusivo como verdade aceita racionalmente no sistema processual penal garantista e comprometido com o texto constitucional é, tão somente, uma expressão do consenso racional numa comunidade ideal de fala, como definida por Habermas.

(13)A conjugação entre as condições objetivas da razão e os procedimentos previamente estabelecidos na legislação, que sejam compatíveis com o respeito máximo aos direitos fundamentais.

A decisão judicial motivada com base na teoria da argumentação lógico-racional discursiva exige o máximo respeito aos limites punitivos do Estado colocados pelo próprio rol de direitos individuais, decidindo-se, na dúvida, em favor do acusado e reafirmando, desse modo, o estado natural de inocência que somente pode ceder com prova em contrário, legitimamente produzida. Qualquer outra forma de busca da verdade é regresso ao modelo totalitário e violador da dignidade do acusado.

4 O fundamento das garantias processuais: a semântica e o garantismo

A concepção semântica da verdade exige a predeterminação legal das hipóteses acusatórias, é dizer, da previsão normativa de todas as tipificações delitivas fundadas antes em fatos do que em pessoas. O conteúdo da hipótese acusatória prevista na legislação penal deve ser precisa e exata, afastando todas as ambiguidades e os sentidos vagos.

A falta de precisão normativa afasta a função cognitiva da prova e reduz a atividade das partes a mera retórica com a finalidade de persuadir o julgador. Por sua vez, o juiz, na atividade jurisdicional, quando tem para aplicação uma lei sem exatidão e clareza, recebe alto poder discricionário para decidir a extensão e a valoração dos casos de aplicação do conteúdo normativo.(14)

A consequência imediata da ausência de previsão exata e clara da norma incriminadora e, assim, da abertura discricionária interpretativa e de extensão da aplicação da norma repressiva traz dúvidas quanto aos limites do exercício da liberdade. Em outras palavras, não há certeza sobre o que nos é permitido fazer quando não há clareza na norma repressiva e, a qualquer momento, a extensão da aplicação da norma jurídica pode alcançar condutas antes não incriminadas.

Conforme apontado por Hart,(15) a vagueza dos termos jurídicos institui uma zona de penumbra na interpretação judicial, permitindo margem elevada de discricionariedade judicial que torna absolutamente indispensável a prova dos fatos e reduz a capacidade da defesa de persuadir o juiz da ocorrência ou não da hipótese acusatória. O sentido vago da linguagem natural, aliada à sua remissão a valores, impõe ao juiz uma eleição entre decisões possíveis, que não são irracionais, porém, também não são decorrentes da prova dos fatos, e sim do movimento argumentativo persuasivo.

Nesse aspecto é que sobressai a dificuldade de saber se a norma típica penal é aplicável ao fato ocorrido, de modo que essa subsunção sempre estará sujeita à valoração subjetiva e não verificável empiricamente do juiz.

A consequência direta do reconhecimento de um termo normativo vago é a crise do sistema da subsunção, ou seja, a aplicação do fato à norma por meio de um mecanismo automático dedutivo. A ausência na norma de premissas seguras, diante de um conteúdo vago, impõe que o juiz estabeleça o conceito exato do termo normativo. Assim, as definições do que é obsceno, do que é uma deformação física capaz de gerar dano ou mesmo do que é violenta emoção no crime contra a vida são definições abertas que se incluem em uma zona de penumbra exigindo definição racional argumentativa a critério do poder discricionário do juiz.

Os caminhos utilizados pelo julgador, segundo Alchourrón y Bulygin, citados por Gonzalez,(16) são dois: ou estipula uma regra semântica ou descobre uma regra semântica já existente. No primeiro caso, quando não há conformidade social quanto à utilização do termo, o juiz deverá dar interpretação parcial de sua adequação à norma jurídica penal. Assim, ele será racionalmente válido e justificado quando der devido significado aos termos relevantes. No segundo caso, o juiz se utiliza de interpretações e convenções linguísticas já existentes.(17)

A partir dessa constatação é que a estrita legalidade no processo penal sobreleva importante caminho para o garantismo quando se pretende reduzir ao máximo (ainda que se reconheça ineliminável totalmente do direito) o sentido vago e impreciso de algumas normas jurídicas, tendo como certo que essa operação permitirá a redução da discricionariedade judicial.

Nenhuma esfera jurídica exige tamanha aproximação do julgador com a estrita legalidade quanto a jurisdição penal. A obediência do julgador ao texto normativo penal e, principalmente, às garantias constitucionais é respeito máximo ao sentido de liberdade e proteção do acusado contra o arbítrio do Estado.(18)

Não há qualquer movimento consensual, doutrinário, imprensa ou mesmo manifestação pública que possam suprir a necessidade de formulações probatórias vinculadas estritamente às garantias do acusado, sob pena de deslegitimar qualquer sanção aplicada dentro de um modelo democrático e garantista.

Conclusão

No breve panorama lançado sobre a busca da verdade no processo penal, procurou-se analisar os paradigmas prevalecentes na ordem jurídica atual. A busca da verdade sempre esteve fortemente vinculada à legitimidade de uma sentença que impõe pena corporal ao acusado. Nessa perspectiva, o estabelecimento de um Estado Democrático de proteção das liberdades individuais não pode prescindir de um mínimo de garantias para busca da verdade alcançada no processo penal como legitimadora de uma sanção corporal.

Contudo, uma digressão no estudo dos sistemas processuais penais na história aponta para estreita ligação entre a busca da verdade e o sistema inquisitivo, em que há clara supressão e descompromisso com a proteção dos direitos individuais do acusado.

Muito além do que isso, o problema da prova suplanta o processo penal e margeia o próprio processo judicial. É que, para o paradigma do processo civil, a prova alcança o necessário para solução do litígio posto em juízo, tendo em vista que sua função e finalidade está vinculada à pacificação social, ou seja, é possível que o juiz assuma posição de distância e inércia em relação às partes, tendo em vista que tratam de direitos disponíveis.

Contudo, no processo penal, o juiz assume, ao mesmo tempo, uma função de garante dos direitos do acusado e condutor do quadro probatório. A par dessa dificuldade, tem-se a natural vagueza dos conceitos jurídicos e das normas aplicadas no processo penal. O plurívoco significado dos termos jurídicos aponta para a diversidade de enfoques judiciais que podem ser tomados à semântica interpretativa do processo judicial.

O acordo linguístico parece ser o caminho apontado pela filosofia da linguagem, em que seja construído um sistema capaz de proteger os direitos fundamentais do acusado e garantir a produção probatória. Imperiosa, ao ocorrer a ausência de convencimento fundamentado do magistrado no caso concreto, quando respeitadas e afastadas as provas e os métodos ilícitos de sua obtenção no processo, é a aplicação da absolvição do acusado em homenagem ao Estado Democrático de Direito.

Referências

CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2009.

GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006.

HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999.

HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

TARUFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2009.

Notas

1. TARUFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2009. p. 24.

2. “La epistemología contemporánea há mostrado la esencial relatividad del conocimiento en los campos más variados, relatividad que nace de la conciencia de su misma falibilidad, es decir, de la posibilidad de ser siempre parcial o totalmente refutado.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 21.

3.“Toda investigación se realiza dentro de un contexto que condiciona la búsqueda de la verdad. Por contexto debe entenderse no solo los médios cognoscitivos disponibles, sino también el conjunto de las presuposiciones, conceptos, nociones y reglas, es decir, el conjunto de las estructuras de referencia en función de las cuales se construyen las versiones de los hechos.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 26.

4. MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. Citado por GUZMAN, Nicolás.La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 27.

5. “La probabilidad puede ser positiva, en el sentido de que los elementos existentes en la causa tornan más probable que el hecho haya existido y que el imputado haya sido su autor, que los elementos que demostrarían lo contrario. La probabilidad será entonces negativa cuando, por el contrario, los elementos reunidos hagan pensar que es más probable que el hecho no haya existido o que el imputado no haya sido su autor.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 28-29.

6. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 29.

7. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 29.

8. “Tal vez hoy ya no tenga demasiado sentido hacer esta división entre verdad material y verdad formal, porque lo cierto es que los mecanismos de que se nutre actualmente el processo penal – y los limites que enfrente en respeto de las garantías – para conocer la verdad y el grado al que há llegado la discusión epistemológica, solo permiten hablar de verdaderas relativas que distan mucho de las míticas verdades absolutas con las que generalmente se emparenta la verdad real (y el modelo inquisitivo en que ella es buscada).” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 31.

9. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p.  36.

10. Nesse sentido Habermas e também CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 110.

11. CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 111.

12. CONDE, Francisco Muñoz. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2007. p. 115.

13. Principalmente em sua obra Teoria do agir comunicativo, Habermas estabelece sua proposta a partir da convivência da dimensão instrumental com a dimensão comunicativa da racionalidade. Ao contrário da primeira, esta é formulada a partir de uma teoria da ação. A razão humana para o filósofo foi distinguindo-se em instrumental e comunicativa a partir de sua constante evolução, distanciando-se das teorias precedentes que apontavam para uma preponderância da razão instrumental como paradigma de racionalidade. “Desde a perspectiva dos participantes, ‘entendimento’ não significa um processo empírico que dá lugar a um consenso fático, senão um processo recíproco de convencimento que coordena as ações dos distintos participantes à base de uma motivação por razões. Entendimento significa a comunicação orientada por um acordoválido.” (HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa I:racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p. 500)

14. “Es por ello que resulta tan importante que, para que la prueba no pierda su función cognoscitiva y para que pueda predicarse la verdad tanto de la hipotesis acusatória (quaestio factis) como de la calificacíon jurídica que corresponde al hecho comprovado (quaestio juris), la norma esté dotada de precisión empírica y que se refiera solo a hechos exactamente determinados y no cuestiones valorativas, pues en caso contrario la cuestión se resuelve solamente en función de valoraciones del juez que, como tales, serán inevitablemente discrecionales.” GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 69.

15. A vagueza dos termos jurídico é levantada por Hart nos próprios questionamentos que perpassam seu estudo sobre o conceito de Direito. Afirma Hart que “[n]ão existe literatura abundante dedicada a responder às perguntas ‘O que é química?’ ou ‘O que é medicina?’, como sucede com a questão ‘O que é direito?’. Umas escassas linhas na página inicial de qualquer manual elementar, eis tudo o que o estudante dessas ciências é solicitado a considerar; e as respostas que lhe são dadas são de diferente natureza das ministradas ao estudante de direito. Ninguém considerou ser esclarecedor ou importante insistir em que a medicina é ‘aquilo que os médicos fazem acerca das doenças’, ou ‘um prognóstico sobre o que os médicos farão’ ou declarar que aquilo que é normalmente reconhecido como parte característica e central da química, digamos o estudo dos ácidos, na realidade não faz de modo algum parte da química. Todavia, no caso do direito, têm-se dito com frequência coisas que à primeira vista parecem tão estranhas como essas, e não só são ditas, como até sustentadas com eloquência e paixão, como se fossem revelações de verdades sobre o direito, obscurecidas durante muitos anos por erros graves sobre a sua natureza essencial.” HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 5.

16. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 75.

17. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemología jurídica. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 75.

18. “Todo esto significa que en el derecho penal, puesto que la taxatividad y por tanto la verificabilidad del supuesto típico, es la principal garantia del imputado frente al arbítrio, la fuente de legitimación sustancial, tanto interna como externa, se identifica en gran medida con la formal de la máxima sujeción del juez a la ley, tal como resulta asegurada por la estricta legalidad y en consecuencia por la estricta jurisdiccionalidad penal.” FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2009. p. 544.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abr. 2012. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS