A Lei nº 12.382/2011: questões relevantes

Autor: Amir José Finocchiaro Sarti

Desembargador Federal do TRF-4 aposentado, Advogado

Autor: Saulo Sarti

Especialista em Direito Penal Empresarial - PUC/RS, Advogado

 publicado em 30.08.2012


Introdução

O presente texto tem por objeto realizar uma breve abordagem sobre a evolução legislativa que culminou na Lei 12.382/2011, notadamente acerca dos critérios adotados para a suspensão e a extinção da punibilidade nos crimes tributários e também na apropriação indébita previdenciária.

Sabe-se a nova Lei 12.382/2011 trouxe modificações que merecem uma análise cuidadosa, a começar pela alteração do marco temporal para as benesses concedidas, já que agora dependem do ingresso no Programa de Parcelamento antes do recebimento da denúncia.

Portanto, é essencial fixar o momento em que – efetivamente – se dá o recebimento da denúncia, pois serão profundamente diferentes as consequências práticas dessa definição para o acusado, conforme a adesão ao Programa de Parcelamento ocorra no prazo da resposta à acusação ou antes do primeiro despacho determinando a citação.  

Além disso, também constitui questão relevante determinar a natureza jurídica do benefício legal para estabelecer a regra de incidência da norma. E será inevitável examinar o momento consumativo dos delitos referidos, porquanto a tese da condição objetiva de punibilidade aplica-se somente aos crimes materiais.

Da evolução legislativa

A Lei 8.137/90 – que trata dos crimes contra a ordem tributária – dispõe em seu artigo 14 que “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”. Todavia, tal comando restou revogado pela Lei 8.383/91.

Conforme leciona Hugo de Brito Machado, na época em que vigorou essa norma,

            “ocorria a extinção da punibilidade mediante a reparação integral dos prejuízos decorrentes do cometimento delituoso, antes do recebimento da denúncia. Estava de certa forma preservado o direito do contribuinte ao acertamento administrativo da relação tributária. Esse dispositivo albergava razoável, se não a melhor, solução legislativa, porque evitava o constrangimento do sujeito passivo da relação tributária, preservando o direito deste ao questionamento administrativo, e preservava também os interesses do fisco, garantindo o recebimento integral do crédito tributário que a Administração a final tivesse como efetivamente devido. Mesmo assim teve existência breve, vigorando apenas até o final de 1991. Com efeito, a Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, em seu art. 98, revogou expressamente o art. 2º da Lei nº 4.729/65 e o art. 14 da Lei nº 8.137/90. Era a implantação do denominado terrorismo fiscal.” (http://www.ipclfg.com.br/artigos-de-convidados/a-extincao-da-punibilidade-pelo-pagamento-nos-crimes-tributários-e-a-lei-12-3822011. Acessado 09 abr. de 2012).

O art. 3º da Lei 8.696, de 26.08.93, manteve o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade. No entanto, o Poder Executivo acabou vetando o referido dispositivo. De acordo com Hugo de Brito Machado,

            “preconizava, como se vê, o Chefe do Poder Executivo, o terrorismo fiscal, com a utilização da ameaça de ação penal como forma de intimidação, que certamente acreditava capaz de resolver o problema da sonegação fiscal. A ação penal teria de ser promovida simultaneamente com a ação fiscal e, sendo assim, não se poderia admitir a extinção da punibilidade depois de proposta a ação penal (op. cit.).”

Pouco mais de dois anos depois, porém, voltava a prevalecer o princípio liberal, e mais uma vez o legislador reconhecia o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade, o que ocorreu com a entrada em vigor da Lei 9.249/95, que veio para “alterar a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras providencias”, estabelecendo expressamente, no artigo 34, que “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137/90 e na Lei 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou da contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia” (art. 34).

Vale referir que, apesar de o dispositivo citado mencionar expressamente os crimes previstos nas Leis 8.137/90 e 4.729/65, a doutrina e a jurisprudência não hesitaram em estender as causas de suspensão e extinção da punibilidade também para o crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias, que na época era tipificado no art. 95 da Lei 8.212/91, haja vista que a conduta nele prevista é, em tudo e por tudo, assemelhada àquela descrita no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90.

Aliás, outro entendimento não poderia subsistir, pois o artigo 34 da Lei 9.249/95 prestigiava até mesmo crimes cometidos mediante fraude (Lei 8.137/90, art. 1º). E, se até crime tributário praticado com meio ardiloso era favorecido com extinção da punibilidade, não seria razoável recusar igual benesse para a omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias, ordinariamente praticada sem o uso de qualquer artifício.

Seja como for, o fato é que – enquanto vigorou a referida norma – o entendimento se firmou a fim de que o mero parcelamento já fosse suficiente para extinguir a punibilidade, pois o ato de “parcelar” foi considerado equivalente à conduta de “promover o pagamento”, que representava o elemento nuclear do preceito legal.  Outro argumento utilizado foi o de que o parcelamento implicava novação (ou seja, a assunção de nova obrigação em substituição à velha, que se extingue) e – estando suprimida a obrigação tributária – estaria extinta também a punibilidade no processo penal.

Por fim, considerava-se que “o parcelamento do débito, antes do oferecimento da denúncia, evidencia que os acusados não agiram com a intenção de apropriar-se dos valores descontados” – ou seja, demonstrada a ausência de dolo, não haveria sequer o próprio fato típico.

Em linha oposta, os que não concordavam com a extinção da punibilidade pelo simples parcelamento sustentavam que o parcelamento (moratória) é meramente causa de suspensão da exigibilidade do crédito (Código Tributário Nacional, art. 151, inc. I) e não de extinção, que só pode ocorrer pelo pagamento (CTN, art. 156). Portanto, só o pagamento extinguiria o crédito tributário e, consequentemente, a punibilidade do crime respectivo. Dizia-se, ainda, que o descumprimento do parcelamento acarretaria a sua rescisão, remanescendo o crédito que estava suspenso, pelo que não haveria como falar em novação. 
 
Essas divergências permaneceram até a entrada em vigor da Lei 9.964/00, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal – Refis” e, no artigo 15, consignou:

          “É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 e no artigo 96 da Lei 8.212/91, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal.”    
               
Por sua vez, o parágrafo 1º estabeleceu: “A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva”. O parágrafo 2º dispôs: “O disposto neste artigo aplica-se também a programas de recuperação fiscal instituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, que adotem, no que couber, normas estabelecidas nesta Lei”. E o parágrafo 3º previu:

           “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia”.  

A partir desse diploma legal, ficou expressamente superada a questão: a suspensão da punibilidade ocorre quando é promovido o parcelamento e se mantém “durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis”; a extinção da punibilidade só irá acontecer quando “o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”.

Como visto, a mencionada legislação fez por estabelecer expressamente uma condição temporal (a adesão ao programa deve ocorrer antes do recebimento da denúncia) e deixou claramente definido que suas regras também incidem no crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias.

De imediato firmou-se a tese de que a lei poderia ser aplicada retroativamente para abranger os fatos típicos praticados antes de sua entrada em vigor, mas desde que a adesão ao Programa de Recuperação Fiscal – Refis tivesse ocorrido antes do recebimento da denuncia.

Três anos depois, foi publicada a Lei 10.684/03, que veio alterar a legislação tributária, dispondo sobre“parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional do Seguro Social e dá outras providencias”, e logo foi apelidada de “Refis II”, prevendo expressamente no seu artigo 9º que “é suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337-A, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento”. No parágrafo 1º, reafirmou que “a prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva”, e no 2º que “extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”.

Tendo a lei suprimido a expressão “incluídas no regime de parcelamento previsto por esta lei”, que existia na MP nº 107/03 – depois foi transformada na referida Lei 10.684/03 –, passou-se a entender que estará suspensa a pretensão punitiva enquanto o devedor estiver incluído no regime de parcelamento, qualquer que fosse, e não apenas o programa vulgarmente chamado de “Refis II”. 

Nota-se ainda que, após o advento do “Refis II”, perdeu relevância o momento temporal da concessão do benefício, pois não havia qualquer referência na lei sobre a necessidade de adesão ao parcelamento antes do recebimento da denúncia ou do início da ação fiscal.

Outra questão que agitou os Tribunais, na época, estava no alcance dos benefícios penais: se apanhavam apenas o crime previsto no caput do artigo 168-A (“deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e na forma legal o convencional”) ou se atingiam também os delitos tipificados no parágrafo 1º desse artigo, especialmente a hipótese descrita no inciso I: “Nas mesmas penas, incorre quem deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros, ou arrecadada do público” – que é a conhecida figura da omissão de recolhimento das contribuições previdenciária. Mediante interpretação extensiva in bonan partem, restou pacificado o entendimento de que era lícito aproveitar as causas de suspensão e extinção da punibilidade também para os crimes previstos no parágrafo do dispositivo legal.

Naturalmente, todas essas considerações aplicavam-se, com os necessários ajustes, ao problema da extinção da punibilidade “quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios” (artigo 9º, § 2º) nas condenações já transitadas em julgado (Código Penal, art. 2º, parágrafo único), pois o benefício pode ser concedido mesmo na fase de execução, sendo irrelevante, para esse efeito, a diferença entre pretensão punitiva e pretensão executória. 

Cumpre assinalar que a expressão “pagamento integral” só pode ser referida aos débitos que deram origem à ação penal, sendo despicienda a eventual existência de outras dívidas pendentes, pois, obviamente, o processo penal não pode ser usado como instrumento para a cobrança forçada de créditos tributários (CF, art. 5º, LIV).

Para os que estivessem sendo processados criminalmente, mesmo que o seu ingresso no Refis tenha sido posterior à denúncia, era permitido, de forma expressa, transferir o saldo devedor para o novo regime de parcelamento (Lei 10.684/03, art. 2º), com a consequente suspensão do processo e da prescrição, bem como extinção da punibilidade após o adimplemento total do débito.  Além disso, qualquer parcelamento anterior, não integralmente quitado, ainda que cancelado por falta de pagamento, não impedia a inclusão do saldo devedor nesse novo sistema.

Vale referir, neste passo, que a Medida Provisória 303 criou nova modalidade de parcelamento, chamada de “Refis III”, mas não continha disposições que pudessem se refletir na seara criminal. Tratava-se apenas de nova modalidade de parcelamento de débitos tributários federais, permanecendo íntegra a disciplina da Lei 10.684/03 quanto aos efeitos penais.

No ano de 2009, foi publica a Lei 11.941, que voltou a tratar do Programa de Recuperação Fiscal – Refis, em virtude da conversão da MP 449/2008. Essa lei – que foi, por sua vez, apelidada de “Refis da Crise” – trouxe novas formas de remissão, quitação e parcelamento de débitos fiscais com a Receita Federal do Brasil, vencidos até 30 de novembro de 2008.

O seu grande diferencial foi que tanto pessoas jurídicas quanto pessoas físicas puderam enquadrar débitos pendentes e consolidados em programas de recuperação de créditos fiscais anteriores (tais como o Refis/2003, o Paes/2003 e o Paex/2006), mesmo que tenha havido exclusão dos respectivos programas de parcelamento, bem como débitos relativos ao aproveitamento indevido de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI oriundos da aquisição de matérias-primas, material de embalagem e produtos intermediários relacionados na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – Tipi. A mesma disciplina passou a valer para o parcelamento de contribuições previdenciárias.

Essa Lei estabelece, no seu art. 67, que “na hipótese de parcelamento do crédito tributário antes do oferecimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de inadimplemento da obrigação objeto da denúncia”.O art. 68  diz que

“é suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940  Código Penal , limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1º a 3º desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei.” 

O parágrafo único prevê que  “a prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva”. O art. 69 determina que

 “extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”. 

E, no seu parágrafo único, estabelece que, “na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art. 1º desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores correspondentes à ação penal”. 

Como o Fisco demorou certo tempo para promover a “fase de consolidação” dos débitos (“Art. 11.  O parcelamento terá sua formalização condicionada ao prévio pagamento da primeira prestação, conforme o montante do débito e o prazo solicitado, observado o disposto no § 1º do art. 13 desta Lei. Art. 12.  O pedido de parcelamento deferido constitui confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do crédito tributário, podendo a exatidão dos valores parcelados ser objeto de verificação.  § 1o  Cumpridas as condições estabelecidas no art. 11 desta Lei, o parcelamento será: I – consolidado na data do pedido; e II – considerado automaticamente deferido quando decorrido o prazo de 90 (noventa) dias, contado da data do pedido de parcelamento sem que a Fazenda Nacional tenha se pronunciado.  § 2º  Enquanto não deferido o pedido, o devedor fica obrigado a recolher, a cada mês, como antecipação, valor correspondente a uma parcela”), não foram raras as decisões determinando a retomada de processos criminais que estavam suspensos em virtude de parcelamentos anteriores, haja vista que o inciso III do artigo 3º desse diploma legal estabelecia expressamente que “a opção pelo pagamento ou parcelamento de que trata este artigo importará desistência compulsória e definitiva do Refis, do Paes, do Paex e dos parcelamentos previstos na Lei nº 8.212/91, e no artigo 10 da Lei nº 10.522/02”. 

Assim, houve quem entendesse ser indispensável a prova da consolidação dos débitos, oportunidade em que se teria a inclusão formal no novo programa, o que gerava uma situação extremamente angustiante para os aderentes, pois o novo parcelamento importava em

“desistência compulsória e definitiva” de outros programas, supostamente impedindo que fosse mantida a suspensão da punibilidade e, portanto, do processo criminal enquanto não tivesse havido a tal “consolidação dos débitos”. É dizer, até que isso acontecesse, não restava qualquer parcelamento em vigência.

Todavia, o entendimento que acabou consagrado, pelo menos no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, foi no sentido de que,

“comprovada a adesão da empresa ao parcelamento instituído pela Lei nº 11.941/2009, cabível a suspensão do feito e do prazo prescricional, nos termos do art. 68 da Lei nº 11.941/2009, independentemente da identificação dos débitos a serem parcelados, o que se dará na fase de consolidação, seguindo cronograma estabelecido pelo Fisco (Correição Parcial nº 0014796-95.2010.404.0000/PR, Desembargador Federal Néfi Cordeiro).”

De todo modo, excetuando-se a questão peculiar sobre a necessidade, ou não, de consolidação definitiva dos débitos para que o aderente pudesse obter os benefícios penais, apesar de já se ter optado pela migração para o novo programa, a verdade é que a referida legislação não trouxe alterações de maior profundidade, eis que ficaram mantidas as disposições da Lei 10.684/03 no que toca à suspensão e à extinção da punibilidade.

Aspectos relevantes da Lei 12.382/2011

Surge, então, a Lei 12.382/2011, que de início pode gerar dúvidas quanto a sua constitucionalidade, em vista do parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal (“Lei complementar disporá sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis”)e da Lei Complementar 95/98, que estabelece em seu art. 7º, inc. II: “II  a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.

É que a lei em questão teve origem na Medida Provisória 516/10, que instituiu um novo valor para o Salário Mínimo e, assim, careceria de pertinência temática, pois realmente a mudança das regras de suspensão e extinção da punibilidade dos crimes tributários nada tem a ver com a fixação do salário mínimo. Ainda assim, parece evidente que a incongruência verificada decorre diretamente da Lei Complementar 95/98 e não da Constituição Federal, afrontada apenas de modo reflexo, o que, evidentemente, basta para afastar a hipótese de inconstitucionalidade. 

Superada essa questão inicial, importa chamar a atenção para o artigo 6º do referido diploma legal, que deu nova redação ao art. 83 da Lei 9.430/1996, prestigiando o entendimento de que é necessário o prévio exaurimento da fase administrativa como condição para o início da ação penal por crime tributário – aliás, nos termos da Súmula Vinculante 24 do STF (“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”) – e dispondo, no § 2o, que

“é suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.”

Como se vê, o legislador voltou a exigir expressamente que a adesão aos programas de parcelamento, para fins de suspensão da pretensão punitiva, tem que ocorrer antes do início da ação criminal, nos mesmos termos da antiga Lei 9.964/00.

No que se refere à extinção da punibilidade, a nova legislação não exige pagamento integral antes do recebimento da denúncia (Lei 9430/96, art. 83, § 4º):

“Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.”

A nova lei diz claramente que o pagamento integral da dívida “objeto de concessão de parcelamento” extingue a punibilidade, mas não explicita se igual benefício também alcança dívida que não tenha sido incluída em parcelamento – como, por exemplo, no caso de pagamento direto e imediato da integralidade de dívida não parcelada.

Há entendimento no sentido de que nada adiantaria a quitação do débito após o recebimento da denúncia porque a norma em vigor “corrigiu, em suma, o exagero da liberalidade da extinção da punibilidade a qualquer tempo, que não incentivava o pagamento antecipado nem permitia uma administração mais racional dos recursos da Justiça Penal” (BALTAZAR JR. Estado de Direito, n. 31, a.v, p. 9, 2011).   

Contudo, salvo melhor juízo, tal solução não se mostra imune a críticas: se a lei favorece quem obtém a quitação de dívida objeto de parcelamento, com muito mais razão também deverá contemplar o devedor que efetua o pagamento integral do seu débito, sem parcelamento, e provavelmente em prazo menor, satisfazendo os fins visados pelo sistema.

Em termos práticos, é possível afirmar que o acusado tem o direito de esperar o recebimento da denúncia para, só em momento posterior, quitar integralmente os débitos que deram origem à ação penal e, assim, ver extinta a punibilidade do crime porque a nova lei não contém preceito revogando o artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei 10.684/2003.

Acerca dessa problemática, sustenta Hugo de Brito Machado que,       “considerando-se que a regra do artigo 6º, que antes da Lei 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, estava no parágrafo único, já havia sido alterada pelo § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03, com intuito de se admitir a extinção da punibilidade pelo pagamento feito a qualquer tempo, agora será suscitada a questão de saber se voltamos, ou não, à situação na qual o pagamento somente operava a extinção da punibilidade se efetuado antes do recebimento da denúncia. (...) Realmente, quem pretender sustentar que ocorreu nova alteração da disciplina do pagamento como causa de extinção da punibilidade, dirá que o § 6º do art. 83 da Lei nº 9.430/96 é uma regra nova, que revoga a regra que consagrava a extinção da punibilidade pelo pagamento feito a qualquer tempo. Em sentido oposto, quem pretender sustentar que não ocorreu tal revogação, dirá que a Lei nº 12.385, de 25 de fevereiro de 2011, ao se reportar ao § 6º do art. 83 da Lei nº 9.430/1996, não alterou a regra do § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03, porque a ela não fez nenhuma referência, nem explícita nem implícita, porque nem ao menos referiu-se ao conteúdo do mencionado § 6º do art. 83 da Lei nº 9.430/96. Disse apenas que esse dispositivo ficava renumerado. Ressalte-se que na Lei nº 12.382/11 não existe sequer uma regra dizendo que é restabelecido o dispositivo, vale dizer, o parágrafo único do art. 83 da Lei nº 9.430/96. Simplesmente renumerou esse dispositivo. Por outro lado, ao cuidar da revogação de dispositivos anteriores diz apenas, em seu art. 8º, que fica revogada a Lei nº 12.255, de 15 de junho de 2010. Não contém regra revogando o § 2º do art. 9 da Lei nº 10.684/03, nem pelo menos a regra usual a declarar revogadas as disposições em contrário. Assim, parece-nos que o melhor entendimento é no sentido da subsistência da regra que afirma a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários. Aliás, na hipótese mais pessimista, teríamos de concluir que a Lei nº 12.382/11 suscita dúvida sobre a subsistência da extinção da punibilidade pelo pagamento feito depois de recebida a denúncia. E, como é sabido de todos, em Direito Penal a dúvida deve ser resolvida a favor do réu.” (op. cit.)

Considerando que, segundo a nova lei, só haverá suspensão da punibilidade nos casos em que o pedido de parcelamento “tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal”, a questão do momento em que ocorre o recebimento da denúncia ganhou especial importância após a alteração do rito do procedimento comum ordinário, pela Lei 11.719/08.

Na prática, isso influi decisivamente na defesa dos acusados por crimes tributários, pois, se for entendido que o recebimento da denúncia ocorre no momento do artigo 399 do CPP, evidentemente poderá o réu, após a citação, requerer o parcelamento durante o prazo para a resposta à denúncia.

Nesse sentido,

“o recebimento da denúncia a que se refere o dispositivo é aquele constante na decisão judicial que recebe a denúncia (CPP, art. 399), após a resposta do acusado (CPP, arts. 396 e 396-A) e não a do oferecimento da denúncia mediante ‘protocolização’ na Vara Criminal ou distribuição. O denunciado poderá efetuar o pagamento ou requerer o parcelamento no prazo para resposta. Uma vez comprovado o pagamento, consultando-se a autoridade fazendária sempre que houver qualquer dúvida a respeito, o Juiz deverá absolver sumariamente o acusado, em razão da extinção da punibilidade. Em caso de parcelamento, suspende-se a pretensão punitiva do Estado.” (BALTAZAR JR. Estado de Direito n. 31, a. v, p. 9, 2011.)
  
Porém, se o entendimento for de que “o momento adequado da denúncia é o imediato ao oferecimento da acusação e anterior à apresentação da resposta à acusação, nos termos do artigo 396 do CPP” (STJ, 5ª Turma. HC nº 144.104-SP, Rel. Jorge Mussi), nesse caso o acusado deverá formalizar o pedido de parcelamento, no máximo, até a prolação do despacho que ordenar a citação do acusado. Desnecessário enfatizar as consequências práticas das diferentes posições. 

De acordo com Clóvis Alberto Volpe Filho, são conhecidas três orientações sobre o tema:

 “1. O recebimento ocorre no art. 396 do CPP: Esse entendimento pode ser encontrado na obra de Andrey Borges de Mendonça, o qual afirma que, ao determinar a citação, o Magistrado já está fazendo inequívoco juízo positivo de admissibilidade, pois não se pode conceber que haja a citação sem que tenha ocorrido o anterior recebimento. Logo, como a formação do processo se completa pela citação (art. 363, CPP), obviamente o recebimento da denúncia deve precedê-la. E, caso se entendesse que a citação ocorreria antes do recebimento da denúncia, existiria uma situação esdrúxula, pois o processo estaria com sua formação completa, sem que o juiz tivesse recebido a denúncia. Como último argumento, afirma que seria impossível absolver sumariamente, após a citação e o oferecimento da resposta, sem o anterior recebimento da denúncia. 2. O recebimento ocorre no art. 399 do CPP: Tal entendimento foi encampado por Geraldo Prado, o qual buscou prestigiar a configuração normativa que assegura de forma mais efetiva o contraditório. Nessa visão, e amparado na ideia de que norma não são textos, mas sentidos construídos a partir de interpretação sistemática, reconhece que o âmbito normativo instituído pelo art. 396 do CPP está incorporado pelo mais extenso programa delimitado pelo art. 399. Com isso, e dando efetividade à norma contida no art. 363 do mesmo diploma legal, será possível com a citação e a defesa examinar, para além das causas de rejeição da inicial previstas no art. 395 do Código, as hipóteses de absolvição cuja admissão decorra da defesa preliminar. 3. O recebimento ocorre em ambos os artigos: Antonio Scarance Fernandes e Mariângela Lopes são autores da tese que defende um recebimento preliminar e um definitivo. Entendem que são atos distintos, mas com a mesma finalidade: análise da possibilidade de ser aceita a acusação. Há, em verdade, dois juízos de admissibilidade, corroborando a ideia de juízos de formulação progressiva. Alegam que não teria sentido abrir oportunidade para o acusado oferecer sua resposta, se o juiz não pudesse mais rejeitar a denúncia ou a queixa.” (Qual o momento do recebimento da denúncia ou queixa? (interpretando os arts. 396 e 399 do CPP). Disponível em: < www.ibccrim.org.br.> Acesso em 09 abr. de 2009).

A conclusão do autor, entretanto, é no sentido de que

“o recebimento ocorre no art. 396 do CPP, mas por argumentos diferentes daqueles elencados por Andrey Borges de Mendonça, ainda que não sejam excludentes. (...) No nosso entender, é diáfana a intenção do legislador em definir no art. 396 do CPP o momento do recebimento da denúncia ou queixa. Primeiro porque fez inserir no bojo da citada norma a mesóclise ‘recebê-la-á’, que obviamente traduz a ideia de recebimento. Não há dúvidas que o juiz, se não rejeitar, recebe a denúncia. Não existe alternativa quando da não rejeição, somente o recebimento. Trata-se de um verbo que impõe uma obrigação. (...) Para compatibilizar o recebimento na fase do art. 396 do CPP, como quer o legislador, basta compreender a natureza do ato de recebimento. Ainda que exista expressamente o recebimento no art. 399, esse ato não pode se repetir, pois seus efeitos já se exauriram anteriormente. A determinação posterior passa a ser letra morta, face ao disposto no art. 396 do CPP. Quais os efeitos jurídicos do ato que recebe a denúncia? Possibilita a citação e interrompe a prescrição. Se esse ato já gerou ambos os efeitos, por qual razão repeti-lo? Caso o recebimento ocorresse após o oferecimento da resposta do acusado, não poderia se falar em citação no art. 396 do CPP, mas em notificação, como fez a Lei Antidrogas. (...) É cediço que, mesmo após o recebimento da denúncia, em qualquer fase processual, pode o Juiz ou o Tribunal reconhecer, por exemplo, ausência de qualquer das condições da ação. Desse modo, o juízo de formulação progressiva pode ser realizado na fase da absolvição sumária (art. 397 do CPP), em que o juiz não está impossibilitado de reconhecer uma das hipóteses de rejeição da denúncia. Porém, não se pode mais falar em rejeição da denúncia; fala-se em extinção do feito. Dito de outra forma: após o recebimento da denúncia e a citação, ofertada a resposta por escrito, o juiz pode: extinguir o processo, por reconhecer uma das hipóteses do art. 395 do CPP ou absolver sumariamente o réu, embasando-se no art. 397 do mesmo Diploma Legal. Não extinguindo e nem absolvendo sumariamente, o Juiz deverá designar audiência de instrução e julgamento, não podendo se falar em recebimento, pois esse já ocorreu.” (op. cit.).

Ressalte-se, ainda, que o mero protocolo do pedido já é suficiente para suspender a pretensão punitiva, não havendo necessidade de aguardar a inclusão formal no programa, pois esse momento pode demorar bastante em virtude da burocracia administrativa.

Segundo Baltazar Jr.,

 “em caso de parcelamento, o que se exige é a formalização, isto é, o protocolo do pedido de parcelamento, antes do recebimento da denúncia, e não a sua aceitação e inclusão no programa por ato da autoridade administrativa fazendária. Com efeito, não raro há uma certa demora da administração em processar o pedido e verificar o atendimento de todas as condições, mas isso não poderá gerar prejuízo ao investigado ou acusado que formulou o pedido, devidamente instruído, antes do recebimento da denúncia. Uma vez deferido o parcelamento, os efeitos da decisão administrativa retroagirão. Se indeferido, prosseguirá a ação penal.” (BALTAZAR JR. Estado de Direito n. 31, a. v, p. 9, 2011.)
 
Outra questão que merece uma ponderação mais detida diz respeito ao momento da incidência: se a lei deve ser aplicada de imediato ou só atinge os crimes praticados após a sua entrada em vigor. Para tal fim, é preciso verificar se a norma em debate tem natureza processual ou se é de índole penal-material.

Com efeito, norma genuinamente processual é aquela que trata de procedimentos, atos processuais, técnicas do processo. Para esse tipo de regra, vale o princípio da aplicação imediata ou tempus regit actum: a norma processual aplica-se imediatamente aos processos em andamento, sem prejuízo da validade dos atos processuais praticados anteriormente. Já as normas de natureza penal pura são aquelas que dispõem sobre direito o material, tratando de tipos penais, penas, regimes, substituição de penas, etc. Para essa espécie, vale a regra da retroatividade da lei mais benéfica e da ultratividade da lei mais benigna.

Por fim, existem as normas de cunho misto, porque não se enquadram puramente em nenhuma das outras categorias. Elas afetam ao mesmo tempo o poder de punir e também o procedimento penal. Assim, de acordo com a corrente majoritária, são normas de natureza processual-material as que estabelecem condições de procedibilidade, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidades de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberdade do agente. Para esta classe de norma, aplica-se o mesmo critério do Direito Penal, ou seja, irretroatividade da lex gravior e ultratividade da lex mitior

A melhor doutrina afirma que a norma em questão, como diz respeito à punibilidade do agente, possui a natureza material. Desse modo, “por ser mais gravosa, só se aplica aos crimes praticados após a sua vigência. Para os anteriores, continua aplicável a Lei 11.941 de 2009” (PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 4. ed. Livraria do Advogado. p. 391). Na mesma linha, Baltazar Jr.:

 “como a nova lei trata de uma causa de extinção da punibilidade, é considerada lei penal, e, sendo desfavorável, não se aplica aos fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, em relação aos quais o pagamento ou o parcelamento, a qualquer tempo, atrairão os efeitos penais da extinção da punibilidade ou da suspensão do processo e, do prazo prescricional, conforme o regramento anterior.” (Estado de Direito, n. 31, a.v, p. 9, 2011.)

Nesse sentido, ainda, já decidiu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região que a Lei 12.382/2011 é “norma processual administrativa de caráter penal material” e por isso “a aplicação do § 1º do artigo 83 da Lei nº 9.430/1996, acrescentado pela Lei nº 12.382/2011, somente tem aplicação nos casos de parcelamento tributário após a sua entrada em vigor, ocorrida em 28 de fevereiro de 2011” (TRF 1º R. – Acr 0033690-28.2005.4.01.3800 – 4ª T. – Rel. Des. Fed. Mário César Ribeiro – Dje 12.01.2012).

Vencido o ponto, resta indagar em que momento se dá a consumação dos crimes tributários para determinar se a Lei 12.382/11 incide sobre fatos que ainda aguardam o final do procedimento administrativo para a constituição definitiva do crédito tributário ou se apenas pode atingir fatos relativos a créditos tributários já definitivamente constituídos.

A esse propósito, vale destacar que já     
 
 “consolidou-se nesta Corte Superior de Justiça o entendimento no sentido de que o termo a quo para a contagem do prazo prescricional no crime previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90 é o momento da constituição do crédito tributário, ocasião em que há de fato a configuração do delito, preenchendo, assim, a condição objetiva de punibilidade necessária à pretensão punitiva.” (STJ. HC 118736/BA. Relator Ministro Jorge Mussi. 5ª Turma. DJU 15.12.2009.)

De fato,

 “tradicionalmente, entendia-se, então, consumado o crime por ocasião do vencimento do prazo para pagamento. O STF, porém, no HC 81.611, antes referido, em que entendeu necessário o lançamento definitivo como condição objetiva de punibilidade para os crimes em questão, não se podendo, antes disso, oferecer denúncia, também firmou o entendimento de que é somente com o lançamento definitivo que o delito estará consumado, aí iniciando-se o prazo prescricional.” (BALTAZAR JR. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 464.)

Nessa esteira, a consumação do delito estaria subordinada a um fato externo à conduta do agente, embora,

 “do ponto de vista dogmático, essa decisão está sujeita às críticas de ignorar a diferença entre obrigação e crédito tributário, sendo este, e não aquela, constituído pelo ato administrativo do lançamento. Demais disso, subordina a consumação do delito a um fato externo do agente. É conveniente, por outro lado, na medida em que evita decisões conflitantes entre a administração tributária e o Poder Judiciário.” (BALTAZAR JR. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 453.)

Como se vê, a consumação dos crimes materiais contra a ordem tributária é questão que ainda parece longe de estar definitivamente resolvida na doutrina e na jurisprudência.

Certo, o egrégio Supremo Tribunal Federal, em célebre julgamento (HC 81.611, Pleno, Ministro Pertence), decidiu que

 “falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da Lei 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo... No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.” O precedente vem sendo sistematicamente acatado – sem maior debate – em todos os tribunais, inclusive no egrégio Superior Tribunal de Justiça.

Contudo, data maxima venia, se “não é dado ao Judiciário atuar como legislador positivo” (STF, RE 432.460, 2ª Turma, Ministro Cezar Peluso), então parece forçoso reconhecer que – enquanto não for alterado o Código Penal – ainda “considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (CP, art. 4º) e “a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: Ido dia em que o crime se consumou” (CP, art. 111, I).                   

Como ensina a melhor doutrina, “o art. 4º do CP manda considerar como momento do crime o da ação ou da omissão. Assim, se o agente atira na vítima e esta vem a falecer no hospital, um mês depois, o momento do crime é aquele em que houve a ação de atirar (conduta) e não o dia de seu resultado (morte)” (Celso Delmanto e outros. Código Penal Comentado. Revovar, 6. ed., p. 10).

O “tempo do fato punível é o momento em que o agente praticou a ação, isto é, em que se manifestou no mundo exterior a sua vontade, em que ele realizou o necessário movimento corpóreo, ou deixou de agir quando lhe cumpria fazê-lo. Nesse momento é que o agente põe a condição necessária à produção do resultado típico, manifestando, assim, a sua vontade contrária ao dever, que levantará contra ele a reação da ordem jurídica, e que, quando se pune a tentativa, basta, como ato executivo, para justificar a punição. A ação, portanto, não o resultado, é que constitui o ponto de referência para dizer-se qual é a lei que corresponde ao momento do crime” (Aníbal Bruno, Direito Penal, Forense, Parte Geral, Tomo I, p. 273).

 “A teoria aceitável, a que decorre como corolário mesmo do princípio da anterioridade da lei penal, é a da atividade. Como diz Von Bar (ob. cit., p. 81), desde que a lei penal é destinada a agir sobre a vontade, deve ser dada ao indivíduo a possibilidade de conhecê-la; de modo que, logicamente, o tempo do crime não pode ser outro senão o tempo da ação, isto é, o tempo do ato de vontade (Willensakt). Mesmo que a ação seja cometida quando já publicada a lex nova, mas ainda no seu período de vacatio, sobrevindo o resultado após o término deste, a solução não muda: deve entender-se que o fato, como um todo, sob o ponto de vista jurídico-penal, ocorreu ao tempo da lei antiga, que ainda não perdera o vigor ao tempo da ação” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Revista Forense, V. I, p. 109).

Naturalmente, isso repercute no problema da prescrição, que, aliás, não passou despercebido à Suprema Corte, como se pode colher dos debates travados no julgamento do HC 81.611. Advertido pelas objeções levantadas por seus colegas, o Ministro Sepúlveda Pertence arrematou a sua tese fazendo analogia com o antigo regime de licença prévia para processar Deputado ou Senador:

 “nada impede que a mesma conclusão se estabeleça, relativamente aos crimes materiais contra a ordem tributária, enquanto a definitividade do lançamento do tributo esteja obstado por iniciativa ou recursos administrativos do contribuinte (...) suspenso, por isso, o curso da prescrição.”

 O Ministro Cezar Peluso aderiu, dizendo que

“nem a questão do termo inicial da prescrição criminal apresenta dificuldades teóricas. Segundo o disposto no art. 11, I, do Código Penal, a prescrição penal só começa a correr da data em que o crime se consuma, e o crime só se consuma, como é óbvio, no momento em que se reúnem todos os elementos normativos do tipo. Está nisso a resposta, simples e clara, à indagação.”

O Ministro Marco Aurélio acrescentou: “Não cabe, aqui, o argumento ad terrorem da impunidade, porque não é dado falar em prescrição se a ação penal ainda não nasceu, por ausente a justa causa para a propositura”. E o Ministro Carlos Velloso juntou-se à maioria, assegurando que

 “não temos motivo para preocupação. É que a prescrição da pretensão punitiva começa a correr do dia da consumação do crime (Código Penal, art. 111, inciso I). E o crime se diz consumado quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (Código Penal, art. 14, inciso I). Ora, o crime de sonegação fiscal (...) só se consuma no momento em que a autoridade administrativa (...) diz, em definitivo, que houve supressão ou redução de tributo. Isso só ocorre com o lançamento ou com a constituição definitiva do crédito fiscal. É a partir daí (...) que começa a correr a prescrição.”           

Ninguém, no entanto, lembrou­-se de ventilar sequer o artigo 4º do Código Penal: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (CP, art. 4º).

Mas, se o lançamento definitivo constitui efetivamente condição objetiva de punibilidade – veja-se, entre inúmeros precedentes, o HC 84.262, STF, 2ª Turma, Ministro Celso de Mello –, então talvez seja apropriado observar que, segundo a eterna lição de Hungria,

 “às vezes, a punibilidade é condicionada a certas circunstâncias extrínsicas ao crime, isto é, diversas da tipicidade, da injuricidade e da culpabilidade. São as denominadas ‘condições objetivas de punibilidade’. Representam um quid pluris indispensável para que, à violação da lei penal, se siga a possibilidade de punição. Dizem-se condições objetivas porque são alheias à culpabilidade do agente. Nada têm a ver com o crime em si mesmo, pois estão fora dele” (op. cit. p. 204-205).

É dizer,  
                      
“para se considerar consumado o crime, não é necessário que o agente alcance tudo quanto se propusera (consumação não se confunde com exaurimento) ou que se aguarde o implemento de condição a que esteja subordinada a punibilidade (...) Assim, nos crimes falimentares ou nos de ação privada, a sentença declaratória de falência ou o oferecimento da ‘queixa’ condicionam a punibilidade, e não a consumação” (HUNGRIA. op. cit., p. 247).

A propósito, o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, declarou textualmente:

 “deixando para outras oportunidades a discussão acadêmica sobre a existência ou não, no caso, de condição objetiva de punibilidade, continuo a acreditar que a equação do problema é muito similar à dos crimes falimentares, com a única exceção de que, aqui, a condição é uma decisão administrativa, e lá, uma decisão judicial. Mas deixo isso para outra ocasião em que seja essencial discuti-lo.”

Em resumo – e com o devido respeito – por muito que possam, os Tribunais não podem, nem mesmo o egrégio Supremo Tribunal Federal, criar hipóteses de “suspensão da prescrição” em matéria penal não previstas na lei, nem alargar as causas impeditivas da prescrição, além dos limites legais (CP, art. 116), em um exercício de verdadeira analogia in malam partem.

 Está claro que essa discussão só importa para os crimes materiais, visto que os crimes formais e de mera conduta não precisam aguardar o esgotamento da esfera administrativa (Súmula 24 STF: “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”). 

Vale observar que os delitos previstos no artigo 1º da Lei 8.137 são crimes materiais e, por isso, sofrem a incidência da Súmula 24 do STF. Quanto aos crimes previstos no artigo 2º da Lei 8.137/90, sabe-se que o delito tipificado no inciso I “é crime formal e de atentado, que se consuma com a mera prática da conduta tendente a suprimir ou reduzir tributo, não sendo exigida a efetiva supressão ou redução, como se dá em relação aos crimes do artigo 1º que são materiais”(TRF2, HC 200702010159437, Maria Helena Cisne, 1ª TE, u., 16.01.08). Nesse sentido, deve-se “notar que a inexistência de lançamento definitivo não impede o oferecimento de ação penal pelo crime do artigo 2º, I, da Lei 8.137/90, que é considerado crime formal (STF, RGC 90532 ED/CE, Joaquim Barbosa, PI 23.09.09)”.

Já no caso do inciso II, “consuma-se o crime com o vencimento do prazo para o recolhimento do tributo descontado ou cobrado” (TRF4, AC 20017108005394-1, Tadaaqui Hirose, 7ª T., DJ 01.10.03). Segundo Eisele,

“embora o crime seja material, apenas se consuma com a ocorrência do resultado consistente no dano ao patrimônio público (motivo pelo qual a conduta implementadora do referido resultado é classificada como omissiva imprópria), o que acarreta a possibilidade, em tese, da ocorrência da figura da tentativa (art. 14, II, do CP), sua caracterização concreta é de difícil verificação” (EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 186).

 No que se refere ao inciso III, o crime consuma-se com as condutas de exigir, pagar e receber. A primeira modalidade é formal, enquanto as demais são materiais, admitindo tentativa: “o crime realizado mediante a conduta ‘exigir’ é classificado na modalidade formal, pois se consuma independentemente de eventual ocorrência de um resultado” (EISELE, p. 194). E, quanto ao inciso IV, adverte-se que, na primeira modalidade, a consumação dá-se com o vencimento do prazo para o emprego dos recursos; na segunda, com a efetiva aplicação em outra finalidade, admitindo-se a tentativa.

No que tange ao crime do artigo 168-A do Código Penal, “a orientação tradicional é no sentido de que o procedimento administrativo-fiscal não constitui pressuposto ou condição de procedibilidade da ação penal (STJ, RHC 23152/SP, Felix Fischer, 5ª T., DJu., 01.04.08), embora o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que

 “a leitura do artigo 168-A do Código Penal revela que se tem como elemento da prática delituosa deixar de repassar contribuições previdenciárias, indispensável, portanto, a ocorrência de apropriação dos valores, com inversão da posse respectiva (...) Ora, pendente recurso administrativo em que se discute a exigibilidade do tributo, tem-se como inviável a propositura de ação penal, a sequência quanto ao incidente alusivo ao recebimento da denúncia apresentada. Nem mesmo a manutenção do inquérito torna-se possível, sob pena de, sem motivo agasalhado pela ordem jurídica, preservar-se situação que degrada o contribuinte, que denigre o perfil do contribuinte” (INQ 2.537-GO, Ministro Marco Aurélio de Mello).

Esse precedente já tem sido prestigiado pelo Superior Tribunal de Justiça:

“Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa (...). Na mesma linha, o Pleno da Suprema Corte entendeu ser necessário o término do processo administrativo que discuta a exigibilidade do tributo no que pertine ao delito de apropriação indébita previdenciária” (AgRg no HC 109488/CE. Sexta Turma. Relatora Ministra Jane Silva. DJ 25.09.2008);

 “o crime de apropriação indébita previdenciária é espécie de delito omissivo material, exigindo, portanto, para sua consumação, efetivo dano, já que o objeto jurídico tutelado é o patrimônio da previdência social, razão porque a constituição definitiva do crédito tributário é condição objetiva de punibilidade, tal como previsto no art. 83 da Lei 9.430/96, aplicável à espécie. Precedentes do STF e do STJ” (HC 102596/SP. Quinta Turma. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. DJ 09.03.2010).

Concluindo, salvo melhor juízo, a consumação dos crimes tributários materiais, assim também o crime de apropriação indébita previdenciária, ocorre no momento em que se dá a supressão ou a redução do tributo, ou a falta de repasse ou de recolhimento da contribuição previdenciária, independentemente da constituição definitiva do crédito tributário, que condiciona “a punibilidade, e não a consumação” (HUNGRIA, op. cit., p. 247), para todos os efeitos legais.

Portanto, a Lei 12.382/11 aplica-se apenas aos fatos (leia-se: supressão ou redução de tributos) ocorridos após a sua entrada em vigor, não afetando fatos anteriores à sua vigência, mesmo que a constituição definitiva do crédito tributário ocorra depois, pois, como visto, consumação não se confunde com punibilidade.
 
Considerações Finais

Como se percebe, a alteração normativa sob análise apresenta questões complexas, que demandam um exame mais acurado. Notadamente os pontos referentes à sua constitucionalidade, ao momento em que a denúncia é recebida, à natureza jurídica da norma e sua aplicabilidade, além do debate sobre a consumação dos crimes materiais contra a ordem tributária, inclusive o crime de apropriação indébita previdenciária.

Enfim, pode-se concluir que o novo regramento instituído pela Lei 12.382/2011, se por um lado aponta para um retrocesso, tendo em vista que restabelece uma limitação temporal já superada desde a Lei 10.684/03, de outra banda, merece aplauso “uma vez que a limitação dos efeitos penais do pagamento ou do parcelamento aos casos em que isso se dá até o recebimento da denúncia representa um incentivo concreto ao pagamento e à reparação do dano. Beneficia-se o acusado que evita os ônus materiais e emocionais da ação penal, e também o Estado, que, além de receber a exação devida, deixa de despender recursos materiais e humanos com o processamento da ação penal” (BALTAZAR JR. Estado de Direito, n. 31, p. 9).

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    Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
    . . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2010. Disponível em:
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    REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
    PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS