Sujeição dos agentes políticos à Lei de Improbidade Administrativa(1)

Emerson Garcia

Autor: Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Consultor Jurídico da Conamp, Assessor Jurídico do CNPG

 publicado em 30.10.2012


Sumário:
Aspectos introdutórios. 1 Crimes de responsabilidade e atos de improbidade. 2 A interação entre texto e contexto e a sujeição dos agentes políticos à Lei nº 8.429/1992. Epílogo.

Aspectos introdutórios

A Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, ao dispor sobre os sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade administrativa, utilizou uma fórmula linguística de inegável amplitude. De acordo com o seu art. 2º, “[r]eputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”.

Como se constata, a concepção de agente público não foi construída sob uma perspectiva meramente funcional, sendo definido o sujeito ativo a partir da identificação do sujeito passivo dos atos de improbidade, havendo um nítido entrelaçamento entre as duas noções.

Além daqueles que desempenham alguma atividade na administração direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, os quais são tradicionalmente enquadrados sob a epígrafe dos agentes públicos em sentido lato, a parte final do art. 2º, ao mencionar as “entidades mencionadas no artigo anterior”, torna incontroverso que também poderão praticar atos de improbidade as pessoas físicas que possuam algum vínculo com as entidades que recebam qualquer montante do erário, quais sejam: a) empresa incorporada ao patrimônio público; b) entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual; c) entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual; d) entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público.

Os elementos que compõem o art. 2º da Lei nº 8.429/1992 conferem grande amplitude conceitual à expressão agente público. Se não vejamos:

a) lapso de exercício das atividades: irrelevante, podendo ser transitório ou duradouro;

b) contraprestação pelas atividades: irrelevante, podendo ser gratuitas ou remuneradas;

c) origem da relação: irrelevante, pois o preceito abrange todas as situações possíveis – eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo;

d) natureza da relação mantida com os entes elencados no art. 1º: mandato, cargo, emprego ou função.

Não obstante a amplitude do enunciado linguístico empregado no art. 2º da Lei nº 8.429/1992, o Supremo Tribunal Federal chegou a acolher uma tese no mínimo inusitada, qual seja, a de que agentes políticos não praticariam atos de improbidade, mas tão somente crimes de responsabilidade. Considerando que esse preceito normativo absorve todas as formas de investidura, referindo-se, expressamente, à eleição e à nomeação, alcançando, indistintamente, o exercício de mandato ou cargo, a única maneira de excluir os agentes políticos do seu alcance é sustentar a sua incompatibilidade com a ordem constitucional. Para demonstrar o desacerto dessa conclusão, teceremos algumas considerações em torno da distinção entre atos de improbidade e crimes de responsabilidade e, em um segundo momento, a respeito da funcionalidade da interpretação constitucional.

1 Crimes de responsabilidade e atos de improbidade

Os denominados crimes de responsabilidade encontram inspiração no processo de impeachment do direito anglo-saxão. O impeachment, desde a sua gênese, é tratado como um instituto de natureza político-constitucional que busca afastar o agente político de um cargo público que demonstrou não ter aptidão para ocupar, em nada se confundindo com outras esferas de responsabilização, como a penal. No direito penal, a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de outra função pública costumam ser meros efeitos da condenação, enquanto, no processo de impeachment, são os próprios fins perseguidos. Em um caso, busca-se punir o infrator; no outro, privá-lo do poder.(2)

O processo de impeachment tem raízes no direito inglês, em que os ministros do Rei eram responsabilizados, perante o Parlamento, pelos atos ilegais do governo. A regra “the king can do no wrong” não significava propriamente que todos os atos do Rei eram legais, mas, sim, que a responsabilidade recairia sobre seus ministros.(3)

O impeachment evoluiu de modo que todos os agentes públicos poderiam ser acusados, pela House of Commons, por traição, corrupção e outros crimes graves, sendo o julgamento de competência da House of Lords. No decorrer do Século XVII, o impeachment foi uma importante arma no combate às políticas reais impopulares. O último julgamento dessa natureza foi o de Lord Melville, que, em 1806, foi acusado de corrupção. Atualmente, o Parlamento possui mecanismos mais eficazes para apurar a responsabilidade ministerial (v.g.: voto de desconfiança), estando o processo de impeachment francamente ultrapassado. Trata-se de consequência lógica do fortalecimento do Parlamento, que assumiu uma posição hegemônica na escolha dos membros do governo, intensificando o seu controle e facilitando a sua substituição. 

A fórmula foi transposta para o direito norte-americano, em que o Presidente, o Vice-Presidente e todos os funcionários civis estão sujeitos a processo de impeachment por traição, corrupção ou outros graves crimes.(4) A exemplo do modelo britânico, as atividades de acusação e julgamento foram divididas entre as duas Casas Legislativas. É um processo de contornos essencialmente políticos, atuando como nítido elemento de contenção, pelo Poder Legislativo, dos atos discricionários emanados dos altos funcionários do País. A utilização do sistema presidencialista de governo, com uma separação mais intensa entre as funções executiva e legislativa, tem conferido uma singular importância ao processo de impeachment, sendo um dos principais canais de controle do Executivo.

No direito brasileiro, que se assemelha ao norte-americano no sistema de governo e nos objetivos a serem alcançados com processos dessa natureza, merece referência a Exposição de Motivos que acompanhou a Lei nº 1.079/1950. Ao tratar do iter a ser seguido na persecução dos crimes de responsabilidade, dispôs que “ao conjunto de providências e medidas que o constituem, dá-se o nome de processo, porque este é o termo genérico com que se designam os atos de acusação, defesa e julgamento, mas é, em última análise, um processo sui generis, que não se confunde e se não pode confundir com o processo judiciário, porque promana de outros fundamentos e visa outros fins”.(5)

Conquanto seja induvidoso que, no sistema brasileiro, a ratio da tipificação, do julgamento e do sancionamento dos crimes de responsabilidade seja cessar o vínculo jurídico-funcional do infrator com o Poder Público, impedindo o seu restabelecimento durante certo período, a sua natureza puramente política não é estreme de dúvidas. Afinal, em alguns casos, o processo e o julgamento são deslocados do Poder Legislativo para o Judiciário, o que confere um colorido distinto aos atos a serem praticados.

Assim, a primeira dificuldade que se encontra é identificar o que vem a ser crimes de responsabilidade, proposição que enseja não poucas dúvidas e perplexidades. Para o Presidente da República, crime de responsabilidade é uma infração político-administrativa que enseja a realização de um julgamento político (sem necessidade de fundamentação) perante o Senado Federal.(6) Para o Ministro de Estado, é uma infração associada a atos políticos e administrativos que redunda em um julgamento totalmente jurídico (com a necessidade de fundamentação) perante o Supremo Tribunal Federal.(7) Para o Prefeito Municipal, é um crime comum, que o expõe a uma pena de prisão.(8) E para os Senadores, Deputados e Vereadores? Não é nada. Em outras palavras, esses agentes não se enquadram na tipologia dos crimes de responsabilidade, estando sujeitos, unicamente, ao controle político realizado no âmbito do próprio Parlamento, o que, eventualmente, pode resultar na perda do mandato.(9)

Ainda merece referência a circunstância de que alguns agentes mencionados na Constituição da República como autores em potencial dos crimes de responsabilidade (v.g.: membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público – art. 52, II) sequer são alcançados pela tipologia da Lei nº 1.079/1950, o que simplesmente inviabiliza a sua punição.

A partir dessas constatações iniciais, já se pode afirmar que a natureza jurídica dos crimes de responsabilidade não comporta uma resposta linear, pois, para alguns agentes, trata-se de ilícito que ensejará um julgamento jurídico e, para outros, um julgamento político, isso para não falarmos daqueles que sequer são alcançados pela tipologia legal.(10)

A tese de que os agentes políticos somente podem praticar crimes de responsabilidade foi encampada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação nº 2.138/2002. Argumentou-se que boa parte dos atos de improbidade encontra correspondência na tipologia da Lei nº 1.079/1950,(11) que “define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento”, o que seria suficiente para demonstrar que o crime de responsabilidade absorveria o ato de improbidade. Além disso, o próprio texto constitucional, em seu art. 85, V, teria recepcionado esse entendimento ao dispor que o Presidente da República praticaria crime de responsabilidade sempre que atentasse contra a probidade na administração, o que possibilitaria o seu impeachment. Em consequência, prevaleceu a seguinte linha argumentativa: (1) o Tribunal é competente para processar os Ministros de Estado por crime de responsabilidade, (2) qualquer atentado à probidade configura crime de responsabilidade e, consequentemente, (3) o juiz federal de primeira instância, ao reconhecer-se competente para julgar Ministro de Estado que utilizara aviões da FAB para desfrutar momentos de lazer em Fernando de Noronha (praxe administrativa, segundo o agente), usurpou a competência do Tribunal.

A tese de que a Lei de Improbidade veicularia crimes de responsabilidade encontrou pouco prestígio na doutrina e nenhuma adesão na jurisprudência. Não se pode negar, no entanto, que o caso submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal, por envolver Ministro de Estado, representava uma situação verdadeiramente singular. Afinal, esse agente, a exemplos dos demais referidos no art. 102, I, c, da Constituição de 1988, quando praticam crimes de responsabilidade, são submetidos a um julgamento estritamente jurídico perante o Supremo Tribunal Federal. Desse modo, a partir de uma tipologia semelhante, o agente estaria sujeito a duas esferas distintas de responsabilização jurídica, a dos crimes de responsabilidade e a dos atos de improbidade, o que, aos olhos do Tribunal, pareceu inadequado.

Avançando nos alicerces estruturais da curiosa e criativa “tese”, observa-se que o parágrafo único do art. 85 da Constituição dispõe que esse tipo de crime seria definido em “lei especial”, logo, nada mais “natural” que concluir que a Lei de Improbidade faz as vezes de tal lei. Afinal, se é crime de responsabilidade atentar contra a probidade, qualquer conduta que consubstancie improbidade administrativa será, em última ratio, crime de responsabilidade.

Com a devida vênia daqueles que encampam esse entendimento, não tem ele a mínima plausibilidade jurídica. Entender que ao Legislativo é defeso atribuir consequências criminais, cíveis, políticas ou administrativas a um mesmo fato, inclusive com identidade de tipologia, é algo novo na ciência jurídica. Se o Constituinte não impôs tal vedação, será legítimo ao pseudointérprete impô-la? Não é demais lembrar que o próprio substitutivo ao Projeto de Lei nº 1446/1991, apresentado pelo Senado e que redundou na Lei nº 8.429/1992, era expresso ao reconhecer que os atos de improbidade (principal) também configuravam crimes de responsabilidade (secundário), sendo certo que “a instauração de procedimento para apurar crime de responsabilidade não impede nem suspende o inquérito ou o processo judicial referido nesta lei” (art. 11). Percebe-se, assim, a difusão do entendimento de que são figuras distintas, bem como que a interpenetração dos sistemas dependeria de previsão legal expressa.

E, o pior, é crível a tese de que a Lei nº 1.079/1950 é especial em relação à Lei nº 8.429/1992, culminado em absorver a última? Não pode o agente público responder por seus atos em diferentes esferas, todas previamente definidas e individualizadas pelo Legislador? Como é fácil perceber, é por demais difícil sustentar que uma resposta positiva a esses questionamentos possa ser amparada pela Constituição, pela moral ou pela razão.

Não se pode perder de vista que a própria Constituição faz referência, separadamente, a “atos de improbidade”(12) e a “crimes de responsabilidade”,(13) remetendo a sua definição para a legislação infraconstitucional.(14) Como se constata, por imperativo constitucional, as figuras coexistem. Além disso, como ensejam sanções diversas, por vezes aplicadas em esferas distintas (jurisdicional e política), não se pode falar, sequer, em bis in idem. Não é demais lembrar que a funcionalidade do processo por crime de responsabilidade é afastar o agente do poder, não propriamente impor restrições aos distintos aspectos de sua esfera jurídica alcançados pela Lei nº 8.429/1992.

Com escusas pela obviedade, pode-se afirmar que a Lei nº 1.079/1950 é a lei especial a que refere o parágrafo único do art. 85 da Constituição, enquanto a Lei nº 8.429/1992 é a lei a que se refere o parágrafo 4º do art. 37.

2 A interação entre texto e contexto e a sujeição dos agentes políticos à Lei nº 8.429/1992

É sabido que os enunciados linguísticos de natureza normativa, enquanto projetos de regulação funcionalmente direcionados ao ambiente sociopolítico, realidade viva e dinâmica, não podem permanecer indiferentes aos distintos fatores que se projetam sobre esse ambiente e concorrem para o seu delineamento. Todo e qualquer enunciado linguístico, normativo ou não, se inter-relaciona com determinados fatores que influem na formação do seu significado e respectivo alcance. Esses fatores são colhidos no universo existencial de cada enunciado, vale dizer, no contexto em que inserido, que pode ser visto sob uma perspectiva linguística ou não linguística. Aliás, remonta aos romanos o brocardo “lex non est textus sed contextus”.

Especificamente em relação ao contexto não linguístico, observa-se que ele absorve um amplo e variado leque de fatores, incluindo aspectos sociopolíticos e econômicos e os contornos culturais da sociedade,(15) propósitos e objetivos tidos como relevantes,(16) ou, mesmo, as peculiaridades de uma situação concreta.(17) Todos amplamente suscetíveis à ação do tempo. As normas constitucionais, enquanto padrões de regulação social, não podem ser individualizadas à margem dessa realidade. Pelo contrário, o seu significado será definido com a necessária influência da totalidade do contexto, mais especificamente com a influência do modo pelo qual o intérprete vê e apreende esse contexto.(18) O processo de interpretação não permanece adstrito ao material fornecido pelas fontes formais, sendo factível que a ele se some uma multiplicidade de conceitos que delineiam o patrimônio cultural da sociedade e, em última ratio, do próprio intérprete. É o contexto social que justifica a existência da regulação estatal e estabelece os significados correntes da linguagem utilizada.(19)

A suscetibilidade ao contexto certamente contribui para compreendermos o porquê de enunciados linguísticos similares ou, mesmo, idênticos, darem origem a distintos conteúdos normativos, consoante as especificidades de ordem local e espacial, isso sem olvidar o papel desempenhado pelo intérprete. Esses conteúdos normativos hão de se ajustar a cada ambiente sociopolítico, contribuindo, desse modo, para atender às necessidades locais e, em último ratio, para a materialização do sempre almejado ideal de justiça.

Volvendo ao “entendimento” externado na Reclamação nº 2.138/2002, observa-se que ele simplesmente ignora a realidade brasileira e os elevados níveis de ilicitude que são frequentemente praticados pelos altos escalões do poder. Ignora, igualmente, que é de todo incompatível com qualquer referencial de racionalidade e coerência lógica que, em um ambiente hierarquizado, como sói ser aquele inerente à Administração Pública brasileira, seja excluída a responsabilidade justamente dos altos escalões do poder. Afinal, com escusas pela obviedade, o exemplo há de vir sempre de cima, máxime porque, regra geral, as decisões são tomadas pelos escalões superiores e simplesmente executadas pelos inferiores.

Não é possível alcançar conclusão outra que não a de que o referido “entendimento” foi engendrado de tocaia para inutilizar o único instrumento sério de combate à improbidade em um país assolado pelo desmando e pela impunidade. Espera-se, ao final, seja ele revisto, mas o simples fato de ter sido arquitetado e posto em prática bem demonstra que não será fácil elevar o Brasil das sombras à luz.

Como afirmou o Ministro Carlos Velloso, a tese “é um convite para a corrupção”, conclusão clara tendo em vista que servirá de bill of indemnity para os altos escalões do poder. Na medida em que estarão imunes à Lei de Improbidade, é fácil imaginar que neles será concentrado todo o poder de decisão, sujeitando-os, tão somente, à responsabilização nas esferas política e criminal, cuja ineficácia não precisa ser lembrada ou explicada.

Essa estranha maneira de ver a realidade, cambaleante na forma, frágil na essência, faz lembrar a perspicaz narrativa do Padre António Vieira:

“navegava Alexandre (Magno) em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.”(20)

Na Idade Média, o grande Bonifácio já observara que certas leis se assemelham a teias de aranha: aprisionam moscas, mas são dilaceradas pelos grandes pássaros.

O Ministro Joaquim Barbosa, no voto divergente que proferiu na Reclamação nº 2.138/2002, externou uma perplexidade que, arriscaríamos dizer, é compartilhada por grande parte da comunidade jurídica nacional. Eis suas considerações:

“a proposta que vem obtendo acolhida até o momento nesta Corte, no meu modo de entender, além de absolutamente inconstitucional, é a-histórica e reacionária, na medida em que ela anula algumas das conquistas civilizatórias mais preciosas obtidas pelo homem desde as revoluções do final do século XVIII. Ela propõe nada mais, nada menos, do que o retorno à barbárie da época do absolutismo, propõe o retorno a uma época em que certas classes de pessoas tinham o privilégio de não se submeterem às regras em princípio aplicáveis a todos, tinham a prerrogativa de terem o seu ordenamento jurídico próprio, particular. Trata-se, como já afirmei, de um gigantesco retrocesso institucional. Na perspectiva da notável evolução institucional experimentada pelo nosso país nas últimas duas décadas, cuida-se, a meu sentir, de uma lamentável tentativa de rebananização da nossa República! Eu creio que o Supremo Tribunal Federal, pelo seu passado, pela sua credibilidade, pelas justas expectativas que suscita, não deve embarcar nessa aventura arriscada.”

Deve-se observar, no entanto, que no mesmo dia em que ultimou o julgamento da Reclamação nº 2.138/2002, o Supremo Tribunal Federal apreciou a Petição nº 3.923,(21) tendo decidido que caberia ao juiz de primeira instância realizar a execução de decisão judicial que condenara o Deputado Federal Paulo Salim Maluf por ato de improbidade, praticado quando ocupara o cargo de Prefeito Municipal de São Paulo. Na ocasião, restou assentado que o Supremo Tribunal Federal não poderia se transmudar em mero executor de uma decisão transitada em julgado. Em obiter dictum, diversos Ministros que não participaram do julgamento da Reclamação nº 2.138/2002 reconheceram expressamente que agentes políticos podem ser responsabilizados por ato de improbidade administrativa, sem direito a foro por prerrogativa de função. A tese, portanto, está longe de estar pacificada no âmbito do Tribunal.

Epílogo

Em uma sociedade politicamente organizada e historicamente dominada por pequenas aristocracias, que há muito se acostumaram com a confortável sensação oferecida pela imunidade, é fácil compreender a resistência em se permitir que a Lei nº 8.429/1992 alcance os altos escalões do poder. Espera-se, no entanto, que, pouco a pouco, a nossa jurisdição constitucional compreenda, de vez, que ela não é uma “ilha”, estranha e indiferente às vicissitudes do ambiente sociopolítico. Afinal, não há norma à margem do contexto e o Supremo Tribunal Federal há de ter sensibilidade para apreendê-lo. Para tanto, basta fitar os olhos nos meios de comunicação social e constatar, com riqueza de detalhes, a degradação moral que alcança considerável parcela da classe política brasileira. Eximi-la de responsabilidade (e crime de responsabilidade é menos que nada) significa disseminar um exemplo negativo, tornando a injuridicidade endêmica e difícil de ser revertida.

Sem prejuízo do munus que recai sobre os poderes constituídos, é preciso que o povo brasileiro, cuja capacidade de compreensão é sensivelmente afetada pela precariedade do ensino oferecido pelas aristocracias dominantes, deixe de ser um expectador passivo, indiferente à perpetuação da impunidade e da injustiça. Lembrando o conhecido brocardo anglo-saxão, “justice in the life and conduct of the State is possible only as first it resides in the hearts and souls of the citizens”.

Notas

1. Texto utilizado para subsidiar a comunicação realizada pelo autor, em 10 de maio de 2012, no seminário “Improbidade administrativa e agentes públicos”, promovido, na cidade de Porto Alegre, pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

2. Cf. BARBOSA, Rui. Commentarios à Constituição Federal Brasileira. v. III. Coligidos por Homero Pires. São Paulo: Saraiva, 1933. p. 433.

3. Cf. BRADLEY, A.W.; EWING, K.G. Constitutional and Administrative Law. 13. ed. Harlow: Pearson Education, 2003. p. 104.

4.  Constituição de 1787, art. II, Seção 4.

5.  Essa constatação é reforçada pela redação do art. 42 da Lei nº 1.079/1950: “A denúncia só poderá ser recebida se o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo”. Deixando o cargo, suprimida estaria a responsabilidade política do agente. O art. 3º da Lei nº 1.079/1950 ressaltou, de forma expressa, que ainda seria possível o julgamento do agente, perante o órgão jurisdicional competente, em tendo praticado crime comum. Não bastasse isso, o art. 52, parágrafo único, da Constituição dispõe que, no julgamento dos crimes de responsabilidade imputados ao Presidente e ao Vice-Presidente da República, aos Ministros de Estado, aos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aos membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, ao Procurador-Geral da República e ao Advogado-Geral da União, “funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. À luz desses preceitos, restam incontroversas a dicotomia e a independência entre as instâncias política e jurisdicional.

6.  CR/1988, art. 52, I e parágrafo único.

7.  CR/1988, art. 102, I, c.

8. Decreto-Lei nº 201/1967, art. 1º. O mesmo diploma normativo, em seu art. 4º, fala nas “infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais”, o que se assemelharia aos crimes de responsabilidade da Lei nº 1.079/1950. Nesse sentido: “Penal. Processual Penal. Prefeito: Crime de Responsabilidade. D.L. 201, de 1967, artigo 1º: crimes comuns. I. – Os crimes denominados de responsabilidade, tipificados no art. 1º do D.L. 201, de 1967, são crimes comuns, que deverão ser julgados pelo Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores (art. 1º), são de ação pública e punidos com pena de reclusão e de detenção (art. 1º, § 1º) e o processo é o comum, do C.P.P., com pequenas modificações (art. 2º). No art. 4º, o D.L. 201, de 1967, cuida das infrações político-administrativas dos prefeitos, sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato. Essas infrações é que podem, na tradição do direito brasileiro, ser denominadas crimes de responsabilidade. II. – A ação penal contra prefeito municipal, por crime tipificado no art. 1º do D.L. 201, de 1967, pode ser instaurada mesmo após a extinção do mandato. III. – Revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. IV. – HC indeferido” (STF, Pleno, HC nº 60.671/PI, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 19.05.1995).

9.  Como única exceção, pode ser mencionado o crime de responsabilidade passível de ser praticado pelo Presidente da Câmara dos Vereadores que gastar mais de 70% de sua receita com folha de pagamento, incluído o gasto com subsídio de seus Vereadores (CR/1988, art. 29-A, §§ 1º e 3º).

10.  Acresça-se a dificuldade em compreender o real fundamento do Enunciado nº 722 da Súmula do STF (“são da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento”), pois, se os crimes de responsabilidade não são verdadeiros crimes (v.g.: não são considerados para fins de reincidência), mas infrações de raiz política e administrativa, como justificar a competência privativa da União para legislar sobre a matéria? Incidiria na hipótese o disposto no art. 22, I, da Constituição da República?

11.  Infrações semelhantes já eram coibidas (1) no Império, com a lei “sobre a responsabilidade dos Ministros e Secretários de Estado e dos Conselheiros de Estado, de 15.10.1827, que regulamentou o art. 47 da Constituição de 1824, e (2) no início da República, com os Decretos 27 e 30, de 07 e 08.01.1892, que tratavam dos crimes de responsabilidade do Presidente da República, sendo estes os antecedentes da Lei nº 1.079, de 10.04.1950.

12. CR/1988, arts. 15, V, e 37, § 4º.

13. CR/1988, arts. 29, §§ 2º e 3º; 50, caput e § 1º; 52, I; 85, caput e parágrafo único; 86, caput e § 1º, II; 96, III; 100, § 6º; 102, I, c; 105, I, a; 108, I, a; e 167, § 1º.

14.  CR/1988, arts. 37, § 4º, e 85, parágrafo único.

15. Cf. AVELAR FREIRE SANT’ANNA, Alayde. A radicalização do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004. p. 37 e ss.

16. Cf. WROBLEWSKI, Jerzy; BÁNKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil. The judicial application of Law. Law and philosophy library. v. 15. Springer: The Netherlands, 1992. p. 103-104.

17. Como ressaltado por Richard Posner, não é incomum que o juiz norte-americano adote uma postura “legalista” ou “não legalista”, permanecendo adstrito ou distanciando-se do texto normativo, a partir da reação moral ou emocional (v.g.: repulsa, indignação, contentamento etc.) que tenha em relação à conduta de uma das partes envolvidas na lide (How Judges Think? Cambridge: Harvard University Press, 2008. p. 231).

18. Cf. BELLERT, Irena. La linguistica testuale (on a condition of the coherence of text). Traduzido por M. Elisabeth Conte. Milano: Feltrinelli, 1977. p. 180.

19. Cf. LAVAGNA, Carlos. Costituzione e socialismo. Bologna: Il Mulino, 1977. p. 39.

20.  Sermão do Bom Ladrão. Obras completas do Padre António Vieira. v. V. Porto: Chardron, 1907. p. 63.

21.  Pleno, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 13.06.2007, DJ de 20.06.2007.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2012. Disponível em:
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Acesso em: .


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