Ensaio sobre procedimentos na medida cautelar de intervenēćo nas empresas

Autor: Joćo Pedro Gebran Neto

Juiz Federal

 publicado em 28.02.2013


Introdução

A legislação processual penal brasileira, em sua redação original, foi promulgada pelo Decreto-Lei nº 3.689, datado de 3 de outubro de 1941, por Getúlio Vargas, ao tempo do Estado Novo, buscando introduzir na legislação brasileira um único diploma processual penal para regular as ações penais em todo o Brasil, até então marcado pelas diferentes legislações estaduais.

Entretanto, como produto de seu tempo, o código sofreu forte inspiração no chamado Código Rocco, editado na Itália na década de trinta, com institutos pouco condizentes com a realidade democrática, porquanto regido pelo princípio inquisitório.

Ao longo do tempo, diversas alterações legislativas foram introduzidas visando a modernizar o Código de Processo Penal, tais como as Leis de nos 3.396/58, 5.349/67, 6.416/77, 5.941/73, 8.862/94, 8.884/94, 9.271/96 e 9.520/97, entre outras. Ao lado destas, também foram editadas diversas leis extravagantes que criaram procedimentos especiais, como as duas leis de tóxico, entre tantas outras. As mais importantes delas talvez sejam as que criaram os juizados especiais (Leis nos 9.099/95 e 10.259/01), porque modificaram definitivamente o processo penal brasileiro, criando institutos como a suspensão do processo e a possibilidade de transação, entre outros.

Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,

“a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...).”(1)

Também foram propostas edições de um novo Código de Processo Penal, com um viés mais democrático e que privilegiasse procedimentos mais condizentes com o contraditório, a ampla defesa e a celeridade processual. A mais notável das iniciativas foi o novo Código de Processo Penal coordenado pelo Professor José Frederico Marques, na década de 70, que por longos anos tramitou no Congresso Nacional sem lograr êxito na aprovação (projeto de lei nº 633/75). Na década de oitenta, uma comissão de notáveis – compostas por professores da estirpe de Francisco de Assis Toledo (coordenador), José Frederico Marques, Jorge Alberto Romeiro e Rogério Lauria Tucci – apresentou novo projeto de lei (projeto de lei nº 1.655, de 1983) que igualmente não foi convertido em lei. No ano 2000, uma nova tentativa de criação de um novo CPP teve origem, tendo o Ministério da Justiça constituído comissão presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover para elaborar a reforma da legislação processual penal, com raiz no novo paradigma constitucional brasileiro.

Umas das propostas apresentadas pela referida comissão foi o projeto de lei nº 4.208/2001, regulando a prisão preventiva e outras medidas cautelares, que resultou na Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011.

Dentre as diversas medidas cautelares previstas pela nova redação do art. 319, VI, do CPP está a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais.

1 Da intervenção nas empresas

Dispõe o artigo 319 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão: 

I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; 

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; 

IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; 

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; 

VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; 

VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; 

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; 
IX – monitoração eletrônica.”

Dentre esse leque de possibilidades de medidas cautelares, preferíveis à prisão preventiva, nos termos do art. 282, § 6º, do mesmo diploma legal, destaca-se a suspensão do exercício de atividade econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais.

O legislador, pródigo em regular a prisão preventiva, a prisão em flagrante e a forma de aplicação da fiança, nada dispôs acerca dessa medida acautelatória introduzida explicitamente na legislação processual penal brasileira.

Entendo que esta regra foi apenas explicitada porque, nos idos de 1997, já se tinha defendido a possibilidade de substituição da prisão preventiva por outras medidas cautelares que fossem igualmente eficazes, mas menos onerosas para os réus, como a destituição de seus poderes como administradores de empresas que, embora desenvolvessem atividades lícitas, estivessem sendo utilizadas ao mesmo tempo para a prática de infrações penais, como, por exemplo, a prática de crimes fiscais em continuidade delitiva.

Este ponto não é estranho aos Tribunais, tendo o Tribunal Regional Federal da 4a Região decidido:

“CRIMINAL. HABEAS CORPUS. MEDIDA PREVENTIVA DESTINADA A IMPEDIR O EXERCÍCIO DO DIREITO DE ADMINISTRAR A EMPRESA, CUJOS GERENTES OMITEM, REITERADAMENTE, O RECOLHIMENTO DE TRIBUTOS. VIABILIDADE DIANTE DA INUTILIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA.

1. Se os gerentes, de forma contumaz, omitem o recolhimento de tributos devidos, tipificando conduta criminal, o Estado tem que evitar a reiteração do crime;

2. De nada adiantaria o recolhimento dos responsáveis à prisão, de onde persistiriam na orientação aos prepostos, sofrendo, ademais, o efeito deletério do convívio prisional;


3. A prevenção se fará pela interdição do direito de administrar a sociedade, nomeando-se administrador de confiança do juiz, que zelará para que se ajuste o empreendimento a uma finalidade lucrativa, mas também ética;

4. Eventualmente aplicada a pena substitutiva da interdição desse direito, nada impede que se aplique o instituto da detração, por analogia;

5. Se é possível interditar a atividade de estabelecimento, muito mais a gerência da empresa, que constitui reação estatal menos onerosa ao acusado da prática de crime;

6. Nos crimes econômicos, a contumácia só é obstada com a retirada do instrumento do delito, que é a disponibilidade do poder de gerência empresarial;

7. Ordem denegada.” (HC nº 97.04.69598-5/Pr, TRF 4a Região, 1a Turma, Rel. Juiz Fábio Bittencourt da Rosa, publicado no DJU nº 42, em 04.03.98, p. 451/452)

O entendimento adotado era o de que a prisão preventiva poderia ser substituída por outra medida igualmente eficaz, mas com menor onerosidade para o réu. Se o crime praticado em continuidade delitiva, objeto de vários processos penais, tinha por fundo a prática de ato ilícito por intermédio de atuação da empresa, então não era necessária a segregação do sócio, mas apenas a suspensão de direitos, com a sua retirada dos poderes de administrar a empresa.

Se a adoção dessa medida cautelar era, até a entrada em vigor da Lei nº 12.403, de lege lata, a partir de 04 de maio de 2011 passou a haver expressa previsão legal.

A Lei de Recuperação Judicial e Falência das empresas (Lei nº 11.101/2005) tem disposição específica sobre a destituição e substituição dos administradores (art. 50) que bem demonstra que esse tipo de intervenção não é estranho ao nosso ordenamento jurídico.

Importa referir que a suspensão do exercício de atividade econômica ou financeira deve ser compreendida em amplo aspecto: a) por vezes, a própria atividade econômica ou financeira da empresa poderá ser ilícita, como se dá, por exemplo, com o exercício de atividade financeira sem a devida autorização do Banco Central (um banco, por exemplo) ou da Agência Nacional de Saúde Suplementar (funcionamento de plano de saúde), o que ensejará a suspensão de funcionamento das atividades da própria empresa; b) por outras, poderá a empresa desempenhar atividade lícita, mas seus administradores, no exercício de suas funções, atuarem de modo contrário à legislação, cometendo crimes. Nesse último caso, não há necessidade de interrupção da atividade lícita da empresa, sendo possível o afastamento do sócio administrador destas funções, inclusive com a nomeação de um interventor, se esta medida se mostrar necessária e suficiente.

De qualquer sorte, não é demasiado destacar que deve haver pertinência, correlação e proporcionalidade entre a atividade ilícita desempenhada e a medida cautelar judicialmente imposta. Como toda medida restritiva de direitos, a intervenção das atividades das empresas é medida acautelatória que deve ser imposta apenas excepcionalmente. Não se pode ignorar que o Estado dispõe de diferentes instrumentos para o exercício do seu poder de polícia, devendo a tutela penal ser utilizada apenas de modo suplementar.

2 Ensaio de procedimento de intervenção

Variadas são as hipóteses legais de intervenção judicial nas empresas. O direito processual penal tratou de criar novas hipóteses, a partir da nova redação do art. 319 do Código de Processo Penal, mas deixou em aberto o modo como esta intervenção deve se processar.

Penso que outros diplomas legais podem servir de guia para o procedimento, devendo a aplicação das respectivas normas dar-se consoante o modo e o objetivo a que se destina a intervenção.

Por vezes, tratando-se de empresa cujas atividades devam ser encerradas, quer me parecer que as normas da falência podem ser aplicadas por analogia. Outras vezes, sendo o caso de intervenção para regularizar o exercício de atividade que, embora lícita, não possua a devida autorização ou permissão, as normas do Código de Processo Civil podem ser suficientes.

Em suma, a pretensão aqui não é realizar um plano concreto ou um procedimento específico para as diferentes hipóteses de intervenção judicial, mas, principalmente, destacar que tal medida encontra amparo em outros ramos do direito, que podem servir de apoio para orientar os operadores do direito no tocante à atividade interventiva.

2.1 A partir da nova base legal para a decretação da intervenção nas empresas, é necessário desenhar, ao menos minimamente, o modus operandi dessa intervenção para garantir sucesso à medida, bem como para assegurar transparência, isonomia e ampla defesa na discussão das soluções adotadas na administração da empresa.

Como destacado, somente o caso concreto poderá indicar que tipo de intervenção deva sofrer a empresa. Se comete crime fiscal, por exemplo, deve sofrer restrição de âmbito econômico-financeiro; se o crime imputado aos sócios refere-se a direitos do consumidor, deve-se priorizar intervenção que venha a corrigir, impedir ou reparar os atos lesivos praticados contra o consumidor, sendo possível imaginar-se uma intervenção de caráter técnico.(2) De igual sorte, teria conteúdo técnico uma intervenção que visasse a pôr fim a crimes ambientais, impondo – ou realizando por meio do interventor – a instalação de aparelhos destinados a evitar a poluição de rios. 

Sendo a riqueza dos fatos muito maior que a capacidade imaginativa de prevê-los, deve ser a medida adequada escolhida frente ao caso concreto.

De qualquer sorte, o ordenamento jurídico brasileiro tem resposta processual razoável para procedimentos interventivos.

2.2 Tratando-se de intervenção de caráter econômico-financeiro, as normas relativas à nova lei de recuperação judicial das empresas e da falência (Lei nº 11.101/2005) podem e devem ser aplicadas subsidiariamente, a fim de se estabelecer um sistema de gerenciamento da empresa por meio de gestor (interventor) nomeado pelo magistrado que decreta a medida.
 
Como parâmetro de conduta do gestor, é possível aplicar o rol de atribuições previstas no artigo 22 da Lei de Recuperação Judicial, aplicáveis também aos administradores judiciais das empresas em processo de falência.

Dispõe o artigo acima referido:

“Art. 22. Ao administrador judicial compete, sob a fiscalização do juiz e do Comitê, além de outros deveres que esta Lei lhe impõe:

I – na recuperação judicial e na falência:
a) enviar correspondência aos credores constantes na relação de que trata o inciso III do caput do art. 51, o inciso III do caput do art. 99 ou o inciso II do caput do art. 105 desta Lei, comunicando a data do pedido de recuperação judicial ou da decretação da falência, a natureza, o valor e a classificação dada ao crédito;
b) fornecer, com presteza, todas as informações pedidas pelos credores interessados;
c) dar extratos dos livros do devedor, que merecerão fé de ofício, a fim de servirem de fundamento nas habilitações e impugnações de créditos;
d) exigir dos credores, do devedor ou de seus administradores quaisquer informações;
e) elaborar a relação de credores de que trata o § 2º do art. 7º desta Lei;
f) consolidar o quadro-geral de credores nos termos do art. 18 desta Lei;
g) requerer ao juiz convocação da assembleia-geral de credores nos casos previstos nesta Lei ou quando entender necessária sua ouvida para a tomada de decisões;
h) contratar, mediante autorização judicial, profissionais ou empresas especializadas para, quando necessário, auxiliá-lo no exercício de suas funções;
i) manifestar-se nos casos previstos nesta Lei;
II – na recuperação judicial:
a) fiscalizar as atividades do devedor e o cumprimento do plano de recuperação judicial;
b) requerer a falência no caso de descumprimento de obrigação assumida no plano de recuperação;
c) apresentar ao juiz, para juntada aos autos, relatório mensal das atividades do devedor;
d) apresentar o relatório sobre a execução do plano de recuperação, de que trata o inciso III do caput do art. 63 desta Lei;
III – na falência:
a) avisar, pelo órgão oficial, o lugar e a hora em que, diariamente, os credores terão à sua disposição os livros e documentos do falido;
b) examinar a escrituração do devedor;
c) relacionar os processos e assumir a representação judicial da massa falida;
d) receber e abrir a correspondência dirigida ao devedor, entregando a ele o que não for assunto de interesse da massa;
e) apresentar, no prazo de 40 (quarenta) dias, contado da assinatura do termo de compromisso, prorrogável por igual período, relatório sobre as causas e circunstâncias que conduziram à situação de falência, no qual apontará a responsabilidade civil e penal dos envolvidos, observado o disposto no art. 186 desta Lei;
f) arrecadar os bens e documentos do devedor e elaborar o auto de arrecadação, nos termos dos arts. 108 e 110 desta Lei;
g) avaliar os bens arrecadados;
h) contratar avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, para a avaliação dos bens, caso entenda não ter condições técnicas para a tarefa;
i) praticar os atos necessários à realização do ativo e ao pagamento dos credores;
j) requerer ao juiz a venda antecipada de bens perecíveis, deterioráveis ou sujeitos a considerável desvalorização ou de conservação arriscada ou dispendiosa, nos termos do art. 113 desta Lei;
l) praticar todos os atos conservatórios de direitos e ações, diligenciar a cobrança de dívidas e dar a respectiva quitação;
m) remir, em benefício da massa e mediante autorização judicial, bens apenhados, penhorados ou legalmente retidos;
n) representar a massa falida em juízo, contratando, se necessário, advogado, cujos honorários serão previamente ajustados e aprovados pelo Comitê de Credores;
o) requerer todas as medidas e diligências que forem necessárias para o cumprimento desta Lei, a proteção da massa ou a eficiência da administração;
p) apresentar ao juiz para juntada aos autos, até o 10º (décimo) dia do mês seguinte ao vencido, conta demonstrativa da administração, que especifique com clareza a receita e a despesa;
q) entregar ao seu substituto todos os bens e documentos da massa em seu poder, sob pena de responsabilidade;
r) prestar contas ao final do processo, quando for substituído, destituído ou renunciar ao cargo.
§ 1º As remunerações dos auxiliares do administrador judicial serão fixadas pelo juiz, que considerará a complexidade dos trabalhos a serem executados e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes.
§ 2º Na hipótese da alínea d do inciso I do caput deste artigo, se houver recusa, o juiz, a requerimento do administrador judicial, intimará aquelas pessoas para que compareçam à sede do juízo, sob pena de desobediência, oportunidade em que as interrogará na presença do administrador judicial, tomando seus depoimentos por escrito.
§ 3º Na falência, o administrador judicial não poderá, sem autorização judicial, após ouvidos o Comitê e o devedor no prazo comum de 2 (dois) dias, transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceder abatimento de dívidas, ainda que sejam consideradas de difícil recebimento.
§ 4º Se o relatório de que trata a alínea e do inciso III do caput deste artigo apontar responsabilidade penal de qualquer dos envolvidos, o Ministério Público será intimado para tomar conhecimento de seu teor.”

É evidente que o rol acima estabelecido serve apenas de diretriz para o interventor judicial, porque a tarefa precípua deste não é atender aos interesses dos credores – como se dá com a recuperação judicial ou a falência –, mas coordenar as atividades empresariais, buscando reorientá-las para a prática de atos lícitos, sob a supervisão judicial.

Por fim, ad cautelam, devem-se expedir os mais variados tipos de comunicações quanto à intervenção na empresa, seja para os estabelecimentos bancários onde a pessoa jurídica opera, seja para a Junta Comercial, para juízos onde eventualmente existam pendências, etc., com vistas a tornar pública a substituição quanto ao poder de administração da pessoa jurídica sob intervenção.

2.3 Como assinalado, o Código de Processo Civil também conhece e disciplina a intervenção judicial na propriedade privada, no curso de processo de execução, com a decretação do usufruto de imóvel ou empresa do devedor em favor do credor, cabendo ao Juiz da execução proceder à nomeação de administrador.
 
A gestão do administrador encontra-se disciplinada nos artigos 719 e seguintes do Código de Processo Civil, que fazem expressa remissão aos artigos 148 a 150 do mesmo diploma. Nestas disposições, o juiz designará administrador que praticará os atos necessários para constituir o usufruto sobre móveis ou imóveis, para fins de obter os recursos necessários à satisfação do credor.

Cumpre ao administrador comunicar que entrou no exercício das suas funções, inclusive à Junta Comercial, e submeter à aprovação judicial um plano de administração, bem como prestar contas mensalmente. Pelo trabalho do administrador é lícito o estabelecimento de uma justa remuneração, na forma do artigo 149 do diploma processual civil.

Também na insolvência civil há previsão legal para nomeação de um administrador para a massa, nos termos do art. 761 do Código de Processo Civil.

2.4 A legislação penal financeira, para os casos em que a pessoa jurídica é constituída ou utilizada preponderantemente com o fim de facilitar, permitir ou ocultar a prática de crime, prevê a liquidação forçada da empresa, sendo o seu patrimônio considerado instrumento do crime e, como tal, perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.

Essa solução – liquidação forçada – é pertinente para as hipóteses em que a essência da atividade desenvolvida pela empresa seja ilícita e não haja possibilidade de sua adequação ao ordenamento jurídico.

Assim, empresa que venha a funcionar como instituição financeira sem a devida autorização, infringindo a Lei nº 7.492/86, pode e deve ser liquidada judicialmente, devendo seu patrimônio ser perdido em favor da União, na forma do artigo 91 do Código Penal, se os seus administradores vierem a ser condenados por tal fato. Trata-se, em verdade, de efeito genérico imediato da sentença condenatória, porque a pessoa ficta era o instrumento do crime.

O rito para liquidação judicial da pessoa jurídica deve ser aquele previsto nos artigos 657 e seguintes do Código de Processo Civil antigo (Decreto-Lei nº 1.608, de 18.09.39), cujos dispositivos ainda se acham em vigor,(3) aplicados analogicamente à espécie, na medida em que as regras sejam adequadas, in verbis:

“Art. 655. A dissolução de sociedade civil, ou mercantil, nos casos previstos em lei ou no contrato social, poderá ser declarada, a requerimento de qualquer interessado, para o fim de ser promovida a liquidação judicial.

Art. 656. A petição inicial será instruída com o contrato social ou com os estatutos.

§ 1º Nos casos de dissolução de pleno direito, o juiz ouvirá os interessados no prazo de quarenta e oito (48) horas e decidirá.
§ 2º Nos casos de dissolução contenciosa, apresentada a petição e ouvidos os interessados no prazo de cinco (5) dias, o juiz proferirá imediatamente a sentença, se julgar provadas as alegações do requerente.
Se a prova não for suficiente, o juiz designará audiência para instrução e julgamento, e procederá de conformidade com o disposto nos arts. 267 a 272.

Art. 657. Se o juiz declarar, ou decretar, a dissolução, na mesma sentença nomeará liquidante a pessoa a quem, pelo contrato, pelos estatutos, ou pela lei, competir tal função.

§ 1º Se a lei, o contrato e os estatutos nada dispuserem a respeito, o liquidante será escolhido pelos interessados, por meio de votos entregues em cartório.
A decisão tomar-se-á por maioria, computada pelo capital dos sócios que votarem e, nas sociedades de capital variável, naquelas em que houver divergência sobre o capital de cada sócio e nas de fins não econômicos, pelo número de sócios votantes, tendo os sucessores apenas um voto.
§ 2º Se forem somente dois (2) os sócios e divergirem, a escolha do liquidante será feita pelo juiz entre pessoas estranhas à sociedade.
§ 3º Em qualquer caso, porém, poderão os interessados, se concordes, indicar, em petição, o liquidante.

Art. 658. Nomeado, o liquidante assinará, dentro de quarenta e oito (48) horas, o respectivo termo; não comparecendo, ou recusando a nomeação, o juiz nomeará o imediato em votos, ou terceiro estranho, se por aquele também recusada a nomeação.

Art. 659. Se houver fundado receio de rixa, crime, ou extravio, ou danificação de bens sociais, o juiz poderá, a requerimento do interessado, decretar o sequestro daqueles bens e nomear depositário idôneo para administrá-los, até nomeação do liquidante.

Art. 660. O liquidante deverá:

I – levantar o inventário dos bens e fazer o balanço da sociedade, nos quinze (15) dias seguintes à nomeação, prazo que o juiz poderá prorrogar por motivo justo;
II – promover a cobrança das dívidas ativas e pagar as passivas, certas e exigíveis, reclamando dos sócios, na proporção de suas quotas na sociedade, os fundos necessários, quando insuficientes os da caixa;
III – vender, com autorização do juiz, os bens de fácil deterioração, ou de guarda dispendiosa, e os indispensáveis para os encargos da liquidação, quando as recusarem os sócios a suprir os fundos necessários;
IV – praticar os atos necessários para assegurar os direitos da sociedade, e representá-la ativa e passivamente nas ações que interessarem a liquidação, podendo contratar advogado e empregados com autorização do juiz e ouvidos os sócios;
V – apresentar, mensalmente, ou sempre que o juiz o determinar, balancete da liquidação;
VI – propor a forma da divisão, ou partilha, ou do pagamento dos sócios, quando ultimada a liquidação, apresentando relatório dos atos e operações que houver praticado;
VII – prestar contas de sua gestão, quando terminados os trabalhos, ou destituído das funções.

Art. 661. Os liquidantes serão destituídos pelo juiz, ex-officio, ou a requerimento de qualquer interessado se faltarem ao cumprimento do dever, ou retardarem injustificadamente o andamento do processo, ou procederem com dolo ou má-fé, ou tiverem interesse contrário ao da liquidação.

Art. 662. As reclamações contra a nomeação do liquidante e os pedidos de sua destituição serão processados e julgados na forma do Título XXVIII deste Livro.

Art. 663. Feito o inventário e levantado o balanço, os interessados serão ouvidos no prazo comum de cinco (5) dias, e o juiz decidirá as reclamações, se as comportar a natureza do processo, ou, em caso contrário, remeterá os reclamantes para as vias ordinárias.

Art. 664. Apresentado o plano de partilha, sobre ele dirão os interessados, em prazo comum de cinco (5) dias, que correrá em cartório; e, o liquidante, em seguida, dirá em igual prazo, sobre as reclamações.

Art. 665. Vencidos os prazos do artigo antecedente e conclusos os autos, o juiz aprovará, ou não, o plano de partilha, homologando-a por sentença, ou mandando proceder ao respectivo cálculo, depois de decidir as dúvidas e reclamações.

Art. 666. Se a impugnação formulada pelos interessados exigir prova, o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento.

Art. 667. Ao liquidante estranho o juiz arbitrará a comissão de um a cinco por cento (1 a 5 %) sobre o ativo líquido, atendendo à importância do acervo social e ao trabalho da liquidação.

Art. 668. Se a morte de qualquer dos sócios não causar a dissolução da sociedade, serão apurados exclusivamente os haveres do falecido, e seus herdeiros ou sucessores serão pagos pelo modo estabelecido no contrato social, ou pelo proposto e aceito.

Art. 669. A liquidação de firma individual far-se-á no juízo onde for requerido o inventário.

Art. 670. A sociedade civil com personalidade jurídica, que promover atividade ilícita ou imoral, será dissolvida por ação direta, mediante denúncia de qualquer do povo, ou do órgão do Ministério Público.

Art. 671. A divisão e a partilha dos bens sociais serão feitas de acordo com os princípios que regem a partilha dos bens da herança.

Parágrafo único. Os bens que aparecerem depois de julgada a partilha serão sobrepartilhados pelo mesmo processo estabelecido para a partilha dos bens da herança.

Art. 672. Não sendo mercantil a sociedade, as importâncias em dinheiro pertencentes à liquidação serão recolhidas ao Banco do Brasil, ou, se não houver agência desse Banco, a outro estabelecimento bancário acreditado, de onde só por alvará do juiz poderão ser retiradas.

Art. 673. Não havendo contrato ou instrumento de constituição de sociedade, que regule os direitos e obrigações dos sócios, a dissolução judicial será requerida pela forma do processo ordinário e a liquidação far-se-á pelo modo estabelecido para a liquidação das sentenças.

Art. 674. A dissolução das sociedades anônimas far-se-á na forma do processo ordinário.
Se não for contestada, o juiz mandará que se proceda à liquidação, na forma estabelecida para a liquidação das sociedades civis ou mercantis.”

2.5 A legislação ambiental, ao prever a possibilidade de aplicação de sanção penal às pessoas jurídicas, prevê, como uma das possibilidades de pena, a interdição da pessoa jurídica, nos termos do art. 22 da Lei nº 9605/98:

“Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são:
I – suspensão parcial ou total de atividades;
II – interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade;
III – proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações.
§ 1º A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do meio ambiente.
§ 2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar.
§ 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos.”

Embora não haja expressa previsão de medidas cautelares, tampouco de intervenção judicial na administração da pessoa jurídica, tenho que tal medida é permitida.

Primeiro, porque passou a existir expressa previsão no art. 319 do Código de Processo Penal, que também se aplica à espécie. Segundo, porque dispondo a lei sobre sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, tais como a suspensão parcial ou total de suas atividades, ou interdição temporária da empresa, ou ainda liquidação forçada (art. 24), quer me parecer que medidas menos drásticas que tutelem igualmente o bem juridicamente protegido pelo tipo penal acham-se contempladas, como forma de assegurar outros interesses concorrentes, como, por exemplo, os direitos dos empregados da empresa.

Embora não haja expressa previsão de procedimento para as sanções aos crimes ambientais praticados pelas pessoas jurídicas, viável também aqui a aplicação das normas procedimentais acima referidas.

3 Considerações finais

Não se pretende apresentar qualquer conclusão final sobre o tema em questão, porquanto o escopo tenha sido simplesmente demonstrar não apenas a viabilidade da medida interventiva, mas principalmente os caminhos que podem ser trilhados pelos operadores do direito para aplicar a medida cautelar de modo seguro, transparente e com possibilidade de controle tanto das partes quanto das instâncias superiores.

São vários os desafios que se apresentam, pretendendo-se neste trabalho apenas alertar-se para os mesmos, além de sinalizar suportes legais que podem servir de norte. Dentre os desafios, colacionam-se alguns que podem ser vislumbrados desde logo.

3.1 Um dos maiores problemas relativos à intervenção é saber o momento e a forma de cessar a medida restritiva de direito. Se é certo que o Estado deve intervir para evitar o cometimento de novos ilícitos e tutelar os diversos interesses envolvidos, igualmente é certo que a medida deve prolongar-se somente durante o período de tempo mínimo necessário para atingir seus fins. É que, sendo lícito o objeto da sociedade, então a continuidade de seus negócios é medida salutar e necessária, inclusive para atender os preceitos constitucionais da ordem econômica.

O remédio deve ser ministrado em doses suficientes e exatas, sob pena de causar mal maior que a própria enfermidade. A intervenção, por si só, envolve diversos conflitos de interesses e interpessoais, além de importar na assunção de grande responsabilidade quanto à indicação do interventor e quanto ao destino da empresa interditada. Assim, o período de intervenção não deve se prolongar em demasia.

O momento ideal para a cessação da intervenção é após o implemento, pelo interventor, das medidas necessárias para evitar a reiteração da conduta incriminada. Assim, cumpre verificar se os interesses dos empregados foram resguardados e se o interesse público eventualmente ferido foi atendido, bem como se há possibilidade de reparação do dano.

3.2 Quando o próprio objeto social da empresa é ilícito, como na hipótese em que funcione sem autorização legal, deve o administrador praticar os atos necessários para a regularização da atividade da empresa, se possível sua adequação às normas correntes, ao mesmo tempo em que deve providenciar que sejam resguardados os interesses de terceiros, notadamente dos empregados da empresa.

Se não for possível a regularização da atividade, a liquidação da empresa deve ser promovida de modo a minimizar os ônus para todos.

3.3 Quando o objeto social da empresa é lícito, mas está a pessoa jurídica sendo usada para o cometimento de crimes, então a medida de intervenção deve durar até que se proceda, na medida do possível, a um saneamento administrativo da empresa.

É evidente que a intervenção não pode se prolongar demasiadamente. A medida do tempo deve ser correlata à medida da prisão preventiva.

Se o suporte jurídico para a intervenção é a prisão preventiva – ou os motivos para a manutenção de uma custódia –, então somente se reconhece como razoável a permanência da intervenção enquanto perdurarem os requisitos para sua decretação, conforme disposto no artigo 312 do Código de Processo Penal.

Sobre a cessação da intervenção, duas considerações devem ser tecidas:

Primeiro: não se pode tutelar indefinidamente o exercício da atividade econômica de outrem, sob o pressuposto de que se estaria adequando a propriedade à sua função social, evitando-se a prática de crimes. O administrador deve intervir de modo a sanear a empresa, adotando todas as medidas administrativas e judiciais cabíveis para fazer cessar a prática do ilícito. Isso feito, deve ser apresentado um projeto de gestão, prevendo o cumprimento das obrigações cujo inadimplemento deram origem à intervenção.

Segundo: a intervenção é medida excepcional e extrema que tem por objetivo evitar a reiteração de condutas criminosas que o Estado, por outros meios, não vem conseguindo inibir. Entretanto, em determinado momento, a constrição deve necessariamente cessar, ficando a critério do administrador afastado a adoção dos atos de gestão da pessoa jurídica que melhor lhe aprouverem. Assim, no terreno da hipótese, tanto pode voltar a cometer ilícito quanto pode passar a pautar a sua conduta em conformidade com o ordenamento jurídico. E isso é absolutamente natural. Assim como não há qualquer garantia de que delinquentes, quando soltos, não voltem a cometer ilícitos, não é possível garantir que após a intervenção novamente não voltem a ser cometidos os mesmos crimes.

Notas

1. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 175, jun. 2007, p. 11.

2. Não seria o caso de aplicar uma intervenção de cunho técnico a empresa fornecedora de medicamentos fora do prazo de validade ou sem o componente químico responsável pela cura?

3. O antigo Código de Processo Civil possui algumas normas que se acham ainda hoje em vigor, conforme estabelecido pelo artigo 1.218, VII, do atual Código de Processo Civil.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2013. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS