Resumo
As ocorrências de tráfico internacional de resíduos sólidos têm sido cada vez mais frequentes nos portos brasileiros.
A Convenção da Basileia, tratado internacional do qual o Brasil é signatário, condena tais práticas e determina que os signatários tomem medidas efetivas para evitar que tal negócio assuma proporções globais catastróficas e, ao mesmo tempo, que adaptem suas legislações internas a fim de que a conduta seja punida com rigor.
Contudo, não é o que se apura da legislação brasileira aplicável ao tema. Amplas possibilidades de suspensão condicional do processo, de transação penal e de substituição das penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito, aliadas à curta duração das penas, criam um cenário favorável a que a maioria dos processos em que se apura a materialidade e a autoria de delitos ambientais resulte em prescrição e, consequentemente, em impunidade em larga escala.
Tal quadro normativo, além de constituir-se em incoerência com os compromissos assumidos pelo Brasil como signatário da Convenção da Basileia, credencia o País a se tornar, em um futuro muito próximo, mais um dos destinos preferenciais do lixo tóxico produzido nos países ricos, ao lado dos países africanos, da Índia e da Turquia.
Este trabalho buscará apontar as deficiências da legislação brasileira no trato com o tema e a necessidade urgente de revisão dos instrumentos normativos aplicáveis a essa sensível questão.
Palavras-chave: Tráfico internacional ilícito de resíduos sólidos e rejeitos. Convenção da Basileia. Crimes ambientais. Organizações criminosas. Lavagem de dinheiro.
Sumário: 1 O tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos e de outros resíduos no âmbito da Convenção da Basiléia. 2 Aspectos penais do tráfico internacional de resíduos sólidos perigosos e de outros resíduos no âmbito do direito interno brasileiro. 2.1 Da tipificação. 2.2 Das penas aplicáveis à pessoa física. 2.3 Das penas aplicáveis à pessoa jurídica. 2.4 Da prescrição. 3 O tráfico internacional de resíduos sólidos, a pluralidade subjetiva e o crime organizado. Conclusões.
Introdução
O processo de globalização da economia, assim como favoreceu o intercâmbio cultural e de informações, a transferência de tecnologia e a possibilidade de incremento da atividade econômica nos países menos desenvolvidos, também gerou um indesejável processo de transferência dos riscos ambientais dos países desenvolvidos para os países pobres.
Tal transferência pode ser creditada a um relaxamento nas legislações dos países não membros da OCDE – Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico, utilizado como forma de tornar mais atrativas as condições para a instalação de parques industriais em seus territórios. Concomitantemente, nos países membros da OCDE houve um acirramento das legislações ambientais, por pressão da comunidade internacional e da opinião pública.
Essas condições favoreceram os movimentos transnacionais de resíduos sólidos, uma vez que, em princípio, o reúso, reciclagem ou destinação final desses resíduos em países não membros da OCDE representaria um custo menor para os países que os produzem.
Uma parcela desses movimentos transnacionais é lícita, uma vez que em conformidade com os princípios da Convenção da Basileia, que disciplina o comércio internacional de resíduos, na existência de consenso entre os Países envolvidos nas operações de importação, exportação e transporte. Outra parte dessas movimentações, entretanto, não se amolda aos princípios da Convenção, uma vez que seus preceitos não permitem a exportação, pura e simples, de resíduos sólidos perigosos, de reúso ou reciclagem impossível ou inviável. Estes são movimentos transfronteiriços de resíduos sólidos considerados ilícitos.
Os movimentos transnacionais ilícitos de resíduos sólidos têm aumentado significativamente sua incidência nos últimos anos, inclusive, de forma preocupante, nos portos brasileiros, mostrando sua conexão intrínseca com organizações criminosas.
Diante desse panorama, torna-se imperativo analisar a legislação brasileira, a fim de constatar, inicialmente, se a conduta – tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos – é tipificada como infração penal e, em caso positivo, quais as sanções penais aplicáveis. Nessa etapa, cabe ainda examinar se os instrumentos processuais penais previstos encontram-se adequados à investigação e comprovação em Juízo desse delito, garantindo-se eficácia para a repressão e, ao mesmo tempo, observando-se as garantias constitucionais do suposto agente.
Para tanto, na primeira parte do trabalho, serão objetos de exame a Convenção da Basileia, seus principais conceitos e sua incorporação ao direito interno brasileiro.
Na segunda parte, serão analisados os dispositivos da legislação ambiental que definem as infrações penais a fim de verificar a existência de tipificação penal para o delito em análise. Nessa parte, ainda, serão analisadas as penas e o regime das penas aplicáveis a esse delito.
Na terceira parte do trabalho, será abordado um possível enquadramento das condutas de tráfico internacional de lixo nas disposições da Lei das Organizações Criminosas e na Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro, bem como seus principais aspectos processuais, no que tange aos meios investigativos e de prova.
Por fim, buscar-se-á, em conclusão, verificar se a legislação brasileira pode ser qualificada como eficaz na prevenção e no combate do tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos ou se, ao contrário, o país está credenciado a se tornar destinatário do lixo tóxico ou perigoso produzido nos países ricos.
1 O tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos e de outros resíduos no âmbito da Convenção da Basileia
A Convenção da Basileia foi adotada no âmbito da Organização das Nações Unidas após a descoberta, na década de 80, de inúmeros depósitos de lixo tóxico proveniente de países ricos no continente africano. Seu texto original foi promulgado em 22 de março de 1989, na cidade da Basileia, na Suíça, por 105 países e pela Comunidade Europeia. Todavia, a Convenção da Basileia só entrou em vigência a partir da ratificação parlamentar do vigésimo país, fato que ocorreu apenas em maio de 1992. No primeiro semestre de 2006, 168 países já a haviam ratificado, sendo que apenas 25 países-membros das Nações Unidas ainda não a ratificaram. Os Estados Unidos da América são o único país-membro da OCDE que não a ratificou.
A Convenção da Basileia foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com a edição do Decreto Presidencial nº 875/93, após a autorização do Decreto Legislativo nº 34/92. Sua regulamentação somente veio a implementar-se integralmente com a edição da Resolução Conama nº 23/96.
O alcance da Convenção abrange a movimentação transnacional dos resíduos definidos em seus anexos e exclui, desde logo, os resíduos radioativos e os resíduos decorrentes de operações normais de navios, os quais possuem regulamentação internacional específica.
O governo brasileiro, ao incorporar seu texto ao direito interno, fez a ressalva de que a Convenção representa, tão somente, um “primeiro passo” rumo ao controle mais efetivo dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, uma vez que a convenção flexibiliza excessivamente a exportação, não materializando um compromisso claro dos países ricos no sentido da redução ou mesmo cessação de tais práticas.
Conforme esclarece Marcelo Motta Veiga:
“Existe uma forte pressão internacional para a ratificação de uma emenda à Convenção da Basileia que prescreva a proibição total do comércio internacional de resíduos sólidos perigosos, especialmente entre países-membros da OCDE (na condição de geradores) e países não membros da OCDE (na condição de receptores). A essa emenda contrapõe-se o argumento americano de que qualquer restrição ao comércio internacional deve ser analisada especificamente, e não de forma generalizada. A fundamentação para essa argumentação é basicamente econômica, porque uma proibição generalizada prejudicaria aqueles países receptores de resíduos perigosos que possuíssem tecnologia e infraestrutura apropriadas para dar um destino adequado aos resíduos perigosos do ponto de vista socioambiental.”(1)
No que tange especificamente ao tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos, o artigo 4º, item 3, da Convenção em análise estabelece que “as partes consideram que o tráfico ilícito de resíduos perigosos ou outros resíduos constitui infração penal”. Por sua vez, a definição de tráfico ilícito está estampada em seu artigo 9º, abaixo transcrito, para melhor clareza:
“1. Para os efeitos do presente Convênio, todo movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou de outros resíduos realizado:
a) sem notificação a todos os Estados interessados conforme as disposições do presente Convênio; ou
b) sem o consentimento de um Estado interessado conforme as disposições do presente Convênio; ou
c) com o consentimento obtido dos Estados interessados mediante falsificação, falsas declarações ou fraude; ou
d) de forma que não corresponda aos documentos em um aspecto essencial; ou
e) que implique a eliminação deliberada (por exemplo, o derramamento) dos resíduos perigosos ou de outros resíduos em contravenção a este Convênio ou dos princípios gerais do direito internacional,
serão considerados tráfico ilícito.
2. No caso de um movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou de outros resíduos considerado tráfico ilícito como consequência da conduta do exportador ou do gerador, o Estado de exportação velará para que ditos resíduos sejam:
a) devolvidos pelo exportador ou gerador, ou, se for necessário, por ele mesmo, ao Estado de exportação ou, se isto não for possível;
b) eliminados de outro modo em conformidade com as disposições deste Convênio, no prazo de 30 dias desde o momento em que o Estado de exportação tenha sido informado do tráfico ilícito, ou dentro de qualquer outro período de tempo que convenha aos Estados interessados. Para tal efeito, as Partes interessadas não se oporão à devolução dos ditos resíduos ao Estado de exportação, nem a obstarão ou impedirão.
3. Quando um movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou de outros resíduos seja considerado tráfico ilícito como consequência da conduta do importador ou do eliminador, o Estado de importação velará para que os resíduos perigosos de que se trata sejam eliminados de maneira ambientalmente racional pelo importador ou eliminador ou, caso necessário, por ele mesmo, no prazo de 30 dias a contar do momento em que o Estado de importação tenha tido conhecimento do tráfico ilícito, ou em qualquer outro prazo que convenha aos Estados interessados. Para esse efeito, as Partes interessadas cooperarão, segundo seja necessário, para a eliminação dos resíduos de forma ambientalmente racional.
4. Quando a responsabilidade pelo tráfico ilícito não puder ser atribuída ao exportador ou gerador nem ao importador ou eliminador, as Partes interessadas ou outras partes, seja como for, cooperarão para garantir que os resíduos de que se trata sejam eliminados o quanto antes de maneira ambientalmente racional no Estado de exportação, no Estado de importação ou em qualquer outro lugar em que seja conveniente.
5. Cada parte promulgará as disposições legislativas nacionais adequadas para prevenir e castigar o tráfico ilícito. As Partes Contratantes cooperarão de forma a alcançar os objetivos deste artigo.”(2)
Ainda que se considere que a norma supratranscrita tenha sido incorporada ao Direito Brasileiro com caráter de norma infraconstitucional e situada, portanto, nos mesmos planos de validade, eficácia e autoridade em que se posicionam as leis ordinárias,(3) não se pode considerar que tal dispositivo tenha tipificado penalmente a conduta do tráfico internacional de resíduos sólidos perigosos e outros resíduos no âmbito do direito interno brasileiro, na medida em que se limitou a descrevê-la sem, no entanto, estabelecer os demais elementos do injusto penal, tais como as penas cominadas e seu regime, o eventual cabimento da forma culposa, etc.
Como se analisará com maior profundidade no tópico relacionado à definição de organizações criminosas, não há óbice para que delitos e penas sejam definidos por Tratados Internacionais. No presente caso, contudo, as disposições da Convenção da Basileia acima transcritas não tipificaram penalmente a conduta.
O tráfico internacional ilícito foi descrito com a finalidade específica de determinar as medidas cabíveis no plano internacional, tais como a devolução dos resíduos ao país gerador ou, na impossibilidade da medida, a destinação final dos resíduos de forma ambientalmente correta.
No que tange aos aspectos penais, o texto da convenção limitou-se a obrigar os países signatários a editar os dispositivos legais necessários à prevenção e à repressão do delito de tráfico internacional de resíduos, considerando que os dispositivos contidos na própria convenção não suprem tal desiderato.
A Convenção da Basileia, portanto, em relação ao tráfico ilícito de resíduos sólidos perigosos, materializa um compromisso de que o Brasil, na qualidade de país signatário, edite normas de direito interno que criminalizem a conduta e estabeleçam as penas.
Do quanto restou exposto neste item, uma consequência jurídica imediata da previsão supratranscrita é atrair para o âmbito de competência da Justiça Federal, na forma do art. 109, V, da Constituição Federal, o processamento e julgamento das ações penais relativas a tais delitos.
2 Aspectos penais do tráfico internacional de resíduos sólidos perigosos e de outros resíduos no âmbito do direito interno brasileiro
2.1 Da tipificação
Não há na legislação penal ambiental brasileira um tipo incriminador específico que contemple a conduta de tráfico internacional de resíduos nos moldes da descrição ofertada pela Convenção da Basileia.
Apenas a conduta de exportar ou importar resíduos sólidos perigosos ou outros resíduos em desconformidade com as exigências legais está definida, no art. 56 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, nos seguintes termos:
“Art. 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Redação dada pela Lei nº 12.305, de 2010)
I – abandona os produtos ou substâncias referidos no caput ou os utiliza em desacordo com as normas ambientais ou de segurança; (Incluído pela Lei nº 12.305, de 2010)
II – manipula, acondiciona, armazena, coleta, transporta, reutiliza, recicla ou dá destinação final a resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou regulamento. (Incluído pela Lei nº 12.305, de 2010)
§ 2º Se o produto ou a substância for nuclear ou radioativa, a pena é aumentada de um sexto a um terço.
§ 3º Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.”
O tipo penal acima transcrito, apesar de não contemplar uma descrição legal completa do tráfico ilícito de resíduos sólidos, tal como expressa na Convenção da Basileia, contém em sua definição as principais condutas caracterizadoras das movimentações ilícitas – importar e exportar. Contudo, ficou fora do tipo penal plasmado pela legislação brasileira a importação ou exportação mediante fraude ou falsidade, descrita pela Convenção em seu art. 9º. O art. 15, II, o, da Lei dos Crimes Ambientais define tão somente como agravante o “abuso do direito de licença, permissão ou autorização ambiental”, mas não penaliza, de forma específica, a falsidade como meio para a prática do tráfico ilícito de resíduos.
O tipo do art. 56 da Lei nº 9.605/98, uma vez aplicado ao tráfico internacional de resíduos, tutela a um só tempo o meio ambiente, a saúde humana e a própria regularidade das relações internacionais entre os países integrantes da comunidade internacional. Cabe referir, ainda, que a tutela ao meio ambiente, no caso do tráfico internacional de lixo, por exemplo, tem adquirido dimensões globais. A repressão a esse delito deve ser proporcional à sua gravidade.
Como esclarecem Luiz Flávio Gomes e Sílvio Maciel, “os objetos materiais são produtos e substâncias tóxicas (venenosas), perigosas (que causam perigo) ou nocivas (prejudiciais; que causam danos) à saúde humana ou ao meio ambiente”.(4)
Trata-se de norma penal em branco, uma vez que a definição dos produtos e substâncias acima referidos deve constar de lei ou regulamento. No ponto específico, a Resolução Conama nº 23/96 incorporou ao direito interno os anexos da Convenção da Basileia, definindo, no âmbito dos movimentos transfronteiriços de resíduos sólidos, as substâncias que necessitam de autorização prévia para movimentação internacional e aquelas cuja movimentação é proibida.
Pertinente, ainda, a Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Tal norma, em seu art. 3º, faz a importante diferenciação entre resíduo sólido e rejeito:
“Art. 3º Para os efeitos desta lei:
(...)
XV – rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada;
XVI – resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível;”
O art. 13, II, a, da Lei nº 12.305/2010 dá a definição legal de resíduo sólido perigoso como aquele que, “em razão de suas características de inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade, patogenicidade, carcinogenicidade, teratogenicidade e mutagenicidade, apresentam significativo risco à saúde pública ou à qualidade ambiental, de acordo com lei, regulamento ou norma técnica”.
Com base nessas importantes definições, o art. 49 da Lei nº 12.305/2010 dispôs de forma taxativa:
“Art. 49. É proibida a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como de resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma, reúso, reutilização ou recuperação.”
Dessa forma, não há dúvidas de que a importação de resíduos sólidos perigosos, rejeitos ou resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma, reúso, reutilização ou recuperação, ademais de proibida pela Lei nº 12.305/2010, também constitui crime, sujeitando o infrator às penas do art. 56 da Lei nº 9.605/98.
Não apenas a importação, mas também a exportação em descompasso com as definições da Convenção da Basileia, regulamentada internamente pela Resolução Conama nº 23/96, materializa crime, ainda que não vedada expressamente em lei, tal como o fez a Lei nº 12.305/2010 em relação às importações de resíduos.
Como se pode concluir, neste ponto, a lei brasileira não tipificou de forma específica o delito de tráfico internacional ilícito de resíduos sólidos perigosos ou proibidos, tal como recomenda a Convenção da Basileia. Optou por incluir as condutas de importar e exportar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos em tipo penal de maior abrangência, nos termos do art. 56 da Lei dos Crimes Ambientais.
Não há, portanto, do ponto de vista do Direito Penal brasileiro, uma preocupação específica com o tema.
Contudo, dentro da tipificação possível na legislação ambiental brasileira, cabe perquirir se as penas estabelecidas guardam proporção com a gravidade do delito de tráfico internacional de resíduos sólidos e de outros resíduos proibidos.
2.2 Das penas aplicáveis à pessoa física
Se o crime for cometido por pessoa física, na forma dolosa, a pena prevista é de reclusão de 1 a 4 anos e multa. Tal pena, em uma análise sistemática da legislação penal brasileira, não pode ser considerada grave. Isso porque, como primeira consequência da fixação da pena neste patamar, é cabível para este delito o instituto despenalizador da suspensão condicional do processo, na forma dos artigos 28 da Lei nº 9.605/98 e 89 da Lei nº 9.099/95.
É certo que, em se tratando de delito ambiental, além do cumprimento das condições gerais estabelecidas pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95,
“a extinção da punibilidade não se dará somente pelo cumprimento das condições impostas pelo juiz e pelo esgotamento do período de prova, estando condicionada ainda à reparação do dano ambiental (salvo impossibilidade de fazê-la), comprovada pericialmente por laudo de constatação de reparação do dano ambiental.”(5)
A adequada reparação, no caso de importação ilegal de resíduos sólidos perigosos, rejeitos ou outros resíduos descritos pela Convenção da Basileia e pela Resolução Conama nº 23/96, seria a “reexportação” ao País de origem, às expensas do importador, medida, aliás, preconizada na própria Convenção. No caso de exportação ilegal, a repatriação dos resíduos e a destinação ambientalmente correta destes. Se a importação ou a exportação dos resíduos perigosos tiverem ocasionado outros danos ambientais, cabe a produção de laudo de constatação para possibilitar a reparação integral, na forma do art. 28, I, da Lei nº 9.605/98.
Cumpre referir que, se o laudo atestar que não houve reparação, o juiz deve revogar a suspensão e determinar o prosseguimento do processo. Pertinente também anotar que, na hipótese de constatação de reparação apenas parcial, haverá prorrogação do período de prova até o máximo de 01 (um) ano, com a suspensão do prazo de prescrição, a teor do inciso II do art. 28 da Lei nº 9.605/98.
No caso de hipotética condenação, ressalvada a improvável hipótese de fixação da pena máxima de quatro anos, será cabível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, na forma do art. 7º da Lei nº 9.605/98, quais sejam, a prestação de serviços à comunidade, a interdição temporária de direitos, a suspensão parcial ou total de atividades, a prestação pecuniária e o recolhimento domiciliar (art. 8º da Lei nº 9.605/98).
No que tange à fixação da pena de prestação pecuniária, quando o delito envolver o tráfico internacional de resíduos sólidos, o julgador deve cercar-se de cuidados, de acordo com o caso concreto. Consoante se examinará com maior detalhamento no item pertinente às organizações criminosas voltadas ao tráfico internacional de resíduos sólidos, tal atividade pode ser extremamente rentável.(6) Dessa forma, convém ao Magistrado fixar a prestação pecuniária em patamar que não represente um estímulo à continuidade da atividade criminosa, de forma a ser absorvido com facilidade pelos “custos da operação”. Neste ponto, todavia, reside uma fragilidade da legislação ambiental brasileira, uma vez que o art. 12 da Lei nº 9.605/98 limita o patamar máximo da prestação pecuniária em 360 salários-mínimos, o que, para uma grande organização criminosa, pode representar um custo irrisório.
Cabível, ainda, a fixação de pena de multa, na forma do art. 18 da Lei nº 9.605/98.
Saliente-se, ainda, que a reincidência, nos delitos ambientais, somente pode ser reconhecida se o crime anterior também for de natureza ambiental, o que a doutrina denomina de reincidência específica (art. 15, I, da Lei 9.605/98). Se o agente já tiver sido condenado em sentença transitada em julgado por delito de outra natureza, não ambiental, tal fato deve ser considerado como mau antecedente na fixação da pena-base.
Na forma culposa, a pena é de detenção de seis meses a 1 ano e multa, o que configura crime de menor potencial ofensivo, passível de transação penal, na forma dos artigos 27 da Lei nº 9.605/98 e 76 da Lei nº 9.099/95.
Como visto, as penas e os institutos despenalizadores cabíveis para o delito em questão são desproporcionais à gravidade que o tráfico internacional de resíduos vem assumindo no cenário mundial.
2.3 Das sanções aplicáveis às pessoas jurídicas
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é dos temas mais discutidos no âmbito do direito penal ambiental. Muito embora várias vozes tenham se levantado no sentido da impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, com base no vetusto princípio “societas delinquere non potest”, o certo é que, no âmbito do STJ, a matéria encontra-se pacificada.
Nas palavras do Min. Gilson Dipp, “ao lado de um direito penal baseado na culpa individual, surge um vigoroso movimento criminalizador das condutas e empresas que não pode ser ignorado, dada sua relevância internacional”.(7)
De fato, como ressalta Paulo Afonso Brum Vaz,
“a pessoa jurídica, por meio de seu centro de decisão formado pelos administradores, é capaz de desacatar, conscientemente, normas penais. Recebe a pena como prevenção especial, a fim de que não volte a delinquir, para que adapte o desenvolvimento das atividades aos bens sociais objeto da tutela. Com efeito, a pena visa a prevenir o crime, não a castigar ou remendar o defeito psicológico ou moral. E, portanto, pode ser aplicada tanto a pessoas naturais como a pessoas jurídicas.”(8)
Dessa forma, também as pessoas jurídicas podem ser agentes do delito de tráfico internacional de resíduos perigosos ou rejeitos. Vários são os recentes casos em que os portos brasileiros têm recebido, por intermédio de pessoas jurídicas importadoras, contêineres abarrotados de resíduos sólidos perigosos, lixo hospitalar e outros “produtos” similares.
Cite-se, exemplificativamente, a seguinte notícia, publicada pela Agência Estado:
“A recente interceptação no Porto de Rio Grande de um contêiner com 22 toneladas de lixo, proveniente da Alemanha, é preocupante porque está longe de ser um caso isolado. Somente no ano passado, 1,4 mil toneladas de lixo embarcadas na Grã-Bretanha foram detectadas em Santos, em Rio Grande e no porto seco de Caxias do Sul. Isso é mais do que suficiente para soar um alerta. Crescem as evidências de que o Brasil está hoje entre os destinos para o descarte de lixo internacional, o que exige uma enérgica reação das nossas autoridades.
O tráfico ilegal de lixo dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento transformou-se em um lucrativo negócio, operado por quadrilhas internacionais. Segundo o diretor de qualidade do Ibama, Fernando Marques, os envolvidos na importação de lixo flagrada em Rio Grande tinham a intenção de ‘testar’ a inspeção portuária brasileira.
Felizmente, a ação do Ibama, em conjunto com a Receita Federal, funcionou bem nesse caso. Sem desmerecer esse trabalho, é de supor que outras toneladas de resíduos sólidos, rejeitos, matéria orgânica e, presumivelmente, material pesado tenham entrado no País, de forma disfarçada, em outros terminais em que a fiscalização é menos rigorosa.
O órgão impôs uma multa de R$ 1,5 milhão à transportadora sul-coreana Hanjin Shipping e deu-lhe um prazo de dez dias para devolver o material à sua origem. Mas a empresa não foi proibida de operar em portos brasileiros. A Recoplast, a importadora, recebeu multa de R$ 400 mil, mas, segundo seu advogado, recorrerá da decisão, sob a alegação de que foi lesada pelos exportadores, aos quais teria encomendado aparas de polímeros de etileno para reciclagem. Assinale-se, a propósito, que ambientalistas contestam a necessidade de importar material para reciclagem, do qual existe oferta abundante no País. Faz-se necessária, portanto, uma acurada investigação aqui e na Alemanha, com a colaboração de seus órgãos de defesa do meio ambiente, bem como da Interpol, que recentemente passou a se ocupar dessa questão.
No contêiner apreendido, foram encontradas embalagens de produtos de limpeza usadas, fraldas descartadas, rações e alimentos em decomposição e matéria orgânica diversa, reforçando a hipótese de ser este, de fato, um teste dos traficantes para verificar se era possível tornar regular, sem maiores riscos, essa prática criminosa. Segundo estudo da organização suíça International Relations and Security Network (ISN), o principal foco do negócio ilegal de transporte internacional de lixo está hoje nos componentes tóxicos de computadores obsoletos, telefones celulares e aparelhos eletrônicos diversos, dos quais os países desenvolvidos querem se ver livres, não só por causa da limitada capacidade para lhes dar destino final em seu território, como também pelo alto custo disso.”(9)
Às pessoas jurídicas responsabilizadas penalmente pelo delito em análise, seriam cabíveis, em tese, as penas de multa, de suspensão parcial ou total de atividades, de interdição temporária do estabelecimento ou da atividade, de proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, e de prestação de serviços à comunidade, na forma dos artigos 21 e 22 da Lei nº 9.605/98.
Tais dispositivos têm recebido críticas da doutrina diante da ausência de fixação legal de patamares mínimos e máximos de duração das referidas penas.(10) Na ausência de fixação desses patamares, doutrina e jurisprudência têm defendido a fixação nos mesmos patamares das penas privativas de liberdade cominadas pela lei para as pessoas físicas.
No caso do tráfico internacional de resíduos, mostra-se peculiar o fato de que, em grande parte dos casos, há grande probabilidade de envolvimento de empresas estrangeiras, especialmente se houver indícios ou elementos mais consistentes de prova da existência de organização criminosa. Essas empresas podem ter suas sedes fora do Brasil e não ter nenhuma representação nacional ou bens situados no Brasil, o que pode dificultar ou mesmo inviabilizar a execução das penas de prestação pecuniária e multa.
De outro lado, as demais penas restritivas de direito, tais como a suspensão parcial ou total de atividades, a interdição temporária do estabelecimento ou da atividade, a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, e a prestação de serviços à comunidade, serão, de igual forma, inexequíveis ou inócuas.
Em casos tais, a única modalidade de pena que pode apresentar alguma resposta efetiva do ordenamento jurídico brasileiro é a proibição de operar em portos brasileiros por período proporcional à pena privativa de liberdade cominada para o delito, ou seja, por um prazo máximo de 04 (quatro) anos, se não houver aplicação de agravantes (reincidência específica, por exemplo).
No que tange à prestação pecuniária e à pena de multa, da mesma forma, os patamares são idênticos àqueles fixados para as pessoas físicas, o que pode estimular a macrocriminalidade, diante dos valores irrisórios que a aplicação destas penas pode representar, em franca desproporção com os lucros astronômicos que o tráfico internacional de resíduos pode gerar.
Cabe referir, ainda, que, no caso de pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática do delito em análise, é cabível a decretação de sua liquidação forçada, a teor do art. 24 da Lei nº 9.605/98.
2.4 Da prescrição
Outro aspecto que deve ser abordado diz respeito à prescrição.
Com efeito, a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime. No caso do delito em comento, em que a pena máxima é de 04 anos, opera-se, portanto, em 8 (oito) anos (art. 109, IV, do Código Penal).
Tal lapso temporal pode parecer, à primeira vista, suficiente para a investigação do fato em inquérito policial e para a instrução de hipotética ação penal, sem margem para a decretação da prescrição.
Entretanto, e embora o STJ tenha fixado o entendimento, por meio da Súmula nº 438, de que é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal, é certo que, em muitos casos, a jurisprudência(11) tem reconhecido a possibilidade de reconhecer-se a ausência de justa causa para o início ou prosseguimento da ação penal, se inexistentes elementos que indiquem que, em caso de condenação, a pena-base aplicada se afastaria do mínimo cominado em abstrato.
De fato, considerando que, nos termos da Súmula nº 444 do STJ, “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”, a ausência de outros elementos que indiquem que, em caso de condenação, a pena-base aplicada se afastaria do mínimo cominado em abstrato, ou seja, de 1 (um) ano, a prescrição verificar-se-ia em 4 (quatro) anos, lapso que pode se revelar insuficiente para a apuração dos fatos em inquérito e para a instrução da correspondente ação penal, notadamente se tais fatos revelarem-se complexos, como em geral se apresentam aqueles que envolvem as redes internacionais de tráfico de produtos ou substâncias proibidas. A prescrição, inevitavelmente, resulta em impunidade, o que se revela particularmente preocupante em se tratando de delito de tal gravidade.
3 O tráfico internacional de resíduos sólidos, a pluralidade subjetiva e o crime organizado
As organizações criminosas estão voltando sua atenção para o tráfico ilícito internacional de resíduos e rejeitos, devido aos grandes lucros obtidos com a atividade. Tal vinculação entre crime organizado e tráfico internacional de lixo é de conhecimento generalizado. Confiram-se os seguintes trechos de recentes documentários, citados apenas exemplificativamente:
“O tráfico de lixo ficou fora da Convenção de Palermo. Isso dada a vigência da Convenção da Basileia, de 1989, voltada a controlar, pela própria ONU, a movimentação de lixo perigoso e o seu tráfico intercontinental. A propósito, os EUA são os únicos integrantes do G-7 (sete países mais industrializados do planeta) que não ratificaram a Convenção da Basileia. Os demais países, é bom lembrar, firmaram a Convenção, mas não brecam o tráfico ilegal do lixo.
Muitas vezes, o tráfico é mascarado de exportações destinadas à reciclagem de material inexistente no pobre país importador. Nesses negócios enganosos, potentes corporações industriais assumem o papel de fautoras e beneméritas de uma nova tecnologia, que só cabe nos países do Terceiro Mundo.
(...)
É comum, com a intermediação mafiosa, que empresas sediadas em nações industrializadas constituam, por meio de testas-de-ferro, sociedades importadoras nos países que serão usados como latrinas.
Com efeito, todos os anos, os países industrializados precisam se livrar de 300 milhões de toneladas de lixo. Estima-se que o continente africano receba anualmente 50 milhões de toneladas de resíduos.
Nos anos de 1998 e 1999, o Greenpeace denunciou o envio de 100 mil toneladas de lixo tóxico para a Índia. Fora isso, e a título de exemplo para mostrar a gravidade da situação, os norte-americanos ‘aposentam’ 20 milhões de computadores/ano. Para surpresa geral, a China chegou a receber essa sucata e aproveitou alguns poucos componentes desses velhos equipamentos. Para isso, assumiu o ‘lixo do lixo’.
Na Convenção de Palermo, em dezembro de 2000, comentou-se o escândalo do navio MV ULLA, ocorrido em março daquele ano. O governo turco determinara a sua apreensão no porto de Isdemir, impedindo o descarregamento. O navio transportava lixo contendo cromo ativo (CrV1), classificado como altamente tóxico. A carga provinha de três centrais elétricas situadas no norte da Espanha.
Pelo apurado, outros 18 navios saídos da Espanha tinham descarregado anteriormente, na Argélia, igual lixo de metal químico. No caso do navio apreendido na Turquia, o desvio da rota original (Espanha–Argélia) deveu-se ao atraso na conclusão de uma barragem argelina. O lixo das centrais elétricas havia sido comprado por uma companhia de cimento espanhola. Essa empresa vendia cimento e concreto armado para a construção da barragem, onde o lixo era misturado e emparedado.”(12)
“Ecomáfia
O Triângulo da Morte está a poucos quilômetros de Nápoles. Lá, meninas menstruam aos 7 anos, ovelhas nascem com olhos abaixo da boca e as taxas de câncer são as mais altas da Itália. Graças à indústria do lixo industrial dominada pela Camorra. Em 1988, a máfia forçou pela primeira vez caminhoneiros que transportavam lixo tóxico a Nápoles a pagar por proteção. Bom lucro, mas logo a Camorra sacou que ganharia muito mais controlando esse setor que o extorquindo. Então abriu empresas de lixo. Enquanto uma de verdade cobrava US$ 1 para coletar cada quilo de tóxicos, a máfia, mascarada com nomes como Ecoverde, cobraria apenas US$ 0,10. Ela só não precisaria informar que o caminhão ficaria em uma usina de tratamento apenas pelo tempo suficiente para falsificar documentos. E logo despejaria o lixo como não tóxico em aterros sanitários – ou no mar, rios e campos próximos a plantações e pastos. Bom para a indústria, bom para a máfia – mas péssimo para quem come a mussarela de búfala. Depois de pastarem em áreas contaminadas com dioxina, búfalas produzem leite tóxico. O consumo de queijo caiu 40% na Itália, e países como Japão e Coreia do Sul barraram sua importação. A máfia trouxe tanto lixo do resto da Europa que, no Natal de 2007, Nápoles declarou seus aterros sanitários cheios. Cem toneladas dos restos das ceias de Natal e do Ano-Novo viraram por semanas banquete fétido para ratos e insetos nas ruas da cidade.
Outra máfia do sul da Itália, a ‘Ndrangheta, foi acusada em 2007 de traficar lixo nuclear de Itália, Suíça, França, Alemanha e EUA nos anos 80 e 90. Por amor a sua terra, os mafiosos teriam preferido enviar o lixo para a Somália a enterrar na Calábria. Segundo o Programa Ambiental da ONU, são inúmeros os carregamentos de lixo tóxico e nuclear que as praias da Somália recebem. E os barris enferrujados expõem o povo à radiação.”(13)
Diante desse contexto, cabe indagar se é possível, na legislação brasileira, o enquadramento do tráfico ilícito de resíduos na categoria dos crimes praticados por organizações criminosas.
A Lei nº 9.034/95 estabelece seu âmbito de aplicabilidade no art. 1º, ao enunciar que “define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Muito embora outros dispositivos dessa mesma lei mencionem “os crimes previstos nesta lei”, a opção legislativa foi claramente a de não criar novos tipos penais, limitando-se a fazer remissão aos tipos já definidos de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal) e à “organização criminosa”, sem, contudo, defini-la.
Quanto ao hipotético enquadramento nas penas do art. 288 do Código Penal, não há dificuldade: se o crime for praticado por um agrupamento de mais de três pessoas para o fim de cometer o tráfico ilícito de resíduos, haverá imputação. Note-se que o crime de tráfico internacional de resíduos, apesar de altamente reprovável, não está encartado no rol dos crimes hediondos, não havendo possibilidade, portanto, de se aplicar as penas de 3 a 6 anos previstas pelo art. 8º da Lei nº 8.072/90 ao crime em exame.
Entretanto, indaga-se: no caso do crime de tráfico ilícito de resíduos, havendo a associação de mais de três pessoas jurídicas para a prática do delito em exame, é possível o enquadramento nas penas do art. 288 do Código Penal, em concurso material com as penas do art. 56 da Lei dos Crimes Ambientais?
A resposta é positiva. Se a pessoa jurídica pode ser autora do crime ambiental, a teor do art. 3º da Lei nº 9.605/98, e o art. 288 do Código Penal tipifica a conduta de “associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”, sem fazer qualquer restrição à pessoa física ou jurídica, não há óbice. A consequência prática será, no caso do tráfico ilícito de resíduos, a possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito ao prazo correspondente à soma das penas dos delitos em questão, ou seja, pelo prazo máximo de 07 (sete) anos, sem agravamento da pena de multa, não prevista pelo art. 288 do CP.
Mas a questão nuclear é saber se, na existência de grupo criminoso organizado, constituído para o fim de praticar o tráfico ilícito de resíduos e rejeitos, seria possível a utilização das técnicas investigativas e processuais previstas na Lei nº 9.034/95 (Lei das Organizações Criminosas). Como visto, a opção legislativa foi de não definir no bojo da própria Lei nº 9.034/95 o que seria uma organização criminosa. A discussão que se trava na doutrina e na jurisprudência é acerca da possibilidade de utilização do conceito de organização criminosa utilizado na Convenção de Palermo, incorporada ao direito positivo brasileiro por força do Decreto Presidencial nº 5.015, de 12 de março de 2004, mediante autorização do Congresso Nacional, exarada no Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003.
Há forte tendência doutrinária no sentido da impossibilidade de utilização do conceito da Convenção de Palermo para a definição de “organização criminosa”. O argumento nuclear utilizado pela corrente doutrinária que defende a inaplicabilidade do conceito fornecido pela Convenção é fundamentado no princípio da reserva legal, entendido como lex populi, “que exige obrigatoriamente a participação dos representantes do povo na elaboração e aprovação do texto que cria ou amplia o ‘ius puniendi’ do Estado brasileiro”.(14)
Com a devida vênia, o princípio da reserva legal não traz em seu bojo a proibição de os Tratados Internacionais definirem delitos e penas. Isso porque seu processo de incorporação ao direito interno prevê a participação do Poder Legislativo, por meio da edição de Decreto Legislativo que conterá ou não autorização para o Presidente da República incorporar o texto do Tratado ao direito interno. Havendo discordância da maioria dos representantes do povo, a autorização não será concedida e o texto não será promulgado.
Com a ordem de execução, contida no Decreto Presidencial, o Tratado internacional passa a assumir o status de lei ordinária (salvo, por óbvio, aqueles que tratem sobre Direitos Humanos, aprovados na forma da EC nº 45/2004). Restringir a normatividade dos tratados que versem sobre o Direito Penal operaria em contrariedade aos dispositivos constitucionais que consagram sua normatividade no plano interno e à teoria dos Tratados internacionais construída ao longo de séculos pela doutrina do Direito Internacional,(15) além de constituir grave afronta ao princípio pacta sunt servanda, no plano internacional.
Não é demais lembrar que, à exceção dos Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já consolidou seu entendimento acerca da posição hierárquica dos demais Tratados no sistema jurídico pátrio.
Como bem sintetiza João Grandino Rodas:
“No julgamento do RE 80.004, que se desenrolou de fins de setembro de 1975 a meados de 1977, o Plenário do Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de discutir de forma ampla a matéria, tendo concluído, afinal, por maioria, que, em face do conflito entre tratado e lei posterior, vigeria esta última por representar a última vontade do legislador, embora o descumprimento no plano internacional pudesse acarretar consequências.”(16)
Além disso, como já sinalizou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 80.004, a hipotética revogação de um Tratado internacional por lei ordinária posterior acarreta consequências no plano internacional. Nesse diapasão, não se pode olvidar que, na normalidade das relações diplomáticas, sempre haverá a participação do Estado brasileiro nas instâncias internacionais que resultarão no teor do ato internacional. Entender-se em sentido contrário, ou seja, negar-se normatividade no plano interno para Tratados internacionais que definam delitos e penas, pode colocar o Estado brasileiro na posição de não cooperante, impedindo-o de granjear reciprocidade dos demais integrantes da comunidade internacional.(17)
Ademais, no caso específico dos delitos ambientais, há o compromisso expresso de Cooperação Internacional para a Preservação do Meio Ambiente, estampado nos artigos 77 e 78 da Lei dos Crimes Ambientais.
Desse modo, uma vez assente a possibilidade de utilização do conceito de organização criminosa estampado na Convenção de Palermo, cabe examinar a possibilidade de subsunção do delito de tráfico internacional ilícito de resíduos na definição ali contida.
O art. 2º da Convenção de Palermo estabelece os seguintes conceitos:
“a) ‘grupo criminoso organizado’ – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;
b) ‘infração grave’ – ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;
c) ‘grupo estruturado’ – grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada.”
É certo que o delito previsto no art. 56 da Lei dos Crimes Ambientais contempla pena máxima de 04 (quatro) anos, o que o situa no limiar da definição dada pelo art. 2º da Convenção de Palermo. Entretanto, não haverá qualquer óbice à sua qualificação nos dispositivos da Lei das Organizações Criminosas nos casos em que haja fundados indícios de prática sob a forma de quadrilha ou de crimes conexos, tais como crimes contra a Administração Ambiental, corrupção ou obstrução da justiça.
Outra nota definidora das organizações criminosas, segundo o art. 3º da Convenção de Palermo, é o seu caráter transnacional, elemento essencial do crime de tráfico internacional ilícito de resíduos.
Assim, não se vislumbra óbice à subsunção do delito de tráfico internacional ilícito de resíduos aos dispositivos da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995, e à utilização dos mecanismos de investigação e meios de provas ali previstos, uma vez configurados os requisitos acima expostos. Possível, nesse contexto, a utilização, por exemplo, de medidas de quebra de sigilo, ação controlada, colaboração premiada e outros meios de prova disciplinados pela Lei das Organizações Criminosas.
Como consequência, uma vez possível seu enquadramento no conceito normativo de organização criminosa nos moldes da Convenção de Palermo, também será possível, em tese, a subsunção ao art. 1º, VII, da Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, se comprovadas as condutas tipificadas na lei que define os Crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens.
Conclusões
O crime de tráfico internacional de resíduos sólidos perigosos e rejeitos tem assumido proporções cada vez mais alarmantes, como consequência do próprio processo de globalização e do aprofundamento das diferenças socioeconômicas entre os países membros e não membros da OCDE.
A alta rentabilidade do tráfico ilícito de resíduos tem atraído a atenção de organizações criminosas de todo o mundo, que passaram a se dedicar a esta atividade.
As ocorrências de tráfico internacional de resíduos nos portos brasileiros têm se tornado cada vez mais frequentes, mobilizando as autoridades competentes para a prevenção e repressão dessas condutas.
A movimentação de resíduos perigosos é regida, no plano internacional, pela Convenção da Basileia, que, entre outras medidas, define o tráfico internacional ilícito de resíduo e recomenda que os países signatários adotem medidas no sentido de defini-lo como infração penal em seus ordenamentos jurídicos internos.
No Brasil, o tráfico internacional ilícito de resíduos sólidos encontra-se parcialmente previsto na Lei nº 9.605/98, diploma legal que, além de não definir o crime com o detalhamento exigido pela Convenção da Basileia, estabelece penas desproporcionais com a gravidade do delito, além de permitir a utilização de instrumentos despenalizadores, tais como a transação penal, para a forma culposa, e a suspensão condicional do processo, para a forma dolosa.
A legislação brasileira e sua interpretação pretoriana favorecem a prescrição do delito e a consequente impunidade daí decorrente.
É possível o enquadramento do tráfico internacional de resíduos sólidos perigosos e rejeitos nas disposições da Lei das Organizações Criminosas, desde que o delito seja praticado por quadrilha ou bando e satisfaça as demais exigências contidas na Convenção de Palermo. Como consequência, é possível o hipotético enquadramento do tráfico internacional de resíduos sólidos praticado por organização criminosa como crime antecedente da Lei de Lavagem de Dinheiro.
Todavia, no que tange à repressão penal ao delito de tráfico internacional de resíduos sólidos, a legislação brasileira mostra-se ainda insuficiente, lacunosa e propensa à impunidade, e não satisfaz as exigências da Convenção da Basileia.
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2. PNUMA. Convenio de Basilea sobre el control de los movimientos transfronterizos de los desechos peligrosos y su eliminación. Protocolo sobre responsabilidad e indemnización por daños resultantes de los movimientos transfronterizos de desechos peligrosos y su eliminación. Disponível em: <http://www.basel.int/Portals/4/Basel%20Convention/docs/text/BaselConventionText-s.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2012. Traduzido do espanhol pela autora.
3. ADIn 1.480-DF, Rel. Min. Celso de Mello (j. 04.09.1997, DJ 18.05.2001, p. 429).
4. Legislação Penal Especial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 933.
6. “Ao contrário do imaginado, os lucrativos ‘negócios’ mafiosos não se exaurem no tráfico de drogas, armas e pessoas. Outro filão enche os bolsos das máfias e de corporações industriais aliadas do Primeiro Mundo. Trata-se do tráfico internacional de lixo, perigoso à saúde humana e ao meio ambiente. Só em 2003, o ‘business’ do tráfico planetário de lixo rendeu 15 bilhões de euros (fonte europeia). E entre 2000 e 2002, o ganho progrediu de US$ 10 bilhões a US$ 12 bilhões (fonte norte-americana).” (O TRÁFICO de lixo. IBGF. Disponível em: <http://ibgf.org.br/index.php?data%5Bid_secao%5D=3&data%5Bid_materia%5D=8>. Acesso em: 27 abr. 2012.
8. TRF 4ª Região, MS 2008.04.00.005931-5. Rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 27.03.2008.
9. O LIXO dos outros. Estadão, São Paulo, 21 ago. 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,o-lixo-dos-outros,598424,0.htm>. Acesso em: 27 abr. 2012.
10. GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit., p. 841-842.
11. “PENAL. FALSO TESTEMUNHO. ARTIGO 342 DO CÓDIGO PENAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA AÇÃO PENAL. 1. Transcorrido considerável lapso temporal entre a data da conduta delituosa e a do recebimento da denúncia, o juízo poderá, por estimativa minuciosa, constatar que a pena eventualmente imposta ao réu, caso condenado, dará ensejo a extinção da punibilidade com base no artigo 107, inciso IV, do Código Penal, restando a demanda carente de interesse processual (artigo 43, inciso III, do Código de Processo Penal), já que seu resultado será nulo, o que afasta, em decorrência, a sua justa causa. 2. Trata-se de hipótese em que se está reconhecendo a ausência de interesse de agir para o início da persecução penal em juízo, e não decretando, a destempo, a extinção da punibilidade pela ‘prescrição antecipada’, com base na ‘pena em perspectiva’, pois se compreende a advertência que procede dos Tribunais Superiores, de que tal decreto encerraria uma presunção de condenação e, consequentemente, de culpa, violando o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII, da CF).” (RSE nº 2007.71.07.001876-4, Oitava Turma, Rel. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 02.12.2009)
14. LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 671. No mesmo sentido, entre outros: GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008.
15. Vide, entre outros: REZEK, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 332-383.
16. RODAS, João Grandino. Direito Internacional Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 52-53. No mesmo sentido, na defesa da paridade entre Tratado Internacional e lei ordinária, em textos doutrinários anteriores à Emenda Constitucional nº 20/98: STRENGER, Irineu. Direito Internacional Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 76-77; REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 106-107. A íntegra do acórdão do Supremo Tribunal Federal mencionado encontra-se em RTJ (1978), v. 83, p. 809-848.
17. BALTAZAR JR, José Paulo. Op. Cit., p. 153.
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