Conduta processual das partes (e de seus procuradores) como meio de prova e a teoria narrativista do Direito(1)

Autor: Eduardo Cambi

Promotor de Justiça no Estado do Paraná, Coordenador do Grupo de Trabalho de Combate à Corrupção, Transparência e Controle Social da Comissão de Direitos Fundamentais do CNMP, Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia

 publicado em 18.12.2013



Sumário: 1 Valoração judicial da conduta processual. 2 Verdade e teoria narrativista do direito. Referências bibliográficas.

1 Valoração judicial da conduta processual

O juiz, na condução das atividades probatórias, pode observar, racionalmente, o comportamento das partes.(2) Pode extrair indícios ou argumentos de prova dos comportamentos, comissivos ou omissivos, dos litigantes.

A valoração probatória da atividade das partes decorre dos deveres impostos pelo artigo 14, inc. II, do Código de Processo Civil, segundo o qual os litigantes, e todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, devem proceder com lealdade e boa-fé.

A boa-fé deve ser compreendida como uma cláusula geral processual. É um meio de colmatação de lacunas, especialmente nas hipóteses em que não se pode definir, com precisão, a conduta processual. Não teria sentido que todas as situações de abuso de direito processual fossem, expressamente, previstas na lei processual. Logo, a utilização da cláusula geral da boa-fé se justifica como forma de sancionar toda a conduta desleal e abusiva.

A valoração da atividade das partes também pode ser retirada do artigo 345 do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz, verificando que a parte deixou de responder o que lhe foi perguntado ou tendo aplicado evasivas, pode declarar se houve recusa de depor, com base nas demais circunstâncias e elementos de prova. Também pode ser extraída do artigo 359 do Código de Processo Civil, pelo qual o magistrado, ao decidir sobre a recusa da exibição de documento ou coisa, pode admitir como verdadeiros os fatos que, por meio deles, a parte pretendia provar, se o requerido não fizer a exibição no prazo de cinco dias, se não justificar as razões da não exibição ou, ainda, se tal recusa for havida por ilegítima.

No direito estrangeiro, há vários exemplos similares.(3) Na Itália, o artigo 116 do Código de Processo Civil prevê que o juiz pode extrair argumentos de prova das respostas das partes ao interrogatório informal, da recusa injustificada de consentir as inspeções ordenadas e, de modo amplo, do comportamento que mantenham no processo. Na Argentina, o Código Procesal Civil y Comercial de La Nación Argentina dispõe, no artigo 163, item 5, que a “conducta observada por las partes durante la sustanciación del proceso podrá constituir un elemento de convicción corroborante de las pruebas, para juzgar la procedencia de las respectivas pretensiones”. Na Colômbia, o Código de Procedimiento Civil estipula, no artigo 249: “La conducta de las partes como indicio. El juez podrá deducir indicios de la conducta procesal de las partes”. Em Portugal, o artigo 519 do Código Civil contém o dever de cooperação para a descoberta da verdade, prescrevendo, no item 2, que aqueles “que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis”. Ademais, “se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ônus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Código Civil”.

O comportamento passível de valoração é o das partes. O conceito de partes é processual. Por isso, o que deve ser valorado é apenas a sua conduta dentro do processo. O comportamento extraprocessual (v.g., manifestações dos litigantes na imprensa, suposta coação de testemunhas etc.) pode ser objeto das provas típicas, não podendo ser avaliado como prova atípica.

No curso do processo, pode ser examinada a conduta omissiva (v.g., a recusa em depor, a falta de impugnação específica ou de contestação, a negligência, a passividade, a ausência de justificativa etc.) e a comissiva (v.g., destruição de provas, afirmações mentirosas, contraditórias e inverossímeis etc.). Desse modo, podem ser citados como exemplos de condutas processuais passíveis de valoração probatória(4): i) a negativa de exibir documentos ou coisas; ii) a informação de endereços falsos para evitar intimações; iii) o desconhecimento malicioso de uma assinatura em um documento; iv) a dedução de nulidades e incidentes infundados; v) a ausência voluntária de depósito das custas processuais/antecipação dos honorários de perito; vi) a falta de colaboração maliciosa ou infundada com os peritos; vii) a obstrução injustificada na produção de uma prova; viii) a resistência injustificada na realização de reconhecimento de pessoa ou de coisa; ix) as respostas dadas pelas partes ao serem interrogadas ou ao prestarem informações ou quando são demandadas pela parte contrária; x) o não comparecimento aos atos processuais; xi) a obstrução ao curso regular do processo; xii) a formulação de impugnações manifestamente improcedentes.

Contudo, trata-se de mecanismo de avaliação subsidiária das provas, podendo ter utilidade, desde que amparada em argumentos racionais, quando as provas produzidas são insuficientes para a reconstrução dos fatos.

Carlo Furno(5) considera a conduta processual como um fato que prova outro fato e, desse modo, se tratará, em todo caso, de um motivo subsidiário, com natureza de indício. Este nada mais é do que o fato conhecido que indica o fato desconhecido, o qual é a sua causa ou o seu efeito; são os fatos secundários que servem de pressupostos das presunções ou fontes de presunções, já que, a partir deles, podem ser deduzidos os efeitos jurídicos dos fatos principais (isto é, os constitutivos, impeditivos, extintivos ou modificativos), que são diretamente relevantes para o julgamento da causa.(6)

Do mesmo modo, Misael A. Alberto afirma que “se puede colegir que la conducta desplegada por las partes durante el proceso es fuente de prueba indiciaria, es decir, como hecho que prueba otro hecho”.(7) Igualmente, Fernando Adrián Heñin sustenta que “según el caso adquirirá el valor de uno o varios indicios, los cuales, si son varios, graves, precisos y concordantes podrán constituir una fuente única de presunción”.(8)

Logo, é possível concluir que a conduta processual é espécie do gênero prova indiciária, servindo como fato secundário do qual pode ser extraída presunção simples (ou jurisprudencial).

No entanto, cumpre indagar se a conduta processual, por si só, pode ser suficiente para a formação do convencimento judicial.

Francesco Carnelutti defende a possibilidade da presunção única, quando exemplifica: “quem se atreverá a sustentar, por exemplo, que exista unicamente probabilidade de que Tício seja mais jovem que Caio, quando o resultado se infere, não do depoimento, senão do fato de que Tício é filho de Caio?”.(9)

No Brasil, não consta do texto legal nenhuma regra jurídica sobre a valoração do comportamento processual das partes. No direito estrangeiro, já há legislações que contemplam tal possibilidade. Nesse sentido, o artigo 426 do Código de Procedimientos en lo Civil do Chile prevê: “Las presunciones como medios probatorios se regirán por las disposiciones del artículo 1712 del Código Civil”. Por sua vez, a segunda parte desse artigo 426 explicita: “Una sola presunción puede constituir plena prueba cuando, a juicio del tribunal, tenga caracteres de gravedad y precisión suficientes para formar su convencimiento”.

Por outro lado, o artigo 2.729 do Código Civil italiano é mais cauteloso, dispondo, na primeira parte, que “As presunções não previstas pela lei são deixadas ao prudente exame do juiz”, o qual pode extrair de um fato conhecido um outro desconhecido. Porém, a segunda parte do mesmo dispositivo determina que “o juiz não deve admitir senão presunções graves, precisas e concordantes”. Desse modo, não se trata de uma liberdade de formação do convencimento judicial sem limites, exigindo-se cautelas antes de possibilitar o uso de regras de experiência para deduzir de fatos conhecidos outros desconhecidos. As expressões “graves” e “precisas” significam que as regras de experiência devem ser sérias; por “concordantes”, entende-se que deve haver um concurso de mais indícios, o que não exclui a possibilidade de uma única presunção poder bastar para o convencimento judicial.(10) Portanto, a teoria que melhor se ajusta é a da múltipla conformidade, pela qual basta a valoração judicial global dos indícios, que devem ser precisos, graves e concordantes em seu conjunto, não isoladamente.(11) Assim, um indício não preciso, não grave e não concordante não compromete o resultado final, tudo dependendo do contexto amplo das provas produzidas, único modo de se chegar a um juízo de certeza.

No sistema processual brasileiro, há de se aceitar que a conduta processual única possa gerar o convencimento necessário, pois tal valoração decorre da regra aberta prevista no artigo 332 do Código de Processo Civil. Em outras palavras, não é imprescindível que a prova do fato esteja baseada em mais de um indício, embora tal indício, quando único, tenha de exibir valor probatório muito elevado.(12)

Essa orientação também tem prevalecido na Argentina, como explica Daniel Fernando Acosta: “no existen objeciones sobre que la misma pueda resultar un único indicio, capaz de lograr – por su sola virtualidad – el convencimiento del juez”.(13) A propósito, vale mencionar um julgado (Cám. Civ. 2º de Cap., 14.8.45, ‘Medina Onrubia de Botana, Salvadora c Salgado Juan s/Suc.’, L. L. 39-735), no qual se considerou que“el silencio observado es muy significativo (...) esa inactividad proporciona un indicio grave (...) porque una sola presunción puede bastar para admitir un hecho litigioso, según lo enseña la doctrina”.(14)

Cabe acrescentar que a valoração do comportamento processual das partes pode ser realizada de ofício pelo magistrado, pois se trata de um fato percebido diretamente por ele e está dentro da esfera do seu livre convencimento motivado, autorizado pela regra do artigo 131 do Código de Processo Civil (“O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”).(15)

Entretanto, o órgão judicial somente pode valorar as provas constantes dos autos, não podendo introduzir impressões pessoais ou conhecimentos extraprocessuais que não possam ser objeto de contraditório e ampla defesa pelos litigantes.(16) Para evitar decisões surpresa, deve o juiz buscar o diálogo com as partes, a fim de que o indício seja efetivamente demonstrado por meios de prova típicos ou seja objeto de contraprova.

Na valoração da conduta processual das partes, também é possível atribuir valor à autocontradição, que tem origem nas diferentes versões encontradas nos autos acerca do mesmo fato e proporcionadas pela mesma parte durante o desenvolvimento processual. A doutrina da “intercadência” sustenta que, nessas hipóteses, deve ter-se por certa a versão menos benéfica para o autocontraditor, valorando desfavoravelmente a conduta incoerente, mediante a elaboração de presunção judicial que lhe seja desfavorável.(17) É a situação, por exemplo, daquele que, em ação por acidente de trânsito, confessa a sua culpa no juízo criminal, dizendo que estava dirigindo em alta velocidade, para poder beneficiar-se da atenuante prevista no artigo 65, inc. III, alínea d, do Código Penal, enquanto, no juízo cível, se utiliza de todos os mecanismos, inclusive a negativa de autoria dos fatos, mas acaba por anexar, aos autos, cópia do processo crime.(18)

Para fins de valoração da conduta processual, podem-se traçar certos parâmetros exegéticos, a serem ponderados de acordo com as circunstâncias do caso concreto, tais como: i) a impossibilidade de produzir outras provas relevantes nos autos; ii) a ausência de comportamento processual omissivo pela parte beneficiada da presunção; iii) estar a parte contrária de má-fé; iv) a natureza da questão debatida; v) a quantidade e a qualidade das condutas reprováveis.

Ademais, não se pode apenas querer valorar as condutas indevidas das partes. O juiz, quando do julgamento da causa, deve examinar todos os comportamentos dos litigantes, buscando justificar as razões que o levaram a agir ou a se omitir no processo. Assim, se a parte, no desenvolver do processo, teve condutas corretas, isso também servirá para corroborar os argumentos apresentados em seu favor.(19)

De qualquer modo, as inferências formuladas pelo juiz, a partir da exegese dos artigos 14, inc. II, 332 e 345 do Código de Processo Civil, devem ser logicamente corretas, racionalmente formuladas sob critérios cognitivos adequados e pertinentes, bem como controláveis mediante uma específica motivação do juízo dos fatos.

Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça considerou, em ação negatória de paternidade cumulada com anulatória de registro civil de nascimento, que a recusa injustificada da mãe (comportamento processual) em submeter seu filho à realização do exame do DNA gera presunção negativa de paternidade. Porém, advertiu que não é a simples recusa da genitora que faz presumir a inexistência do vínculo filial.(20) No caso concreto, tratava-se da persistente recusa, pela mãe, em submeter a criança à realização do exame pericial, somada à conduta do demandante, que se dispunha a realizar por diversas vezes novo teste genético em juízo, bem como à existência de um laudo atestando a ausência do vínculo e a ausência de prova testemunhal em sentido diverso. Tratou-se, enfim, de aplicar o artigo 232 do Código Civil, pelo qual a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.

Ainda, pode-se afirmar que a conduta processual aferida em um outro processo pode ser valorada, desde que se apliquem os mesmos parâmetros das provas emprestadas. Assim, deve-se verificar se a parte contra quem se pretende valorar a conduta teve todas as chances de participar do contraditório no processo de onde se pretende emprestar a prova. Logo, três situações se apresentam: i) se ambas as partes participaram do contraditório no outro processo, admite-se a valoração; ii) se apenas a parte contra quem se pretende valorar a conduta processual participou do contraditório, também é possível a valoração de sua conduta; iii) por fim, se tal parte não integrou a relação processual ou não teve todas as oportunidades para exercer plenamente o contraditório, não será possível valorar a conduta da parte como meio de prova.

Ademais, se a conduta da parte foi direta ou indiretamente causada por seu advogado, mesmo assim, tal comportamento deve ser valorado. Isso porque foi a parte quem contratou o advogado, e a parte contrária não pode ser prejudicada pela má-fé do seu adversário, ainda que tenha agido sob a influência de terceiro. Caberá à parte prejudicada pela influência, direta ou indireta, do advogado buscar a reparação de perdas e danos, bem como a sua responsabilização pelo Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Por fim, a conduta de um terceiro não demandado, mas ligado a uma das partes, também pode ser valorada. Por exemplo, em ação de responsabilidade civil por erro médico, em que figura como demandado apenas o hospital, se ocorre obstrução probatória, causada pelo médico que se nega a prestar informações ou concede testemunho falso, tal conduta pode e deve ser valorada.

2 Verdade e teoria narrativista do direito

A teoria narrativista do direito tem como ponto de partida a dúvida quanto à noção de realidade dos fatos. Admite que o conhecimento da “realidade” se expressa em enunciados sobre fatos. Concebe a possibilidade de discernir e aumentar o conhecimento dos fatos brutos, mediante o conhecimento das palavras que integram os enunciados fáticos.(21)

A prova não assegura a verdade dos enunciados fáticos, mas apenas aporta razões para aceitar tais enunciados como verdadeiros.

O juiz e as partes, no processo, não apreendem a realidade dos fatos como algo independente da forma linguística que os transpõe. Os litigantes apresentam “os fatos” como palavras. Estas se entrelaçam formando discursos, vários discursos, que são as alegações. Com efeito, “os fatos” expostos pelas partes são alegações fáticas que integram a controvérsia do discurso dos direitos.

Os fatos alegados e provados pelas partes devem ser submetidos ao teste de coerência narrativa, que serve como um critério de verdade. Entretanto, esse critério é polêmico, porque podem existir narrações de fatos que sejam coerentes, mas falsos. Também se pode objetar que a coerência narrativa é uma concepção retórica da prova, presumindo que a renúncia à correspondência entre o resultado probatório e a realidade dos fatos, a declaração de um fato como provado, é seguida da plausibilidade ou da força persuasiva de uma entre as várias possíveis narrações dos fatos.

No entanto, a coerência narrativa como critério da quaestio facti aplicável pode ser utilizada, antes do exame da verdade da narração dos fatos, para examinar a estrutura das narrações. Isto é, sobre o que e como conhecemos os fatos litigiosos, recaindo sobre as afirmações sobre a ocorrência histórica de um fato.

Em outras palavras, a ideia de coerência narrativa é de todo alheia ao problema da determinação dos fatos no processo judicial, sendo propriamente um pré-requisito – a unidade narrativa coerente – de sua concepção integralista do Direito, explicada pela metáfora da chain novel de Ronald Dworkin.(22) A coerência narrativa é um instrumento de controle racional (teste) que se pode operar diante de possíveis casos difíceis, que são aqueles aos quais falta prova direta para a fixação da ocorrência histórica dos fatos; isto é, a coerência narrativa pode ser assemelhada a um critério de verdade, na falta de prova direta.(23) Aproxima-se de um critério de verdade na medida em que serve como mecanismo construtivo do sentido.

A teoria narrativista do direito concebe a coerência narrativa como um constructo discursivo capaz de atribuir sentido.(24) Serve como um tipo de raciocínio acerca do material probatório, que recai sobre a alegação dos fatos, e proporcional a um critério “de verdade” que reside no modelo discursivo de uma história sobre a ação dos fatos (resultância) e os fatos em ação(ocorrência), com valor de sentido dentro do artifício narrativo (relato) em que discorrem e que os contam (narração).

A coerência narrativa, na teoria narrativista, pressupõe(25): i) a atribuição de sentido a um enunciado fático, como narrativamente coerente, decorre da construção do sentido, sendo que o sentido do relato dos fatos não se localiza em um topos prévio ou de partida, nem em um lugar ulterior ou de chegada, mas é a própria fábrica narrativa do sentido, a construção da promessa de sentido; ii) seu objeto principal e mais preciso consiste no estudo das estruturas que, a partir do material fático e normativo, constroem narrações, as quais constituem hipóteses de sentido, que no tempo e no espaço processual revelam a autoridade decisória definitiva; iii) ao negociar narrativamente a atribuição de sentido e a construção da promessa de sentido, a teoria narrativista do direito, como teoria crítica, não esquece que, na prestação de consentimento ao contrato de sentido e em seu aperfeiçoamento e sua autorização como coerente, além de unidades estruturais (história-relato-narração), atuam também elementos extracontratuais que o precedem e que podem constituir seu referencial. Logo, um enunciado fático acaba sendo discursivamente coerente como resultado também do influxo de subsistemas de sentido como são a memória individual ou os imaginários sociais, os quais são situações que não afloram, contudo, no teste de coerência narrativa, mas no de consistência narrativa.

Com efeito, a concepção narrativista de coerência narrativa implica(26): i) que a atribuição de sentido, desde a resultância à ocorrência histórica, a um acontecer, requer a apresentação de uma versão capaz de explicar e compreender verossimilmente o ocorrido; ii) que isso sucede quando premissas fáticas e conclusão interagem globalmente de modo narrativamente coerente; iii) que os enunciados relativos a elementos factuais, proporcionados pelas partes, são coerentes como resultado da formação de uma cadeia argumentativa por vínculos lógico-formais de dedutibilidade; iv) que, portanto, a atribuição de sentido à “ação dos fatos” (resultância) e aos “fatos em ação” (ocorrência) diz respeito ao que, pela ordem e pela colocação – cronológica e funcionalmente na história –, não é apenas discursivamente consistente, mas também congruente com a disposição no relato (mecanismo de relação, proporção e equilíbrio, e inclusive compostura ou esquema) dos restantes argumentos da narração.

Parte-se da pré-compreensão fundante de que a narração não pretende traduzir o fato mediante representação perfeita do acontecimento real ou histórico, tampouco mediante imitação (representação imperfeita), uma vez que o fato possui apenas realidade linguística. O fato não é um dado; é um discurso que não deve ser entendido como coisa (re), mas como dictio; ou seja, a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que são objeto do discurso ou do relato.

Desse modo, os fatos são a inventio discursiva (ars inventa disponiendi) da sua história na narração de seu relato. Portanto, a resposta sobre o que e como conhecemos os fatos litigiosos deve ser buscada no decurso do relato (ou diégesis).

A coerência narrativa se relaciona com a dinâmica narrativa que o relato gera em seu decurso. Os fatos que importam ganham sentido, adquirem significado e constroem sua coerência no decorrer da narração que é seu relato.

O que produz coerência narrativa são as concretas relações de continuidade e causalidade que, em cada caso, organizam o relato dos fatos, sendo capazes de encaixarem-se em uma articulação narrativa abstrata. Essa ligação e esse ajuste consistem na correlação entre a experiência concretamente narrada com a narrativa abstrata da experiência sobre os fatos normalmente vivida e apreciada, conforme os critérios coletivos vigentes.

Como contar os fatos é narrar a afirmação de sua ocorrência, tal afirmação é narrativamente experiencial, culturalmente condicionada de uma determinada sociedade e de uma época.

A presença ou a ausência de coerência narrativa é o encontro ou o desencontro com o espaço do imaginário social que, em cada tempo e lugar, outorga sentido à história de nossa experiência dos fatos.

A verdade dos fatos é produto interpretativo da facticidade, determinado por uma atividade discursiva de estrutura narrativa (ars narrandi) inventiva que remete a uma técnica de prudência racional (a deliberativa). É a razão deliberativa – compreendida como razoabilidade das circunstâncias que envolvem o discurso (contexto) – que constitui e dá conta (ou melhor, justifica) da melhor resposta tanto para os fatos quanto para as normas.(27)

O teste da coerência narrativa, ao fim, traz o argumento mestre da fundamentação jurídica, consistente no cálculo da irredutível desordem entre a experiência do mundo dos fatos naturais e do mundo cultural dos fatos jurídicos.(28)

Além disso, para a teoria narrativista, como o fato jurídico não é um datum apriorístico ao texto jurídico, este é uma narrativa de ficção. A verdade, a ser buscada no processo, também tem uma estrutura de ficção, sendo que as ficções são aparatos linguísticos que expõem indiretamente a verdade.(29)

Em conclusão, a teoria narrativista do direito desmitifica a ideia de que é possível atingir a verdade processual, pela reconstrução probatória dos fatos pretéritos. Desse modo, potencializa a dinâmica realidade dos fatos e permite que o órgão judicial, pelo teste da coerência narrativa, analise os argumentos contidos no processo, podendo, nesse contexto, valorar a conduta das partes e de seus procuradores para fundamentar a decisão.

Referências bibliográficas

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Notas

1. Conferência apresentada na segunda edição do Módulo VII do Currículo Permanente, sobre Direito Processual Civil, promovido pela Emagis – Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região, sob a coordenação do Juiz Federal Vicente de Paula Ataíde Júnior, no dia 21 de novembro de 2013, no Auditório da Justiça Federal de Santa Catarina, em Florianópolis.
Cfr. HOFFMANN, Eduardo. Provas atípicas. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Paranaense (Unipar), 2010. p. 160-174.

2. Cfr. HOFFMANN, Eduardo. Provas atípicas. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Paranaense (Unipar), 2010. p. 160-174.

3. Cfr. CAMBI, Eduardo; HOFFMANN, Eduardo. Caráter probatório da conduta (processual) das partes. Revista de Processo, v. 201, a. 36, nov. 2011. p. 84-86.

4. Cfr. HEÑIN, Fernando Adrián. Valoración judicial de la conducta procesal. Revista de Processo, v. 170, a. 34, abr. 2009. p. 70.

5. “La conducta procesal de las partes se presenta, pues, como fundamento de una praesumptio hominis, de que deberá valerse el juez con toda cautela, de acuerdo con lo que la ley explícitamente le aconseja.” (Teoria de la prueba legal. Traduzido por Sérgio Gonzalez Collado. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1954. p. 76)

6. Cfr. CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: RT, 2006. p. 361.

7. Cfr. ALBERTO, Misael. Valor probatorio de la conducta en juicio. Un aporte más para su consideración como indicio y otras cuestiones más… In: ACOSTA, Daniel Fernando (coord.). Valoración judicial de la conducta procesal. Dirigido por Jorge Walter Peyrano. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2005. p. 129.

8. “En sintesis, la conducta procesal de las partes podrá asumir diferente valor probatorio – o mejor dicho valor indiciario – según las circunstancias de la causa, el material probatorio colectado, la naturaleza de la cuestión debatida, el comportamiento de la contraparte y la cantidad y gravedad de comportamientos desvaliosos. ¿Porqué puede suceder ello? Porque nos encontramos en el ámbito de los hechos, producidos por el hombre en forma voluntaria, y que por lo tanto pueden asumir diferentes ribetes conforme las pautas enunciadas anteriormente. En tal sentido compartimos la opinión que reivindica para el juez una amplia libertad en lo que se refiere a la concreta eficacia que cuadra reconocer a la prueba indiciaria de manera que también exclusivamente de ella aquél pueda deducir su convicción, aisladamente o en conjunción con los restantes medios de prueba, con un peso incluso concluyente para la decisión del conflicto.” (HEÑIN, Fernando Adrián. Valoración judicial de la conducta procesal. Cit. p. 75)

9. Cfr. A prova civil. Traduzido por Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2002. p. 127.

10. Cfr. <http://it.wikipedia.org/wiki/Presunzione_(diritto)>. Acesso em: 13 set. 2013.

11. Sobre as teorias tradicional, eclética ou mediana e da múltipla conformidade, verificar: KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 50-52.

12. Cfr. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Presunções e ficções no direito probatório. Revista de processo, v. 196, jun. 2011. p. 19.

13. Cfr. La conducta procesal de las partes como concepto atinente a la prueba. In: ACOSTA, Daniel Fernando (coord.). Valoración judicial de la conducta procesal. Dirigido por Jorge Walter Peyrano. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2005.Cit. p. 103.

14. Cfr. ALBERTO, Misael. Valor probatorio de la conducta en juicio. Un aporte más para su consideración como indicio y otras cuestiones más… Cit. p. 136.

15. À guisa de ilustração, consta no artigo 82 do Código Procesal Civil y Comercial de la Provincia de La Rioja: “El tribunal podrá asimismo hacer mérito de las presunciones, indicios y hechos notorios aunque no hayan sido invocados por las partes”.

16. Cfr. STJ – REsp 1095668/RJ – 4ª T. – rel. Min. Luis Felipe Salomão – j. em 12.03.2013 – publ. DJe 26.03.2013.

17. Cfr. FAURE, Miryam T. Balestro. La valoración judicial de la conducta en juicio. In: ACOSTA, Daniel Fernando (coord.). Valoración judicial de la conducta procesal. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2005. p. 41.

18. Cfr. ALBERTO, Misael. Valor probatorio de la conducta en juicio. Un aporte más para su con­sideración como indicio y otras cuestiones más… Cit. p. 133.

19. Cfr. HEÑIN, Fernando Adrián. Valoración judicial de la conducta procesal. Cit. p. 87.

20. Cfr. REsp 786312/RJ – 4ª T. – rel. Min. Fermando Gonçalves – j. 21.05.2009 – publ. DJe 21.09.2009.

21. Cfr. GONZÁLEZ, José Calvo. La controvérsia fáctica: contribuición al estudio de la questio facti desde un enfoque narrativista del Derecho. Conferência apresentada nas XXI Jornadas de la Asociación Argentina de Filosofia del Derecho, 4-6 de outubro de 2007. p. 10-17.

22. Cfr. Law´s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. Cap. 7, p. 232 e seg.

23. Cfr. GONZÁLEZ, José Calvo. Direito curvo. Traduzido por André Karam Trindade, Luis Rosenfield e Dino del Pino. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 49.

24. Idem. p. 51.

25. Idem. p. 52-54.

26. Idem. p. 51-52.

27. Idem. p. 52.

28. Cfr. GONZÁLEZ, José Calvo. Modelo narrativo del juicio de hecho: inventio y ratiocinatio. In: Horizontes de la filosofia del derecho: libro en homenaje al Professor Luis Garcia San Miguel. Tomo II. Madrid: Universidad de Alcalá de Henares, 2002. p. 102.

29. Cfr. GONZÁLEZ, José Calvo. Direito curvo. Cit. p. 55-56.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2013. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS