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publicado em 29.08.2014
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A substituição dos particulares pelo Estado na solução dos litígios permitiu o desenvolvimento da democracia, da segurança jurídica, da igualdade e de diversos direitos e garantias fundamentais. Contudo, o Poder Judiciário de hoje encontra-se assoberbado, pois atraiu para si a resolução de uma quantidade invencível de conflitos. A sociedade deve retomar a capacidade de resolver ao menos parte de seus próprios conflitos, por meios alternativos consensuais. Há de ser abandonada a cultura do litígio em favor do consenso. Os métodos consensuais também são aplicáveis, em determinada medida, às lides penais, mediante dois modelos básicos: pacificador ou restaurativo e negociado. O modelo restaurativo, já praticado no Brasil, mas que encontra espaço para ser ampliado, está fundamentado no acordo, com participação da vítima, do infrator e da comunidade. A finalidade é solucionar efetivamente o conflito, de modo abrangente. Já a justiça criminal negociada, que não é empregada no País, baseia-se em um acordo entre Ministério Público e acusado, o qual aceita a acusação, para receber concessões, principalmente com redução da sanção ou mudança para uma pena mais leve. De qualquer forma, os meios alternativos de solução de conflitos afiguram-se como providências indispensáveis para se alcançar maior eficiência e celeridade processual. Palavras-chave: Conciliação penal. Mediação penal. Práticas restaurativas. Negociação penal. Meios alternativos de solução de conflitos. Modelos consensuais. Sumário: Introdução. 1 Meios alternativos de solução de conflitos. 2 Modelos de resolução de conflitos penais. 3 Modelos consensuais de justiça penal. 3.1 Noções gerais. 3.2 Modelo pacificador ou restaurativo. 3.3 Aplicabilidade da justiça restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro. 3.4 Modelo da justiça criminal negociada. Conclusão. Referências bibliográficas. Introdução Há muito que a sociedade transferiu a solução de suas lides para as mãos do Estado. A atuação estatal na resolução dos conflitos é característica inerente aos países democráticos, ocidentais e capitalistas como o nosso. Com efeito, a substituição dos particulares pelo Poder Público nessa atividade de pacificação dos conflitos, denominada de função jurisdicional, é uma imposição da razão, abolida que foi a prevalência da autotutela e da vingança privada, o que conduziu à estabilidade e à segurança nas relações sociais. É importante observar, contudo, que o fato de o Estado atrair para si a função jurisdicional não significa sua onipotência; é dizer, não existe um exclusivismo na solução institucionalizada e formalizada dos conflitos. Até porque, a experiência demonstra, a maioria dos conflitos recebe solução extrajudicial, se é que realmente encontra alguma solução. O art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, ao determinar que qualquer lesão ou ameaça a direito será submetida ao Poder Judiciário, proporcionou maior democratização na solução estatal dos conflitos e, consequentemente, determinou uma universalização crescente no acesso à justiça. O fenômeno, contudo, ultrapassou os limites da razoabilidade e desaguou no atual superdimensionamento do Poder Judiciário. Foi nesse contexto que a cultura da litigiosidade, presente em nosso País por diversos outros fatores de ordem política, econômica e social, alcançou patamares insuportáveis para a sociedade e para o Estado, carentes de condições materiais para atender a tantos e tão variados conflitos, que aumentam progressivamente. Essa realidade conduz a sociedade contemporânea a encontrar novas formas de administrar seus conflitos, mediante sobretudo a ampliação da solução extrajudicial, com utilização da conciliação, da mediação e da arbitragem. Aliás, o próprio Poder Judiciário tem contribuído para essa mudança de paradigma, com estímulo à realização de acordos em processos judiciais e, inclusive, em lides ainda não judicializadas, o que acarreta redução da imensa quantidade de feitos que assoberbam os magistrados. É relevante ressaltar que essa tendência não representa uma diminuição do papel do Judiciário perante a sociedade, mas sim uma readequação do seu tamanho institucional, para que possa melhor atender aos litígios a ele submetidos. Se a busca por conciliações e outras formas extrajudiciais de resolução de conflitos é de utilização corriqueira e tranquila nas lides privadas, no âmbito criminal a solução consensual envolve maior complexidade. Isso porque o Direito Penal é eminentemente público e impregnado de um interesse abstrato, do Estado e da sociedade, materializado no direito de punir. Portanto, é mais difícil imaginar que o jus puniendi seja objeto de conciliação, já que, grosso modo, ou alguém comete um crime e é punido por ele, ou não o comete e é absolvido. Todavia, o processo penal contemporâneo tem mitigado o binômio condenação-absolvição como modo de solucionar lides criminais e empregado outros modelos, especialmente em razão da crescente importância conferida à vítima, que é talvez a principal interessada no desfecho dos casos criminais. Portanto, o consenso encontra algum espaço no processo penal, maior ou menor, a depender do ordenamento jurídico em que é trabalhado. E será este o tema abordado neste trabalho: possibilidade de solução consensual da lide penal no sistema jurídico brasileiro. 1 Meios alternativos de solução de conflitos O Poder Judiciário foi concebido como uma das formas de solução dos conflitos sociais, mas não a única. A peculiaridade da função jurisdicional reside na substituição à autotutela, à solução privada das lides; na inevitabilidade, de forma que a determinação dos juízes é ditada de modo impositivo e inafastável; na definitividade, pois o pronunciamento do Judiciário é definitivo e imutável; na imparcialidade, pois o julgador é um terceiro estranho aos litigantes, desinteressado na lide e externo ao conflito. Outros meios, contudo, convivem com o judicial. O acordo extrajudicial e mesmo a resignação de uma das partes provavelmente colocam termo à maioria dos conflitos sociais, sem que sequer alguma autoridade pública tome conhecimento de que um dia existiram tais litígios. É interessante a seguinte afirmação de Maria Teresa Sadek e Rogério Bastos Arantes sobre a crise estrutural do Poder Judiciário: “Essa debilidade torna-se ainda mais gritante quando se leva em consideração que apenas 33% das pessoas envolvidas em algum tipo de conflito dirigem-se para o Judiciário em busca de uma solução para seus problemas. A maior parte dos litígios sequer chega em uma corte de justiça. Esse dado é extremamente preocupante, uma vez que ele indica tanto um descrédito na justiça quanto o fato de que, se a maior parte daqueles que supostamente deveriam recorrer ao Judiciário o fizessem, o sistema estaria próximo do colapso.”(1) Meios mais elaborados de solução extrajudicial de conflitos, como conciliação extrajudicial formalizada documentalmente em termo de acordo ou algo que o valha, mediação e arbitragem, também são amplamente aceitos e estimulados atualmente. A finalização das lides mediante sentença judicial, a despeito de ter como escopo a pacificação social, pode gerar o efeito reverso, ou seja, ao invés de pacificar, acarretar o aumento da litigiosidade, o acirramento dos ânimos das partes e a eternização das lides. A respeito, menciona Rodolfo de Camargo Mancuso: “Hoje se cogitam e se vão implementando outras fórmulas, para além da chamada solução adjudicada (decisão judicial de mérito), certo que esta última vem impregnada do peso da intervenção estatal, que, a par de acarretar uma duração excessiva do processo, resulta em acirrar os ânimos já antes inflamados pela judicialização da controvérsia, ao final convertendo os contraditores em vencedor e vencido, e assim contribuindo para exacerbar a contenciosidade ao interno da coletividade. Não estranha, destarte, a baixa credibilidade da população na Justiça estatal (lenta, desgastante, onerosa, imprevisível), restando aos jurisdicionados a opção entre tolerar os prejuízos e as insatisfações ou procurar os chamados meios alternativos.”(2) O próprio Judiciário tem incentivado e utilizado outras vias de resolução dos litígios, sobretudo mediante conciliação em processos em andamento e, inclusive, em casos ainda não judicializados. O modo consensual de solução das controvérsias já é uma realidade na Justiça brasileira, conforme se extrai do site do CNJ – Conselho Nacional de Justiça – em relação à semana nacional de conciliação (http://www.cnj.jus.br/conciliacao-noticias). Nesse passo, em 29 de novembro de 2010, o CNJ editou a Resolução nº 125, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. Nesse ato normativo, é reconhecido o papel da conciliação como modo alternativo de solução de conflito, a qual não está restrita a “serviços prestados nos processos judiciais”. Como anota corretamente Luiz Flávio Gomes, “Nossa cultura litigante deve ser abandonada. É tempo de negociação, acordo e mediação. O Judiciário, por sua vez, deve ser reorganizado com políticas de desburocratização”.(3) É crescente a sensação de que o simples aumento do número de juízes e funcionários ou o incremento do aparato judicial não são os melhores caminhos para se conseguir o aperfeiçoamento da Justiça brasileira. Segundo referiu o mesmo jurista retrocitado, com base em levantamentos do Conselho Nacional de Justiça, mesmo com o aumento do número de magistrados e de servidores, a taxa de congestionamento do Judiciário brasileiro é de 70% (ano-base 2010).(4) O processo judicial pode ser melhorado de diversas formas: investimento em modernização, informatização, treinamento, administração da justiça, reestruturação da legislação processual, sobretudo no que tange aos recursos, maior efetividade das ordens judiciais, qualidade dos serviços públicos, valorização dos juízes e dos demais operadores do direito, etc. A pura e simples expansão da máquina judicial, entretanto, não se afigura medida mais relevante. À exceção da escassez pontual de magistrados e servidores, a ser resolvida com criação de varas, tribunais e cargos, em casos específicos, não é o aumento desmedido do tamanho institucional da Justiça que viabilizará a celeridade e a eficiência processuais. Os meios alternativos de solução de conflitos, sobretudo mediante a substituição da cultura do litígio pela cultura da conciliação, é que revelam aptidão para tanto. Cabe ao juiz decidir apenas aqueles casos em que a solução extrajudicial é inviabilizada, seja porque a conciliação é incabível, seja porque foi infrutífera sua tentativa. Nesse sentido é a observação de Rodolfo de Camargo Mancuso: “(...) propõe-se uma revisão conceitual, atualizada e contextualizada das noções de Jurisdição e de acesso à Justiça, reconhecendo-se que o aumento quantitativo da oferta da prestação jurisdicional, além de não resolver o crescente aumento da demanda por justiça, ainda retroalimenta esse contexto, gerando uma expectativa social a que o Estado não consegue suprir, ou, tentando fazê-lo, incide nos equívocos do gigantismo judiciário e do tratamento massivo dos processos. A tese identifica na origem dos males o demandismo judiciário, à sua vez fomentado por uma leitura acrítica e irrealista do art. 5º, XXXV, da CF/1988. Propõe-se como opção o fomento aos meios alternativos de resolução dos conflitos, acompanhado da devida informação aos jurisdicionados.”(5) Convém registrar que a “desjudicialização” de um grande número de conflitos, incluindo criminais, como veremos adiante, não gera desprestígio ao Poder Judiciário. Ao contrário, para que a credibilidade da Justiça estatal seja resgatada, é mister que esta trabalhe focada naqueles processos que imprescindem de sua atuação, quando a conciliação, a mediação ou a arbitragem não restaram exitosas, pois assim os juízes poderão concentrar maior atenção em uma quantidade menor de processos, o que resultará no incremento da qualidade e da celeridade da prestação jurisdicional. Ademais, o próprio Judiciário pode e deve, sempre que possível, buscar a conciliação, como, aliás, já dispõe a legislação processual pátria (Código de Processo Civil, arts. 125, inc. IV, 331 e 447 a 449). É curial, a propósito, a afirmação de Mancuso no sentido de que “(...) restariam para o Judiciário, em registro residual (o last resort, referido na experiência norte-americana), as controvérsias que, em razão de fatores tecnicamente consistentes (complexidade da matéria, peculiaridade das partes, inviabilidade de solução por outras formas ou esgotamento delas, ações ditas necessárias), efetivamente exijam passagem judiciária. Prosseguindo, Luiz Flávio Gomes adverte que, se “nada for feito, a morosidade vai continuar. Com isso, a Justiça perde a sua justificação teleológica, que é a confiança da população. Pior é sua contribuição para a impunidade, no campo criminal”.(7) Essa perspectiva não adversarial de justiça também alcançou o Direito Penal, como será a seguir analisado. 2 Modelos de resolução de conflitos penais O Direito Penal, material e processual, é eminentemente público, sob todos os ângulos: há participação do Estado, na figura do Ministério Público;(8) há interesse do Estado e da sociedade, materializado no direito de punir; está presente também a proteção do indivíduo contra abusos do Poder Público; e há necessidade do processo penal, de modo que, na concepção tradicional, inexiste possibilidade de que a lide penal seja tratada extrajudicialmente. Conquanto essas características, em princípio, erijam-se em obstáculo à solução consensual dos casos criminais, esse rigorismo é mitigado atualmente. É irretorquível a crise que se abate sobre o tratamento tradicional conferido aos litígios penais, com base na denúncia, no processo e na sentença. O fenômeno é sentido não apenas no Brasil, mas em praticamente todos os países. As críticas ao processo penal clássico, sintetizadas na morosidade e na ineficiência, conduziram à aplicação de outros meios de solução dos casos criminais. Sendo assim, a doutrina classificou os modelos de resolução de conflitos penais da seguinte forma: a) modelo dissuasório clássico: fundado na resposta punitiva estatal, que seria suficiente para a reprovação e a prevenção de futuros delitos. A pena contaria, portanto, com finalidade puramente retributiva. Não haveria espaço para nenhuma outra finalidade à pena (ressocialização, reparação dos danos etc.), e o delito não poderia escapar da inderrogabilidade da sanção; b) modelo ressocializador: atribui à pena a finalidade de ressocialização do infrator (prevenção especial positiva). O Direito Penal poderia intervir na pessoa do delinquente, sobretudo quando ele estivesse preso, para melhorá-lo e reintegrá-lo à sociedade; c) modelo consensual: fundado no acordo, no consenso, na transação, na conciliação, na mediação ou na negociação (plea bargaining). Subdivide-se em modelo pacificador ou restaurativo e modelo da justiça criminal negociada.(9) Por conseguinte, como afirmou Luiz Flávio Gomes, é possível distinguir, no âmbito da justiça criminal, atualmente, o “espaço de consenso” do “espaço de conflito”. Como referiu o jurista: “Aquele resolve o conflito penal mediante conciliação, transação, acordo, mediação ou negociação. Este não admite qualquer forma de acordo, ou seja, exige o clássico devido processo penal (denúncia, processo, provas, ampla defesa, contraditório, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). O modelo consensual pertence ao primeiro espaço (do consenso); os modelos punitivistas (dissuasório e ressocializador) integram o segundo espaço (do conflito).”(10) Doravante, dissertarei a respeito dos modelos consensuais de justiça penal. 3 Modelos consensuais de justiça penal 3.1 Noções gerais Consoante observa Raffaella da Porciúncula Pallamolla, diante da crise do ideal ressocializador e do tratamento pela pena privativa de liberdade, foram desenvolvidas ideias de restituição penal e reconciliação do infrator com a vítima e com a sociedade. A doutrina, então, a par de um retribucionismo renovado, propôs uma mudança de orientação no Direito Penal, enfocada agora na vítima do delito.(11) Essa nova direção conferida ao direito criminal harmoniza-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, a qual passa a adquirir posição central no sistema penal.(12) Portanto, as formas consensuais de solução de conflitos foram estruturadas não apenas para melhorar a qualidade da justiça penal, mas também porque se percebeu a necessidade de agregar maior humanização ao sistema e de reposicionar a vítima como protagonista do processo criminal. Os modelos consensuais de resolução dos litígios penais podem ser classificados, conforme foi referido, em: a) pacificador ou restaurativo, que visa à conciliação, à reparação dos danos da vítima e, enfim, à cooperação das partes interessadas para encontrar uma solução conjunta ao conflito; e b) modelo da justiça criminal negociada, que tem por base a confissão do delito, a assunção de culpabilidade e o acordo sobre a quantidade da pena, incluindo a prisional, a perda de bens, a reparação dos danos, a forma de execução da pena etc.(13) De observar, enfim, que a mediação difere da conciliação. Aquela é conceituada como “(...) procedimento privado e voluntário coordenado por um terceiro capacitado, que orienta seu trabalho para que se estabeleça uma comunicação cooperativa e respeitosa entre os participantes, com o objetivo de aprofundar a análise e a compreensão do relacionamento, das identidades, das necessidades, das motivações e das emoções dos participantes, para que possam alcançar uma administração satisfatória dos problemas em que estão envolvidos.”(14) Já a conciliação é reputada como um “procedimento rápido que inclui um terceiro que orienta e até pressiona pela obtenção de um acordo que, ainda que não satisfaça totalmente, consegue encerrar o assunto”.(15) 3.2 Modelo pacificador ou restaurativo A justiça restaurativa merece maior atenção no estudo das vias consensuais de solução de lides penais, tendo em conta a possibilidade de sua ampla aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a sua maior eficiência em comparação à negociação criminal. Não há consenso sobre o conceito de justiça restaurativa, nem quanto ao lugar que ela deve ocupar no contexto da administração da justiça penal: como modelo alternativo, principal, complementar ou substitutivo à justiça criminal tradicional.(16) Paul McCold e Ted Wachtel, do Instituto Internacional por Práticas Restaurativas (International Institute for Restorative Practices), em trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, realizado de 10 a 15 agosto de 2003, no Rio de Janeiro, afirmam que a justiça restaurativa constitui “uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e aos relacionamentos, ao invés de punir os transgressores”. Seu postulado fundamental é: “o crime causa danos às pessoas, e a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível”.(17) Nas palavras de Damásio E. de Jesus, a “Justiça Restaurativa é um processo colaborativo em que as partes afetadas mais diretamente por um crime determinam a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão”.(18) Foi criada uma teoria de justiça restaurativa, composta de três estruturas conceituais distintas, porém relacionadas: a janela de disciplina social, o papel das partes interessadas e a tipologia das práticas restaurativas. A janela de disciplina social busca evitar práticas puramente punitivas (ou retributivas), as quais tendem a estigmatizar as pessoas, rotulando-as indelevelmente de forma negativa, ou meramente permissivas, buscando proteger as pessoas das consequências de suas ações erradas. O papel das partes interessadas é o elemento estrutural cujo enfoque é relacionar o dano causado pela infração penal às necessidades específicas de cada interessado e às respostas restaurativas necessárias ao atendimento dessas necessidades. Por fim, quanto à tipologia das práticas restaurativas, as partes interessadas, diretas e indiretas, desde que haja consenso, são chamadas a buscar, em conjunto, uma solução efetiva para o conflito, de modo a preencher suas necessidades emocionais. Os três grupos devem ter participação ativa e se engajar no processo de conciliação, o que amplia a capacidade dos cidadãos de resolver seus próprios problemas.(19) Para uma plena realização de justiça, é mister que as partes retornem ao estado anterior e o dano seja reparado. Essa restauração é viabilizada por meio da participação de todas as partes interessadas, em um processo cooperativo e abrangente na busca da solução do litígio. O “sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos”.(20) Já a solução simplista de mera punição dos infratores, com desconsideração das necessidades daqueles afetados pelo crime, não recompõe as partes à situação inicial. A sentença que aprecia o mérito do caso criminal, seja ela condenatória, seja absolutória, tende a acirrar os ânimos e se afastar de uma verdadeira pacificação social. No entendimento do Juiz de Direito Leoberto Brancher, da 3ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, “A Justiça Restaurativa é um processo de resolução de conflito que envolve a capacidade de expressão das partes envolvidas e visa a definir uma nova abordagem para a questão do crime e das transgressões, possibilitando um referencial paradigmático na humanização e na pacificação das relações sociais envolvidas em um conflito. O foco do processo é extensivo a todo o tecido social fragilizado pelo crime.”(21) Convém frisar que a justiça restaurativa não pode ser confundida com uma burla à imposição da pena, um obstáculo ao cárcere, ou com a incidência de atenuantes; é dizer, a mediação penal não implica a consagração da impunidade. Cuida-se, ao invés, de desenhar outras formas de resolver a lide penal que não seja exclusivamente mediante a pena de prisão.(22) O procedimento é indicado, sobretudo, para infrações de menor gravidade, em que o espaço de conflito pode ceder adequadamente diante do espaço de consenso. Consoante ensinamento de Nereu José Giacomolli, devemos diferenciar o tratamento dado à pequena criminalidade daquele dado à de maior gravidade, mediante reação formal diferenciada nas infrações mais leves, em que se opera mais com celeridade, consenso, diversão, informalidade, oportunidade e simplificação dos procedimentos. Assim, é possível evitar as consequências da estigmatização e do aprofundamento da conflituosidade, existentes no processo convencional. Percebe-se uma diferença “entre o espaço de consenso, adequado a solucionar a criminalidade de pequeno porte, e o de conflito, reservado à criminalidade mais grave”.(23) As práticas restaurativas, por conseguinte, não excluem o processo penal tradicional, pois em diversos casos a conciliação não é recomendável, como em crimes mais graves, contra direitos coletivos ou difusos, ou quando, em razão da própria personalidade do infrator, da habitualidade criminosa ou de outros fatores, a solução consensual resta inviabilizada. De qualquer sorte, revela-se necessária a implantação de atendimento às vítimas, o que inclui “suporte após as práticas restaurativas, de forma a cuidar para que o resgate da vítima no processo não abra brechas para um retorno de privatização da justiça”.(24) A justiça restaurativa pode ser concretizada de diversas formas. É oportunizada sua aplicação durante o processo penal, em diferentes fases, tomando o lugar da pena, total ou parcialmente; reparação como critério para suspensão do processo, na determinação da pena ou para conceder a liberdade condicional; reparação na execução, reabilitação etc.(25) No que tange ao emprego das práticas restaurativas em sede extrajudicial, com ou sem a participação de autoridades públicas, podem ser citadas a mediação entre vítima e delinquente, com intervenção de mediador, e a formalização de acordo reparador; a realização de conferências de família, em que participam familiares e pessoas que dão apoio aos infratores e às vítimas, inclusive policiais; a formação de círculos restaurativos, com participação dos envolvidos – vítima e infrator – e de qualquer pessoa que represente a comunidade e tenha interesse em participar.(26) Os benefícios do uso da mediação e da conciliação pré-processual em sede criminal, nos crimes de menor potencial ofensivo, são inegáveis, pois se restitui à sociedade a oportunidade de administrar seus conflitos, de modo a remanescer ao Judiciário o encargo de resolver apenas os casos mais graves e complexos, como foi antes mencionado. Por outro lado, é importante salientar, a justiça restaurativa não é imune a críticas. De fato, os procedimentos de conciliação, mediação e reparação são inumeráveis e não homogêneos, têm origens plurais, apresentam ambiguidade de metas e contraditória instrumentação, bem como não oferecem uma imagem única e coerente, mas sim uma imagem confusa, fragmentária, repleta de lacunas e indefinições. Também não há clareza na explicação sobre as “mudanças” de atitude e de motivação do infrator e da vítima, nem sobre como devem produzir-se, nem sobre de que forma há de ser o processo de interação e quais as principais variáveis.(27) Demais disso, existem discrepâncias entre as propostas restaurativas – se basta a reparação, se exige arrependimento do infrator, ou atitudes mais íntimas e exigentes, percepção direta e pessoal do mal causado, interação com a vítima, mera gestão de conflitos, ou ainda propostas que defluem de correntes “reprivatizadoras” radicais.(28) As censuras recaem também sobre a escassez de experiência, a ausência de consenso sobre os casos que podem ser submetidos a essas práticas e a falta de avaliação empírica confiável dos resultados obtidos.(29) Enfim, Antônio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes ressaltam que “(...) não se pode ocultar os riscos e os receios que geram um modelo de resposta ao delito de tipo ou aparência privatista. Sabe-se que a passagem da arcaica justiça privada para o modelo atual de justiça pública (...) supôs um inquestionável progresso histórico, porque somente assim se consegue assegurar o controle racional das soluções dos conflitos, a igualdade e certas garantias elementares. Pelo contrário, a experiência colocou em evidência que, quando se concebe o crime como problema ‘doméstico’, interno, e sua solução como questão privada ou privativa dos diretamente implicados, ninguém pode impedir o rigor desmedido, a veemência e inclusive a irracionalidade da resposta; nem é fácil estabelecer mecanismos de controle que assegurem o tratamento semelhante de conflitos equivalentes (igualdade), assim como determinadas garantias do indivíduo que constituem hoje patrimônio cultural da humanidade. Em uma sociedade pluralista, conflitiva e desigual, por outro lado, as soluções privadas não costumam restabelecer o equilíbrio real entre os implicados. Dito de outra maneira, não negocia nem faz pacto quem quer, senão quem pode.”(30) A utilização das práticas restaurativas, portanto, não elimina por completo o sistema penal tradicional. Também não consiste no único instrumento de aumento da eficácia e da celeridade processuais, pois deve ser acompanhado da adoção de medidas para melhorar a qualidade dos serviços judiciais, bem como da implementação de políticas públicas que atuem sobre as causas dos crimes. 3.3 Aplicabilidade da justiça restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro Já contamos, no Brasil, com o modelo conciliatório, no âmbito dos juizados especiais criminais.(31) Porém, não há, na legislação brasileira, dispositivos com práticas totalmente restaurativas, embora alguns diplomas legais possam ser utilizados para sua implementação, ainda que parcial.(32) No plano do direito positivo, a implementação da justiça restaurativa ainda aguarda aprovação de projeto de lei. Em 05.05.2005, o IDCB – Instituto de Direito Internacional de Brasília – apresentou à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados a Sugestão 98/2005, propondo audiência pública para debater sobre a justiça restaurativa no Brasil. A justificativa do autor da proposição residiu na efetivação de um novo modelo de justiça criminal, recomendado pela ONU; na necessidade de que a Justiça ofereça uma resposta mais adequada ao crime; em um novo olhar sobre o crime, para vê-lo como uma violação nas relações do infrator com a vítima e com a comunidade. Implementado em alguns países, o novo modelo diminuiu a violência e aumentou a participação da comunidade na resolução de seus próprios problemas. Em 02.05.2005, o Instituto de Direito Comparado encaminhou à Comissão de Legislação Participativa a Sugestão 99/2005, para introduzir a justiça restaurativa nos procedimentos previstos no Código de Processo Penal e na Lei dos Juizados Especiais. A Proposição 98/2005 foi aprovada, e foi realizada audiência pública em 19.10.2005, conforme dados disponíveis em http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias.asp?pk=76950. A Proposição 99/2005 restou aprovada em maio de 2006 e foi transformada no Projeto de Lei 7.006/2006, que estabelece alterações na lei penal para facultar o uso de procedimentos da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal. Alguns itens revelam-se bastante interessantes nesse projeto: o uso da justiça restaurativa é facultativo e complementar (art. 1º); considera procedimento de justiça restaurativa o conjunto de práticas e atos conduzidos por facilitadores, compreendendo encontros entre a vítima e o autor do fato delituoso e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou pela contravenção, em um ambiente estruturado denominado núcleo de justiça restaurativa (art. 2º); refere que o acordo restaurativo estabelecerá as obrigações assumidas pelas partes, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das pessoas envolvidas e afetadas pelo crime ou pela contravenção (art. 3º); quando presentes os requisitos do procedimento restaurativo, o juiz, com a anuência do Ministério Público, poderá enviar peças de informação, termos circunstanciados, inquéritos policiais ou autos de ação penal ao núcleo de justiça restaurativa (art. 4º); dispõe sobre a composição do núcleo de justiça restaurativa (arts. 5º e 6º). Esse projeto, se e quando for convertido em lei, formará uma disciplina abrangente sobre a justiça restaurativa a ser aplicada a ilícitos penais. Antes, contudo, da vigência dessa legislação, devemos trabalhar com o que nosso ordenamento jurídico contempla atualmente, bem como com as práticas que estão sendo adotadas. É no âmbito dos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes que as práticas restaurativas têm encontrado maior emprego no direito brasileiro, e a experiência de muitos países tem revelado a eficácia dessas medidas no trato de adolescentes infratores. O art. 126 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) cuida do instituto da remissão, mecanismo de exclusão, suspensão ou extinção do processo referente à aplicação de medidas socioeducativas a adolescentes (menores entre 12 e 18 anos, segundo definição legal, art. 2º, caput). O caput da disposição permite que a remissão seja proposta pelo Ministério Público, de modo a excluir o processo, e pelo Juiz de Direito, como meio de suspensão ou extinção do procedimento (arts. 126, parágrafo único, e 186, § 1º). Quando elaborada pelo Ministério Público, dependerá de homologação judicial (art. 181) e, se o Juiz de Direito discordar da proposta, remeterá o caso ao Procurador-Geral da Justiça (art. 181, § 2º). É importante destacar que a remissão não importa reconhecimento ou comprovação da responsabilidade nem prevalece para efeito de antecedentes. Além disso, permite a lei que seja ela cumulada com a aplicação de medidas socioeducativas ou protetivas (art. 127). Esse instituto pode ser utilizado como meio para adoção de práticas restaurativas, desde que as autoridades dela encarregadas (membro do Ministério Público, antes do processo, e Juiz de Direito, durante o procedimento) promovam a participação do adolescente, de seus familiares e, inclusive, da vítima, na busca de uma efetiva reparação dos danos e de uma responsabilização consciente do menor infrator.(33) Enfim, a Lei nº 8.069/90 abre diversos espaços para aplicação da justiça restaurativa, como se depreende dos arts. 101-102, 113-114, 126, 181 e 186. Do mesmo modo, o rito sumaríssimo estabelecido pela Lei nº 9.099/95 “adotou como princípio fundamental a busca da aplicação de medidas alternativas, mediante consenso entre os principais envolvidos (vítima e autor do fato)”. Nesse sentido, ela estabelece que haverá uma audiência preliminar (arts. 72 e ss.), na qual se procurará a realização de um acordo civil, com vistas à composição financeira de eventuais prejuízos experimentados com a prática do ilícito penal, e, em seguida, um acordo penal, caso o primeiro seja frustrado, ou, independentemente do resultado da composição civil, quando se tratar de crime de ação pública incondicionada. Como preleciona Damásio E. de Jesus, com vontade política e treinamento de pessoal especializado, a par de uma conscientização dos agentes estatais envolvidos no processo, talvez seja possível a utilização dos Juizados Criminais Especiais como porta de entrada para a justiça restaurativa no Brasil.(34) No Código Penal, as seguintes penas restritivas de direitos representariam institutos jurídicos que constituem práticas parcialmente restaurativas: a) prestação pecuniária (art. 45, § 1º) e b) prestação inominada (§ 2º). Quando cabível a prestação pecuniária, o Código Penal autoriza, contanto que haja concordância do beneficiário (vítima, dependente, entidade pública ou privada com destinação social), que ela seja substituída por uma prestação de outra natureza (cesta básica, mão de obra, reposição de árvores etc.). A medida, nesse caso, embora exija anuência da vítima, não pode ser imposta em desatenção às condições pessoais do réu. Como não é produto de um acordo entre as partes principais, pode ser considerada parcialmente restaurativa. A perda de bens ou valores (§ 3º), a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas (art. 46, § 2º), as interdições temporárias de direitos (art. 47) e a limitação de fim de semana (art. 48 do CP) não são práticas restaurativas, pois não se baseiam em acordo entre as partes, mas são medidas impostas coercitivamente pelo Judiciário. É importante fazer referência ao Projeto de Lei nº 5.117/2009, de autoria do Deputado Federal e professor titular da USP Régis Fernandes de Oliveira, que altera a Lei nº 9.099/95, possibilitando a composição preliminar dos conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia. Sem ingressar nas discussões sobre a validade e a conveniência da medida, deve ser ressaltado que se trata de mais um movimento em direção à desjudicialização de conflitos penais. De observar, outrossim, que a função de conciliação criminal pode ser muito bem desempenhada pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. A mediação também encontra espaço para aplicação no âmbito penitenciário. É interessante a lição de Nuria Belloso Martín, no sentido de que a aplicação da mediação nos centros penitenciários constituiu um desafio no sistema espanhol, já que se tratava de adaptar o processo de mediação a um contexto enormemente conflitivo, punitivo e hierarquizado, como é a prisão. Assevera que a medida iniciou em março de 2005, no Centro Penitenciário de Madri III, e se estendeu para outras prisões espanholas, como Málaga, Nanclares, Pamplona, Zuera e Granada. Enfim, em lição plenamente aplicável ao Brasil, assim se pronuncia a doutrinadora espanhola: “Se inició la experiencia de mediación interpersonal en la cárcel entre las personas presas que habían tenido conflictos interpersonales. Permite que las personas inmersas en un conflicto interpersonal que origine la incoación de un procedimiento disciplinario profundicen en su conflicto de forma dialogada, utilizando actitudes de escucha, respeto y asumiendo la responsabilidad por los hechos realizados, de forma que puedan restablecer o pacificar la relación interpersonal para la prevención de nuevas agresiones. Se pretende devolver a las personas privadas de libertad parte de la percepción del control sobre sus vidas. Se presenta como un método eficaz para la reducción de violencia dentro del ámbito penitenciario.”(35) Igualmente, a justiça restaurativa é bastante adequada aos casos de violência de gênero, em que as dinâmicas emocionais durante os encontros de mediação podem ajudar o agressor a reconhecer sua responsabilidade, bem como recuperar socialmente a vítima e permitir que ela expresse livremente sua versão dos fatos.(36) Cada um desses tópicos, passíveis de serem submetidos às práticas restaurativas, merece estudo aprofundado, que, todavia, não será possível neste trabalho. 3.4 Modelo da justiça criminal negociada A negociação criminal ocorre mediante a confissão do delito pelo acusado, que formaliza acordo com o órgão acusador sobre a quantidade da pena, incluindo a prisional, a perda de bens, a reparação dos danos, a forma de execução da pena etc. É o denominado plea bargaining, amplamente adotado no sistema norte-americano. Mais de 90% dos delitos nos Estados Unidos são resolvidos por esse método, que é válido para todos os delitos, em princípio, incluindo-se fatos extremamente graves. O acusado assume responsabilidade pelo injusto cometido (ou seja: aceita sua culpabilidade) e a negociação se faz entre ele, seu defensor e o Ministério Público.(37) Está presente nesse sistema uma extrema liberdade de negociação atribuída ao órgão oficial acusador, de modo que é difícil a aceitação de sua forma pura por nosso ordenamento jurídico. Nos Estados Unidos, os governos estaduais detêm autonomia para definição de delitos e penas, bem como para definição de procedimento penal. De qualquer sorte, o método da negociação é amplamente utilizado. O juiz figura como mero homologador do resultado do acordo. O plea bargaining (barganha de declaração, pedido de barganha), forma mais típica no sistema norte-americano, diz respeito à declaração de culpa, ao pedido de culpa, ao guilty plea, que é um acordo entre acusação e defesa, para que os acusados se declarem culpados em troca de uma gama de concessões, evitando um demorado processo judicial. Determina-se um ou mais elementos da própria sentença, por meio de negociação, reduzindo-se a grande maioria dos processos norte-americanos a uma fase de “pré-triagem”, sem submetê-los a um juízo instrutório. A negociação é realizada no caso de declaração de culpado ou não contestação pelo réu, sem que haja necessidade de provar o alegado. Mais nada se requer do juiz, apenas que profira a sentença, o que significa um salto da fase inicial para a de determinação de pena. Com a declaração de culpado, o acusado renuncia a direitos constitucionalmente garantidos, como o de não fazer declaração contra si, o de estar sujeito a julgamento pelo júri e o de confrontação com as testemunhas que fizeram declarações contra ele. Assumindo o compromisso, ou plea agreement, ocorrerá: primeiro, uma diminuição na pena, ou uma redução nos delitos levados à acusação, ou, ainda, uma alteração para um delito de menor gravidade; segundo, a acusação fará uma declaração pedindo uma sentença mais branda, uma submissão à liberdade condicional, em substituição à privação de liberdade, ou não realizará recomendações para maior gravidade, nem se oporá aos pedidos de decisão mais branda. No entanto, os requisitos de voluntariedade e capacidade do acusado são verificados pelo juiz para a aceitação da declaração e do acordo. Nesse modelo, a vítima é colocada em papel secundário, como simples testemunha de acusação, pois a negociação é limitada ao promotor e à defesa. Esse sistema da justiça penal negociada é empregado em diversos outros países, porém cada qual com suas particularidades procedimentais, como na Alemanha, no Canadá, na Espanha, na Inglaterra, na Itália, no Japão e em Portugal.(38) O Brasil não adota o plea bargaining como forma de solução de litígios penais, e o debate a respeito de sua introdução no País é bastante complexo.(39) A transação penal, criada pela Lei 9.099/95, prevista em seu art. 76, aproxima-se desse modelo, mas com ele não coincide. O instituto, destinado para crimes de menor potencial ofensivo, confere ao Ministério Público a possibilidade de propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas. Aceita a proposta pelo autor do fato, será submetida à apreciação do juiz (§ 3º) e, se acolhida, o juiz efetua a aplicação, a qual não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos (§ 4º). A transação penal assemelha-se ao plea bargaining, porquanto há acordo sobre aplicação de pena entre o Ministério Público e o acusado. Porém, dele se diferencia, pois não há confissão do delito, não forja reincidência e está limitada aos crimes menos graves. Outro instituto presente em nossa legislação semelhante à negociação é a colaboração processual. Esta ocorre quando o acusado, além de confessar seus crimes para as autoridades, evita que outras infrações venham a consumar-se (colaboração preventiva) ou auxilia o Estado em sua atividade de colher provas contra os demais coautores, possibilitando suas prisões (colaboração repressiva).(40) No direito brasileiro, a cooperação processual é corporificada na delação premiada. Prevista em diversos diplomas legais, concede ao acusado que colaborar com as autoridades benefícios de redução da pena e, inclusive, perdão judicial.(41) O instituto se afasta, contudo, do plea bargaining, na medida em que, na delação premiada, haverá o processo penal e o delator poderá mesmo ser absolvido. Na negociação, por outro lado, não há intuito de colaboração na elucidação do crime, mas sim a formalização de acordo que abrevia o processo e impõe imediatamente uma pena. Conclusão A adjudicação da solução dos conflitos pelo Estado representou inegável avanço da sociedade rumo à racionalização, à segurança jurídica, à democratização e à igualdade, pois a autotutela quase sempre conduz a um rigor desmedido, a sanções irrazoáveis, a tratamento desigual entre as partes, enfim, ao que se convencionou denominar de vingança privada. No entanto, a excessiva judicialização dos conflitos, aliada ao aumento do formalismo e do profissionalismo dos meios de resolução, comprometeu sobremaneira a eficiência e a celeridade processuais. Os meios alternativos, baseados no consenso, embora existentes antes mesmo da resolução adjudicada de litígios, estão alcançando maior espaço na atualidade, para abranger uma quantidade crescente de conflitos, em substituição à Justiça estatal, a qual demonstrou, ao longo dos séculos, carecer de uma vocação onipresente. Nas lides privadas, porque impregnadas da autonomia de vontade, as formas extrajudiciais de administração de conflitos encontram maior aplicação. Evidente, pois é justamente onde as relações jurídicas deitam raízes na liberdade das pessoas que o consenso adquire maior importância. À vontade de contratar vincula-se a vontade de resolver os conflitos. Diversamente, no campo do Direito Público, principalmente do Direito Penal, a vontade incide em grau menor. O crime, ato ilícito que é, conquanto sua prática seja fruto da vontade do infrator, ingressa no mundo jurídico independentemente da vontade das partes. Logo, a solução impositiva do conflito penal é bem mais intensa do que a solução consensual. Todavia, em que pese sua menor incidência, os modelos consensuais encontram alguma aplicação no âmbito criminal. Outrossim, percebe-se um crescente protagonismo da vítima no processo penal, mais sintonizado com a dignidade humana do que com o formalismo estéril. Sendo assim, a justiça penal, na atualidade, tende a dispensar maior atenção às necessidades dos principais interessados no deslinde do fato criminal: o ofendido, o infrator e a comunidade. A utilização dos métodos não adversariais na resolução das lides penais revela-se, pois, como importante instrumento para difundir o consenso e reduzir a excessiva litigiosidade. Contribui, assim, para a diminuição da quantidade de processos em tramitação no Judiciário e, consequentemente, conduz a uma maior eficácia e celeridade processuais. Enfim, por meio da conciliação e da mediação, o litígio tende a efetivamente ser pacificado, com a participação ativa dos principais afetados pelo delito, e não apenas resolvido de fora para dentro, pela chancela oficial. Convém registrar que, embora se reconheça a importância dos modelos consensuais para o progresso da justiça penal, seria ingênuo acreditar que doravante todos os casos criminais poderiam ser solucionados pelos próprios envolvidos no fato, de modo conciliatório ou mesmo sem a intervenção do Estado. Com efeito, não se está aqui conferindo a esses métodos alternativos um cunho milagroso de término de todos os conflitos ou de extinção de todos os crimes cometidos no País. A adoção dessas práticas consensuais não consiste em uma “solução mágica” ou em um “remédio milagroso” que virá a “curar” o sistema penal da inoperância e da inefetividade. Até porque, convenhamos, esperar que as pessoas possam resolver todos os seus litígios por elas próprias, de modo privado, é o mesmo que esperar que nenhum outro ato ilícito seja cometido. Vale dizer, enquanto crimes forem praticados, não será possível ao Estado desvestir-se da função jurisdicional. Se o crime em si deriva de um abuso por parte do delinquente, é de se acreditar que abusos também ocorrerão na solução exclusivamente privada dos delitos. De qualquer forma, devemos reconhecer que o emprego de meios conciliatórios e restaurativos na resolução das lides penais terá aptidão para desafogar o Judiciário e, a longo prazo, introduzir na sociedade brasileira uma substituição da cultura do litígio pela cultura do consenso. Referências bibliográficas GIACOMOLLI, Nereu José. O consenso no Código de Processo Penal português. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, v. 4, n. 9, p. 51-63, maio/ago. 2003. GOMES, Luiz Flávio. Justiça penal restaurativa: conciliação, mediação e negociação. Jus Navigandi, Teresina, a. 12, n. 1451, 22 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10051>. Acesso em: 8 dez. 2011. ______. Mais juízes, mais servidores e mais morosidade! Jus Navigandi, Teresina, a. 16, n. 3038, 26 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20313>. Acesso em: 7 dez. 2011. ______; MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Criminologia. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7359>. Acesso em: 18 dez. 2011. LARRUSCAHIM, Paula Gil. Justiça restaurativa: tecendo um conceito para a margem. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de (org.). 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1. In A crise do Judiciário e a visão dos juízes. Revista USP, São Paulo, n. 21, mar./abr. 1994. p. 39. 2. In A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito (nota introdutória). Processos Coletivos, Porto Alegre, v. 1, n. 2, 01 jan. 2010. Disponível em: <http://www.processoscoletivos.net/ve_artigo.asp?id=24>. Acesso em: 19 dez. 2011. 3. GOMES, Luiz Flávio.Mais juízes, mais servidores e mais morosidade! Jus Navigandi, Teresina, a. 16, n. 3038, 26 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20313>. Acesso em: 7 dez. 2011. 8. Inclusive nas ações penais de iniciativa privada existe interesse do Estado, ainda que mais reduzida, pois o Ministério Público é sempre ouvido e a persecução é, sempre, por meio do Judiciário. 9. GOMES, Luiz Flávio. Justiça penal restaurativa: conciliação, mediação e negociação. Jus Navigandi, Teresina, a. 12, n. 1451, 22 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10051>. Acesso em: 8 dez. 2011. 11. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de (org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006. p. 191-203. 12. MARTÍN, Nuria Belloso. Anotaciones sobre alternativas al sistema punitivo: la mediación penal. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, a. 4, v. V, p. 146-186, jan./jun. 2010. Disponível em: <http://www.redp.com.br/arquivos/redp_5a_edicao.pdf>. 13. GOMES, Luiz Flávio. Justiça penal restaurativa: conciliação, mediação e negociação. Jus Navigandi, Teresina, a. 12, n. 1451, 22 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10051>. Acesso em: 8 dez. 2011. 14. VEZZULLA, Juan Carlos. A mediação de conflitos com adolescentes autores de ato infracional. Florianópolis: Habitus, 2006. p. 80. 16. LARRUSCAHIM, Paula Gil. Justiça restaurativa: tecendo um conceito para a margem. In:AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de (org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006. p. 184. 17. JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7359>. Acesso em: 18 dez. 2011. 21. Apud SVIRSKI, Ana Carolina Chagas N.; CINTRA, Mirela de. Amor, culpa e reparação nas práticas restaurativas da justiça juvenil: considerações preliminares. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de (org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006. p. 164-5. 23. In O consenso no Código de Processo Penal português. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, v. 4, n. 9, p. 51-63, maio/ago. 2003. 31. GOMES, Luiz Flávio. Justiça penal restaurativa: conciliação, mediação e negociação. Jus Navigandi, Teresina, a. 12, n. 1451, 22 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10051>. Acesso em: 8 dez. 2011. 38. PEREIRA, Cláudio José. Princípio da oportunidade e justiça penal negociada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 108-143. 40. SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 77. 41. A delação premiada é disciplinada em várias leis, tais como: Lei 8.072/90, art. 8º, parágrafo único (crimes hediondos); Lei 8.137/90, art. 16, parágrafo único (crimes contra a ordem tributária e econômica e relações de consumo); Lei 9.296/96 (introduziu o § 4º no art. 158 do CP, crime de extorsão mediante sequestro); arts. 13 e 14 da Lei 9.087/99 (lei de proteção às testemunhas); Lei 11.343/06, art. 41 (nova lei antidrogas); art. 6º da Lei 9.034/95 (crime organizado).
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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