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publicado em 30.04.2015
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A fragilidade das fronteiras brasileiras leva ao ingresso irregular de grande volume de mercadorias e, consequentemente, à aplicação da pena de perdimento, tanto para as mercadorias quanto para os veículos transportadores. A pena de perdimento possui natureza jurídica mista (repressivo-compensatória). A pena de perdimento é constitucional e não viola o princípio do devido processo legal nem o direito de propriedade. A pena de perdimento de veículo não necessita observar o princípio da insignificância e deve ser proporcional sob o prisma axiológico, e não meramente matemático. Aplica-se a pena de perdimento ao veículo transportador de mercadoria sujeita a igual sanção, desde que o proprietário tenha ciência do ilícito. A multa do art. 75 da Lei nº 10.833/03 e o RTU – Regime de Tributação Unificado – da Lei nº 11.898/09 representam soluções alternativas para coibir o ingresso irregular de mercadorias no Brasil. Palavras-chave: Direito aduaneiro. Perdimento de veículos. Constitucionalidade. Hipóteses de aplicação. Multa. Lei do Sacoleiro. Sumário: Introdução. 1 O ingresso irregular de mercadorias no Brasil. 1.1 Particularidades de Foz do Iguaçu/PR. 2 Penalidades aduaneiras. 2.1 A pena de perdimento e sua natureza jurídica. 3 Constitucionalidade da pena de perdimento. 3.1 A pena de perdimento e o devido processo legal. 3.2 A pena de perdimento e o direito de propriedade. 3.3 A pena de perdimento de veículo e o princípio da proporcionalidade. 3.4 A pena de perdimento e o princípio da insignificância fiscal. 4 Aplicação da pena de perdimento. 4.1 Mercadoria sujeita a pena de perdimento. 4.2 Responsabilidade do proprietário do veículo. 5 Soluções alternativas para coibir o ingresso irregular de mercadorias: o RTU da Lei 11.898/09 e a multa do artigo 75 da Lei nº 10.8333/03. 5.1 A multa do artigo 75 da Lei nº 10.8333/03. 5.2 O RTU (Regime de Tributação Unificada) da Lei 11.898/09. Conclusão. Introdução O intenso e constante ingresso de mercadorias de forma irregular em território nacional leva, após a fiscalização, à aplicação de sanções aduaneiras – não só em relação às mercadorias, mas também em relação ao veículo transportador. Há várias décadas, a pena de perdimento do veículo que transporta mercadoria suscetível a igual sanção vem sendo aplicada e, até os dias de hoje, gera grandes discussões jurisprudenciais.Pretende este trabalho tecer breves considerações, a partir da análise da situação concreta vivenciada nos territórios fronteiriços, acerca da constitucionalidade da pena de perdimento do veículo transportador de mercadorias irregulares, bem como acerca das hipóteses de sua aplicação. 1 O ingresso irregular de mercadorias no Brasil A circulação de pessoas e bens, atualmente, se dá de forma muito fácil e rápida. Se, por um lado, isso proporciona muitas vantagens para quem circula ou adquire mercadorias oriundas dos mais variados cantos do mundo, por outro, exige uma atuação cada vez mais especializada e forte das autoridades fiscais. A quase ausência de obstáculos nas fronteiras terrestres e a facilidade de deslocamento também implicam uma maior circulação de produtos. Por isso, mecanismos de controle referentes à entrada de mercadorias estrangeiras são cada vez mais necessários.Consoante narra Carluci (2000, p. 248), “desde os primórdios da introdução da cobrança dos direitos aduaneiros nas economias fiscais no mundo, o contrabando e o descaminho, em suas diversas modalidade de ação, representam uma importante fonte de sonegação e evasão de divisas e de tributos”. Consequentemente, pressupõe-se que, desde aquela época, havia uma preocupação em como fiscalizar e punir as infrações. Daí a importância das sanções às infrações aduaneiras. 1.1 Particularidades de Foz do Iguaçu/PR Foz do Iguaçu, cidade paranaense que possui fronteira com o Paraguai (Ciudad del Este) e com a Argentina (Puerto Iguazu), é um dos principais pontos de ingresso de mercadorias irregulares em nosso país. A grande circulação de pessoas na Ponte da Amizade (ponte que liga Foz do Iguaçu a Ciudad del Este) não é fenômeno recente, mas o modo pelo qual ocorre essa circulação segue em constante alteração, sempre com vistas a burlar a fiscalização, que é cada vez mais intensa e especializada. “em verdade, cada conduta aparentemente isolada colabora na formação de conjunto capaz de aniquilar a indústria nacional, sobretudo quando lembramos o fato de Ciudad del Este abastecer praticamente todo o comercio ilegal do pais e ser abastecida, basicamente, pela China, com suas mercadorias produzidas a preços baixíssimos e livres de impostos.” Para se ter uma pequena ideia do que circula em Foz do Iguaçu, conforme dados da Delegacia da Receita Federal, atualmente (outubro de 2014), há 5.150 veículos apreendidos em seu pátio de custódia aguardando destinação; são retidos cerca de dez veículos de passeio por dia e cerca de vinte ônibus mensalmente. O valor de mercadorias retidas/apreendidas está na faixa de US$ 7.000.000,00 por mês, somente na zona secundária de competência da referida delegacia. 2 Penalidades aduaneiras O artigo 675 do Decreto nº 6.759/09 (Regulamento Aduaneiro), a partir das sanções estabelecidas legalmente pelo art. 96 do Decreto-Lei nº 37/66, pelo art. 23, § 1º, do Decreto-Lei nº 1.455/76 (com a redação dada pela Lei nº 10.637/02, arts. 59 e 24), pelo art. 65, § 3º, da Lei nº 9.069/95 e pelo art. 76 da Lei nº 10.833/03, regulou a aplicação, separada ou cumulativamente, das seguintes penalidades: “Art. 675. (...) No entanto, a penalidade que mais suscita dúvidas e discussões judiciais é a pena de perdimento de veículo. Ademais, é tema relevante, em especial, para a 4ª Região da Justiça Federal, uma vez que boa parte das infrações relativas ao contrabando e ao descaminho terrestres são oriundos de Ciudad del Este/Paraguai, cidade vizinha a Foz do Iguaçu. 2.1 A pena de perdimento e sua natureza jurídica As infrações aduaneiras, em muitos casos, não geram perda de arrecadação, mas a sua penalização é necessária para a proteção do comércio e da indústria nacionais, bem como assegura a livre concorrência. Aliás, a função extrafiscal do Direito Aduaneiro é seguidamente ressaltada pelos doutrinadores.Em virtude do caráter extrafiscal do Direito Aduaneiro e a despeito das significativas mudanças na forma de circulação das mercadorias, a pena de perdimento de bens (de mercadorias e de veículo) é importante sanção para o combate ao transporte de produtos irregularmente adquiridos. Possui uma feição ressarcitória, mas principalmente repressiva. “tendo-se como premissa que a decretação de perdimento de mercadorias e veículos em matéria aduaneira só pode ocorrer em razão de dano ao erário, verifica-se que tal sanção tem natureza jurídica mista. Quer dizer, ao mesmo tempo em que é sanção para o autor do ilícito, cumpre também a função de ressarcir o Estado pelo dano ao erário oriundo do mesmo ato ilícito. Sua natureza jurídica, portanto, é repressivo-compensatória.” 3 Constitucionalidade da pena de perdimento A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional 1/69 traziam previsão expressa acerca da pena de perdimento de bens por dano ao erário (artigo 150, § 11, e artigo 153, § 11, respectivamente). Tal disposição não foi repetida na Carta de 1988, o que levou inicialmente à indagação sobre sua permanência no ordenamento jurídico. Portanto, a ausência de previsão expressa da pena de perdimento de bens como sanção aduaneira na Constituição Federal não a torna inconstitucional. 3.1 A pena de perdimento e o devido processo legal A pena de perdimento, administrativamente, é aplicada após regular processo administrativo. Portanto, em tese, não há violação ao devido processo legal, garantia assegurada na Constituição Federal e de observância também no âmbito administrativo. 3.2 A pena de perdimento e o direito de propriedade A aplicação da pena de perdimento também não viola o direito de propriedade, previsto constitucionalmente dentre os direitos e as garantias individuais, porquanto inexistem direitos absolutos. “(...) o pluralismo de ideias na sociedade projeta-se na Constituição, que acolhe, por meio dos seus princípios, valores e interesses dos mais diversos matizes. Tais princípios, como temos visto no decorrer deste estudo, entram às vezes em tensão na solução de casos concretos. Como observou Karl Engisch, a contradição principiológica é um fenômeno inevitável, na medida em que constitui reflexo natural das ‘desarmonias que surgem em uma ordem jurídica pelo facto de, na constituição desta, tomarem parte diferentes ideias fundamentais entre as quais se pode estabelecer conflito’. Assim, a ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para a resolução desses conflitos constitucionais.” De um lado, temos o direito fundamental do administrado à propriedade; de outro, temos o interesse público, consubstanciado no dever de a Administração Pública combater a criminalidade, proteger o mercado interno, a livre concorrência, bem como o próprio consumidor e o uso adequado da propriedade. “A ideia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga ‘o pluralismo e antagonismo de ideias subjacentes ao pacto fundador’ (...). O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior (...). O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou ‘otimização’ das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas.” (sem destaque no original) Assim, somente na análise do caso concreto será possível verificar a prevalência de determinado direito, o que deverá ser feito por meio da denominada ponderação de interesses. 3.3 A pena de perdimento de veículo e o princípio da proporcionalidade A pena de perdimento também deve ser proporcional. Mas o que concretamente significa observar a proporcionalidade na aplicação da pena de perdimento de veículos ainda é questão que suscita dúvidas. “(...) a vinculação do valor das mercadorias ao valor do veículo que as transporta não parece acertada, pois despreza os valores encerrados nas normas repressivas de ilícitos fiscais. Tal interpretação acaba por ignorar, no âmbito da responsabilidade civil, o fim maior das normas de repressão das condutas ilícitas, que, em última análise, tutelam os valores da sociedade encerrados nos interesses fazendários. Na medida em que prestigia a preservação tão somente do valor da propriedade do infrator, com o temor de se praticar suposto confisco, prejudica-se a proteção do interesse público.” Portanto, constatada a insuficiência do critério exclusivamente matemático a fim de se verificar a proporcionalidade da sanção, devem ser buscados outros critérios de análise. “O exame de proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito).” Portanto, a partir da delimitação proposta por Humberto Ávila, o exame da proporcionalidade deve atentar para a faceta da adequação (a pena de perdimento do veículo é adequada quando objetiva impor responsabilidade também àqueles que, por se disporem a transportar mercadorias em desacordo com a legislação, diretamente estão contribuindo com o avanço dos crimes de contrabando e descaminho), da necessidade (a pena de perdimento, dentre tantas outras sanções administrativas, atinge a finalidade de inibir o ingresso de mercadorias irregulares) e da proporcionalidade stricto sensu (a restrição decorrente da pena de perdimento está embasada em uma finalidade pública, qual seja, o urgente combate ao contrabando, ao descaminho e aos demais crimes correlatos, cuja incidência tem crescido sobremaneira, principalmente nas zonas fronteiriças). “(...) 1. A proporcionalidade no contexto da norma vertente deve ser avaliada não apenas sob o prisma matemático, mas, sobretudo, sob o axiológico, uma vez que a perda do bem não visa somente ao ressarcimento ao Erário, mas, também e precipuamente, a impedir a habitualidade do contrabando e do descaminho. Esse critério dita que sanção tão gravosa como é o perdimento, que importa em verdadeira constrição à liberdade e à propriedade, somente deve ter lugar quando se está diante de situação em que o veículo não cumpre sua função social, vale dizer, é utilizado de forma contrária aos interesses públicos. 2. Para tanto, a conduta deve revelar-se ofensiva não apenas aos interesses do Erário, já reparado com a perda dos produtos, mas também a valores juridicamente identificados com a coletividade, tais quais a balança comercial, a concorrência leal, a saúde pública e os direitos do consumidor. 3. Enfim, há de ser feito o juízo de adequação axiológica e finalística entre o ilícito cometido e a sua consequência jurídica, enfocando-se o problema pelo critério da conduta, de modo a sacrificar o mínimo possível de direitos. 4. Existindo nos autos provas ou circunstâncias que indiquem a reiteração da conduta ilícita pelo proprietário do veículo apreendido e a decorrente diminuição entre os valores envolvidos por força da frequência, descabe invocar o princípio da proporcionalidade. 5. Se as provas constantes nos autos demonstram que se trata de proprietário com potencialidade de incorrer novamente no delito, fica justificada a aplicação da pena de perdimento. Explica-se: uma vez que o objetivo da medida é retirar do proprietário o instrumento do delito, evitando que ele reincida na infração, constatado que o proprietário do automóvel é reincidente ou apresenta potencialidade de incorrer novamente no delito, fica justificada a aplicação da pena de perdimento.” (TRF4, AC 5004503-87.2011.404.7002, Primeira Turma, Relator p/ Acórdão Joel Ilan Paciornik, juntado aos autos em 05.09.2013) (Sem destaque no original) “TRIBUTÁRIO. PENA DE PERDIMENTO. VEÍCULO TRANSPORTADOR. REQUISITOS. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DESPROPORÇÃO. O fato de pender sobre o bem um contrato de arrendamento mercantil/alienação fiduciária não tem o condão de afastar a aplicação da legislação aduaneira atinente à matéria, pois o interesse público que presencia à hipótese sobreleva-se ao interesse das partes. A apreensão se faz em função da sua posse direta. O contrato de arrendamento deve ser resolvido entre as partes, no foro competente. Quanto ao princípio da proporcionalidade, a orientação firmada neste Tribunal é no sentido de que sua aferição não se restringe ao critério matemático, sob pena de se beneficiarem proprietários de veículos de maior valor, quando esse não é o objetivo da lei. Devem ser conjugados dois critérios: os valores dos bens não devem possuir uma grande diferença e devem ser examinadas as circunstâncias que indiquem a habitualidade do cometimento de infrações. No caso, em atenção às circunstâncias descritas no auto de infração, inclusive a reiteração da conduta lesiva por parte do condutor, é de ser afastada a aplicação do princípio da proporcionalidade.” (TRF4, AC 5007365-79.2012.404.7104, Primeira Turma, Relator p/ Acórdão Jorge Antonio Maurique, juntado aos autos em 26.09.2013) (Sem destaque no original) “TRIBUTÁRIO. PENA DE PERDIMENTO. VEÍCULO TRANSPORTADOR. REQUISITOS. 1. Esta Corte entende que a pena de perdimento só deve ser aplicada ao veículo transportador quando concomitantemente houver: a) prova de que o proprietário do veículo apreendido concorreu de alguma forma para o ilícito fiscal (Inteligência da Súmula nº 138 do TFR); b) relação de proporcionalidade entre o valor do veículo e o das mercadorias apreendidas. 2. Para objetivar-se a relação de proporcionalidade entre o valor do veículo e o das mercadorias apreendidas, devem ser utilizados dois critérios. O primeiro diz respeito aos valores absolutos dos bens, que devem possuir uma grande diferença. O segundo importa na existência de circunstâncias que indiquem a reiteração da conduta ilícita e a decorrente diminuição entre os valores envolvidos, por força da frequência.” (TRF4, AC 5005891-88.2012.404.7002, Segunda Turma, Relatora p/ Acórdão Luciane Amaral Corrêa Münch, juntado aos autos em 25.09.2013) (Sem destaque no original) “ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. PENA DE PERDIMENTO DE VEÍCULO. PROPORCIONALIDADE DA SANÇÃO. Portanto, fixados esses parâmetros interpretativos, no caso concreto deverá ser verificada a proporcionalidade da pena de perdimento do veículo. 3.4 A pena de perdimento e o princípio da insignificância fiscal É comum a alegação, nos processos judiciais, de que, em virtude da possibilidade legal de não ajuizamento de execuções fiscais diante do baixo valor do crédito, não seria possível a aplicação da pena de perdimento do veículo quando o valor do tributo iludido em virtude da internação irregular das mercadorias apreendidas fosse inferior a tal patamar. Trata-se de raciocínio que não pode prevalecer: dada sua natureza repressivo-compensatória, a aplicação da pena de perdimento não tem como único objetivo ressarcir o Erário pelo dano causado em face dos tributos iludidos, uma vez que se pretende também proteger o mercado nacional e a livre e honesta concorrência, bem como impedir o ingresso de produtos proibidos. Colaciona-se precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região acerca desse ponto: “TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSPORTE DE MERCADORIAS ESTRANGEIRAS. PENA DE PERDIMENTO. PROPORCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. Em consonância com a legislação de direito aduaneiro e a jurisprudência desta Corte, a aplicação da pena de perdimento do veículo transportador pressupõe a prova de que o proprietário do veículo concorreu, de alguma forma, para a prática do ilícito, bem como a relação de proporcionalidade entre o valor do veículo e o das mercadorias apreendidas. Quanto ao princípio da proporcionalidade, a orientação firmada neste Tribunal é no sentido de que sua aferição não se restringe ao critério matemático, sob pena de se beneficiarem proprietários de veículos de maior valor, quando esse não é o objetivo da lei. Devem ser conjugados dois critérios: os valores dos bens não devem possuir uma grande diferença, e devem ser examinadas as circunstâncias que indiquem a habitualidade do cometimento de infrações. Na hipótese em exame, a responsabilidade da proprietária restou demonstrada diante das circunstâncias do caso, especialmente em razão da sua culpa in eligendo, assim como da demonstração da habitualidade da conduta ilícita. O princípio da insignificância não tem aplicação no presente caso, tendo em vista que a pena de perdimento de veículo, desde que preenchidos os requisitos, independe do valor das mercadorias apreendidas.” (TRF4, AC 5003236-09.2013.404.7003, Primeira Turma, Relator p/ Acórdão Jorge Antonio Maurique, juntado aos autos em 26.09.2013) 4 Aplicação da pena de perdimento de veículo A perda do veículo transportador é uma das penas previstas para as infrações fiscais no Decreto-Lei 37/66 (artigo 96, inciso I), bem como em seu regulamento (Regulamento Aduaneiro – Decreto 4543/2002: artigo 604, inciso I; e Decreto 6.859/09: artigo 688, inciso V). É sujeita à pena de perdimento toda aquela mercadoria estrangeira que foi internalizada em desacordo com a legislação aduaneira e, por configurar dano ao Erário, recebe a referida sanção. 4.2 Responsabilidade do proprietário do veículo Como regra geral, a responsabilidade tributária é objetiva. Todavia, para fins de aplicação da pena de perdimento ao veículo, exige-se a responsabilidade subjetiva: o proprietário do veículo que transportava mercadorias descaminhadas/contrabandeadas deve ou, no mínimo, deveria saber a destinação que estava sendo dada a seu bem. “TRIBUTÁRIO. ADUANEIRO. PERDIMENTO. APREENSÃO DE VEÍCULO QUE TRANSPORTAVA MERCADORIAS INTERNADAS IRREGULARMENTE. PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ. AFASTADA. 1. É forçoso ponderar que, para que se comine a pena de perdimento do veículo, devem estar configurados indícios robustos que apontem para o conhecimento do seu proprietário acerca do ilícito, ainda mais se levado em conta que, para se dar o perdimento de bem que transportava mercadorias contrabandeadas ou descaminhadas, deve o proprietário daquele ser também destas ou haver prova de ter concorrido para a prática da infração, seja com dolo ou culpa in eligendo ou in vigilando, consoante a Súmula 138 do antigo Tribunal Federal de Recursos. 2. Desde que não suprimida a presunção de boa-fé, não há lugar à incidência da pena de perdimento, visto que esta só é aplicável àquele que, tendo consciência da ilicitude e do caráter fraudulento da conduta ou deixando de se precaver adequadamente quanto a possíveis empecilhos para a realização do negócio, beneficia-se da irregularidade. 3. O uso de veículo para transporte de mercadorias estrangeiras desprovidas de comprovação da regular importação, passíveis da pena de perdimento, vincula, dessa forma, a aplicação da mesma pena ao veículo transportador, caso configurada a responsabilidade de seu proprietário. 4. Verifica-se que o tempo de permanência na região da fronteira é escasso para quem pretendia instalar filial de sua empresa em Foz do Iguaçu. A maioria das vezes, a ida à região fronteiriça e o respectivo retorno se dão no mesmo dia. Nesse compasso, é de se ver que, em várias oportunidades, a autora emprestou o veículo de placa DRK 2022, de sua propriedade, para seu filho realizar viagens à localidade de Foz do Iguaçu. Na própria apelação, a apelante afirmou que ‘tinha ciência das viagens do filho a Foz do Iguaçu, contudo nunca desconfiou que o mesmo trouxesse mercadorias sem a regular documentação’. 5. Tendo ciência das viagens, sendo sabedora de que seu filho é proprietário de uma empresa que atua no ramo do comércio de peças e acessórios para aparelhos eletroeletrônicos, cujo CNPJ é 11.808.566/001-60, e que as mercadorias apreendidas são compatíveis com as de seu comércio, conclui-se que a proprietária do veículo concorreu para a prática da infração, na medida em que emprestou o veículo de sua propriedade para terceiro. Assim, quanto à alegação de boa-fé, entende-se não prevalecer os argumentos da autora. 6. Embora o apelante alegue existir desproporção entre o valor das mercadorias e o do veículo, tem-se que a mera comparação numérica não prospera. Tem-se entendimento de que a desproporcionalidade entre o valor das mercadorias e aquele concernente ao veículo apreendido não tem o condão de, por si só, afastar a pena de perdimento, devendo ser analisada a boa-fé do proprietário do bem. 7. Deve ser mantida a sentença.” (TRF4, AC 5002834-33.2010.404.7002, Primeira Turma, Relator p/ Acórdão Joel Ilan Paciornik, juntado aos autos em 16.11.2012) Por fim, ainda algumas palavras acerca da possibilidade de aplicação da pena de perdimento de veículo utilizado como “batedor” de outro veículo que transporte as mercadorias. “ADUANEIRO. VEÍCULO ‘BATEDOR’. PENA DE PERDIMENTO. CABIMENTO. É plenamente cabível a aplicação da pena de perdimento, na forma do art. 104, inc. V, do Decreto-Lei 37, de 1966, aos veículos ‘batedores’, uma vez que, embora não diretamente carregados com a mercadoria descaminhada/contrabandeada, participam diretamente de seu transporte, com participação ativa e relevante na condução da mercadoria.” (TRF4, EINF 5005212-59.2010.404.7002, Primeira Seção, Relator p/ Acórdão Rômulo Pizzolatti, juntado aos autos em 08.05.2014) 5 Soluções alternativas para coibir o ingresso irregular de mercadorias: o RTU da Lei 11.898/09 e a multa do artigo 75 da Lei nº 10.8333/03No decorrer da última década, tentou-se a implementação de duas mudanças legislativas para coibir o ingresso irregular de mercadorias em território nacional, além da intensificação e aperfeiçoamento do trabalho fiscalizatório, em especial, da Receita Federal. Trata-se de uma nova sanção aduaneira (a multa de R$ 15.000,00, instituída na Lei 10.833/03) e de um novo regime de tributação (o regime de tributação unificado, instituído pela Lei 11.898/09). 5.1 A multa do artigo 75 da Lei nº 10.8333/03Em virtude da constatação de que os ônibus eram o meio de transporte preferencial para o deslocamento de mercadorias irregularmente internalizadas no país e da necessidade de se intensificar o combate ao contrabando e ao descaminho, via terrestre, oriundos principalmente do país vizinho Paraguai, pretendeu-se minimizar tal situação impondo certas obrigações ao próprio transportador, independentemente de sua vinculação com a propriedade das mercadorias transportadas. Para tanto, foi instituída pelo artigo 75 da Lei nº 10.833/03 (originária da conversão da MP 135, de 30 de outubro de 2003) uma multa de R$ 15.000,00, imputável ao transportador de mercadoria sujeita à pena de perdimento, desde que sem identificação do proprietário ou possuidor ou se as características ou a quantidade dos volumes transportados evidenciarem ser mercadoria passível da referida pena, nos seguintes termos: “Art. 75. Aplica-se a multa de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) ao transportador, de passageiros ou de carga, em viagem doméstica ou internacional que transportar mercadoria sujeita a pena de perdimento: Tal multa caracterizou-se como inovação no elenco de sanções aduaneiras, as quais, via de regra, eram imputadas tão somente ao proprietário do bem irregularmente internalizado em território brasileiro. 5.2 O RTU (Regime de Tributação Unificada) da Lei nº 11.898/09 A Lei nº 11.898/09 instituiu Regime de Tributação Unificada – RTU na importação, por via terrestre, de mercadorias procedentes do Paraguai. Trata-se da popularmente denominada “Lei do Sacoleiro”. Sua regulamentação consta no Decreto nº 6.956/09. Conclusão O perdimento do veículo transportador de mercadoria sujeita a essa pena continua sendo uma das penalidades aduaneiras mais utilizadas, a despeito da constante alteração do modus operandi daqueles que transportavam tais produtos. Isso porque, mais do que punir o transportador de artigos irregulares, afeta o modo de transporte utilizado, fragmentando, em doses pequenas e contínuas, a macrocriminalidade envolvida. Verifica-se, também, que as tentativas de propor meios alternativos para regularização das mercadorias, tal como o RTU do “sacoleiro”, não obtiveram êxito – o que novamente confirma que o contrabando e o descaminho não são isolados ou praticados por pessoas sozinhas, em pequenas quantidades e em benefício próprio, mas sim por pessoas integrantes de grandes grupos de crime organizado. Referências bibliográficas ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. CARLUCI, José Lence. Uma introdução ao direito aduaneiro. 2. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2000. FERREIRA, Rony. Perdimento de bens. In: FREITAS, Vladimir Passos de (coord.). Importação e exportação no direito brasileiro. São Paulo: RT, 2004. KONRATH, Camila Plentz. Aplicação da pena de perdimento do veículo pela prática de ilícitos tributários. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; PAULSEN, Leandro (org.). Curso modular de Direito Tributário. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 447-478. PINTO, Catarina Volkart. A multa do artigo 75 da Lei nº 10.833/03. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; PAULSEN, Leandro (org.). Curso modular de Direito Tributário. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 479-492. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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