O sistema previdenciário brasileiro encontra-se inserido no vasto arcabouço garantidor da Seguridade Social e, conseqüentemente, sujeita-se aos cânones norteadores deste Capítulo integrante do Título constitucional relativo à Ordem Social.
Após conceituar a seguridade social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar, dentre outros, os direitos à previdência social, o constituinte elencou seus objetivos, estando a figurar, dentre eles, o da “seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços”. (CF, art. 194, parágrafo único, III)
Ao perscrutar o alcance de tal objetivo, FORTES e PAULSEN glosaram:
“É princípio que determina que os planos de seguridade social têm de eleger um plano básico compatível com as possibilidades econômico-financeiras do sistema e com as necessidades reais dos beneficiários (seletividade), bem como que os benefícios e serviços que garanta sejam distribuídos àqueles que de fato necessitem, na medida de sua necessidade (distributividade) (...).
Em outras palavras, os benefícios e serviços têm de ser suficientes para atender às reais necessidades dos indivíduos, bem como ser compatíveis com a saúde econômico-financeira do sistema. Trata-se, portanto, de princípio que restringe o princípio da universalidade de cobertura e do atendimento.”(1)
Logo a seguir, realçam que “o princípio da distributividade realmente não encontra recepção na Saúde, que deve atender a todos, indistintamente, mas somente na Assistência Social, que se destina somente aos mais necessitados, e na Previdência Social, que se destina somente aos segurados.”(2)
Tal limitação espelha-se no restrito campo subjetivo de abrangência dos beneficiários do sistema previdenciário: segurados e dependentes. A extensão dos benefícios previdenciários aos dependentes do segurado, ainda que de hialina justiça, por si só já representa pesado ônus ao sistema, dada a vinculação indireta destes ao RGPS, razão pela qual a interpretação da norma legal que os abriga não deve ser larga, sob pena de entrar em testilhas com um sistema imbricado com o princípio da “reserva do possível”.
A primeira classe de dependentes é composta pelo “cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho, de qualquer condição, menor de 21 anos”, gozando, em igualdade de condições, de preferência sobre as demais classes.(3) Ora, sendo a previdência social “técnica de proteção social”,(4) resulta evidente que tal proteção seja dirigida precipuamente aos dependentes preferenciais que compõem a entidade familiar. Daí, compreende-se a primazia taxinômica do cônjuge no elenco dos dependentes do segurado, tendo em vista que o casamento é a fonte por excelência de geração do núcleo familiar.
A proteção aos dependentes elencados no inciso I do art. 16 da Lei de Benefícios da Previdência Social não se limita à exclusão das demais classes de dependentes (pais, irmãos), mas vai além, ao criar, para eles, a presunção absoluta de dependência econômica (§ 4º), que, em decorrência, prescinde de prova. A razão de ser de tal presunção deve ser encontrada fora do âmbito do direito previdenciário, mais especificamente no direito de família: o dever de mútua assistência e de sustento, educação e guarda dos filhos, incidentes tanto sobre o cônjuge como sobre a(o) companheira(o). (CCB, arts. 1566, III, e 1.724)
Sucede que, ao outorgar a presunção absoluta de dependência econômica ao cônjuge ou companheira, o legislador teve em vista a normalidade, ou seja, a situação de vida em comum do segurado e seu dependente. A excepcionalidade da ruptura da vida em comum não foi vislumbrada pela norma, que tudo não pode prever, cabendo ao intérprete integrá-la à realidade social. Ora, se a dependência econômica decorre do dever de assistência, uma vez cessado este, pela separação ou pelo divórcio, logicamente deve cessar a contrapartida previdenciária. Tal não ocorreria apenas na hipótese de a dependência econômica persistir após a ruptura da vida em comum, através da percepção de pensão alimentícia. Ou seja, “em caso de separação – seja judicial ou de fato –, bem como de divórcio, o fator determinante para a manutenção da qualidade de dependente, pelo sistema da lei, será o recebimento ou não de alimentos por conta da separação ou divórcio”.(5)
Por essa razão, o § 2º do art. 17 da LBPS consigna que “o cancelamento da inscrição do cônjuge se processa em face de separação judicial ou divórcio sem direito a alimentos, certidão de anulação de casamento, certidão de óbito ou sentença judicial, transitada em julgado”. Em perfeita consonância com tal norma, ao tratar especificamente da pensão por morte o legislador determinou que “o cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos concorrerá em igualdade de condições com os dependentes referidos no inciso I do art. 16 desta Lei”. (art. 76, § 2º)
Entretanto, o legislador foi além, admitindo a hipótese de o “cônjuge ausente” – ou seja, o cônjuge separado de fato não agraciado com pensão alimentícia – vir a habilitar-se à pensão por morte “desde a data de sua habilitação e mediante a prova de dependência econômica”. (art. 76, § 1º)
Assim, rompida a vida em comum anteriormente ao óbito do segurado, não decai o cônjuge, em princípio, do direito à percepção de pensão por morte, mesmo que não titule crédito alimentar, seja por falta de estipulação judicial, seja mesmo por dispensa expressa, mas a presunção de sua dependência econômica torna-se relativa, exigindo, pois, comprovação judicial. Tal entendimento remonta à vetusta Súmula 64 do extinto TFR, segundo a qual “a mulher que dispensou, no acordo de desquite, a prestação de alimentos conserva, não obstante, o direito à pensão decorrente do óbito do marido, desde que comprovada a necessidade do benefício”, bem como à Súmula 379 do STF, no sentido de que “no acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais”.
No tratamento jurisprudencial da matéria, ora fala-se em dependência econômica superveniente, ora em necessidade superveniente. Muitas das vezes, ambos os conceitos são empregados indiscriminadamente, como se sinônimos fossem.
Exemplificativamente, ao julgar o AgRg no REsp 527349/SC, a Col. 6ª Turma do STJ referiu a dependência econômica no cabeçalho da ementa e a necessidade econômica no seu corpo:
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CÔNJUGE SEPARADO JUDICIALMENTE SEM ALIMENTOS. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA SUPERVENIENTE COMPROVADA.
1. É devida pensão por morte ao ex-cônjuge separado judicialmente, uma vez demonstrada a necessidade econômica superveniente, ainda que tenha havido dispensa dos alimentos por ocasião da separação. Precedentes.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (Rel. Min. Paulo Medina, DJ 06.10.2003, p. 347 –2003/0050675-0)
O inverso se deu no AgRg no Ag 668207/MG:
“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PEDIDO DE PENSÃO POR MORTE FORMULADO POR MULHER SEPARADA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. NECESSIDADE ECONÔMICA NÃO COMPROVADA. IMPOSSIBILIDADE DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. A mulher que recuse os alimentos na separação judicial pode pleiteá-los futuramente, desde que comprove a sua dependência econômica.
2. Não demonstrada a dependência econômica, impõe-se a improcedência do pedido para a concessão do benefício previdenciário de pensão por morte.
3. Agravo regimental desprovido.” (Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJ 03.10.2005, p. 320 – 2005/0048283-3)
Recentemente, ficou patente a falta de uniformização da matéria no seio do Col. STJ, ao julgar o AgRg na Pet 4992/PR:
“PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ART. 14, PARÁGRAFO 4º, LEI 10.259/01. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DIRIMIR DIVERGÊNCIAS. COMPETÊNCIA. TURMA DE UNIFORMIZAÇÃO. ORIENTAÇÃO CONTRÁRIA. DIREITO MATERIAL. SÚMULA OU JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PENSÃO POR MORTE. PERCEPÇÃO. CÔNJUGE SEPARADO OU DIVORCIADO. DISSENSÃO JURISPRUDENCIAL. QUINTA E SEXTA TURMAS. ENTENDIMENTO DOMINANTE. EXISTÊNCIA. NECESSIDADE. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
(...)
II – Na hipótese, a Quinta Turma do STJ entende ser impossível a concessão de benefício de pensão por morte a cônjuge separado ou divorciado sem a comprovação de dependência econômica do segurado falecido. Por seu turno, a Sexta Turma deste Tribunal possui posicionamento no sentido de que é devida a pensão por morte ao ex-cônjuge separado judicialmente, desde que demonstre a necessidade econômica superveniente, ainda que tenha havido dispensa dos alimentos por ocasião da separação.
III – É inviável, em sede de Incidente de Uniformização de Jurisprudência, dirimir divergência, conforme os termos do art. 14, § 4º, da Lei 10.259/2001, quando não houver, nesta Corte, posicionamento dominante sobre o assunto em discussão.
IV – Agravo interno desprovido.” (Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., DJ 18.12.2006, p. 405 – 2006/0170646-8)
Não se está aqui a tratar de mera questão semântica, sem qualquer importância para o trato do benefício em questão. Em verdade, o tratamento isonômico de tais paradigmas contradiz os fundamentos do sistema previdenciário, contributivo e limitado. Com efeito. A dependência econômica superveniente – como o próprio nome o diz – decorre de amparo que vinha sendo outorgado pelo segurado anteriormente ao falecimento, mesmo à margem do âmbito alimentar do direito de família. Já a necessidade superveniente visa a inaugurar um amparo, nunca dado em vida, após o óbito. Trata-se, este último, de estado de miserabilidade inerente ao sistema de assistência social, onde inexiste a relação de dependência. No âmbito da lei previdenciária, a dicção do art. 16 é literal, ao exigir a dependência econômica dos beneficiários preferenciais. Ou seja, em se tratando de cônjuge separado ou divorciado, que após a ruptura da vida em comum tenha permanecido à margem de qualquer amparo alimentar por parte do consorte, somente será dado pleitear o benefício da pensão por morte se, em momento posterior à ruptura, tenha-se restabelecido efetivo relacionamento de amparo material, a criar real dependência econômica ao segurado, ainda em vida. Nem se diga que a dependência econômica decorra de mero auxílio material. Não se confunde ela com simples ajuda financeira, desprovida tanto de regularidade, quanto à freqüência dos aportes monetários, quanto de previsibilidade, quanto ao seu valor.
É o que a jurisprudência tem enfatizado relativamente à dependência dos pais em relação ao filho falecido, mas que igualmente se presta para informar a situação do cônjuge ou companheira separada:
“PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE DE FILHO. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA.
Para fazer jus à pensão por morte do filho, a genitora deve provar que dele dependia economicamente, visto não se enquadrar o caso nas hipóteses em que a dependência econômica seja presumida (LEI 8.213/91, ART. 16, PAR. 4). Se a prova evidencia que a genitora provê o seu sustento e não dependia do salário do filho para sua subsistência, não há como deferir-lhe o benefício. A simples ajuda financeira prestada pelo filho, que não era necessária ao sustento da genitora e apenas proporcionava eventualmente melhoria do padrão de vida dos seus pais, não tem o condão de gerar dependência econômica para percepção de pensão. Apelação provida.” (AC nº 95.04.02682-6/RS, 6ª T., Rel. Des. Surreaux Chagas, DJU 03.12.97, p. 105157)
Relativamente à união estável, a doutrina não encontra qualquer dificuldade em sufragar tal entendimento:
“O companheiro e a companheira perderão a qualidade de dependente pela cessação da convivência, a não ser que tenha sido reconhecido o direito à percepção de alimentos (RPS, art. 17, II). A cessação do convívio deverá ser tratada nos mesmos moldes do término da relação conjugal. Se ao tempo do óbito a relação havia cessado, sem que o convivente sobrevivente estivesse recebendo pensão alimentícia por conta da cessação do convívio, não há falar em pensão previdenciária. Do contrário, ou seja, se havia pensão alimentícia, ou outro auxílio regular de alimentos, aluguel, etc., estará mantida a qualidade de segurado e haverá o direito à pensão previdenciária, a qual substituirá o ingresso que era feito pelo segurado falecido”.(6)
Ora, considerando que tanto o matrimônio como a união estável receberam assento constitucional isonômico, como fontes da entidade familiar, gênero do qual são espécies, não há porque discriminar a companheira e, conseqüentemente, privilegiar a situação jurídica do cônjuge. A formação de entidade familiar, seja pelo casamento, seja pela união estável, decorre de opção filosófica – quiçá religiosa – que de maneira alguma pode gerar discriminação jurídica.
Em resumo, a pensão previdenciária devida ao cônjuge separado visa a dar continuidade ao amparo que já vinha sendo outorgado anteriormente à morte. Ao revés, é incompatível ao sistema que, decorrido longo período de ruptura da vida em comum, sem qualquer auxílio material, venha o cônjuge a pleitear a condição de dependente, a partir de um estado de miserabilidade ostentado após a morte do segurado, arrostando igualdade de condições com companheira e/ou filhos do de cujus presentes no seu passamento. Não seria demasiado dizer que, a valer tal entendimento, estar-se-ia a criar novo objetivo ao matrimônio: o da cobertura previdenciária incondicionada! Ora, gravitando o contrato de casamento em torno do conceito de affectio maritalis, a partir da ruptura da vida em comum, com o esfacelamento de tal núcleo afetivo, a persistência da geração de efeitos jurídicos patrimoniais daí advindos não resiste à interpretação literal, racional, sistemática e teleológica e ao próprio ideal de justiça, chocando-se com os interesses legítimos dos reais dependentes do segurado no momento da morte.
Notas:
1. FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Leandro. O direito da seguridade social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 33.
2. Ibidem, p. 34.
3. Art. 16. São beneficiários do RGPS, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido;
II – os pais;
III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido.
§ 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes.
§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.
§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da CF.
§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada.
4. DA ROCHA, Daniel Machado. O direito fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 12.
5. DA ROCHA, Daniel Machado; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 93.
6. Ibidem, p. 96.
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