Introdução
A
questão da escassez de recursos como limite para o reconhecimento
pelo Estado do direito às prestações sempre desafiou
os operadores do direito. Pode o Direito oferecer uma resposta segura
para situações em que os recursos sejam limitados? Pode
apontar uma solução para a quem o Estado deva atender ou
não atender em um cenário de falta de meios econômicos
para a satisfação de todos?
A
resposta a esses questionamentos está intrinsecamente ligada ao
que se possa entender como eficácia e efetividade dos direitos
sociais. A partir do exame da necessidade ou não de interposição
legislativa para o reconhecimento de direitos subjetivos sociais e da
definição das condições em que isto seria
possível, pode-se demarcar o alcance da tutela de tais direitos
pelo Magistrado, mesmo diante da escassez dos meios.
O
tema passa, pois, também por uma análise do papel do Poder
Judiciário no que diz respeito ao amparo das pretensões
positivas, ou seja, se é possível ao magistrado tutelar
tais pretensões ou estaria ele limitado ao controle do discurso
em face da separação dos poderes, já que diante da
“reserva do possível” negar-se-ia a competência
dos juízes (não legitimados pelo voto) a dispor sobre medidas
de políticas sociais que exigem gastos orçamentários.
Já
existem tentativas de resposta a tais questionamentos tanto em sede doutrinária
como jurisprudencial. Contudo, diante da notória divergência
de opiniões, ainda permanece atual o debate sobre uma eventual
‘cisão’ entre direitos da liberdade que, sendo “negativos”,
têm sede constitucional, ao passo que os direitos sociais, que seriam
“positivos”, dependeriam de meios materiais e, assim, a mediação
legislativa e orçamentária.(3) Dentro dessa dicotomia, formam-se, grosso modo, três correntes:
a dos que entendem serem passíveis de tutela judicial imediata
todos os direitos classificados pela Constituição como Fundamentais;
a dos que entendem serem passíveis dessa tutela apenas os direitos
negativos, já que os positivos, por demandarem recursos, vigeriam
sob a reserva do possível, a depender de mediação
legislativa e a dos que entendem haver um núcleo de direitos positivos
ligados ao mínimo existencial que seria sempre instantaneamente
tutelável, quedando os demais direitos positivos sob a reserva
do possível e/ou interposição legislativa.
Neste
curto ensaio que ora se propõe, não se pretende, obviamente,
o esgotamento da matéria, senão um levantamento crítico
das opiniões de alguns notáveis juristas sobre o tema, com
uma final conclusão e posicionamento pessoal.
1.
Os Direitos Fundamentais de segunda geração
No
curso da evolução histórica foram formadas “gerações”
de direitos que não se superam, mas convivem entre si. Os primeiros
direitos a serem reconhecidos voltavam-se contra a opressão do
monarca. Posteriormente, afirmadas algumas liberdades básicas,
a opressão do homem pelo próprio homem não se dava
mais diretamente pelo aparato estatal, mas pelo privado, surgindo, então,
os direitos voltados a atuações estatais específicas.
Pela evolução histórica e pelas características
originais, os direitos voltados ao valor liberdade foram inicialmente
classificados como direitos negativos, na qualidade de limites constitucionais
ao poder do Estado.
Como
corolário dessa visão, os direitos da liberdade seriam sempre
eficazes, já que não dependeriam de regulamentação.
Conquanto fosse admitida a regulação das liberdades, o gozo
das mesmas decorreria da própria constituição, não
do trabalho do legislador inferior.
Por
outro lado, os direitos sociais foram inicialmente reconhecidos como,
via de regra, voltados não a uma abstenção do Estado,
mas a uma ação o que lhes dá a característica
de positivos.(4) Para sintetizar
esta argumentação vale citar a lição de Norberto
Bobbio:
“É
supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais
suscita, além do problema da proliferação dos direitos
do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne
àquela prática de que falei no início: é que
a proteção destes últimos requer uma intervenção
ativa do estado, que não é requerida pela proteção
dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização
dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma
nova forma de Estado, o Estado Social. Enquanto os direitos de liberdade
nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de
limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização
prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente
verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário,
isto é, a ampliação dos poderes do Estado.
(...) na Constituição italiana, as normas que se referem
a direitos sociais foram chamadas puramente de programáticas. Será
que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são
essas que não ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido
e sem prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já
nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses
que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva
proteção são adiados sine die, além de confiados
à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar
o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral
ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente
de ‘direito’?”. (5)
Segundo Paulo Bonavides, os direitos fundamentais de segunda geração
passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia
duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigiam
do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis
por exigüidade, carência ou limitação essencial
de meios e recursos.(6)De
juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada
esfera programática, em virtude de não conterem para sua
concretização aquelas garantias habitualmente ministradas
pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos
da liberdade. Atravessaram a seguir, uma crise de observância e
execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes
Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito
da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.(7)a>
2. Da eficácia dos direitos sociais
prestacionais em face do §1º do artigo 5º da Carta Política
brasileira de 1988
Consoante
preleciona José Afonso da Silva, a eficácia jurídica
consiste na possibilidade de sua aplicação, no sentido da
capacidade de serem atingidos os objetivos traduzidos na norma. Já
a eficácia social ou efetividade refere-se à efetiva aplicação
da norma(8) no mundo dos fatos.
Afortunadamente,
no Brasil não há um regime jurídico diferenciado
para os direitos fundamentais sociais, seja para os direitos de defesa
ou para os direitos a prestações. Diante da expressa disposição
lançada na Carta Magna, pode-se partir da premissa de que o artigo
5º, § 1º, abrange todas as normas de direitos fundamentais
garantidos pela nossa Carta, sendo insustentável a tese defendida
em outras ordens constitucionais - pelo menos por parcela significativa
da doutrina e jurisprudência - de que os direitos sociais a prestações
não têm eficácia plena e não são imediatamente
aplicáveis, tal como ocorre em Portugal e na Espanha.
Especificamente
no caso de Portugal, a Constituição prevê expressamente
um regime jurídico diferenciado. Neste sentido, os assim chamados
“direitos, liberdades e garantias” que, em última análise,
abrangem os direitos de defesa, são dotados de eficácia
plena e imediata aplicabilidade, além de integrarem o rol das “cláusulas
pétreas”. Já os “direitos econômicos,
sociais e culturais” não são imediatamente aplicáveis
e não integram as “cláusulas pétreas”
da Constituição Lusitana de 1976.(9)
No
caso brasileiro, em primeiro lugar, a inexistência de regime jurídico
diverso para os direitos de defesa e os prestacionais pode ser demonstrada
pelo fato dos direitos sociais terem sido incluídos no Capítulo
II do Título II, rompendo-se com a tradição inaugurada
com a Constituição de 1934 que os albergava no título
concernente à ordem econômica. Aliás, essa formulação
está afinada com o compromisso de nossos constituintes com o Estado
Social materializado particularmente nos artigos 1º e 3º do
Texto Fundamental. Ademais, o § 1º do artigo 5º dispõe
que: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
tem aplicação imediata”, não tendo sido efetuada
diferenciação entre os direitos fundamentais clássicos
e os direitos sociais.(10) A inexistência de diferenciação no regime jurídico
não simplifica a questão da eficácia dos direitos
prestacionais. Pelo contrário, problematiza-a de maneira positiva,
na medida que desafia os operadores do direito a arregaçarem as
mangas e a empreenderem um esforço hermenêutico inovador
na tarefa de tornar esses direitos fundamentais efetivos elementos de
um Estado Social no Brasil.
Segundo
Canotilho, o postulado da aplicabilidade imediata dos direitos sociais
prestacionais não pode resolver-se de acordo com a dimensão
de tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance dependerá
do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito
fundamental em pauta.(11) Pode-se, em conseqüência, extrair-se uma presunção
de aplicabilidade imediata das normas e garantias fundamentais, de tal
sorte que eventual recusa de sua aplicação, em virtude da
ausência de ato concretizador deverá ser necessariamente
fundamentada.(12) Tal presunção,
ao contrário de outras, operaria como princípio geral em
se tratando de direitos fundamentais, ressalvadas exceções
devidamente justificadas na análise tópica da hermenêutica
aplicada.
3.
Significado da expressão “reserva do possível”.
Canotilho
vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos
e culturais dentro de uma “reserva do possível” e aponta
a sua dependência dos recursos econômicos. A elevação
do nível da sua realização estaria sempre condicionada
pelo volume de recursos suscetível de ser mobilizado para esse
efeito.(13) Nessa visão,
a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada
verdadeiro limite fático à efetivação dos
direitos sociais prestacionais.
Essa
teoria, segundo Andreas Krell,(14) representa uma adaptação de um tópos da jurisprudência
constitucional alemã que entende que a construção
de direitos subjetivos à prestação material de serviços
públicos pelo Estado está sujeita à condição
de disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão
sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário
das decisões governamentais e dos parlamentos, através da
composição dos orçamentos públicos.
Segundo
o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, esses direitos a prestações
positivas (Teilhaberechte) “estão sujeitos à reserva
do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira
racional, pode esperar da sociedade”. Essa teoria impossibilita
exigências acima de um certo limite básico social; a Corte
recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente
de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos.(15)
Vale
dizer, é necessário não apenas que a norma outorgue
certa capacidade de atuação para o seu destinatário
como também existam recursos materiais que tornem possível
a satisfação do direito, fatores que consubstanciam a cláusula
da “reserva do possível”.(16)
Não
se verifica distorção doutrinária significativa quanto
ao fato de se identificar como tarefa cometida precipuamente ao legislador
ordinário a de decidir sobre a aplicação e destinação
de recursos públicos, inclusive no que tange às prioridades
na esfera das políticas públicas, com reflexos diretos na
questão orçamentária. Esta é a razão
pela qual alguns alegam tratar-se de um problema de natureza competencial.(17) Segundo esta linha de argumentação, capitaneada por P. Müller,
faltaria aos juízes a capacidade funcional necessária para,
situando-se fora do processo político propriamente dito, garantir
a efetivação das prestações que constituem
o objeto dos direitos sociais, na medida em que estas se encontram na
dependência, muitas vezes, de condições de natureza
macroeconômica, não dispondo, portanto, de critérios
suficientemente seguros e claros para aferir a questão no âmbito
estrito da argumentação jurídica.(18)
Por
força da indigitada limitação de recursos, parcela
substancial da doutrina vem defendendo que apenas o “mínimo
existencial” poderia ser garantido, isto é, apenas esse conjunto
- formado pela seleção dos direitos sociais, econômicos
e culturais considerados mais relevantes, por integrarem o núcleo
da dignidade da pessoa humana,(19) ou porque decorrem do direito básico da liberdade – teria
validade erga omnes e seria diretamente sindicável.(20)
4. Posição de Stephen Holmes
e Cass R. Sunstein
Como
demonstram Stephen Holmes e Cass R. Sunstein no seu livro The Cost of
Rights: Why Liberty Depends on Taxes, todos os direitos custam dinheiro,
inclusive os direitos negativos, e nada que custe dinheiro pode ser absoluto.
Este livro destina-se a desfazer a distinção extremada entre
direitos negativos e direitos positivos e elenca exemplos dos custos da
efetividade de direitos fundamentais tidos como de primeira dimensão
ou geração.
De
início o livro revela questionamentos do Center on Constitucionalism
in Eastern Europe da Universidade de Chicago, quando se observaram casos
como o da Rússia, que consumiu 25% do já inadequado orçamento
do judiciário ao tentar implementar julgamentos pelo júri.(21) Segundo os autores, todos os direitos têm custos, porque
todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização
para implementá-los:
“A
Consumer Product Safety Commission gastou, em 1996, 41 milhões
de dólares analisando e identificando produtos potencialmente danosos
e fiscalizando o cumprimento dos padrões de segurança. Já
o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, no mesmo ano, gastou
US$ 64 milhões em “questões de direitos civis”.
A Occupational Safety and Health Administration (OSHA) consumiu US$ 306
milhões no mesmo ano obrigando os empregadores a prover locais
de trabalho mais seguros e saudáveis enquanto que a Equal Employment
Opportunity Comission (EEOC) despendeu US$ 233 milhões para cuidar
que os empregadores não discriminem na contratação,
demissão, promoção e transferências.
(...)
Alguns
direitos constitucionais dependem para sua existência de condutas
estatais positivas. Portanto, o Estado está sob um dever constitucional
de agir, não de se abster. Se deixar uma pessoa escravizar a outra,
nada fazendo para desfazer a situação que configura servidão
involuntária, o Estado terá violado a Décima-Terceira
Emenda. Por força da proteção dada pela Primeira
Emenda à liberdade de expressão, o Estado está obrigado
a manter ruas e parques abertos para manifestações, muito
embora isso seja caro e requeira uma conduta positiva. Por força
da proteção constitucional contra a privação
da propriedade privada sem justa compensação, o Governo
está provavelmente obrigado a criar leis contra os esbulhos e invasões,
bem como tornar tais garantias acessíveis aos proprietários
privados - uma falha em agir, uma falha em proteger a propriedade privada
pareceria inconstitucional. Se um juiz aceitar propina oferecida pelo
réu e assim nada fizer para proteger os direitos do autor, tal
juiz terá violado a garantia do devido processo. Se o Estado não
tornar seus tribunais acessíveis para garantir a eficácia
de garantias contratuais, ele terá provavelmente arruinado as obrigações
contratuais, violando a garantia constitucional dos contratos. Em todos
esses casos o Governo está obrigado, pela Constituição,
a proteger e a agir”.
Noutra
passagem digna de nota, o livro refuta a idéia de uma filosofia
libertária de um Estado mínimo, mostrando que os gastos
dos EUA com proteção policial e punições penais
montaram a 73 bilhões de dólares no ano de 1992, quantia
que excede ao PIB de mais da metade dos países do mundo.(22)
Em
termos bem contundentes Holmes e Sunstein afirmam que os Direitos costumam
ser descritos como invioláveis, peremptórios e decisivos.
Isto, contudo, é mero floreio retórico. Nada que custe dinheiro
pode ser absoluto. Nenhum direito cuja efetividade pressupõe um
gasto seletivo dos valores arrecadados dos contribuintes pode, enfim,
ser protegido de maneira unilateral pelo Judiciário sem considerações
às conseqüências orçamentárias, pelas
quais, em última instância, os outros dois poderes são
responsáveis.(23)
5. Posição de Gustavo Amaral
O
Prof. Gustavo Amaral em seu livro Direito, Escassez e Escolha: em busca
e critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos
e as decisões trágicas parte seu estudo do exame de decisões
judiciais que teriam considerado o direito à saúde como
absoluto e incontrastável, procedendo a uma avaliação
crítica. As decisões são as que passo, desde logo,
a descrever.
O
Tribunal de Justiça de Santa Cataria, ao julgar o Agravo de Instrumento
nº 97.000511-3, Rel. Des. Sérgio Paladino, entendeu que o
direito à saúde, garantido na Constituição,
seria suficiente para ordenar ao Estado, liminarmente e sem mesmo sua
oitiva, o custeio de tratamento nos Estados Unidos, beneficiando um menor,
vítima de distrofia muscular progressiva de Duchenne, ao custo
de US$ 163.000,00, muito embora não houvesse comprovação
da eficácia do tratamento para a doença, cuja origem é
genética. Nesse julgamento foi asseverado que: “Ao julgador
não é lícito, com efeito, negar tutela a esses direitos
naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger
o Erário”, sendo afastados os argumentos de violação
aos artigos 100 e 167, I, II e VI, da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão de seu presidente Min. Celso
de Mello negou pedido de suspensão dos efeitos da liminar por grave
lesão à ordem e à economia pública, solicitada
pelo Estado de Santa Catarina.(24)
Em
sentido diametralmente oposto, Gustavo Amaral elenca decisão do
Tribunal de Justiça de São Paulo, em exame de idêntico
pedido em favor de menores portadores da mesma doença, lançada
sob os seguintes argumentos: “não se há de permitir
que um poder se imiscua em outro, invadindo esfera de sua atuação
específica sob o pretexto da inafastabilidade do controle jurisdicional
e o argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O respectivo exercício
não mostra amplitude bastante para sujeitar ao Judiciário
exame das programações, planejamentos e atividades próprias
do Executivo, substituindo-o na política de escolha de prioridades
na área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento
da existência de recursos para tanto suficientes. Em suma: juridicamente
impossível impor-se sob pena de lesão ao princípio
constitucional da independência e harmonia dos poderes obrigação
de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos,
de oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu (...)”.(25)
A
terceira decisão citada também é do Tribunal de Justiça
de São Paulo, também envolvendo menor vítima da mesma
doença congênita:
“O
direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais
citados pelo agravante, arts. 196 e 227 da CF/88, apenas são garantidos
pelo Estado, de forma indiscriminada, quando se determina a vacinação
em massa contra certa doença, quando se isola uma determinada área
onde apareceu uma certa epidemia, para evitar a sua propagação,
quando se inspecionam alimentos e remédios que serão distribuídos
à população, etc, mas que quando um determinado mal
atinge uma pessoa em particular, caracterizando-se, como no caso, num
mal congênito a demandar tratamento médico-hospitalar e até
transplante de órgão, não mais se pode exigir do
Estado, de forma gratuita, o custeio da terapia, mas dentro do sistema
previdenciário”.(26)
As
três decisões citadas contêm concepções
díspares. Para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
o direito à saúde seria incontrastável e absoluto,
devendo o Estado acatá-lo em qualquer caso. Para a decisão
da 9ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo,
o direito à saúde limitar-se-ia à necessidade de
o Estado desenvolver políticas públicas de saúde,
enquanto que o tratamento de doenças dependeria da filiação
a um sistema de previdência e à cobertura dada por esse sistema.
Para
a 2ª Câmara do mesmo Tribunal, ao seu turno, o direto à
saude é ditado por políticas públicas destinadas
a gerenciar recursos escassos, sendo juridicamente impossível ao
Judiciário imiscuir-se na questão.(27)
Gustavo
Amaral - procurador do Estado do RJ - culmina sua crítica aos posicionamentos
judiciais citando decisão de primeira instância da Vara da
Fazenda Pública de São Paulo, na qual um menor vítima
da distrofia muscular de Duchenne obteve liminar para que o Estado de
São Paulo arcasse com R$ 174.500,00, equivalentes ao valor em dólares
necessários ao tratamento, ao fundamento de que o direito à
vida preponderaria sobre qualquer outro. Sobreveio sentença de
improcedência, revogando a antecipação de tutela e
determinando a devolução da quantia levantada “sob
as penas civis e criminais cabíveis, pois o direito à saúde
garantido pela Constituição deveria ser cumprido dentro
dos limites das verbas alocadas à saúde, devendo o Governante,
segundo os critérios de conveniência e oportunidade, procurar
atender aos interesses de toda a coletividade de maneira universal e igualitária
para cumprir a norma constitucional. Assim, o benefício a um único
cidadão, como no caso do autor, prejudica o restante da coletividade
de cidadãos, que vêem as verbas destinadas à saúde
diminuírem sensivelmente, em detrimento de suas necessidades”.(28)
Segundo
Gustavo Amaral, os julgados apontados não enfrentaram a questão
microjustiça versus macrojustiça, reconhecendo haver direito
subjetivo ao recebimento de tratamento médico sem qualquer consideração
orçamentária.(29) Ocorre que os recursos, sobretudo no caso da saúde, são
escassos, pois todas as estatísticas existentes sobre gastos com
saúde, em todos os países, mostram uma progressão
quase que geométrica.
O
problema é bem nítido no Brasil, onde a desigualdade social
faz com que parte da sociedade já sofra doenças “modernas”
ou “da riqueza”, assim as consideradas como típicas
de países mais desenvolvidos, ao passo que outra parcela ainda
sofre com “doenças da miséria”, como febre amarela,
cólera e malária.(30) Amaral afirma que se o Estado está obrigado a sempre ter recursos
para prestar as utilidades que lhe são demandadas, ao menos no
campo da saúde, então, por dever de coerência, há
que se reconhecer o direito de obter esses recursos, mas, no campo da
receita pública, seja no ramo da própria contenção
de gastos, há direitos individuais, como as garantias tributárias,
a vedação ao confisco, o direito à percepção
dos vencimentos e proventos.
Gustavo
Amaral cita argumentos elencados por Peces-Barba Martínez, Pérez
Luno e Alexy para demonstrar a insuficiência de se divisarem os
direitos fundamentais em direitos positivos e negativos(31),
considerando tais distinções ineficazes para evidenciar
a problemática dos direitos sociais prestacionais, propondo uma
ótica nova para enfocar as posições jurídicas
que decorrem dos direitos fundamentais: a sua decomposição
em pretensões. No desenvolvimento dessa tese, depois de evidenciar
que mesmo os direitos negativos albergam pretensões positivas,(32) culmina por defender que os direitos humanos e fundamentais seriam direitos
que não correspondem a deveres correlatos.(33) Como esses direitos valem para todos os que estão em
condições de recebê-los, mas os recursos para o atendimento
das demandas são finitos, surge um conflito específico:
o conflito por pretensões positivas, no qual será necessário
decidir sobre o emprego de recursos escassos através de escolhas
disjuntivas (o atendimento de uns e o não-atendimento de outros).
Esse conflito não é, em geral, tratado pela doutrina e mesmo
o critério de ponderação revelar-se-ia insuficiente.(34)
O
Procurador do Estado do Rio de Janeiro não concorda com as posições
defendidas por Ricardo Lobo Torres e Robert Alexy em diferenciar um núcleo
nomeado como “mínimo existencial” ou como status positivus
das liberdades fundamentais, que seria sempre exigível, de outros
direitos, que vigeriam sob a reserva do possível, gerando uma grande
dificuldade lógica. A terminologia empregada para a exigibilidade
dos direitos induziria a uma aplicação binária, exigível
X não exigível, ao passo que a noção de mínimo
existencial incluiria enorme gradação não existindo
divisões nítidas. “O mínimo existencial seria
o mesmo em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e interior
de Alagoas? Se a resposta for positiva, então a escassez de recursos
não estará sendo considerada. Se a resposta for negativa,
então parecerá que foi incluída uma condição
que afasta a exigibilidade incondicional”.(35) Outra crítica é a unidimensionalidade do enfoque, pois a
exigibilidade não decorreria apenas de características ônticas
da necessidade, mas também da excepcionalidade da situação
concreta. Um cataclismo natural ou social poderia momentaneamente tornar
inexigível algo que pouco antes o era.
Segundo
o autor, a escassez de recursos ou de meios para satisfazer direitos,
mesmo fundamentais, não pode ser descartada. Surgindo esta, o Direito
precisa estar aparelhado para dar respostas. Certamente, na quase totalidade
dos países, não se conseguiu colocar a todos dentro de um
padrão aceitável de vida, o que comprova não ser
a escassez, quanto ao mínimo existencial, uma excepcionalidade,
uma hipótese limite e irreal que não deva ser considerada
seriamente.(36)
Por
isso, para Amaral, é necessário que os Juízes e Tribunais,
quando forem decidir sobre a eficácia e efetividade das pretensões
em casos específicos, fundamentem suas decisões admitindo
o modo como os custos afetam a intensidade e consistência dos direitos,
examinando abertamente a competição por recursos escassos
que não são capazes de satisfazer a todas as necessidades
sociais, implicando em escolhas disjuntivas de natureza financeira.(37) Normalmente, essa questão é tangenciada, pois
apenas o caso concreto é analisado.(38) Se a apontada escassez é um condicionamento importante,
ela não pode ser superdimensionada, tornando-se o único
balizamento na concretização dos direitos sociais, sendo
necessário acrescentar ingredientes éticos e políticos
para que o instrumental jurídico possa, não apenas ser legitimado,
mas permitir que a evolução das condições
econômicas e sociais possa beneficiar o maior número de pessoas.
O
judiciário está aparelhado para decidir casos concretos,
lides específicas que lhe são postas, tratando da microjustiça,
da justiça do caso concreto e esta deve ser sempre aquela que possa
ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação
similar, sob pena de quebrar-se a isonomia. Conclui que ao Poder Judiciário
cabe apenas o controle do discurso e das condutas adotadas por aqueles
que ocupam a função executiva ou legislativa, não
cabendo ao magistrado fazer a mediação fato-norma, seja
pela subsunção ou pela concreção.(39)
6.
Posição de Andreas Krell
Enfocando
a postura dos operadores do direito que importaram a doutrina alemã
de interpretação dos direitos sociais de forma acrítica,
KRELL demonstra que a não-inclusão dos direitos sociais
na Lei Fundamental de Bonn, tomada como paradigma para a negação
do caráter fundamental dos direitos sociais, decorreu de uma renúncia
deliberada, em razão da experiência fracassada da Constituição
de Weimar e que a previsão de direitos sociais sujeitos a condicionamentos
diversos, considerando-se as peculiaridades e experiências vivenciadas
pelo povo alemão, poderia enfraquecer a força normativa
da Carta. Contudo, a sua não-inclusão não significa
uma renúncia ao seu ideário subjacente. No Brasil, diferentemente
da Alemanha, os Constituintes formularam uma opção diferenciada
e, segundo todas as regras de interpretação, os direitos
sociais são direitos fundamentais.(40)
A
dissociação dos direitos em pretensões sem o respectivo
dever enfraqueceria em demasia a obrigatoriedade do Estado em dar cumprimento
aos direitos fundamentais prestacionais que se tornariam um instrumento
jurídico completamente inoperante, pouco se diferenciando da corrente
que não reconhece a eficácia dos direitos fundamentais sociais,
contrariando o princípio insculpido no § 1º do artigo
5º de nossa Lei Maior. Em sua visão arrojada, diametralmente
oposta à de Gustavo Amaral, o mestre da Universidade Federal de
Pernambuco chega a proclamar a falácia da reserva do possível,
a qual decorreria de um Direito Constitucional comparado equivocado. Aduz
que não seria difícil a um ente público justificar
sua omissão social perante critérios de política
monetária e que o condicionamento da realização desses
direitos a ´caixas cheios` reduziria a sua eficácia a zero.(41)
Krell
aduz que a resposta coerente à indagação formulada
por Amaral, quando propõe o confronto de escolha entre tratar os
milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza
ou um pequeno número de doentes terminais de doenças raras
ou de cura improvável, seria tratar todos. “Se os recursos
não são suficientes, deve-se retirá-los de outras
áreas (transportes, fomento econômico, serviço da
dívida) onde sua aplicação não está
tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua
vida, integridade e saúde. Um relativismo nessa área poderia
levar a ponderações perigosas e anti-humanistas do tipo
‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?’,
etc.”.(42)
7.
Posição de Robert Alexy
Alexy
empreendeu a tentativa de harmonizar os argumentos favoráveis e
contrários a direitos subjetivos a prestações sociais
numa concepção calcada na idéia da ponderação
entre princípios. Discorrendo sobre a celeuma dos direitos sociais
fundamentais (direitos à prestação em sentido estrito),
afirma que podem ser deduzidos argumentos de peso nos dois sentidos. Por
isso, no seu modelo - que é estruturado sob a idéia reitora
de que os direitos fundamentais são posições jurídicas
tão relevantes que a sua concessão ou denegação
não podem ficar nas mãos da simples maioria parlamentar
–, a questão de saber quais os direitos fundamentais sociais
que o indivíduo possui é uma questão de ponderação.
Por outro lado, o princípio da reserva parlamentar em matéria
orçamentária, tanto quanto os demais, não é
absoluto, sendo possível que os direitos individuais apresentem
mais peso que as razões de política financeira.(43)
Para
o constitucionalista tedesco o reconhecimento de direitos originários
a prestações exige a presença de alguns parâmetros:
a) quando imprescindíveis ao princípio da liberdade fática;
b) quando o princípio da separação dos poderes (incluindo
a competência orçamentária do legislador), bem como
outros princípios materiais (especialmente concernentes a direitos
fundamentais de terceiros) forem atingidos de forma relativamente diminuta.
Para
Alexy, as condições se encontram satisfeitas na esfera dos
direitos sociais que correspondem a um padrão mínimo, como
é o caso dos direitos a condições existenciais mínimas,
direito à formação escolar e profissional, uma moradia
simples e um padrão mínimo de atendimento na área
da saúde.
Os
direitos do homem são distintos de outros direitos pela combinação
de cinco marcas: são Direitos Universais (no sentido de serem um
“ideal universal”); Direitos Morais (a norma que se refere
a um direito fundamental deve ter validez moral: possibilidade de justificação
perante todos os que aceitam determinada fundamentação racional);
Direitos Preferenciais (têm relação íntima
com o direito positivo; este deve concretizar os direitos fundamentais
e isso é uma condição necessária para a legitimidade
do direito positivo); Direitos Fundamentais (os direitos do homem devem
revelar interesses e carências que podem e devem ser protegidos
e fomentados pelo direito. Além disso, que o interesse e a carência
sejam tão fundamentais que a necessidade de seu respeito, proteção
e fomento sejam prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico);
e Direitos Abstratos (o exercício dos direitos pode exigir restrições
e limitações, notadamente quando outros direitos, como os
bens coletivos, devem ser protegidos. Isso gera a necessidade de ponderações).(44)
Ao
tratar da fundamentalidade, estabelece o jurista duas condições,
a possibilidade de proteção e fomento pelo direito e a necessidade:
“A
segunda condição é que o interesse ou a carência
seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua proteção
ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito. A fundamentabilidade
fundamenta, assim, a prioridade sobre todos os escalões do sistema
jurídico, portanto, também perante o legislador. Um interesse
ou uma carência é, nesse sentido, fundamental quando sua
violação ou não-satisfação significa
ou a morte ou sofrimento grave ou toca o núcleo essencial da autonomia.
Daqui são compreendidos não só os direitos de defesa
liberais clássicos, senão, por exemplo, também direitos
sociais que visam ao asseguramento de um mínimo existencial”.
Alexy
adere à noção de um padrão mínimo de
segurança material a ser garantido por meio de direitos fundamentais,
que têm por objeto evitar o esvaziamento da liberdade pessoal, assegurando,
de tal sorte, uma liberdade real. Na esfera de um padrão mínimo
em prestações sociais - assim afirma Robert Alexy - também
será mínima a restrição na esfera dos princípios
conflitantes com a realização dos direitos sociais, podendo-se
afirmar, ainda, que o reconhecimento de um direito subjetivo a prestações
sociais básicas, indispensáveis para uma vida com dignidade,
sempre deverá prevalecer, no caso concreto, quando do conflito
com o princípio da reserva do possível e do princípio
democrático, igualmente fundamentais, mas não absolutos.
8.
Posição de Ingo Wolfgang Sarlet
A
melhor abordagem sobre a questão do reconhecimento de direitos
subjetivos a prestações sociais, encontrada na doutrina
nacional, foi a empreendida por Ingo Wolfgang Sarlet. Partindo da análise
crítica de três modelos do direito alemão –
Christian Starck, R. Breuer e Robert Alexy, nos quais todos aderem a noção
de um padrão mínimo de segurança material, exigido
para evitar o esvaziamento da liberdade real – Sarlet constata ser
comum aos modelos delineados a problemática da reserva do possível
e a objeção da reserva de competência parlamentar.(46) Em aprofundada reflexão sobre essa problemática, argumenta
que a questão reside menos no grau de completude da norma do que
no aspecto da alegada ausência de legitimação dos
tribunais para a determinação do objeto e do quantum da
prestação, na medida que a decisão sobre a aplicação
de recursos públicos incumbiria precipuamente ao legislador.(47)
Em
princípio, segundo Sarlet, há que se ter em mente sempre
a necessidade de potencializarmos a eficácia dos Direitos Fundamentais
(sem exceção) à luz da norma contida no artigo 5º,
§ 1º, da Constituição Federal, inclusive com o
reconhecimento de direitos subjetivos a prestações, o que
pressupõe sempre uma análise no caso concreto. De regra,
cumpre reconhecer que se trata de assegurar um padrão mínimo
de segurança material, já que o Estado Social, ao menos
de acordo com a doutrina mais representativa (na qual nos louvamos), não
é - ao menos não quando se cuida de assegurar via judicial
direitos fundamentais sociais a prestações - um Estado que
pode ser compelido a assegurar um padrão “ótimo”
de bem-estar social, mas sim efetivar as condições para
uma existência com dignidade. Isto, à evidência, não
quer significar que a otimização do bem-estar social não
possa ser uma meta a ser alcançada.
Todavia,
adverte o estimado jurista, é de se ter em conta que, mesmo argumentando
em termos de um padrão mínimo, assume relevância (pelo
menos, em princípio) o limite da reserva do possível, já
que também neste caso poderá o Estado alegar que não
dispõe (e provar o que alega) nem mesmo dos recursos para atender
às exigências mínimas em saúde, educação,
assistência social, segurança, etc. Prossegue, portanto,
existindo o problema da reserva do possível, da mesma forma como
segue existindo o problema da reserva parlamentar em matéria orçamentária.
Com efeito, ou o legislador é o competente para decidir sobre a
afetação dos recursos públicos, ou não. A
Constituição - e a nossa não se constitui em exceção
- não diz que abaixo de determinado valor não se faz necessária
lei orçamentária.
Por
outro lado, entendendo ser mais convincente o modelo proposto por Robert
Alexy, Sarlet conclui que, em todas as situações em que
o argumento da reserva do possível e demais objeções
aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos
esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas
hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes
resultar a prevalência do direito social prestacional, poderá
ser reconhecido um direito subjetivo definitivo, isto é, dotado
de plena vinculatividade e que implicaria na possibilidade de impor ao
Estado, inclusive mediante o recurso à via judicial, a realização
da prestação assegurada por norma de direito fundamental.
Onde tal mínimo for ultrapassado, haveria tão-somente um
direito subjetivo prima facie.(48)
Para
Sarlet, o direito à vida e o princípio fundamentalíssimo
da dignidade da pessoa humana (ao qual corresponde um direito fundamental
à garantia e proteção desta dignidade) constituem-se
em fios condutores, em suma, em critérios referenciais, na tarefa
de otimizar a eficácia (jurídica e social) dos direitos
fundamentais, inclusive viabilizando o reconhecimento de direitos subjetivos
a prestações, pelo menos na esfera de um padrão mínimo
de condições materiais mínimas, não se devendo
olvidar, ainda, que a liberdade e igualdade substanciais se constituem
em exigências precípuas da dignidade da pessoa humana.
Sarlet
sustenta uma dimensão dúplice da dignidade enquanto simultaneamente
expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia
de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais
a respeito da própria existência), bem como da necessidade
de sua proteção (assistência) por parte da comunidade
e do Estado, especialmente quando fragilizada ou, até mesmo, –
e principalmente – quando ausente a capacidade de determinação.(49) Os direitos sociais de cunho prestacional encontram-se, por sua vez, a
serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última
análise, a proteção da pessoa contra as necessidades
de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade.(50)
9.
Conclusões e posicionamento pessoal
À
luz de todo o exposto, importa informar desde já que a ausência
de recursos materiais constitui uma barreira fática à efetividade
dos direitos sociais, esteja a aplicação dos correspondentes
recursos na esfera de competência do legislador, do administrador
ou do judiciário. Ou seja, esteja a decisão das políticas
públicas vinculada ou não a uma reserva de competência
parlamentar, o fato é que a efetividade da prestação
sempre depende da existência dos meios necessários. Não
se pode negar que apenas se pode buscar algo onde algo existe.
Nesse
contexto, mesmo reconhecida situação tópica que pudesse
estar indubitavelmente enquadrada dentro de um padrão mínimo,
a entrega da prestação também estará sujeita
à presença dos recursos materiais.
Por
outro lado, constatando-se a existência de meios econômicos
(limitados e escassos), a discussão centra-se na sua repartição
e na possibilidade de se argüir, perante o poder judiciário,
a problemática da reserva do possível para se negar a entrega
da prestação social contenciosamente postulada. Tal questão
conecta-se ao reconhecimento ou não de uma reserva de competência
parlamentar e, por conseqüência, à afronta ao princípio
da separação dos poderes.
A
decisão sobre a aplicação dos recursos públicos,
por sua direta implicação orçamentária incumbe
precipuamente ao legislador. Isso não implica em desqualificar
os direitos sociais como fundamentais, nem lhes conferir caráter
meramente programático. No Brasil, diante da redação
do § 1º do art. 5º, todos os direitos fundamentais têm
aplicação imediata, sendo que, na qualidade de normas princípio,
não podem ser aplicadas como tudo ou nada, conquanto presume-se
sua plena eficácia, a qual também não é absoluta.
Existe
a possibilidade de se reconhecerem direitos subjetivos a prestações,
tutelados pelo poder judiciário, independentemente ou além
da concretização do legislador. Impõe-se concordar
com Alexy que apenas quando a garantia do material do padrão mínimo
em direitos sociais puder ser tida como prioritária, estando presente
uma restrição proporcional dos bens jurídicos (fundamentais
ou não) colidentes, há como se admitir um direito subjetivo
à determinada prestação social. Concorda-se com Sarlet
que é possível existir um limite à liberdade de conformação
do legislador em se tratando de condições existenciais mínimas.
Para
a definição do patamar mínimo a permitir a superação
da limitação imposta pela reserva do possível, ressalvado
o limite real de escassez, recolhe-se o posicionamento de Sarlet, o qual
aponta como parâmetro demarcatório o valor fundamental da
dignidade da pessoa humana, o qual representaria o verdadeiro limite à
restrição dos direitos fundamentais, coibindo eventuais
abusos que pudessem levar ao seu esvaziamento ou à sua supressão.
Mesmo
em se tratando de escolhas disjuntivas, em que está em conflito
o mesmo bem jurídico a ser tutelado, como é o caso de uma
fila de pacientes aguardando o órgão a ser transplantado,
a escassez natural de recursos não inibe a intervenção
do poder judiciário sob o argumento da “reserva do possível”.
É que a situação de ameaça à vida dos
interessados enquadra-se no parâmetro existencial mínimo,
permitindo a tutela imediata do Juiz que poderá reconhecer, acaso
devidamente demonstrado, que o critério adotado pela administração
(cronológico) pode ser topicamente superado, em face da comprovada
urgência de atendimento de um paciente, mesmo em detrimento de outro
que esteja em situação estável no aguardo da transferência
do órgão.
Ao
Juiz incumbe a tarefa de efetivação dos direitos fundamentais,
ainda que não seja exclusiva, preservando sempre os princípios
da unidade da Constituição, sob o postulado da proporcionalidade.
Àqueles que argumentam no sentido em que em tempos de crise até
mesmo a garantia de direitos sociais mínimos poderia colocar em
risco a necessária estabilidade econômica, impondo-se o “embalsamento”
do Poder Judiciário, importa salientar, com Alexy, que justamente
em tais circunstâncias uma proteção de posições
jurídicas fundamentais na esfera social, por menor que seja, revela-se
indispensável.
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Paulo: Malheiros, 1998.
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Notas
1. Dissertação apresentada na disciplina Constituição
e Direitos Fundamentais do Mestrado em Direito Público da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul no primeiro semestre
de 2003, ministrada pelo Prof. Dr. Ingo Wofgang Sarlet.
2. Juiz
Federal em Lages - Santa Catarina, Mestrando em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor de Direito
Administrativo na ESMAFE, Escola Superior da Magistratura Federal, co-autor
do livro: "TEMAS ATUAIS DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO E ASSISTÊNCIA
SOCIAL, publicado pela Ed. Livraria do Advogado, 2003.
3. Melhor é o sistema de posições jurídicas
fundamentais de Alexy, veiculado em sua teoria analítica dos direitos
subjetivos, em que há uma tríplice divisão: direito
a algo, liberdades e competências. O direito a algo é concebido
como uma relação trilateral na qual o primeiro membro é
o titular do direito, o segundo é o destinatário do direito
e o terceiro é o objeto do direito. O objeto é constituído
por uma ação do destinatário que pode ser positiva
ou negativa, pois se o objeto não fosse uma ação
do destinatário não haveria sentido em incluí-lo
na relação. Quando cogitamos dos direitos em face do Estado,
os direitos a ações negativas são chamados de direitos
de defesa, enquanto os direitos a ações positivas coincidiriam,
parcialmente com os direitos a prestações, em uma conceituação
restrita de prestação. Os direitos a ações
negativas subdividem-se em: a) direito ao não impedimento de ações;
b) direito à não afetação de propriedade (bens)
e situações (jurídico-subjetivas); e c) direito à
não eliminação de posições jurídicas.
Por seu turno, os direitos a ações positivas desmembrariam-se
em direitos a ações positivas fáticas e direitos
a ações positivas normativas. (Robert Alexy, Teoría
de Los Derechos Fundamentales, pp. 186 a 196.)
4. A expressão “direitos positivos” aqui lançada
não guarda qualquer relação com a emblemática
oposição entre ‘direitos positivos’ e ‘direitos
naturais’. A ‘positividade’, aqui, está no agir
do Estado dentro do campo material.
5. in A Era dos Direitos, p. 72.
6. in Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 10ª
ed., 2000, p. 518.
7. idem.
8. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais,
p. 66.
9. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 1987, pp 78 e ss.
10. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
5ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 431 e ss.
11. Idem.
12. Cfe. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
2.ed., p. 250.
13. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Fundamentos da constituição,
1991, p. 131.
14. In:Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os
(des)caminhos de um direito constitucional “comparado”, pp.
45 a 49.
15. BverfGE (coletânea das decisões
do Tribunal Constitucional Federal), nº 33, S. 333, apud Andreas
J. Krell, in op. cit. , p. 52.
16. Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição
de 1988, pp. 150 a 152.
17. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
2.ed., p.286.
18. J. P. Müller, in Soziale Grundrechte in der Verfassung?, p. 5,
apud Ingo Wolfgang Sarlet, in A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
2.ed., p. 286.
19. Ana Paula Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais, p. 114 e seguintes.
20. Ricardo Lobo Torres, “A cidadania multidimensional na era dos
direitos”, in o mesmo (org), Teoria dos direitos fundamentais, p.
278 e 290.
21. Stephen Holmes & Cass R. Sustein, in The Cost of Rights, New York,
1999, p.9.
22. Stephen Holmes & Cass Sunstein, in op. cit, pp. 63-64.
23. Os autores enfrentam um dos mais discutidos casos da história
da Suprema Corte dos Estados Unidos, o caso DeShaney v. Winnebago County
Department of Social Services, no qual o autor foi vítima de maus-tratos
pelo pai, que o espancou até entrar em coma, aos quatro anos. O
menino saiu do coma com severos danos cerebrais. Sua mãe processou
o departamento de serviço social local, pois este já havia
sido alertado quanto aos maus-tratos. O pedido foi considerado improcedente
pela Suprema Corte, sob o argumento de que a garantia do devido processo
significa uma limitação ao poder de agir do Estado, não
uma garantia de níveis mínimos de segurança e proteção.
Os autores criticam tal posicionamento, mas defenderam a conclusão
da Suprema Corte, uma vez que os tribunais não podem eficazmente
manejar recursos escassos. Levar direitos a sério é levar
a escassez a sério, segundo os autores.
24. Gustavo Amaral, in Direito, escassez e escolha: em busca de critérios
jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões
trágicas, p. 26.
25. TJSP, 2ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Alves
Bevilacqua, Ag. Instr. nº 42.530.5/4, j. 11.11.1997.
26. TJSP, 9ª Câmara de Direito Público, Des. Rui Cascaldi,
Agr. Instr. 48. 608-5/4, julgado em 11.02.1998, unânime.
27. in op. cit., p. 29.
28. Processo nº 351/99, 14ª Vara da Fazenda Pública de
São Paulo.
29. Sobre conflitos entre critérios adotados numa ótica
de microjustiça e critérios adotados numa ótica de
macrojustiça o autor cita o chamado “dilema do prisioneiro”,
descrito por John Rawls, no qual um somatório de escolhas individuais
racionais produzem um resultado coletivo irracional.
30. Folha de São Paulo, 24 de maio de 1998,
p. 3-2, e 27 de maio de 1998, p. 3-8.
31. Gustavo Amaral, in op. cit., p. 98.
32. Um bom exemplo, citado por Alexy (in Direitos Fundamentais no Estado
Constitucional Democrático, Revista da faculdade de Direito da
UFRGS, vol. 16, 1999), seria o direito de crença, que tanto é
o de professar uma como o de não tê-la e ser poupado de praticar
qualquer crença. Esse conflito se manifestou no caso da “resolução-crucifixo”,
na qual o Tribunal Constitucional Alemão proibiu a colocação
de crucifixos em espaços escolares públicos.
33. “A afirmação de “direitos” que não
correspondem a “deveres” pode chocar a princípio, mas
cabe lembrar que a equivalência binomial direito-dever decorre de
postulados do direito civil. Ora, as relações civis, mormente
as obrigacionais, fundam-se em uma lógica inaplicável, ou
mesmo impertinente para o campo dos direitos humanos. As obrigações
contratuais decorrem da autovinculação, ainda que a liberdade
seja apenas a de contratar e não a de estipular os termos do contrato.”
(...) “Já quanto aos direitos humanos o mesmo não
pode ser dito. A liberdade de ir e vir não decorre de qualquer
ato ou fato.” (Idem, ob. cit, pp. 106 e 107).
34. Idem, ibidem, pp. 114 a 130.
35. Idem, p. 185.
36. Idem.
37. Idem, pp. 71 a 80.
38. “Tomada individualmente, não há situação
para a qual não haja recursos. Não há tratamento
que suplante o orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orçamentos
da União, de cada um dos Estados, do Distrito Federal ou da grande
maioria dos Municípios. Assim, enfocando apenas o caso individual,
vislumbrado apenas o custo de cinco mil reais por mês para um coquetel
de remédios, ou de cento e três mil reais para um tratamento
no exterior, não se vê a escassez de recursos, mormente se
adotando o discurso de que o Estado tem recursos ´nem sempre bem
empregados´.” (Gustavo Amaral, Direito, escassez e escolha:
em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez
de recursos e as decisões trágicas, pp. 146 e 147).
39. Idem, ibidem, p. 208.
40. Andreas Joachim Krell, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil
e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”,
p.45 a 49.
41. Andreas Joachim Krell, op. cit, pp. 51 a 57.
42. Andreas Joachim Krell, op. cit, p. 53.
43. Robert Alexy, Teoría de Los Derechos Fundamentales, p. 494
e 495.
44. Robert Alexy, Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático,
trad. Luís Afonso Heck, in Revista da faculdade de Direito da UFRGS,
vol. 16, 1999, p. 203-214.
45. idem.
46. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
pp.311 a 315.
47. idem, p. 318.
48. Ingo Wolfgang Sarlet, in op. cit., p.324.
49. Ingo Wofgang Sarlet, in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais,
p. 49
50. Idem, p. 92.
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