A reserva do possível como limite à eficácia e efetividade dos direitos sociais(1)

Autor: Giovani Bigolin(2)

Juiz Federal


Publicado em 30.06.2004
Introdução

A questão da escassez de recursos como limite para o reconhecimento pelo Estado do direito às prestações sempre desafiou os operadores do direito. Pode o Direito oferecer uma resposta segura para situações em que os recursos sejam limitados? Pode apontar uma solução para a quem o Estado deva atender ou não atender em um cenário de falta de meios econômicos para a satisfação de todos?

A resposta a esses questionamentos está intrinsecamente ligada ao que se possa entender como eficácia e efetividade dos direitos sociais. A partir do exame da necessidade ou não de interposição legislativa para o reconhecimento de direitos subjetivos sociais e da definição das condições em que isto seria possível, pode-se demarcar o alcance da tutela de tais direitos pelo Magistrado, mesmo diante da escassez dos meios.

O tema passa, pois, também por uma análise do papel do Poder Judiciário no que diz respeito ao amparo das pretensões positivas, ou seja, se é possível ao magistrado tutelar tais pretensões ou estaria ele limitado ao controle do discurso em face da separação dos poderes, já que diante da “reserva do possível” negar-se-ia a competência dos juízes (não legitimados pelo voto) a dispor sobre medidas de políticas sociais que exigem gastos orçamentários.

Já existem tentativas de resposta a tais questionamentos tanto em sede doutrinária como jurisprudencial. Contudo, diante da notória divergência de opiniões, ainda permanece atual o debate sobre uma eventual ‘cisão’ entre direitos da liberdade que, sendo “negativos”, têm sede constitucional, ao passo que os direitos sociais, que seriam “positivos”, dependeriam de meios materiais e, assim, a mediação legislativa e orçamentária.(3) Dentro dessa dicotomia, formam-se, grosso modo, três correntes: a dos que entendem serem passíveis de tutela judicial imediata todos os direitos classificados pela Constituição como Fundamentais; a dos que entendem serem passíveis dessa tutela apenas os direitos negativos, já que os positivos, por demandarem recursos, vigeriam sob a reserva do possível, a depender de mediação legislativa e a dos que entendem haver um núcleo de direitos positivos ligados ao mínimo existencial que seria sempre instantaneamente tutelável, quedando os demais direitos positivos sob a reserva do possível e/ou interposição legislativa.

Neste curto ensaio que ora se propõe, não se pretende, obviamente, o esgotamento da matéria, senão um levantamento crítico das opiniões de alguns notáveis juristas sobre o tema, com uma final conclusão e posicionamento pessoal.

1. Os Direitos Fundamentais de segunda geração

No curso da evolução histórica foram formadas “gerações” de direitos que não se superam, mas convivem entre si. Os primeiros direitos a serem reconhecidos voltavam-se contra a opressão do monarca. Posteriormente, afirmadas algumas liberdades básicas, a opressão do homem pelo próprio homem não se dava mais diretamente pelo aparato estatal, mas pelo privado, surgindo, então, os direitos voltados a atuações estatais específicas.


Pela evolução histórica e pelas características originais, os direitos voltados ao valor liberdade foram inicialmente classificados como direitos negativos, na qualidade de limites constitucionais ao poder do Estado.

Como corolário dessa visão, os direitos da liberdade seriam sempre eficazes, já que não dependeriam de regulamentação. Conquanto fosse admitida a regulação das liberdades, o gozo das mesmas decorreria da própria constituição, não do trabalho do legislador inferior.

Por outro lado, os direitos sociais foram inicialmente reconhecidos como, via de regra, voltados não a uma abstenção do Estado, mas a uma ação o que lhes dá a característica de positivos.(4) Para sintetizar esta argumentação vale citar a lição de Norberto Bobbio:

“É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne àquela prática de que falei no início: é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado Social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.
(...) na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas puramente de programáticas. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de ‘direito’?”.
(5)

Segundo Paulo Bonavides, os direitos fundamentais de segunda geração passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigiam do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos.(6)De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.(7)a>

2. Da eficácia dos direitos sociais prestacionais em face do §1º do artigo 5º da Carta Política brasileira de 1988


Consoante preleciona José Afonso da Silva, a eficácia jurídica consiste na possibilidade de sua aplicação, no sentido da capacidade de serem atingidos os objetivos traduzidos na norma. Já a eficácia social ou efetividade refere-se à efetiva aplicação da norma(8) no mundo dos fatos.

Afortunadamente, no Brasil não há um regime jurídico diferenciado para os direitos fundamentais sociais, seja para os direitos de defesa ou para os direitos a prestações. Diante da expressa disposição lançada na Carta Magna, pode-se partir da premissa de que o artigo 5º, § 1º, abrange todas as normas de direitos fundamentais garantidos pela nossa Carta, sendo insustentável a tese defendida em outras ordens constitucionais - pelo menos por parcela significativa da doutrina e jurisprudência - de que os direitos sociais a prestações não têm eficácia plena e não são imediatamente aplicáveis, tal como ocorre em Portugal e na Espanha.

Especificamente no caso de Portugal, a Constituição prevê expressamente um regime jurídico diferenciado. Neste sentido, os assim chamados “direitos, liberdades e garantias” que, em última análise, abrangem os direitos de defesa, são dotados de eficácia plena e imediata aplicabilidade, além de integrarem o rol das “cláusulas pétreas”. Já os “direitos econômicos, sociais e culturais” não são imediatamente aplicáveis e não integram as “cláusulas pétreas” da Constituição Lusitana de 1976.(9)

No caso brasileiro, em primeiro lugar, a inexistência de regime jurídico diverso para os direitos de defesa e os prestacionais pode ser demonstrada pelo fato dos direitos sociais terem sido incluídos no Capítulo II do Título II, rompendo-se com a tradição inaugurada com a Constituição de 1934 que os albergava no título concernente à ordem econômica. Aliás, essa formulação está afinada com o compromisso de nossos constituintes com o Estado Social materializado particularmente nos artigos 1º e 3º do Texto Fundamental. Ademais, o § 1º do artigo 5º dispõe que: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”, não tendo sido efetuada diferenciação entre os direitos fundamentais clássicos e os direitos sociais.(10) A inexistência de diferenciação no regime jurídico não simplifica a questão da eficácia dos direitos prestacionais. Pelo contrário, problematiza-a de maneira positiva, na medida que desafia os operadores do direito a arregaçarem as mangas e a empreenderem um esforço hermenêutico inovador na tarefa de tornar esses direitos fundamentais efetivos elementos de um Estado Social no Brasil.

Segundo Canotilho, o postulado da aplicabilidade imediata dos direitos sociais prestacionais não pode resolver-se de acordo com a dimensão de tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance dependerá do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta.(11) Pode-se, em conseqüência, extrair-se uma presunção de aplicabilidade imediata das normas e garantias fundamentais, de tal sorte que eventual recusa de sua aplicação, em virtude da ausência de ato concretizador deverá ser necessariamente fundamentada.(12) Tal presunção, ao contrário de outras, operaria como princípio geral em se tratando de direitos fundamentais, ressalvadas exceções devidamente justificadas na análise tópica da hermenêutica aplicada.

3. Significado da expressão “reserva do possível”.

Canotilho vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma “reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos econômicos. A elevação do nível da sua realização estaria sempre condicionada pelo volume de recursos suscetível de ser mobilizado para esse efeito.(13) Nessa visão, a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada verdadeiro limite fático à efetivação dos direitos sociais prestacionais.

Essa teoria, segundo Andreas Krell,(14) representa uma adaptação de um tópos da jurisprudência constitucional alemã que entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição de disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos.

Segundo o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, esses direitos a prestações positivas (Teilhaberechte) “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade”. Essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social; a Corte recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos.(15)

Vale dizer, é necessário não apenas que a norma outorgue certa capacidade de atuação para o seu destinatário como também existam recursos materiais que tornem possível a satisfação do direito, fatores que consubstanciam a cláusula da “reserva do possível”.(16)

Não se verifica distorção doutrinária significativa quanto ao fato de se identificar como tarefa cometida precipuamente ao legislador ordinário a de decidir sobre a aplicação e destinação de recursos públicos, inclusive no que tange às prioridades na esfera das políticas públicas, com reflexos diretos na questão orçamentária. Esta é a razão pela qual alguns alegam tratar-se de um problema de natureza competencial.(17) Segundo esta linha de argumentação, capitaneada por P. Müller, faltaria aos juízes a capacidade funcional necessária para, situando-se fora do processo político propriamente dito, garantir a efetivação das prestações que constituem o objeto dos direitos sociais, na medida em que estas se encontram na dependência, muitas vezes, de condições de natureza macroeconômica, não dispondo, portanto, de critérios suficientemente seguros e claros para aferir a questão no âmbito estrito da argumentação jurídica.(18)

Por força da indigitada limitação de recursos, parcela substancial da doutrina vem defendendo que apenas o “mínimo existencial” poderia ser garantido, isto é, apenas esse conjunto - formado pela seleção dos direitos sociais, econômicos e culturais considerados mais relevantes, por integrarem o núcleo da dignidade da pessoa humana,(19) ou porque decorrem do direito básico da liberdade – teria validade erga omnes e seria diretamente sindicável.(20)

4. Posição de Stephen Holmes e Cass R. Sunstein

Como demonstram Stephen Holmes e Cass R. Sunstein no seu livro The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes, todos os direitos custam dinheiro, inclusive os direitos negativos, e nada que custe dinheiro pode ser absoluto. Este livro destina-se a desfazer a distinção extremada entre direitos negativos e direitos positivos e elenca exemplos dos custos da efetividade de direitos fundamentais tidos como de primeira dimensão ou geração.

De início o livro revela questionamentos do Center on Constitucionalism in Eastern Europe da Universidade de Chicago, quando se observaram casos como o da Rússia, que consumiu 25% do já inadequado orçamento do judiciário ao tentar implementar julgamentos pelo júri.(21) Segundo os autores, todos os direitos têm custos, porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los:

“A Consumer Product Safety Commission gastou, em 1996, 41 milhões de dólares analisando e identificando produtos potencialmente danosos e fiscalizando o cumprimento dos padrões de segurança. Já o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, no mesmo ano, gastou US$ 64 milhões em “questões de direitos civis”. A Occupational Safety and Health Administration (OSHA) consumiu US$ 306 milhões no mesmo ano obrigando os empregadores a prover locais de trabalho mais seguros e saudáveis enquanto que a Equal Employment Opportunity Comission (EEOC) despendeu US$ 233 milhões para cuidar que os empregadores não discriminem na contratação, demissão, promoção e transferências.

(...)

Alguns direitos constitucionais dependem para sua existência de condutas estatais positivas. Portanto, o Estado está sob um dever constitucional de agir, não de se abster. Se deixar uma pessoa escravizar a outra, nada fazendo para desfazer a situação que configura servidão involuntária, o Estado terá violado a Décima-Terceira Emenda. Por força da proteção dada pela Primeira Emenda à liberdade de expressão, o Estado está obrigado a manter ruas e parques abertos para manifestações, muito embora isso seja caro e requeira uma conduta positiva. Por força da proteção constitucional contra a privação da propriedade privada sem justa compensação, o Governo está provavelmente obrigado a criar leis contra os esbulhos e invasões, bem como tornar tais garantias acessíveis aos proprietários privados - uma falha em agir, uma falha em proteger a propriedade privada pareceria inconstitucional. Se um juiz aceitar propina oferecida pelo réu e assim nada fizer para proteger os direitos do autor, tal juiz terá violado a garantia do devido processo. Se o Estado não tornar seus tribunais acessíveis para garantir a eficácia de garantias contratuais, ele terá provavelmente arruinado as obrigações contratuais, violando a garantia constitucional dos contratos. Em todos esses casos o Governo está obrigado, pela Constituição, a proteger e a agir”.

Noutra passagem digna de nota, o livro refuta a idéia de uma filosofia libertária de um Estado mínimo, mostrando que os gastos dos EUA com proteção policial e punições penais montaram a 73 bilhões de dólares no ano de 1992, quantia que excede ao PIB de mais da metade dos países do mundo.(22)

Em termos bem contundentes Holmes e Sunstein afirmam que os Direitos costumam ser descritos como invioláveis, peremptórios e decisivos. Isto, contudo, é mero floreio retórico. Nada que custe dinheiro pode ser absoluto. Nenhum direito cuja efetividade pressupõe um gasto seletivo dos valores arrecadados dos contribuintes pode, enfim, ser protegido de maneira unilateral pelo Judiciário sem considerações às conseqüências orçamentárias, pelas quais, em última instância, os outros dois poderes são responsáveis.(23)

5. Posição de Gustavo Amaral


O Prof. Gustavo Amaral em seu livro Direito, Escassez e Escolha: em busca e critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas parte seu estudo do exame de decisões judiciais que teriam considerado o direito à saúde como absoluto e incontrastável, procedendo a uma avaliação crítica. As decisões são as que passo, desde logo, a descrever.

O Tribunal de Justiça de Santa Cataria, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 97.000511-3, Rel. Des. Sérgio Paladino, entendeu que o direito à saúde, garantido na Constituição, seria suficiente para ordenar ao Estado, liminarmente e sem mesmo sua oitiva, o custeio de tratamento nos Estados Unidos, beneficiando um menor, vítima de distrofia muscular progressiva de Duchenne, ao custo de US$ 163.000,00, muito embora não houvesse comprovação da eficácia do tratamento para a doença, cuja origem é genética. Nesse julgamento foi asseverado que: “Ao julgador não é lícito, com efeito, negar tutela a esses direitos naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger o Erário”, sendo afastados os argumentos de violação aos artigos 100 e 167, I, II e VI, da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, em decisão de seu presidente Min. Celso de Mello negou pedido de suspensão dos efeitos da liminar por grave lesão à ordem e à economia pública, solicitada pelo Estado de Santa Catarina.(24)

Em sentido diametralmente oposto, Gustavo Amaral elenca decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em exame de idêntico pedido em favor de menores portadores da mesma doença, lançada sob os seguintes argumentos: “não se há de permitir que um poder se imiscua em outro, invadindo esfera de sua atuação específica sob o pretexto da inafastabilidade do controle jurisdicional e o argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O respectivo exercício não mostra amplitude bastante para sujeitar ao Judiciário exame das programações, planejamentos e atividades próprias do Executivo, substituindo-o na política de escolha de prioridades na área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento da existência de recursos para tanto suficientes. Em suma: juridicamente impossível impor-se sob pena de lesão ao princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes obrigação de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos, de oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu (...)”.(25)

A terceira decisão citada também é do Tribunal de Justiça de São Paulo, também envolvendo menor vítima da mesma doença congênita:

“O direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais citados pelo agravante, arts. 196 e 227 da CF/88, apenas são garantidos pelo Estado, de forma indiscriminada, quando se determina a vacinação em massa contra certa doença, quando se isola uma determinada área onde apareceu uma certa epidemia, para evitar a sua propagação, quando se inspecionam alimentos e remédios que serão distribuídos à população, etc, mas que quando um determinado mal atinge uma pessoa em particular, caracterizando-se, como no caso, num mal congênito a demandar tratamento médico-hospitalar e até transplante de órgão, não mais se pode exigir do Estado, de forma gratuita, o custeio da terapia, mas dentro do sistema previdenciário”.(26)

As três decisões citadas contêm concepções díspares. Para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o direito à saúde seria incontrastável e absoluto, devendo o Estado acatá-lo em qualquer caso. Para a decisão da 9ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, o direito à saúde limitar-se-ia à necessidade de o Estado desenvolver políticas públicas de saúde, enquanto que o tratamento de doenças dependeria da filiação a um sistema de previdência e à cobertura dada por esse sistema.

Para a 2ª Câmara do mesmo Tribunal, ao seu turno, o direto à saude é ditado por políticas públicas destinadas a gerenciar recursos escassos, sendo juridicamente impossível ao Judiciário imiscuir-se na questão.(27)

Gustavo Amaral - procurador do Estado do RJ - culmina sua crítica aos posicionamentos judiciais citando decisão de primeira instância da Vara da Fazenda Pública de São Paulo, na qual um menor vítima da distrofia muscular de Duchenne obteve liminar para que o Estado de São Paulo arcasse com R$ 174.500,00, equivalentes ao valor em dólares necessários ao tratamento, ao fundamento de que o direito à vida preponderaria sobre qualquer outro. Sobreveio sentença de improcedência, revogando a antecipação de tutela e determinando a devolução da quantia levantada “sob as penas civis e criminais cabíveis, pois o direito à saúde garantido pela Constituição deveria ser cumprido dentro dos limites das verbas alocadas à saúde, devendo o Governante, segundo os critérios de conveniência e oportunidade, procurar atender aos interesses de toda a coletividade de maneira universal e igualitária para cumprir a norma constitucional. Assim, o benefício a um único cidadão, como no caso do autor, prejudica o restante da coletividade de cidadãos, que vêem as verbas destinadas à saúde diminuírem sensivelmente, em detrimento de suas necessidades”.(28)

Segundo Gustavo Amaral, os julgados apontados não enfrentaram a questão microjustiça versus macrojustiça, reconhecendo haver direito subjetivo ao recebimento de tratamento médico sem qualquer consideração orçamentária.(29) Ocorre que os recursos, sobretudo no caso da saúde, são escassos, pois todas as estatísticas existentes sobre gastos com saúde, em todos os países, mostram uma progressão quase que geométrica.

O problema é bem nítido no Brasil, onde a desigualdade social faz com que parte da sociedade já sofra doenças “modernas” ou “da riqueza”, assim as consideradas como típicas de países mais desenvolvidos, ao passo que outra parcela ainda sofre com “doenças da miséria”, como febre amarela, cólera e malária.(30) Amaral afirma que se o Estado está obrigado a sempre ter recursos para prestar as utilidades que lhe são demandadas, ao menos no campo da saúde, então, por dever de coerência, há que se reconhecer o direito de obter esses recursos, mas, no campo da receita pública, seja no ramo da própria contenção de gastos, há direitos individuais, como as garantias tributárias, a vedação ao confisco, o direito à percepção dos vencimentos e proventos.

Gustavo Amaral cita argumentos elencados por Peces-Barba Martínez, Pérez Luno e Alexy para demonstrar a insuficiência de se divisarem os direitos fundamentais em direitos positivos e negativos(31), considerando tais distinções ineficazes para evidenciar a problemática dos direitos sociais prestacionais, propondo uma ótica nova para enfocar as posições jurídicas que decorrem dos direitos fundamentais: a sua decomposição em pretensões. No desenvolvimento dessa tese, depois de evidenciar que mesmo os direitos negativos albergam pretensões positivas,(32) culmina por defender que os direitos humanos e fundamentais seriam direitos que não correspondem a deveres correlatos.(33) Como esses direitos valem para todos os que estão em condições de recebê-los, mas os recursos para o atendimento das demandas são finitos, surge um conflito específico: o conflito por pretensões positivas, no qual será necessário decidir sobre o emprego de recursos escassos através de escolhas disjuntivas (o atendimento de uns e o não-atendimento de outros). Esse conflito não é, em geral, tratado pela doutrina e mesmo o critério de ponderação revelar-se-ia insuficiente.(34)

O Procurador do Estado do Rio de Janeiro não concorda com as posições defendidas por Ricardo Lobo Torres e Robert Alexy em diferenciar um núcleo nomeado como “mínimo existencial” ou como status positivus das liberdades fundamentais, que seria sempre exigível, de outros direitos, que vigeriam sob a reserva do possível, gerando uma grande dificuldade lógica. A terminologia empregada para a exigibilidade dos direitos induziria a uma aplicação binária, exigível X não exigível, ao passo que a noção de mínimo existencial incluiria enorme gradação não existindo divisões nítidas. “O mínimo existencial seria o mesmo em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e interior de Alagoas? Se a resposta for positiva, então a escassez de recursos não estará sendo considerada. Se a resposta for negativa, então parecerá que foi incluída uma condição que afasta a exigibilidade incondicional”.(35) Outra crítica é a unidimensionalidade do enfoque, pois a exigibilidade não decorreria apenas de características ônticas da necessidade, mas também da excepcionalidade da situação concreta. Um cataclismo natural ou social poderia momentaneamente tornar inexigível algo que pouco antes o era.

Segundo o autor, a escassez de recursos ou de meios para satisfazer direitos, mesmo fundamentais, não pode ser descartada. Surgindo esta, o Direito precisa estar aparelhado para dar respostas. Certamente, na quase totalidade dos países, não se conseguiu colocar a todos dentro de um padrão aceitável de vida, o que comprova não ser a escassez, quanto ao mínimo existencial, uma excepcionalidade, uma hipótese limite e irreal que não deva ser considerada seriamente.(36)

Por isso, para Amaral, é necessário que os Juízes e Tribunais, quando forem decidir sobre a eficácia e efetividade das pretensões em casos específicos, fundamentem suas decisões admitindo o modo como os custos afetam a intensidade e consistência dos direitos, examinando abertamente a competição por recursos escassos que não são capazes de satisfazer a todas as necessidades sociais, implicando em escolhas disjuntivas de natureza financeira.(37) Normalmente, essa questão é tangenciada, pois apenas o caso concreto é analisado.(38) Se a apontada escassez é um condicionamento importante, ela não pode ser superdimensionada, tornando-se o único balizamento na concretização dos direitos sociais, sendo necessário acrescentar ingredientes éticos e políticos para que o instrumental jurídico possa, não apenas ser legitimado, mas permitir que a evolução das condições econômicas e sociais possa beneficiar o maior número de pessoas.

O judiciário está aparelhado para decidir casos concretos, lides específicas que lhe são postas, tratando da microjustiça, da justiça do caso concreto e esta deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia. Conclui que ao Poder Judiciário cabe apenas o controle do discurso e das condutas adotadas por aqueles que ocupam a função executiva ou legislativa, não cabendo ao magistrado fazer a mediação fato-norma, seja pela subsunção ou pela concreção.(39)

6. Posição de Andreas Krell

Enfocando a postura dos operadores do direito que importaram a doutrina alemã de interpretação dos direitos sociais de forma acrítica, KRELL demonstra que a não-inclusão dos direitos sociais na Lei Fundamental de Bonn, tomada como paradigma para a negação do caráter fundamental dos direitos sociais, decorreu de uma renúncia deliberada, em razão da experiência fracassada da Constituição de Weimar e que a previsão de direitos sociais sujeitos a condicionamentos diversos, considerando-se as peculiaridades e experiências vivenciadas pelo povo alemão, poderia enfraquecer a força normativa da Carta. Contudo, a sua não-inclusão não significa uma renúncia ao seu ideário subjacente. No Brasil, diferentemente da Alemanha, os Constituintes formularam uma opção diferenciada e, segundo todas as regras de interpretação, os direitos sociais são direitos fundamentais.(40)

A dissociação dos direitos em pretensões sem o respectivo dever enfraqueceria em demasia a obrigatoriedade do Estado em dar cumprimento aos direitos fundamentais prestacionais que se tornariam um instrumento jurídico completamente inoperante, pouco se diferenciando da corrente que não reconhece a eficácia dos direitos fundamentais sociais, contrariando o princípio insculpido no § 1º do artigo 5º de nossa Lei Maior. Em sua visão arrojada, diametralmente oposta à de Gustavo Amaral, o mestre da Universidade Federal de Pernambuco chega a proclamar a falácia da reserva do possível, a qual decorreria de um Direito Constitucional comparado equivocado. Aduz que não seria difícil a um ente público justificar sua omissão social perante critérios de política monetária e que o condicionamento da realização desses direitos a ´caixas cheios` reduziria a sua eficácia a zero.(41)

Krell aduz que a resposta coerente à indagação formulada por Amaral, quando propõe o confronto de escolha entre tratar os milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza ou um pequeno número de doentes terminais de doenças raras ou de cura improvável, seria tratar todos. “Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transportes, fomento econômico, serviço da dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade e saúde. Um relativismo nessa área poderia levar a ponderações perigosas e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?’, etc.”.(42)

7. Posição de Robert Alexy

Alexy empreendeu a tentativa de harmonizar os argumentos favoráveis e contrários a direitos subjetivos a prestações sociais numa concepção calcada na idéia da ponderação entre princípios. Discorrendo sobre a celeuma dos direitos sociais fundamentais (direitos à prestação em sentido estrito), afirma que podem ser deduzidos argumentos de peso nos dois sentidos. Por isso, no seu modelo - que é estruturado sob a idéia reitora de que os direitos fundamentais são posições jurídicas tão relevantes que a sua concessão ou denegação não podem ficar nas mãos da simples maioria parlamentar –, a questão de saber quais os direitos fundamentais sociais que o indivíduo possui é uma questão de ponderação. Por outro lado, o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária, tanto quanto os demais, não é absoluto, sendo possível que os direitos individuais apresentem mais peso que as razões de política financeira.(43)

Para o constitucionalista tedesco o reconhecimento de direitos originários a prestações exige a presença de alguns parâmetros: a) quando imprescindíveis ao princípio da liberdade fática; b) quando o princípio da separação dos poderes (incluindo a competência orçamentária do legislador), bem como outros princípios materiais (especialmente concernentes a direitos fundamentais de terceiros) forem atingidos de forma relativamente diminuta.

Para Alexy, as condições se encontram satisfeitas na esfera dos direitos sociais que correspondem a um padrão mínimo, como é o caso dos direitos a condições existenciais mínimas, direito à formação escolar e profissional, uma moradia simples e um padrão mínimo de atendimento na área da saúde.

Os direitos do homem são distintos de outros direitos pela combinação de cinco marcas: são Direitos Universais (no sentido de serem um “ideal universal”); Direitos Morais (a norma que se refere a um direito fundamental deve ter validez moral: possibilidade de justificação perante todos os que aceitam determinada fundamentação racional); Direitos Preferenciais (têm relação íntima com o direito positivo; este deve concretizar os direitos fundamentais e isso é uma condição necessária para a legitimidade do direito positivo); Direitos Fundamentais (os direitos do homem devem revelar interesses e carências que podem e devem ser protegidos e fomentados pelo direito. Além disso, que o interesse e a carência sejam tão fundamentais que a necessidade de seu respeito, proteção e fomento sejam prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico); e Direitos Abstratos (o exercício dos direitos pode exigir restrições e limitações, notadamente quando outros direitos, como os bens coletivos, devem ser protegidos. Isso gera a necessidade de ponderações).(44)

Ao tratar da fundamentalidade, estabelece o jurista duas condições, a possibilidade de proteção e fomento pelo direito e a necessidade:

“A segunda condição é que o interesse ou a carência seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito. A fundamentabilidade fundamenta, assim, a prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também perante o legislador. Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca o núcleo essencial da autonomia. Daqui são compreendidos não só os direitos de defesa liberais clássicos, senão, por exemplo, também direitos sociais que visam ao asseguramento de um mínimo existencial”.

Alexy adere à noção de um padrão mínimo de segurança material a ser garantido por meio de direitos fundamentais, que têm por objeto evitar o esvaziamento da liberdade pessoal, assegurando, de tal sorte, uma liberdade real. Na esfera de um padrão mínimo em prestações sociais - assim afirma Robert Alexy - também será mínima a restrição na esfera dos princípios conflitantes com a realização dos direitos sociais, podendo-se afirmar, ainda, que o reconhecimento de um direito subjetivo a prestações sociais básicas, indispensáveis para uma vida com dignidade, sempre deverá prevalecer, no caso concreto, quando do conflito com o princípio da reserva do possível e do princípio democrático, igualmente fundamentais, mas não absolutos.

8. Posição de Ingo Wolfgang Sarlet

A melhor abordagem sobre a questão do reconhecimento de direitos subjetivos a prestações sociais, encontrada na doutrina nacional, foi a empreendida por Ingo Wolfgang Sarlet. Partindo da análise crítica de três modelos do direito alemão – Christian Starck, R. Breuer e Robert Alexy, nos quais todos aderem a noção de um padrão mínimo de segurança material, exigido para evitar o esvaziamento da liberdade real – Sarlet constata ser comum aos modelos delineados a problemática da reserva do possível e a objeção da reserva de competência parlamentar.(46) Em aprofundada reflexão sobre essa problemática, argumenta que a questão reside menos no grau de completude da norma do que no aspecto da alegada ausência de legitimação dos tribunais para a determinação do objeto e do quantum da prestação, na medida que a decisão sobre a aplicação de recursos públicos incumbiria precipuamente ao legislador.(47)

Em princípio, segundo Sarlet, há que se ter em mente sempre a necessidade de potencializarmos a eficácia dos Direitos Fundamentais (sem exceção) à luz da norma contida no artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, inclusive com o reconhecimento de direitos subjetivos a prestações, o que pressupõe sempre uma análise no caso concreto. De regra, cumpre reconhecer que se trata de assegurar um padrão mínimo de segurança material, já que o Estado Social, ao menos de acordo com a doutrina mais representativa (na qual nos louvamos), não é - ao menos não quando se cuida de assegurar via judicial direitos fundamentais sociais a prestações - um Estado que pode ser compelido a assegurar um padrão “ótimo” de bem-estar social, mas sim efetivar as condições para uma existência com dignidade. Isto, à evidência, não quer significar que a otimização do bem-estar social não possa ser uma meta a ser alcançada.

Todavia, adverte o estimado jurista, é de se ter em conta que, mesmo argumentando em termos de um padrão mínimo, assume relevância (pelo menos, em princípio) o limite da reserva do possível, já que também neste caso poderá o Estado alegar que não dispõe (e provar o que alega) nem mesmo dos recursos para atender às exigências mínimas em saúde, educação, assistência social, segurança, etc. Prossegue, portanto, existindo o problema da reserva do possível, da mesma forma como segue existindo o problema da reserva parlamentar em matéria orçamentária. Com efeito, ou o legislador é o competente para decidir sobre a afetação dos recursos públicos, ou não. A Constituição - e a nossa não se constitui em exceção - não diz que abaixo de determinado valor não se faz necessária lei orçamentária.

Por outro lado, entendendo ser mais convincente o modelo proposto por Robert Alexy, Sarlet conclui que, em todas as situações em que o argumento da reserva do possível e demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes resultar a prevalência do direito social prestacional, poderá ser reconhecido um direito subjetivo definitivo, isto é, dotado de plena vinculatividade e que implicaria na possibilidade de impor ao Estado, inclusive mediante o recurso à via judicial, a realização da prestação assegurada por norma de direito fundamental. Onde tal mínimo for ultrapassado, haveria tão-somente um direito subjetivo prima facie.(48)

Para Sarlet, o direito à vida e o princípio fundamentalíssimo da dignidade da pessoa humana (ao qual corresponde um direito fundamental à garantia e proteção desta dignidade) constituem-se em fios condutores, em suma, em critérios referenciais, na tarefa de otimizar a eficácia (jurídica e social) dos direitos fundamentais, inclusive viabilizando o reconhecimento de direitos subjetivos a prestações, pelo menos na esfera de um padrão mínimo de condições materiais mínimas, não se devendo olvidar, ainda, que a liberdade e igualdade substanciais se constituem em exigências precípuas da dignidade da pessoa humana.

Sarlet sustenta uma dimensão dúplice da dignidade enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou, até mesmo, – e principalmente – quando ausente a capacidade de determinação.(49) Os direitos sociais de cunho prestacional encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade.(50)

9. Conclusões e posicionamento pessoal

À luz de todo o exposto, importa informar desde já que a ausência de recursos materiais constitui uma barreira fática à efetividade dos direitos sociais, esteja a aplicação dos correspondentes recursos na esfera de competência do legislador, do administrador ou do judiciário. Ou seja, esteja a decisão das políticas públicas vinculada ou não a uma reserva de competência parlamentar, o fato é que a efetividade da prestação sempre depende da existência dos meios necessários. Não se pode negar que apenas se pode buscar algo onde algo existe.

Nesse contexto, mesmo reconhecida situação tópica que pudesse estar indubitavelmente enquadrada dentro de um padrão mínimo, a entrega da prestação também estará sujeita à presença dos recursos materiais.

Por outro lado, constatando-se a existência de meios econômicos (limitados e escassos), a discussão centra-se na sua repartição e na possibilidade de se argüir, perante o poder judiciário, a problemática da reserva do possível para se negar a entrega da prestação social contenciosamente postulada. Tal questão conecta-se ao reconhecimento ou não de uma reserva de competência parlamentar e, por conseqüência, à afronta ao princípio da separação dos poderes.

A decisão sobre a aplicação dos recursos públicos, por sua direta implicação orçamentária incumbe precipuamente ao legislador. Isso não implica em desqualificar os direitos sociais como fundamentais, nem lhes conferir caráter meramente programático. No Brasil, diante da redação do § 1º do art. 5º, todos os direitos fundamentais têm aplicação imediata, sendo que, na qualidade de normas princípio, não podem ser aplicadas como tudo ou nada, conquanto presume-se sua plena eficácia, a qual também não é absoluta.

Existe a possibilidade de se reconhecerem direitos subjetivos a prestações, tutelados pelo poder judiciário, independentemente ou além da concretização do legislador. Impõe-se concordar com Alexy que apenas quando a garantia do material do padrão mínimo em direitos sociais puder ser tida como prioritária, estando presente uma restrição proporcional dos bens jurídicos (fundamentais ou não) colidentes, há como se admitir um direito subjetivo à determinada prestação social. Concorda-se com Sarlet que é possível existir um limite à liberdade de conformação do legislador em se tratando de condições existenciais mínimas.

Para a definição do patamar mínimo a permitir a superação da limitação imposta pela reserva do possível, ressalvado o limite real de escassez, recolhe-se o posicionamento de Sarlet, o qual aponta como parâmetro demarcatório o valor fundamental da dignidade da pessoa humana, o qual representaria o verdadeiro limite à restrição dos direitos fundamentais, coibindo eventuais abusos que pudessem levar ao seu esvaziamento ou à sua supressão.

Mesmo em se tratando de escolhas disjuntivas, em que está em conflito o mesmo bem jurídico a ser tutelado, como é o caso de uma fila de pacientes aguardando o órgão a ser transplantado, a escassez natural de recursos não inibe a intervenção do poder judiciário sob o argumento da “reserva do possível”. É que a situação de ameaça à vida dos interessados enquadra-se no parâmetro existencial mínimo, permitindo a tutela imediata do Juiz que poderá reconhecer, acaso devidamente demonstrado, que o critério adotado pela administração (cronológico) pode ser topicamente superado, em face da comprovada urgência de atendimento de um paciente, mesmo em detrimento de outro que esteja em situação estável no aguardo da transferência do órgão.

Ao Juiz incumbe a tarefa de efetivação dos direitos fundamentais, ainda que não seja exclusiva, preservando sempre os princípios da unidade da Constituição, sob o postulado da proporcionalidade. Àqueles que argumentam no sentido em que em tempos de crise até mesmo a garantia de direitos sociais mínimos poderia colocar em risco a necessária estabilidade econômica, impondo-se o “embalsamento” do Poder Judiciário, importa salientar, com Alexy, que justamente em tais circunstâncias uma proteção de posições jurídicas fundamentais na esfera social, por menor que seja, revela-se indispensável.


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Notas

1. Dissertação apresentada na disciplina Constituição e Direitos Fundamentais do Mestrado em Direito Público da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no primeiro semestre de 2003, ministrada pelo Prof. Dr. Ingo Wofgang Sarlet.

2. Juiz Federal em Lages - Santa Catarina, Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor de Direito Administrativo na ESMAFE, Escola Superior da Magistratura Federal, co-autor do livro: "TEMAS ATUAIS DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, publicado pela Ed. Livraria do Advogado, 2003.

3. Melhor é o sistema de posições jurídicas fundamentais de Alexy, veiculado em sua teoria analítica dos direitos subjetivos, em que há uma tríplice divisão: direito a algo, liberdades e competências. O direito a algo é concebido como uma relação trilateral na qual o primeiro membro é o titular do direito, o segundo é o destinatário do direito e o terceiro é o objeto do direito. O objeto é constituído por uma ação do destinatário que pode ser positiva ou negativa, pois se o objeto não fosse uma ação do destinatário não haveria sentido em incluí-lo na relação. Quando cogitamos dos direitos em face do Estado, os direitos a ações negativas são chamados de direitos de defesa, enquanto os direitos a ações positivas coincidiriam, parcialmente com os direitos a prestações, em uma conceituação restrita de prestação. Os direitos a ações negativas subdividem-se em: a) direito ao não impedimento de ações; b) direito à não afetação de propriedade (bens) e situações (jurídico-subjetivas); e c) direito à não eliminação de posições jurídicas. Por seu turno, os direitos a ações positivas desmembrariam-se em direitos a ações positivas fáticas e direitos a ações positivas normativas. (Robert Alexy, Teoría de Los Derechos Fundamentales, pp. 186 a 196.)

4. A expressão “direitos positivos” aqui lançada não guarda qualquer relação com a emblemática oposição entre ‘direitos positivos’ e ‘direitos naturais’. A ‘positividade’, aqui, está no agir do Estado dentro do campo material.

5. in A Era dos Direitos, p. 72.

6. in Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 10ª ed., 2000, p. 518.

7. idem.

8. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 66.

9. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 1987, pp 78 e ss.

10. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 431 e ss.

11. Idem.

12. Cfe. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 2.ed., p. 250.

13. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Fundamentos da constituição, 1991, p. 131.

14. In:Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”, pp. 45 a 49.

15. BverfGE (coletânea das decisões do Tribunal Constitucional Federal), nº 33, S. 333, apud Andreas J. Krell, in op. cit. , p. 52.

16. Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, pp. 150 a 152.

17. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 2.ed., p.286.

18. J. P. Müller, in Soziale Grundrechte in der Verfassung?, p. 5, apud Ingo Wolfgang Sarlet, in A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 2.ed., p. 286.

19. Ana Paula Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, p. 114 e seguintes.

20. Ricardo Lobo Torres, “A cidadania multidimensional na era dos direitos”, in o mesmo (org), Teoria dos direitos fundamentais, p. 278 e 290.

21. Stephen Holmes & Cass R. Sustein, in The Cost of Rights, New York, 1999, p.9.

22. Stephen Holmes & Cass Sunstein, in op. cit, pp. 63-64.

23. Os autores enfrentam um dos mais discutidos casos da história da Suprema Corte dos Estados Unidos, o caso DeShaney v. Winnebago County Department of Social Services, no qual o autor foi vítima de maus-tratos pelo pai, que o espancou até entrar em coma, aos quatro anos. O menino saiu do coma com severos danos cerebrais. Sua mãe processou o departamento de serviço social local, pois este já havia sido alertado quanto aos maus-tratos. O pedido foi considerado improcedente pela Suprema Corte, sob o argumento de que a garantia do devido processo significa uma limitação ao poder de agir do Estado, não uma garantia de níveis mínimos de segurança e proteção. Os autores criticam tal posicionamento, mas defenderam a conclusão da Suprema Corte, uma vez que os tribunais não podem eficazmente manejar recursos escassos. Levar direitos a sério é levar a escassez a sério, segundo os autores.

24. Gustavo Amaral, in Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas, p. 26.

25. TJSP, 2ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Alves Bevilacqua, Ag. Instr. nº 42.530.5/4, j. 11.11.1997.

26. TJSP, 9ª Câmara de Direito Público, Des. Rui Cascaldi, Agr. Instr. 48. 608-5/4, julgado em 11.02.1998, unânime.

27. in op. cit., p. 29.

28. Processo nº 351/99, 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo.

29. Sobre conflitos entre critérios adotados numa ótica de microjustiça e critérios adotados numa ótica de macrojustiça o autor cita o chamado “dilema do prisioneiro”, descrito por John Rawls, no qual um somatório de escolhas individuais racionais produzem um resultado coletivo irracional.

30. Folha de São Paulo, 24 de maio de 1998, p. 3-2, e 27 de maio de 1998, p. 3-8.

31. Gustavo Amaral, in op. cit., p. 98.

32. Um bom exemplo, citado por Alexy (in Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, Revista da faculdade de Direito da UFRGS, vol. 16, 1999), seria o direito de crença, que tanto é o de professar uma como o de não tê-la e ser poupado de praticar qualquer crença. Esse conflito se manifestou no caso da “resolução-crucifixo”, na qual o Tribunal Constitucional Alemão proibiu a colocação de crucifixos em espaços escolares públicos.

33. “A afirmação de “direitos” que não correspondem a “deveres” pode chocar a princípio, mas cabe lembrar que a equivalência binomial direito-dever decorre de postulados do direito civil. Ora, as relações civis, mormente as obrigacionais, fundam-se em uma lógica inaplicável, ou mesmo impertinente para o campo dos direitos humanos. As obrigações contratuais decorrem da autovinculação, ainda que a liberdade seja apenas a de contratar e não a de estipular os termos do contrato.” (...) “Já quanto aos direitos humanos o mesmo não pode ser dito. A liberdade de ir e vir não decorre de qualquer ato ou fato.” (Idem, ob. cit, pp. 106 e 107).

34. Idem, ibidem, pp. 114 a 130.

35. Idem, p. 185.

36. Idem.

37. Idem, pp. 71 a 80.

38. “Tomada individualmente, não há situação para a qual não haja recursos. Não há tratamento que suplante o orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orçamentos da União, de cada um dos Estados, do Distrito Federal ou da grande maioria dos Municípios. Assim, enfocando apenas o caso individual, vislumbrado apenas o custo de cinco mil reais por mês para um coquetel de remédios, ou de cento e três mil reais para um tratamento no exterior, não se vê a escassez de recursos, mormente se adotando o discurso de que o Estado tem recursos ´nem sempre bem empregados´.” (Gustavo Amaral, Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas, pp. 146 e 147).

39. Idem, ibidem, p. 208.

40. Andreas Joachim Krell, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”, p.45 a 49.

41. Andreas Joachim Krell, op. cit, pp. 51 a 57.

42. Andreas Joachim Krell, op. cit, p. 53.

43. Robert Alexy, Teoría de Los Derechos Fundamentales, p. 494 e 495.

44. Robert Alexy, Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, trad. Luís Afonso Heck, in Revista da faculdade de Direito da UFRGS, vol. 16, 1999, p. 203-214.

45. idem.

46. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, pp.311 a 315.

47. idem, p. 318.

48. Ingo Wolfgang Sarlet, in op. cit., p.324.

49. Ingo Wofgang Sarlet, in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 49

50. Idem, p. 92.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2004. Disponível em:
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PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS