A Fiscalização do Exercício das profissões pelos Conselhos e Ordens

Autora: Luísa Hickel Gamba

Juíza Federal


Publicado em 30.06.2004

Não há como se falar da fiscalização exercida pelos conselhos e ordens profissionais sem se posicionar quanto à natureza jurídica dessas entidades.

Fixar a natureza é observar as características e, a partir delas, enquadrar nas classificações existentes. É assim em todas as áreas do conhecimento, inclusive no Direito. Fixar a natureza jurídica de determinado ente, instituto, prestação etc., é anotar as características mais marcadas dispostas na respectiva lei de criação e, com base nessas características, enquadrar a entidade, o instituto ou a prestação na classificação jurídica mais apropriada.

Por outro lado, fixar a natureza jurídica é fundamental para a definição do regime jurídico a ser aplicado ao ente, instituto, prestação etc.

No presente estudo, interessa enquadrar, inicialmente, os conselhos e ordens de fiscalização profissional na classificação geral das pessoas, entre pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado, além da espécie apropriada.

Não há dúvida de que os conselhos e ordens são pessoas jurídicas, já que pessoa física é só o ser humano. E, na classificação das pessoas jurídicas, os conselhos e ordens de fiscalização profissional se enquadram na classificação das pessoas jurídicas de direito público, na espécie autarquia. Não se confundem com a União, Estados e Municípios, nem têm natureza de pessoa jurídica de direito privado, não se enquadrando como empresa pública, sociedade de economia mista, sociedade civil, associação ou sociedade comercial.

No conceito expresso no inciso I do art. 5º do Decreto-lei nº 200, de 1967, autarquia é "o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada".

Assim é com os conselhos e ordens de fiscalização profissional: são todos criados por lei; têm personalidade jurídica própria, respondendo por seus atos e obrigações, têm patrimônio e receitas próprios; e executam atividade típica do Estado.

Com efeito, a característica mais marcante dos conselhos e ordens profissionais que determinam inegavelmente a natureza jurídica de autarquia é a atividade que executam, por atribuição legal.

São os conselhos e ordens profissionais incumbidos por lei da fiscalização das profissões, tarefa privativa da União, nos exatos termos do art. 21, XXIV, da Constituição Federal. E toda a tarefa de fiscalização atribuída ao Estado constitui atividade de polícia, praticada com base no poder de polícia da Administração Pública, que não pode ser delegado a particulares, em razão da coercibilidade e auto-executoriedade que lhe são pertinentes.

Ao Estado são atribuídos atividade de polícia e serviços públicos; a primeira é sempre indelegável, é atividade típica do Estado; os segundos, podem ser delegados ou não, conforme dispõe a Constituição Federal. São delegáveis os serviços que podem ser transferidos à iniciativa privada, por meio de concessão, autorização ou permissão; são indelegáveis aqueles que a Constituição atribui com exclusividade à União, Estados e Municípios, sem possibilidade de delegação a particulares.

A atividade de polícia e os serviços públicos que a Constituição Federal atribui com exclusividade à União, Estados e Municípios não podem ser delegados a particulares, mas podem ser exercidos pela Administração Pública de forma descentralizada ou desconcentrada.

É o que acontece quando a Administração cria autarquia para a execução de tarefa típica do Estado. Não há delegação da atividade, no sentido técnico, mas há, sim, descentralização da atividade, que é repassada para outra pessoa jurídica de direito público, expressamente criada para esse fim.

E a atividade de polícia, por ser atividade típica do Estado, só pode ser descentralizada, não pode ser delegada a entidades privadas. É que a atividade de polícia implica aplicação de sanção e limitação de direitos, com coercibilidade e auto-executoriedade, o que somente é possível entre Administração Pública e particulares e não para os particulares entre si. As obrigações entre particulares dependem sempre da vontade para contratá-las e do Judiciário para executá-las em caso de descumprimento. As obrigações decorrentes do poder de polícia são impostas aos particulares independentemente da vontade e, quando previsto em lei, podem ser auto-executadas pela Administração Pública, independentemente de intervenção judicial.

Foi com base nas características da atividade de polícia que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, em 07.11.2002, decidiu, no exame de mérito da ADIn nº 1.717-DF, que a atividade de polícia é típica do Estado e que, por isso mesmo, é inconstitucional o art. 58, caput e §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º da Lei nº 9.649, de 1998, os quais estabeleciam a delegação de poder público para o exercício, em caráter privado, dos serviços de fiscalização de profissões regulamentadas, mediante autorização legislativa.

Em decorrência da natureza jurídica autárquica, os conselhos e ordens de fiscalização profissional estão submetidos ao regime jurídico de direito público, com os seguintes destaques:

1) criação por lei (art. 37, XIX, da CF);
2) personalidade jurídica própria;
3) responsabilidade civil objetiva (art. 37, § 6º, CF);
4) patrimônio constituído de bens públicos (impenhoráveis, sem possibilidade de usucapião);
5) execução de dívidas passivas pelo regime de precatório (art. 730 do CPC);
6) execução de dívidas ativas pelo rito da execução fiscal (Lei nº 6.830, de 1980);
7) prescrição qüinqüenal das dívidas passivas (Decreto nº 20.910, de 1932 e Decreto-lei 4.597, de 1942);
8) obrigatoriedade de prévia licitação para compras e contratos;
9) atos dos agentes dos conselhos são atos administrativos, com presunção de veracidade e legitimidade, imperatividade e auto-executoriedade, esta quando houver previsão legal expressa;
10) atos dos agentes são passíveis de mandado de segurança;
11) atos dos agentes são passíveis de ação popular;
12) os conselhos, como autarquias, têm legitimidade para propor ação civil pública;
13) prazos processuais privilegiados (art. 188 do CPC);
14) imunidade tributária;
15) fiscalização do Tribunal de Contas da União;
16) competência da Justiça Federal para as causas em que os Conselhos são autores, réus, assistentes ou opoentes;
17) concurso público para acesso de servidores aos quadros dos conselhos.

Em relação às compras, acesso de servidores e fiscalização do Tribunal de Contas, pontos de mais difícil aceitação entre os conselhos de fiscalização profissional, é preciso consignar que as receitas dos conselhos são provenientes basicamente de tributos, como será visto a seguir, e a Constituição Federal impõe amplo acesso para a remuneração de bens e serviços com dinheiro público, sendo certo que a licitação e o concurso público são os meios apropriados de garantir esse amplo acesso, tanto para quem quer vender para a Administração Pública, como para quem quer trabalhar e ser remunerado pela Administração Pública. E ainda, sendo públicas as receitas do Conselho, a respectiva aplicação está sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas, no caso, da União, já que se trata de autarquias federais.

A fixação da natureza jurídica define ainda incontestavelmente o papel ou atividade fim atribuída aos conselhos e ordens profissionais. Estão eles incumbidos da fiscalização do exercício das profissões. Não são os conselhos e ordens entidades de representação nem de defesa de direitos e interesses de classe ou categoria, tarefas atribuídas às associações de classe e sindicatos, sem compulsoriedade na inscrição, já que a Constituição garante liberdade de associação e sindicalização. Para o exercício de profissões regulamentadas para as quais a lei criou conselho ou ordem fiscalizadora, há compulsoriedade na inscrição: só pode exercer com legitimidade a profissão aquele que está inscrito. Não têm os conselhos profissionais, então, qualquer atribuição na defesa de interesses dos profissionais, mas têm, sim, como atribuição a fiscalização do exercício da profissão. E fiscalização no âmbito meramente administrativo: fiscalização ética e técnica.

Os atos profissionais, em geral, podem gerar efeitos civis, penais e administrativos simultaneamente. A apuração da responsabilidade civil e penal é privativa do Judiciário. Os conselhos e ordens de fiscalização profissional apuram exclusivamente a responsabilidade administrativa, verificando a falta de ética ou de técnica do profissional e aplicando as penalidades estabelecidas na lei.

A fiscalização das profissões é exercida, assim, tanto pelos fiscais de campo, que fiscalizam obras, entidades, responsabilidade técnica, como pelos agentes que atuam individualmente ou em colegiado, dentro dos conselhos, deferindo inscrições, aprovando projetos, apurando falta de ética ou irregularidades no exercício da profissão.

As sanções aplicadas pelos conselhos e ordens de fiscalização profissional têm natureza jurídica de sanção administrativa, podendo consistir em multas, interdição de atividades, suspensão ou cancelamento de inscrição (e conseqüentemente, suspensão ou cancelamento da autorização para o exercício da profissão), fechamento de estabelecimento, inutilização de produtos, vedação de comercialização de determinado produto, vedação de localização de estabelecimento etc.

Da natureza jurídica de sanção administrativa decorre a aplicação de regime jurídico próprio aos procedimentos de fiscalização que nesse âmbito exercem os conselhos e ordens profissionais:

1) as infrações e sanções administrativas devem estar estabelecidas em lei, já que restringem direito individual assegurado na Constituição federal (livre exercício profissional);
2) os procedimentos de fiscalização e, sobretudo, a aplicação das sanções deve observar procedimento administrativo formalizado (devido processo legal);
3) na aplicação das sanções deve ser assegurado o contraditório e a ampla defesa (vista do que se apura ao acusado e ao menos uma única oportunidade de apresentação de defesa);
4) na aplicação das sanções, sobretudo, naquelas em que o agente tenha discricionariedade na escolha da sanção, dentre as cominadas na lei, deve ser observada a proporcionalidade;
5) prescrição de 5 (cinco) anos (Lei nº 6.838, de 1980).

Além da fiscalização do exercício da profissão, os agentes fiscalizadores dos conselhos e ordens profissionais têm por função a fiscalização dos tributos que constituem as receitas dessas autarquias, quais sejam, as anuidades e as taxas cobradas pelos serviços prestados ou poder de polícia exercido. Ambas, anuidades e taxas cobradas pelos conselhos, têm natureza jurídica tributária, pertencendo ao gênero tributo, por enquadrarem-se no conceito legal estabelecido no art. 3º do Código Tributário Nacional (prestação pecuniária compulsória, que não constitui sanção por ato ilícito e que é cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada), e, a primeira, à espécie contribuição de interesse de categorias profissionais ou econômicas (art. 149 da CF), enquanto que as segundas têm natureza jurídica específica de taxas, conforme previsão do art. 145, II, da Constituição Federal. A compulsoriedade, decorrente da lei, sendo prescindível a vontade, é traço marcante, que determina a natureza jurídica tributária dessas prestações.

Tendo natureza jurídica de tributo, as anuidades e taxas devidas aos conselhos de fiscalização profissional estão sujeitas ao regime jurídico tributário, especialmente aos princípios constitucionais tributários (art. 150 da CF), entre os quais o princípio da legalidade, da anterioridade, da igualdade tributária, da vedação do confisco etc., bem como às normas gerais de direito tributário estabelecidas no Código Tributário Nacional, merecendo destaque:

1) instituição por lei em sentido estrito;
2) fiscalização e constituição obrigatórias, pelo procedimento administrativo-fiscal de lançamento (art. 142 do CTN), o qual inicia com uma fase oficiosa, em que agente age unilateralmente verificando a ocorrência do fato gerador, determinando o contribuinte, o valor do tributo e a penalidade eventualmente aplicável, prosseguindo com a fase contenciosa do lançamento, em que se assegura ao sujeito passivo ao menos uma oportunidade de apresentação de defesa;
3) extinção do crédito tributário nas hipóteses estabelecidas no art. 156 do CTN;
4) a fiscalização tributária exercida pelos agentes dos conselhos tem os mesmos poderes conferidos à administração tributária no CTN;
5) nos termos do art. 144 do CTN, a legislação aplicável no lançamento é, no aspecto material, a vigente à data de ocorrência do fato gerador e, no aspecto formal, a vigente à data do lançamento, enquanto que, em relação às penalidades, deve ser aplicada a legislação mais benéfica, nos termos do art. 106, II, do CTN;
6) os créditos tributários constituídos pelo lançamento e não pagos devem ser inscritos em dívida ativa, que é o ato pelo qual se anota que alguém, devidamente identificado, deve ao Conselho determinado valor, proveniente de determinado fato gerador, possibilitando que do registro se extraia certidão de dívida ativa, que vale como título para a cobrança judicial do débito mediante execução fiscal;
7) os sujeitos passivos dos tributos devidos aos conselhos têm direito à certidão negativa de débitos, nos termos dos arts. 205 e 206 do CTN, sendo negativa na inexistência de débitos e positiva com efeito de negativa quando o débito estiver garantido por penhora ou estiver com a exigibilidade suspensa nas hipóteses do art. 151 do CTN.

Enfim, do que se expôs transparece a importância dos conselhos, tanto no papel social que desempenham, como no exercício das funções públicas que lhe são atribuídas. É preciso que os agentes dos conselhos tenham consciência das funções e dos poderes que lhes são atribuídos por lei, para bem exercê-los, em benefício não só dos profissionais sujeitos à fiscalização, mas de toda a coletividade.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2004. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS