A Reforma do Código de Processo Penal e a Instituição de Procedimento de Defesa Preliminar do Réu em Momento Precedente ao Recebimento da Denúncia

Autor: Moser Vhoss

Juiz Federal Substituto


Publicado em 30.06.2004

Em diversas propostas de alteração da legislação processual penal que ultimamente vêm sendo divulgadas, muito se tem cogitado de instituir-se previsão de um procedimento que propicie defesa prévia do acusado em momento ainda anterior ao recebimento da denúncia. Também se tem cogitado de estabelecer previsão de que a decisão de recebimento da denúncia venha a ser fundamentada, considerando não apenas o teor do pedido acusatório, mas também as razões que desde logo já venham a ser colhidas de uma defesa preliminar do réu.

Sustenta-se, via de regra, que as inovações aventadas prestigiariam a ampla defesa. Afirma-se que, em muitos casos, tem ocorrido o recebimento de denúncias infundadas, com a imposição de constrangimento indevido a vários réus que, em verdade, nem deveriam estar sendo processados.

Penso, todavia, que as inovações preconizadas não deveriam ser efetivadas.

Com efeito, não se desconhece que, de fato, em alguns casos, tem havido recebimento indevido de denúncias. Entretanto, o número de casos onde há recebimento indevido da exordial acusatória é, sem sombra de dúvida, infinitamente inferior ao número dos casos onde o recebimento é devido. Para aferir isso, basta comparar, estatisticamente, o número de casos onde ordens de habeas corpus para trancamento de ações penais têm sido concedidas, com o número de casos onde tais ordens têm sido denegadas; e isso sem nem contar o número bem maior ainda de casos onde o trancamento da ação penal sequer é buscado através de habeas corpus.

As inovações legislativas preconizadas atenuariam um problema que, portanto, tem ocorrido apenas em situações excepcionais; para a maioria dos procedimentos criminais as referidas inovações representariam, em verdade, medida que não traria qualquer ganho prático à defesa do réu.

A análise que se deve fazer, então, é a da relação custo-benefício.

Se as inovações implicassem no favorecimento da ampla defesa do acusado sem acarretar qualquer custo ou ônus para a efetividade prática da Justiça Criminal, seria recomendável que viessem a ser adotadas, ainda que diminuto o número de casos onde realmente se revelariam úteis.

Sucede, entrementes, que não é pequeno o ônus e o custo que as inovações propostas impõem para a efetividade prática da Justiça Criminal.

De fato, nos tempos atuais, onde o volume de feitos é cada vez maior, necessitando o processo de economizar medidas que imponham maior demora na formação da relação processual, a instituição de procedimento de defesa preliminar em favor do réu imporá maiores dificuldades para que ocorra o recebimento da denúncia, propiciando novo gargalo para acúmulo de processos aguardando a suplantação dessa fase procedimental.

A oportunização de defesa prévia anterior ao recebimento da denúncia certamente implicará, na prática, em propiciar que rios de tinta sejam gastos com a argüição infindável de preliminares e questões acessórias cuja apreciação, por evidência, requererá alguma análise judicial. E essa análise judicial, embora em muitos casos possivelmente nem tenha que se mostrar muito profunda – não é raro que as questões argüidas estejam limitadas a matérias pouco controversas ou já consideradas dirimidas pela doutrina ou jurisprudência –, sempre demandará tempo do magistrado, seja para assimilação do conteúdo alegado, seja para a posterior confecção de decisão minimamente fundamentada.

Ou seja, com o perdão pela constatação simplória, criar-se-á motivo para a formação de nova pilha com aqueles processos que estejam aguardando um enfrentamento mais demorado da fase de recebimento da denúncia.

Considerando, pois, que seria bem pequeno o número de processos nos quais as inovações legislativas preconizadas produziriam aquele benefício desejado de prestigiar a defesa do réu injustamente acusado, e que para a grande maioria dos processos ter-se-ia apenas a criação de nova dificuldade para a fluência processual desenvolta, parece afigurar-se recomendável a mantença da fórmula atual, pela qual, havendo recebimento indevido de denúncia, pode a defesa técnica apontá-lo através da impetração de habeas corpus visando ao trancamento da ação penal.

De fato, pela fórmula atual, racionaliza-se o processo, fazendo com que haja atuação das partes e pronunciamento judicial mais fundamentado acerca do recebimento da denúncia somente naqueles casos onde, na ótica da defesa, haja potencialidade efetiva de que a decisão de recebimento da denúncia mereça de fato ser invalidada. Ou seja, se o recebimento da denúncia é realmente indevido, poderá a defesa impetrar habeas corpus, e então se terá decisão reparadora do erro ocorrido. Se, ao contrário, o recebimento da denúncia é devido, é de se esperar que sequer haja impetração de habeas corpus e, nessa hipótese, não se perderá mais tempo no processo com discussões e com a prolação de uma decisão abordando questão sobre a qual então já não mais penderá controvérsia entre as partes.

Verdade que, pela fórmula atual, a reparação de um recebimento indevido de denúncia demanda a atuação de jurisdição de grau superior. Entretanto, estando assegurada defesa técnica ao réu, não se vê maior dificuldade em que o defensor venha a impetrar habeas corpus nos casos onde o mesmo efetivamente se mostrar necessário, mormente nos tempos atuais, quando a adoção de rotinas de protocolo unificado e de peticionamento eletrônico favorece aos advogados sediados nas mais longínquas regiões geográficas.

Parece, enfim, ser mais racional e, por isso, recomendável que o recebimento da denúncia venha a demandar um pronunciamento judicial mais detido e fundamentado apenas em alguns casos submetidos à jurisdição de grau superior, a que venha a demandar pronunciamento judicial detido e fundamentado em todos os casos trazidos à jurisdição de primeiro grau.

E, enfim, se alguma reformulação quanto às previsões legais concernentes ao recebimento da denúncia hoje vigentes merecer ser feita, parece ser ela aquela que opte por contemplar a possibilidade de que o próprio juízo de primeiro grau, no mesmo rito procedimental atualmente adotado pelo CPP, em vindo depois das alegações preliminares a reconhecer que foi equivocado o recebimento da denúncia havido ao início da ação, culmine por remediá-lo com decisão imediata que aponte o equívoco ocorrido e ponha fim à ação penal em julgamento antecipado, com possibilidade de recurso de apelação pelas partes inconformadas com tal decisão.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2004. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS