Legitimidade da Inspeção do Trabalho para Reconhecer Terceirização Ilícita

Autor: Caio Franco Santos
(Especialista em Direito do Trabalho.
Auditor-Fiscal do Trabalho em Curitiba-PR.)

| Artigo publicado em 24.08.2004 |

Ementa: Existem empresas que, ao contratar a mão-de-obra necessária para levar a efeito o empreendimento, dissimulam a relação de emprego para evitar os ônus trabalhistas, parcial ou totalmente. A dissimulação ocorre mediante a formalização de contrato diverso, cujo objeto é a prestação de serviço dos trabalhadores. Há quem entenda que a Inspeção do Trabalho não pode, em tais casos, reconhecer a existência de relação de emprego e autuar o infrator por falta de registro de empregado. Este artigo analisa a questão.

1. Introdução

Os Auditores-Fiscais do Trabalho, depois de se identificarem na portaria, entram rapidamente numa grande empresa de processamento de dados e percorrem suas dependências.

Na maior das salas, cerca de duzentos digitadores, sentados lado a lado, teclam agilmente em frente aos terminais de computador. Os Auditores-Fiscais do Trabalho interrogam a todos, anotam-lhes o nome e a data de admissão, ouvindo, quanto ao mais, quase sempre a mesma história: os trabalhadores foram admitidos há alguns meses, com salário de R$ 280,00 mensais; eles não estão registrados como empregados da empresa, pois, tendo lá comparecido procurando emprego, submeteram-se a teste e depois foram encaminhados a uma cooperativa de trabalho, onde assinaram documentos para tornarem-se cooperados e foram informados de que, como sócios da cooperativa, teriam direito somente à remuneração mensal; até então, eles não sabiam como funcionava uma cooperativa de trabalho, e mesmo hoje praticamente apenas sabem que, sendo cooperados (em vez de empregados), não têm direitos trabalhistas como anotação de CTPS, FGTS, férias, 13º salário, aviso prévio, etc.; alguns até haviam sido empregados da empresa, outros, prestado serviço ali como trabalhadores temporários – para uns e outros, a rotina da atividade continua a mesma (assim, nada mudou quanto ao relacionamento com os prepostos, quanto ao controle de horário e de produtividade e quanto ao temor reverencial ao patrão, típico de quem receia perder o “emprego” ou a fonte de renda); o contato dos trabalhadores com o representante da cooperativa ocorria apenas uma vez ao mês, por ocasião do pagamento mensal.

A cooperativa, desvirtuando-se, atua como mera intermediadora na contratação de mão-de-obra, e é flagrante a existência de relação de emprego entre os trabalhadores e a empresa. Inexistem os requisitos que legitimam as cooperativas, como o princípio da adesão voluntária, a affectio societatis, o princípio da dupla qualidade, o princípio da retribuição pessoal diferenciada e o caráter simbiótico da associação. A contratação dos trabalhadores como cooperados tem como objetivo mascarar a relação de emprego e evitar encargos trabalhistas e tributários.

Em situações como a descrita acima, os Auditores-Fiscais do Trabalho sempre lavram auto de infração contra a empresa, por manter trabalhador sem o respectivo registro como empregado (art. 41, caput, da CLT), iniciando o processo administrativo que pode culminar com a imposição de sanção administrativa (multa).

Outras autuações também podem ocorrer, pelo descumprimento de obrigações trabalhistas diversas (recolhimento do FGTS, pagamento de horas extras, etc.).
Embora se trate de atividade corriqueira do Auditor-Fiscal do Trabalho, há quem entenda que a Inspeção do Trabalho não tem competência para lavrar auto de infração em tal caso. Argumentam, essencialmente, que: a) os contratos de terceirização são de natureza civil e têm como partes empresas privadas, ao passo que a Inspeção do Trabalho somente pode fiscalizar o cumprimento de normas trabalhistas, que dizem respeito à relação entre empregador e trabalhador; b) somente a Justiça do Trabalho tem competência para declarar a existência de relação de emprego, conforme art. 114 da Constituição Federal.

Neste artigo, analisamos a competência da Inspeção do Trabalho para lavrar autos de infração capitulados no art. 41 da CLT nos casos em que a empresa alega a inexistência de vínculo empregatício, por estar a prestação de serviço dos trabalhadores prevista em contrato diverso do de emprego.

2. Artigo 41, caput, da CLT

Dentre as normas de proteção ao trabalho, destacam-se o art. 29, caput, da CLT, que obriga o empregador a anotar a CTPS dos empregados, e o art. 41, caput, da CLT, que determina o registro deles em livro, fichas ou sistema eletrônico apropriado, nos seguintes termos:

Art. 41 - Em todas as atividades será obrigatório para o empregador o registro dos respectivos trabalhadores, podendo ser adotados livros, fichas ou sistema eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho.
Parágrafo único - Além da qualificação civil ou profissional de cada trabalhador, deverão ser anotados todos os dados relativos à sua admissão no emprego, duração e efetividade do trabalho, a férias, acidentes e demais circunstâncias que interessem à proteção do trabalhador.

A obrigatoriedade do registro decorre da existência de relação de emprego entre empresa e trabalhador. É pelo registro que a empresa reconhece formalmente sua condição de empregador e assume deveres e encargos trabalhistas como FGTS, indenização em caso de despedida sem justa causa, estabilidades provisórias, pagamento de horas extras, concessão de férias, observância de regras sobre saúde e segurança do trabalho, etc.

Quando a empresa, para dissimular a relação de emprego e descumprir o art. 41 da CLT, engendra outra espécie de contrato, os demais direitos trabalhistas costumam ser também desrespeitados. De fato, se a empresa, com o mencionado propósito fraudulento, utiliza-se de contrato de estágio, contrato de sociedade ou contrato de prestação de serviços firmado com suposta cooperativa de trabalho ou com trabalhador autônomo, os direitos trabalhistas são sonegados em sua quase totalidade; se ela lança mão de contrato de trabalho temporário ou contrato firmado com empresa prestadora de serviço, parte dos direitos trabalhistas são desrespeitados.

Enfim, o art. 41 da CLT obriga o empregador a registrar seus empregados e assim reconhecer a existência de relação de emprego e os ônus dela decorrentes. Trata-se, pois, de norma de proteção ao trabalho das mais importantes.
Inúmeros dispositivos legais e regulamentares valorizam expressamente a fiscalização do registro de empregados, como este, da Lei 7.855/1989:

Art. 7º. Fica instituído o Programa de Desenvolvimento do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho, destinado a promover e desenvolver as atividades de inspeção das normas de proteção, segurança e medicina do trabalho.
§ 1º O Ministro de Estado do Trabalho estabelecerá os princípios norteadores do Programa, que terá como objetivo principal assegurar o reconhecimento do vínculo empregatício do trabalhador e os direitos dele decorrentes e, para maior eficiência em sua operacionalização, fará observar o critério de rodízios dos agentes de inspeção do Trabalho na forma prevista no Regulamento da Inspeção do Trabalho.

2.1 Impossibilidade de transferência da obrigação

O art. 41 da CLT impõe, ao empregador, uma obrigação intransferível. Somente ele deve assumir a condição de empregador e registrar os empregados. O empregador não pode contratar outrem para fazer o registro e alegar que a obrigação contida no art. 41 da CLT está cumprida. Se coisa semelhante fosse possível, o motorista, portando a habilitação do carona, alegaria ao policial de trânsito que pode dirigir, pois o carona teria sido contratado justamente para submeter-se aos testes necessários à habilitação e, depois, ceder-lhe a carteira. Não importa que outrem tenha registrado os trabalhadores citados no auto de infração. A obrigação (intransferível) do registro é do empregador; se não é este que a cumpre, ele deve ser punido.

3. Competência da Inspeção do Trabalho

A Inspeção do Trabalho deve ser organizada e executada pela União (CF/88, art. 21, XXIV). Sua competência, em termos gerais, está prevista no art. 626 da CLT, que dispõe:
Art. 626. Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.

As autoridades de execução da Inspeção do Trabalho são os Auditores-Fiscais do Trabalho. O art. 11 da Lei 10.593/2002 atribui-lhes competência para assegurar o cumprimento das normas trabalhistas, analisar documentos e verificar fraudes e irregularidades:

Art. 11. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho têm por atribuições assegurar, em todo o território nacional:
I - o cumprimento de disposições legais e regulamentares, inclusive as relacionadas à segurança e à medicina do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de emprego;
[...]
VI - a lavratura de auto de apreensão e guarda de documentos, materiais, livros e assemelhados, para verificação da existência de fraude e irregularidades, bem como o exame da contabilidade das empresas, não se lhes aplicando o disposto nos arts. 17 e 18 do Código Comercial.

A competência dos Auditores-Fiscais do Trabalho para fiscalizar, em especial, o cumprimento do art. 41 da CLT fica mais evidente quando se consideram, além do art. 626 da CLT, já transcrito, os arts. 47 e 48 da CLT, que prevêem a sanção administrativa (multa) pela falta de registro de empregado:

Art. 47. A empresa que mantiver empregado não registrado nos termos do artigo 41 e seu parágrafo único, incorrerá na multa de valor igual a [...], por empregado não registrado, acrescido de igual valor em cada reincidência. [...]
Art. 48. As multas previstas nesta Seção serão aplicadas pelas Delegacias Regionais do Trabalho 1. (grifo não original)

Em quase todos os casos de descumprimento do art. 41 da CLT, o empregador tem algum pretexto, algum subterfúgio, algum contrato escrito ou mesmo verbal para alegar a inexistência de relação de emprego, por mais evidente que ela seja.

Só é possível a Inspeção do Trabalho cumprir sua missão de verificar o fiel cumprimento do art. 41 da CLT, se ela puder analisar a relação entre a empresa e os trabalhadores que lhe prestam serviço. Existindo a relação de emprego, o empregador está obrigado a registrar os empregados; se o registro não é realizado, o empregador descumpre o art. 41 da CLT e, por isso, deve ser punido.

Do mesmo modo, se a relação de emprego, embora existente, está dissimulada por contrato diverso (de trabalho temporário, de estágio, de sociedade, de terceirização firmado com outra empresa prestadora de serviço, com cooperativa de trabalho ou com trabalhador autônomo, etc.), o empregador, mediante fraude, infringe o art. 41 da CLT e deve, portanto, ser punido.

A Inspeção do Trabalho tem competência para concluir pela existência de infração ao art. 41 da CLT e punir o infrator administrativamente, qualquer que seja a dissimulação por ele engendrada. Acreditamos que os argumentos contrários a essa tese caem por terra diante deste simples silogismo:
– à Inspeção do Trabalho compete fiscalizar o fiel cumprimento do art. 41 da CLT, uma norma de proteção ao trabalho;
– o empregador que dissimula o contrato de emprego mediante a formalização de outra espécie de contrato infringe o art. 41 da CLT;
– logo, a Inspeção do Trabalho deve aplicar a sanção administrativa para punir o infrator, depois de, constatada a fraude, reconhecer-lhe a condição de empregador.

Não obstante, convém analisar outros aspectos da questão, para dissipar eventuais dúvidas e rebater argumentos contrários.

3.1 Nulidade absoluta dos contratos dissimuladores

A possibilidade de os Auditores-Fiscais do Trabalho reconhecerem a nulidade de contratos dissimuladores tem vários fundamentos: a própria competência de fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho (conforme silogismo exposto no item 2); o poder de polícia administrativa (trataremos do assunto no item 3.4); o princípio da primazia da realidade, próprio do Direito do Trabalho; o instituto das nulidades dos atos jurídicos, com atenção especial para o art. 9º da CLT. Tratamos dos dois últimos neste item e no próximo.

Segundo o princípio da primazia da realidade, os fatos e condições reais de trabalho são mais importantes do que os documentos, na definição das situações jurídicas.

De nada vale o contrato dissimulador, se no local de trabalho os Auditores-Fiscais do Trabalho constatam os elementos da relação de emprego e a inexistência dos requisitos que legitimariam o contrato dissimulador. Nesse sentido, veja-se a seguinte ementa de acórdão:

“Contrato de trabalho. É irrelevante a rotulagem dada ao contrato, se a realidade fática revela ser de emprego a relação jurídica existente entre as partes. A primazia da realidade, que constitui um dos princípios fundamentais do Direito do Trabalho, consiste exatamente em não permitir que disposições contratuais escritas se sobreponham à realidade.” (TRT 12ª Região – Proc. RO 19/86. julg. 15.09.1986. Rel.: Juiz Humberto Grillo.)

Quanto ao artigo 9º da CLT, a norma estabelece:

Art. 9º. Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.

Portanto, os contratos formalizados com o intuito de dissimular a relação de emprego (e com isso descumprir a legislação trabalhista) são absolutamente nulos. Conforme o art. 167, I, do Código Civil, “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Contratos nulos não geram qualquer efeito que devesse ser observado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho ou que pudesse afastar sua atuação.

Outrossim, a nulidade absoluta (ou de pleno direito) não precisa ser declarada pelo Poder Judiciário como condição para a ação das autoridades administrativas. O contrato nulo de pleno direito já nasce morto, não podendo a Inspeção do Trabalho atribuir-lhe validade ou admitir que gere efeitos. Sobre o assunto, a doutrina esclarece:

“No regime jurídico da nulidade prosperam as seguintes regras, que lhe conferem textura própria: a da operabilidade ipso iure; a da invocabilidade por qualquer interessado; a da insanabilidade ou da perpetuidade; a da impossibilidade de confirmação, ou de consolidação do negócio. De fato, não há necessidade de declaração para a nulidade produzir seus efeitos: o negócio inválido nenhuma conseqüência jurídica realiza (ressalvada a teoria do casamento). Não há necessidade de propositura de ação para que se pronuncie a nulidade, mas, como é de interesse público, quando necessário, qualquer pessoa legitimada pode invocá-la, bem como o juiz, ao dela tomar conhecimento, está habilitado a decretá-la ex officio...” (BITTAR, Carlos Alberto. Curso de direito civil – volume 1. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1994. p. 168.)

Enfim, se o contrato dissimulador é nulo, por ter a finalidade de fraudar direitos trabalhistas, a Inspeção do Trabalho pode (e deve) deixar de reconhecer-lhe os efeitos pretendidos pelo fraudador – vale dizer, pode atuar invocando sua nulidade.

3.2 Natureza civil dos contratos dissimuladores

Às vezes, argumenta-se que os contratos de terceirização, de trabalho temporário, etc. são estritamente civis (e não trabalhistas), vinculando duas empresas (e não empregador e empregado), razão pela qual não poderiam ser analisados pela Inspeção do Trabalho, que fiscaliza o cumprimento de normas trabalhistas, atinentes à relação entre empregador e empregado. O argumento não procede. O que importa nesses contratos para a Inspeção do Trabalho é o caráter dissimulador da relação de emprego.

Depreende-se do art. 9º da CLT, acima transcrito, que não é importante o ramo do direito cujas normas regem a prática dos atos fraudadores; o que importa é o reflexo deles na área trabalhista, de modo que tais atos serão sempre nulos de pleno direito, se tiverem por objetivo desvirtuar ou fraudar normas trabalhistas ou impedir a sua incidência. O contrato dissimulador é civil, mas os efeitos pretendidos pelos fraudadores são trabalhistas; logo, o contrato deve ser analisado pelos aplicadores da lei trabalhista.

Se o argumento fosse procedente, a própria Justiça do Trabalho não poderia pronunciar-se sobre o pedido de declaração de relação empregatícia formulado pelo trabalhador, sempre que tal relação tivesse sido dissimulada por um contrato formalizado entre empresas. A Justiça do Trabalho teria de remeter os autos para a Justiça Comum, a fim de que a questão prejudicial da validade do contrato dissimulador fosse apreciada.

Em verdade, o que a Inspeção do Trabalho faz não é “declarar” a nulidade do contrato civil dissimulador, mas, sim, reconhecer a existência de relação de emprego, depois de ter concluído pela impossibilidade de o contrato civil afastá-la. O único efeito que a Inspeção do Trabalho nega aos contratos dissimuladores é o de afastar a relação de emprego; não lhe interessam outros efeitos, porventura válidos, que decorram desses contratos e que obriguem as empresas contraentes.

Coisa semelhante ocorre na Justiça do Trabalho. Os contratos potencialmente dissimuladores não são analisados com o propósito de solucionar lide entre as empresas contraentes. Eles são analisados apenas quanto a aspectos pertinentes, como questão prejudicial, para verificar se são aptos a afastar o vínculo empregatício.

3.3 Presunção de legitimidade do ato administrativo

Argumenta-se equivocadamente que, uma vez formalizado o contrato supostamente dissimulador, sua nulidade somente poderia ser reconhecida judicialmente. Já analisamos a questão à luz das regras que tratam da nulidade dos atos jurídicos. Convém, agora, ponderar que o argumento se fundamenta numa inconcebível inversão de valores.

Dizer que os contratos dissimuladores podem ter sua nulidade reconhecida apenas judicialmente corresponde a atribuir a esses contratos uma presunção de legitimidade que eles não têm. Em verdade, os atos praticados pelas autoridades públicas é que gozam da presunção de legitimidade.

“A presunção de legitimidade diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997. p. 164.)

A lei não confere presunção de legitimidade aos contratos privados. Constatando o Auditor-Fiscal do Trabalho a existência da relação de emprego e a invalidade do contrato dissimulador (quanto ao efeito de afastar a relação de emprego), a autoridade pública pode (e deve) lavrar o auto de infração para que seja possível punir o infrator. Não há necessidade de esperar a manifestação do Poder Judiciário sobre a validade do contrato dissimulador.

O ato administrativo de imposição de multa ao infrator é que goza de presunção de legitimidade. O empregador, pessoa física ou jurídica de direito privado, é que deverá levar a questão ao Poder Judiciário, caso considere injusta a sanção imposta.

3.4 O exercício do poder de polícia administrativa e o atributo da auto-executoriedade

A Inspeção do Trabalho exerce poder de polícia administrativa.

“Em essência, poder de polícia é a atividade da Administração que impõe limites ao exercício de direitos e liberdade. É uma das atividades em que mais se expressa sua face autoridade, sua face imperativa. [...]
A noção de poder de polícia permite expressar a realidade de um poder da Administração de limitar, de modo direto, com base legal, liberdades fundamentais, em prol do bem comum. [...]
[...] no Brasil, poder de polícia é, sobretudo, atividade administrativa, porque abrange também a apreciação de casos concretos, a fiscalização e imposição de sanções. [...] (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 387-391.)

O poder de polícia administrativa exercido pela Inspeção do Trabalho é a atividade da administração pública que limita e disciplina direito, interesse ou liberdade de empregadores e tomadores de serviço, em razão de interesse público concernente à ordem jurídica e ao respeito a direitos trabalhistas indisponíveis individuais ou coletivos. Essa limitação de direito, interesse ou liberdade pode ocorrer de forma direta, como no embargo de obra e na interdição de estabelecimento, serviço ou máquina (CLT, art. 161), ou de forma indireta, mediante a aplicação de multas administrativas aos infratores, observado o procedimento administrativo.

Quando o Auditor-Fiscal do Trabalho lavra auto de infração, iniciando o processo administrativo que pode culminar com a imposição de multa pela Administração, pretende-se, de modo indireto, limitar uma atividade do administrado considerada lesiva ao interesse e à ordem pública. Espera-se sobretudo que, com a sanção pecuniária, o administrado se corrija, deixando de praticar o ato ilícito.

A Inspeção do Trabalho tem a missão de fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e impor sanção (multa) ao infrator. Não se lhe pode negar, então, a capacidade de proceder às análises indispensáveis para realizar essa missão. A Inspeção do Trabalho deve, por si, averiguar a conformidade do fato concreto à norma legal para constatar situações de infração à lei.

De fato, é atributo do poder de polícia administrativa a auto-executoriedade, segundo a qual “o ato será executado diretamente pela Administração, não carecendo de provimento judicial para tornar-se apto” (ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2001. p. 64). É a própria Administração (Inspeção do Trabalho) que reconhece a situação de infração à lei e impõe multa ao infrator, sem necessidade de provimento judicial.

A administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro faz distinção entre exigibilidade e executoriedade, desdobramentos do princípio da auto-executoriedade:

“Costuma-se apontar como atributos do poder de polícia a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade, além do fato de corresponder a uma atividade negativa.

A auto-executoriedade (que os franceses chamam de executoriedade apenas) é a possibilidade que tem a Administração de, com os próprios meios, pôr em execução as suas decisões, sem precisar recorrer previamente ao Poder Judiciário.

Alguns autores desdobram o princípio em dois: a exigibilidade (privilège du préalable) e a executoriedade (privilège d’action d’office). O privilège du préalable [exigibilidade] resulta da possibilidade que tem a Administração de tomar decisões executórias, ou seja, decisões que dispensam a administração de dirigir-se preliminarmente ao juiz para impor a obrigação ao administrado. A decisão administrativa impõe-se ao particular ainda contra a sua concordância; se este quiser se opor, terá que ir a juízo.

O privilège d’action d’office consiste na faculdade que tem a Administração, quando já tomou decisão executória, de realizar diretamente a execução forçada, usando, se for o caso, da força pública para obrigar o administrado a cumprir a decisão.

Pelo atributo da exigibilidade, a administração se vale de meios indiretos de coação. Cite-se, como exemplo, a multa; ou a impossibilidade de licenciamento do veículo enquanto não pagas as multas de trânsito.

Pelo atributo da auto-executoriedade, a Administração compele materialmente o administrado, usando meios diretos de coação. Por exemplo, ela dissolve uma reunião, apreende mercadorias, interdita uma fábrica.

A auto-executoriedade não existe em todas as medidas de polícia. Para que a Administração possa se utilizar dessa faculdade, é necessário que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público. [...]

Em resumo, pode-se dizer que a exigibilidade está presente em todas as medidas de polícia, mas não a executoriedade (privilège d’action d’office). (Direito administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997. p. 97-98)

O art. 628 da CLT é claro em dizer que é o Agente de Inspeção (antiga denominação do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho) que, após verificar o fato concreto, conclui pela existência de infração à lei. A ele cabe a atividade intelectual de analisar documentos, indícios, circunstâncias e informações, de interpretar a lei e finalmente de confrontar o fato concreto com a lei, para concluir, ou não, pela existência de violação a norma de proteção ao trabalho:

Art. 628 - Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação em que o agente da inspeção concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.

O atributo da auto-executoriedade (ou da exigibilidade) coaduna-se com outros princípios 2 que regem a atividade administrativa: o princípio da preponderância do interesse público sobre o interesse particular e o princípio da indisponibilidade do interesse público.

Há interesse público na observância das normas de proteção ao trabalho, que deve prevalecer sobre o interesse privado do empregador na manutenção de seus contratos civis com terceiras empresas (os contratos dissimuladores). Se o Auditor-Fiscal do Trabalho, ao analisar fatos, circunstâncias e documentos, constata que o empregador pratica atos com o propósito de deixar de reconhecer seus empregados (infração ao art. 41 da CLT) e fraudar direitos trabalhistas, a autoridade deve logo punir o infrator, em prol do interesse público. A supremacia do interesse público impele a Inspeção do Trabalho à repressão das fraudes.

Com relação à indisponibilidade do interesse público, adverte a doutrina que “segundo tal princípio é vedado à autoridade administrativa deixar de tomar providências ou retardar providências que são relevantes ao atendimento do interesse público, em virtude de qualquer outro motivo” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 153).

A Administração (Inspeção do Trabalho) não age por interesse próprio. Age por interesse público: sua missão é assegurar o cumprimento da lei e a ordem pública nas relações de trabalho. A fraude perpetrada contra a relação de emprego geralmente envolve grande número de trabalhadores. Os prejuízos extrapolam a questão trabalhista, quando importam em sonegação de contribuições sociais. Por essas razões, é inconcebível que a Administração, para impor a sanção administrativa (multa), não possa agir rapidamente, com o fim de preservar a ordem pública e assegurar a observância de direitos trabalhistas indisponíveis.

A propósito, se a multa é administrativa, e não judicial, é disparatado o entendimento segundo o qual sua imposição depende de decisão judicial.
A multa não é apenas a retribuição (castigo) do mal praticado – ela também tem as finalidades de coagir o infrator a corrigir-se e de intimidar o infrator virtual. Se a Inspeção do Trabalho não reprime rapidamente a fraude, perdem os trabalhadores (hipossuficientes e desconhecedores de seus direitos), perde a ordem pública, ganham os fraudadores. 3

3.5 Jurisprudência

Embora haja decisões judiciais contrárias à nossa tese, são majoritárias as que declaram a legitimidade da Inspeção do Trabalho para reconhecer o vínculo empregatício dissimulado por contrato diverso. Exemplificam-se as últimas com as seguintes ementas de acórdão:

ADMINISTRATIVO - AUTUAÇÃO - RELAÇÃO EMPREGATÍCIA. Dentre as atribuições da Delegacia Regional do Trabalho, está a de fiscalizar e conseqüentemente aplicar sanções às possíveis infrações da legislação trabalhista e, sobretudo, fraudes à relação empregatícia. Não há, in casu, direito líquido e certo a ser protegido e, ademais, a matéria necessita de dilação probatória. Recurso improvido para manter a sentença. (TRF 2ª Região, 1ª Turma, Rel.: Juiz Chalu Barbosa. AMS nº 9002081197. Dec. 08.11.1995 [unânime]. DJ 18.01.1996, pág. 1.510.)
ADMINISTRATIVO - ENCARGOS TRABALHISTAS: EMPREGADOS TRANSFORMADOS EM AUTÔNOMOS. 1. Transformação de empregados demitidos em trabalhadores autônomos - fenômeno da terceirização. 2. Nítido contrato simulado, para fugir ao pagamento dos encargos sociais e fiscais. 3. Autuação pertinente pelo órgão incumbido do exercício do poder de polícia: Delegacia do trabalho. 4. Recurso improvido. (TRF 1ª Região, 4ª Turma, Rel.: Juíza Eliana Calmon. AMS nº 01341692, proc. 199601341692. Dec. 01.09.1998 [unânime]. DJ 15.10.1998, pág. 136.)
ADMINISTRATIVO. DRT. FISCALIZAÇÃO. COMPETÊNCIA. COOPERATIVA DE SERVIÇO. LEGITIMIDADE. 1. A cooperativa de trabalho contratada não tem legitimidade ativa ad causam para pleitear a anulação de autos de infração lavrados contra as empresas contratantes. 2. À Delegacia Regional do Trabalho cabe a fiscalização da relação de emprego e dos direitos dela decorrentes, de forma que ao lavrar auto de infração contra empresa que contrata cooperativa de serviço, a DRT não está fiscalizando a cooperativa, mas a empresa visitada. Assim sendo, não se pode afastar, de pronto, a possibilidade de ocorrência de irregularidade na contratação das cooperativas de serviços. Podem ocorrer casos onde tal contratação está apenas a mascarar uma relação que, na verdade, é de empregador/empregado e não de contratante/contratada. 3. Recurso improvido. (TRF 4ª Região, Rel.: Juiz Paulo Afonso Brum Vaz. AMS nº 1999.04.01.016484-0/RS. Dec. 29.06.2000 [unânime]. DJ2 nº 192-E, 04.10.2000, pág. 166/167.)

4. Competência da Justiça do Trabalho

O principal argumento a ser rebatido é o de que a competência para reconhecer a existência ou inexistência da relação de emprego é atribuída pela Constituição Federal à Justiça do Trabalho, razão pela qual a Inspeção do Trabalho, ao lavrar autos de infração capitulados no art. 41, estaria usurpando competência.

É compreensível a dificuldade de perceber a diferença entre a competência da Justiça do Trabalho e a da Inspeção do Trabalho. Essa questão está contida em outra, que outrora atormentava renomados juristas: a distinção entre jurisdição (atividade do Poder Judiciário) e administração (atividade típica do Poder Executivo). José Afonso da Silva refere o problema:

“Não é difícil distinguir jurisdição e legislação. Esta edita normas de caráter geral e abstrato e a jurisdição se destina a aplicá-las na solução das lides. [...]
Mais difícil é estremar a jurisdição da administração. Vários critérios têm sido propostos para estabelecer a distinção. Os processualistas preocupam-se com o assunto. Chiovenda, p. ex., concebe a jurisdição como uma atividade secundária no sentido de que ela substitui a vontade ou a inteligência de alguém, cuja atividade seria primária, enquanto o administrador exerce atividade primária no sentido de que a desenvolve no seu próprio interesse. O juiz julga a respeito de outrem e em razão da vontade da lei concernente a outrem. A administração decide a respeito da própria atividade. Outros, como Cristofolini e Luiz Eulálio de Bueno Vidigal, chegam à conclusão de que não há, realmente, distinção entre jurisdição e administração. Existem, na verdade, apenas duas funções do Estado, que são a legislação e a aplicação, e esta se desdobra em administração e jurisdição. [...]
Essas idéias são úteis para o constitucionalista, que, no entanto, se satisfaz com o critério orgânico, considerando como de jurisdição aquilo que o legislador constituinte incluiu na competência dos órgãos judiciários e como administração o que conferiu aos órgãos do Executivo, que, em verdade, não se limita à execução da lei, consoante já vimos. Segundo esse critério, ato jurisdicional é o que emana dos órgãos jurisdicionais no exercício de sua competência constitucional respeitante à solução de conflitos de interesses.” (Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo : Malheiros, 1993. p. 481-482.)

Devemos analisar, pois, o caput do art. 114 da CF/88, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.

O dispositivo constitucional estabelece uma competência judicial, e não administrativa. A norma fala em conciliar e julgar dissídios, isto é, ações judiciais.

Quando a Inspeção do Trabalho fiscaliza o cumprimento das normas de proteção ao trabalho, não concilia nem julga dissídios. Os Auditores-Fiscais do Trabalho sequer procuram saber se existe lide ou litígio entre empregador e trabalhador, isto é, se existe conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, conforme a clássica lição de Carnelutti (apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 19. ed. São Paulo : Forense, 1997. p. 35). Eles procuram averiguar, apenas, se há violação de norma de proteção ao trabalho.

Ainda que o Auditor-Fiscal do Trabalho interprete a lei e a confronte com o caso concreto, para lavrar autos de infração ? atividade intelectiva que necessariamente deve ocorrer em qualquer procedimento fiscal ?, suas conclusões não são julgamentos, no sentido técnico do termo, pois as autuações não produzem coisa julgada nem fazem lei entre empregados e empregadores. Atos administrativos como o auto de infração e a decisão processual de imposição de multa ficam sempre sujeitos a controle jurisdicional.

5. Distinção entre a competência da Justiça do Trabalho e a da Inspeção do Trabalho

O fato de a Justiça do Trabalho ter competência exclusiva para julgar e conciliar dissídios entre empregados e empregadores não afasta a atuação da Inspeção do Trabalho. Esta possui natureza administrativa, com funções preventiva e punitiva; aquela é órgão judicial, com função eminentemente reparadora. As duas atividades (a jurisdicional e a administrativa) coexistem, pois são de natureza distinta e possuem objetivos imediatos diversos.

Se fosse válido o argumento de que a competência judicial repeliria a atividade administrativa, a Inspeção do Trabalho nada teria para investigar, pois quase tudo que ela fiscaliza pode ser discutido na Justiça do Trabalho num dissídio entre empregador e trabalhador: registro de empregado, pagamento de salários e de verbas rescisórias, concessão e pagamento de férias, pagamento de horas extras, recolhimento de FGTS, todos esses direitos e muitos outros podem ser pleiteados pelo trabalhador e ter sua inviolabilidade fiscalizada pela Inspeção do Trabalho.

6. Conclusão

Compete à Inspeção do Trabalho fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho, dentre as quais a que determina ao empregador registrar seus empregados: art. 41 da CLT. A empresa que dissimula a relação de emprego mediante a formalização de outra espécie de contrato infringe o art. 41 da CLT, devendo ser-lhe imposta a multa administrativa prevista no art. 47 da CLT.
O contrato potencialmente dissimulador da relação de emprego não goza de presunção de legitimidade perante a Administração. O Auditor-Fiscal do Trabalho deve analisá-lo e considerar outros fatos, circunstâncias e informações relevantes; caso ele conclua pela existência dos elementos da relação de emprego e inexistência dos requisitos que legitimariam aquele contrato, o infrator deve ser logo autuado, iniciando-se o processo administrativo que pode culminar com a imposição da multa.

A possibilidade de os Auditores-Fiscais do Trabalho reconhecerem a nulidade de contratos dissimuladores tem vários fundamentos: a própria competência, pois não seria possível fiscalizar o cumprimento da norma e punir o infrator, se fosse impossível debelar a fraude para constatar a existência de infração; o poder de polícia administrativa, que tem como um de seus atributos a auto-executoriedade, segundo a qual a decisão administrativa pode ser imposta ao administrado sem necessidade de provimento judicial; o princípio de Direito do Trabalho denominado primazia da realidade, segundo o qual as reais condições de trabalho são mais importantes do que os documentos na definição das situações jurídicas; e o instituto das nulidades dos atos jurídicos, na medida em que os atos praticados com o fim de desvirtuar ou impedir a aplicação de norma de proteção ao trabalho, por serem nulos de pleno direito (art. 9º da CLT), podem ter sua nulidade reconhecida independentemente de provimento judicial.

Tanto o Juiz do Trabalho quanto o Auditor-Fiscal do Trabalho, para exercerem suas respectivas competências, devem analisar a natureza da relação entre a empresa e o trabalhador que lhe presta serviço. Trata-se de interpretar a lei e aplicá-la ao caso concreto, atividade necessária para a prática de todo ato administrativo e de toda decisão judicial. O Juiz do Trabalho empreende a análise para solucionar litígios, isto é, para julgar dissídios individuais ou coletivos, competência que lhe é atribuída pela Constituição Federal. O Auditor-Fiscal do Trabalho empreende a análise para fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e, se for o caso, autuar o infrator, competência que lhe é atribuída pela lei.

Referências bibliográficas

BITTAR, Carlos Alberto. Curso de direito civil – volume 1. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1994.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001.
ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2001.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo : Malheiros, 1993.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 19. ed. São Paulo : Forense, 1997.

NOTAS DE RODAPÉ

Delegacias Regionais do Trabalho são órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego que atuam nos Estados; há uma Delegacia em cada estado. Os Auditores-Fiscais do Trabalho ficam lotados em Delegacias ou em órgãos a elas subordinados: Subdeledegacias do Trabalho e Agências de Atendimento.
Alguns doutrinadores referem-se à auto-executoriedade como princípio da Administração: “Segundo esse princípio, os atos e medidas da Administração são colocados em prática, são aplicados pela própria administração, mediante coação, conforme o caso, sem necessidade de consentimento de qualquer outro poder.” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 155.)
De fato, se a imposição de multa dependesse de provimento judicial, os fraudadores, na maioria dos casos, beneficiar-se-iam das vantagens da fraude durante longo tempo e ao final ficariam impunes.
A Inspeção do Trabalho não tem personalidade jurídica própria nem capacidade postulatória para pleitear na Justiça do Trabalho a declaração de vínculo empregatício. Para obter o provimento judicial, ela deveria, então, solicitar à Procuradoria da União (órgão da Advocacia-Geral da União) que promovesse a ação, com o fim exclusivo de possibilitar a imposição de multa (a hipótese parece-nos burlesca). O ajuizamento da ação já demoraria, e a declaração judicial com trânsito em julgado ocorreria depois de longos anos.
Poder-se-ia, também, representar ao Ministério Público do Trabalho, que pode, em ação civil pública, pedir que o empregador se abstenha de utilizar-se do contrato dissimulador e passe a cumprir a legislação trabalhista. Somente depois de a Justiça do Trabalho reconhecer o fundamento jurídico do pedido, a Inspeção do Trabalho aplicaria a multa. Nessa hipótese, além da demora, há outro problema: o inquérito civil no Ministério Público do Trabalho costuma preceder a ação civil pública, sendo comum o empregador, durante o inquérito, firmar termo de compromisso para evitar o ajuizamento da ação, caso em que não haveria provimento judicial, e o empregador ficaria impune, relativamente ao período em que se beneficiou da fraude. (Na realidade, a representação ao Ministério Público do Trabalho sempre ocorre nos casos em que o Auditor-Fiscal do Trabalho, depois de lavrar o auto de infração, percebe que o infrator pretende recalcitrar. A Inspeção do Trabalho tem competência para impor multa ao infrator, mas não para obrigar o empregador, de forma direta, a registrar os trabalhadores como empregados.)
Finalmente, a Inspeção do Trabalho poderia aguardar que os trabalhadores ajuizassem reclamatória trabalhista, para aplicar a multa depois que o Juiz do Trabalho comunicasse à autoridade administrativa o trânsito em julgado da sentença, conforme art. 39, § 2º, da CLT. Trata-se de uma das duas hipóteses em que a decisão judicial, por seus fundamentos, pode constituir o fundamento de fato para o Auditor-Fiscal do Trabalho lavrar o auto de infração. Porém, a Inspeção do Trabalho não tem legitimidade para propor reclamatória em nome dos empregados, que raramente a propõem, por várias razões: desconhecimento de seus direitos (eles são levados a acreditar que o contrato dissimulador é válido), receio de sofrer represálias (são famosas as “listas negras” – listas dos trabalhadores que ajuizaram reclamatória trabalhista, as quais circulam entre empresários com o propósito de negar emprego a quantos delas constem), etc.
Em qualquer dessas hipóteses, a Inspeção do Trabalho teria sérias dificuldades para combater a fraude e cumprir sua missão institucional de fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e impor multa ao infrator. Este se beneficiaria sempre, com a demora ou com a impunidade, em detrimento dos direitos de considerável número de trabalhadores.

NOTA DE RODAPÉ

1. Delegacias Regionais do Trabalho são órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego que atuam nos Estados; há uma Delegacia em cada estado. Os Auditores-Fiscais do Trabalho ficam lotados em Delegacias ou em órgãos a elas subordinados: Subdeledegacias do Trabalho e Agências de Atendimento.
2. Alguns doutrinadores referem-se à auto-executoriedade como princípio da Administração: “Segundo esse princípio, os atos e medidas da Administração são colocados em prática, são aplicados pela própria administração, mediante coação, conforme o caso, sem necessidade de consentimento de qualquer outro poder.” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 155.)
3. De fato, se a imposição de multa dependesse de provimento judicial, os fraudadores, na maioria dos casos, beneficiar-se-iam das vantagens da fraude durante longo tempo e ao final ficariam impunes.
A Inspeção do Trabalho não tem personalidade jurídica própria nem capacidade postulatória para pleitear na Justiça do Trabalho a declaração de vínculo empregatício. Para obter o provimento judicial, ela deveria, então, solicitar à Procuradoria da União (órgão da Advocacia-Geral da União) que promovesse a ação, com o fim exclusivo de possibilitar a imposição de multa (a hipótese parece-nos burlesca). O ajuizamento da ação já demoraria, e a declaração judicial com trânsito em julgado ocorreria depois de longos anos.
Poder-se-ia, também, representar ao Ministério Público do Trabalho, que pode, em ação civil pública, pedir que o empregador se abstenha de utilizar-se do contrato dissimulador e passe a cumprir a legislação trabalhista. Somente depois de a Justiça do Trabalho reconhecer o fundamento jurídico do pedido, a Inspeção do Trabalho aplicaria a multa. Nessa hipótese, além da demora, há outro problema: o inquérito civil no Ministério Público do Trabalho costuma preceder a ação civil pública, sendo comum o empregador, durante o inquérito, firmar termo de compromisso para evitar o ajuizamento da ação, caso em que não haveria provimento judicial, e o empregador ficaria impune, relativamente ao período em que se beneficiou da fraude. (Na realidade, a representação ao Ministério Público do Trabalho sempre ocorre nos casos em que o Auditor-Fiscal do Trabalho, depois de lavrar o auto de infração, percebe que o infrator pretende recalcitrar. A Inspeção do Trabalho tem competência para impor multa ao infrator, mas não para obrigar o empregador, de forma direta, a registrar os trabalhadores como empregados.)
Finalmente, a Inspeção do Trabalho poderia aguardar que os trabalhadores ajuizassem reclamatória trabalhista, para aplicar a multa depois que o Juiz do Trabalho comunicasse à autoridade administrativa o trânsito em julgado da sentença, conforme art. 39, § 2º, da CLT. Trata-se de uma das duas hipóteses em que a decisão judicial, por seus fundamentos, pode constituir o fundamento de fato para o Auditor-Fiscal do Trabalho lavrar o auto de infração. Porém, a Inspeção do Trabalho não tem legitimidade para propor reclamatória em nome dos empregados, que raramente a propõem, por várias razões: desconhecimento de seus direitos (eles são levados a acreditar que o contrato dissimulador é válido), receio de sofrer represálias (são famosas as “listas negras” – listas dos trabalhadores que ajuizaram reclamatória trabalhista, as quais circulam entre empresários com o propósito de negar emprego a quantos delas constem), etc.
Em qualquer dessas hipóteses, a Inspeção do Trabalho teria sérias dificuldades para combater a fraude e cumprir sua missão institucional de fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e impor multa ao infrator. Este se beneficiaria sempre, com a demora ou com a impunidade, em detrimento dos direitos de considerável número de trabalhadores.

| Artigo publicado em 24.08.2004 |




REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS