Legitimidade da Inspeção do Trabalho para Reconhecer Terceirização Ilícita Autor:
Caio Franco Santos | Artigo publicado em 24.08.2004 | |
Ementa: Existem empresas que, ao contratar a mão-de-obra necessária para levar a efeito o empreendimento, dissimulam a relação de emprego para evitar os ônus trabalhistas, parcial ou totalmente. A dissimulação ocorre mediante a formalização de contrato diverso, cujo objeto é a prestação de serviço dos trabalhadores. Há quem entenda que a Inspeção do Trabalho não pode, em tais casos, reconhecer a existência de relação de emprego e autuar o infrator por falta de registro de empregado. Este artigo analisa a questão. 1. Introdução Os Auditores-Fiscais do Trabalho, depois de se identificarem na portaria, entram rapidamente numa grande empresa de processamento de dados e percorrem suas dependências. Na maior das salas, cerca de duzentos digitadores, sentados lado a lado, teclam agilmente em frente aos terminais de computador. Os Auditores-Fiscais do Trabalho interrogam a todos, anotam-lhes o nome e a data de admissão, ouvindo, quanto ao mais, quase sempre a mesma história: os trabalhadores foram admitidos há alguns meses, com salário de R$ 280,00 mensais; eles não estão registrados como empregados da empresa, pois, tendo lá comparecido procurando emprego, submeteram-se a teste e depois foram encaminhados a uma cooperativa de trabalho, onde assinaram documentos para tornarem-se cooperados e foram informados de que, como sócios da cooperativa, teriam direito somente à remuneração mensal; até então, eles não sabiam como funcionava uma cooperativa de trabalho, e mesmo hoje praticamente apenas sabem que, sendo cooperados (em vez de empregados), não têm direitos trabalhistas como anotação de CTPS, FGTS, férias, 13º salário, aviso prévio, etc.; alguns até haviam sido empregados da empresa, outros, prestado serviço ali como trabalhadores temporários – para uns e outros, a rotina da atividade continua a mesma (assim, nada mudou quanto ao relacionamento com os prepostos, quanto ao controle de horário e de produtividade e quanto ao temor reverencial ao patrão, típico de quem receia perder o “emprego” ou a fonte de renda); o contato dos trabalhadores com o representante da cooperativa ocorria apenas uma vez ao mês, por ocasião do pagamento mensal. A cooperativa, desvirtuando-se, atua como mera intermediadora na contratação de mão-de-obra, e é flagrante a existência de relação de emprego entre os trabalhadores e a empresa. Inexistem os requisitos que legitimam as cooperativas, como o princípio da adesão voluntária, a affectio societatis, o princípio da dupla qualidade, o princípio da retribuição pessoal diferenciada e o caráter simbiótico da associação. A contratação dos trabalhadores como cooperados tem como objetivo mascarar a relação de emprego e evitar encargos trabalhistas e tributários. Em situações como a descrita acima, os Auditores-Fiscais do Trabalho sempre lavram auto de infração contra a empresa, por manter trabalhador sem o respectivo registro como empregado (art. 41, caput, da CLT), iniciando o processo administrativo que pode culminar com a imposição de sanção administrativa (multa). Outras
autuações também podem ocorrer, pelo descumprimento
de obrigações trabalhistas diversas (recolhimento do FGTS,
pagamento de horas extras, etc.). Neste artigo, analisamos a competência da Inspeção do Trabalho para lavrar autos de infração capitulados no art. 41 da CLT nos casos em que a empresa alega a inexistência de vínculo empregatício, por estar a prestação de serviço dos trabalhadores prevista em contrato diverso do de emprego. 2. Artigo 41, caput, da CLT Dentre
as normas de proteção ao trabalho, destacam-se o art. 29,
caput, da CLT, que obriga o empregador a anotar a CTPS dos empregados,
e o art. 41, caput, da CLT, que determina o registro deles em
livro, fichas ou sistema eletrônico apropriado, nos seguintes termos:
A obrigatoriedade do registro decorre da existência de relação de emprego entre empresa e trabalhador. É pelo registro que a empresa reconhece formalmente sua condição de empregador e assume deveres e encargos trabalhistas como FGTS, indenização em caso de despedida sem justa causa, estabilidades provisórias, pagamento de horas extras, concessão de férias, observância de regras sobre saúde e segurança do trabalho, etc. Quando a empresa, para dissimular a relação de emprego e descumprir o art. 41 da CLT, engendra outra espécie de contrato, os demais direitos trabalhistas costumam ser também desrespeitados. De fato, se a empresa, com o mencionado propósito fraudulento, utiliza-se de contrato de estágio, contrato de sociedade ou contrato de prestação de serviços firmado com suposta cooperativa de trabalho ou com trabalhador autônomo, os direitos trabalhistas são sonegados em sua quase totalidade; se ela lança mão de contrato de trabalho temporário ou contrato firmado com empresa prestadora de serviço, parte dos direitos trabalhistas são desrespeitados. Enfim,
o art. 41 da CLT obriga o empregador a registrar seus empregados e assim
reconhecer a existência de relação de emprego e os
ônus dela decorrentes. Trata-se, pois, de norma de proteção
ao trabalho das mais importantes. 2.1 Impossibilidade de transferência da obrigação O art. 41 da CLT impõe, ao empregador, uma obrigação intransferível. Somente ele deve assumir a condição de empregador e registrar os empregados. O empregador não pode contratar outrem para fazer o registro e alegar que a obrigação contida no art. 41 da CLT está cumprida. Se coisa semelhante fosse possível, o motorista, portando a habilitação do carona, alegaria ao policial de trânsito que pode dirigir, pois o carona teria sido contratado justamente para submeter-se aos testes necessários à habilitação e, depois, ceder-lhe a carteira. Não importa que outrem tenha registrado os trabalhadores citados no auto de infração. A obrigação (intransferível) do registro é do empregador; se não é este que a cumpre, ele deve ser punido. 3. Competência da Inspeção do Trabalho A
Inspeção do Trabalho deve ser organizada e executada pela
União (CF/88, art. 21, XXIV). Sua competência, em termos
gerais, está prevista no art. 626 da CLT, que dispõe: As
autoridades de execução da Inspeção do Trabalho
são os Auditores-Fiscais do Trabalho. O art. 11 da Lei 10.593/2002
atribui-lhes competência para assegurar o cumprimento das normas
trabalhistas, analisar documentos e verificar fraudes e irregularidades: A
competência dos Auditores-Fiscais do Trabalho para fiscalizar, em
especial, o cumprimento do art. 41 da CLT fica mais evidente quando se
consideram, além do art. 626 da CLT, já transcrito, os arts.
47 e 48 da CLT, que prevêem a sanção administrativa
(multa) pela falta de registro de empregado: Em quase todos os casos de descumprimento do art. 41 da CLT, o empregador tem algum pretexto, algum subterfúgio, algum contrato escrito ou mesmo verbal para alegar a inexistência de relação de emprego, por mais evidente que ela seja. Só é possível a Inspeção do Trabalho cumprir sua missão de verificar o fiel cumprimento do art. 41 da CLT, se ela puder analisar a relação entre a empresa e os trabalhadores que lhe prestam serviço. Existindo a relação de emprego, o empregador está obrigado a registrar os empregados; se o registro não é realizado, o empregador descumpre o art. 41 da CLT e, por isso, deve ser punido. Do mesmo modo, se a relação de emprego, embora existente, está dissimulada por contrato diverso (de trabalho temporário, de estágio, de sociedade, de terceirização firmado com outra empresa prestadora de serviço, com cooperativa de trabalho ou com trabalhador autônomo, etc.), o empregador, mediante fraude, infringe o art. 41 da CLT e deve, portanto, ser punido. A
Inspeção do Trabalho tem competência para concluir
pela existência de infração ao art. 41 da CLT e punir
o infrator administrativamente, qualquer que seja a dissimulação
por ele engendrada. Acreditamos que os argumentos contrários a
essa tese caem por terra diante deste simples silogismo: Não obstante, convém analisar outros aspectos da questão, para dissipar eventuais dúvidas e rebater argumentos contrários. 3.1
Nulidade absoluta dos contratos dissimuladores De
nada vale o contrato dissimulador, se no local de trabalho os Auditores-Fiscais
do Trabalho constatam os elementos da relação de emprego
e a inexistência dos requisitos que legitimariam o contrato dissimulador.
Nesse sentido, veja-se a seguinte ementa de acórdão: Quanto
ao artigo 9º da CLT, a norma estabelece: Portanto, os contratos formalizados com o intuito de dissimular a relação de emprego (e com isso descumprir a legislação trabalhista) são absolutamente nulos. Conforme o art. 167, I, do Código Civil, “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Contratos nulos não geram qualquer efeito que devesse ser observado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho ou que pudesse afastar sua atuação. Outrossim, a nulidade absoluta (ou de pleno direito) não precisa ser declarada pelo Poder Judiciário como condição para a ação das autoridades administrativas. O contrato nulo de pleno direito já nasce morto, não podendo a Inspeção do Trabalho atribuir-lhe validade ou admitir que gere efeitos. Sobre o assunto, a doutrina esclarece: “No regime jurídico da nulidade prosperam as seguintes regras, que lhe conferem textura própria: a da operabilidade ipso iure; a da invocabilidade por qualquer interessado; a da insanabilidade ou da perpetuidade; a da impossibilidade de confirmação, ou de consolidação do negócio. De fato, não há necessidade de declaração para a nulidade produzir seus efeitos: o negócio inválido nenhuma conseqüência jurídica realiza (ressalvada a teoria do casamento). Não há necessidade de propositura de ação para que se pronuncie a nulidade, mas, como é de interesse público, quando necessário, qualquer pessoa legitimada pode invocá-la, bem como o juiz, ao dela tomar conhecimento, está habilitado a decretá-la ex officio...” (BITTAR, Carlos Alberto. Curso de direito civil – volume 1. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1994. p. 168.) Enfim, se o contrato dissimulador é nulo, por ter a finalidade de fraudar direitos trabalhistas, a Inspeção do Trabalho pode (e deve) deixar de reconhecer-lhe os efeitos pretendidos pelo fraudador – vale dizer, pode atuar invocando sua nulidade. 3.2 Natureza civil dos contratos dissimuladores Às vezes, argumenta-se que os contratos de terceirização, de trabalho temporário, etc. são estritamente civis (e não trabalhistas), vinculando duas empresas (e não empregador e empregado), razão pela qual não poderiam ser analisados pela Inspeção do Trabalho, que fiscaliza o cumprimento de normas trabalhistas, atinentes à relação entre empregador e empregado. O argumento não procede. O que importa nesses contratos para a Inspeção do Trabalho é o caráter dissimulador da relação de emprego. Depreende-se do art. 9º da CLT, acima transcrito, que não é importante o ramo do direito cujas normas regem a prática dos atos fraudadores; o que importa é o reflexo deles na área trabalhista, de modo que tais atos serão sempre nulos de pleno direito, se tiverem por objetivo desvirtuar ou fraudar normas trabalhistas ou impedir a sua incidência. O contrato dissimulador é civil, mas os efeitos pretendidos pelos fraudadores são trabalhistas; logo, o contrato deve ser analisado pelos aplicadores da lei trabalhista. Se o argumento fosse procedente, a própria Justiça do Trabalho não poderia pronunciar-se sobre o pedido de declaração de relação empregatícia formulado pelo trabalhador, sempre que tal relação tivesse sido dissimulada por um contrato formalizado entre empresas. A Justiça do Trabalho teria de remeter os autos para a Justiça Comum, a fim de que a questão prejudicial da validade do contrato dissimulador fosse apreciada. Em verdade, o que a Inspeção do Trabalho faz não é “declarar” a nulidade do contrato civil dissimulador, mas, sim, reconhecer a existência de relação de emprego, depois de ter concluído pela impossibilidade de o contrato civil afastá-la. O único efeito que a Inspeção do Trabalho nega aos contratos dissimuladores é o de afastar a relação de emprego; não lhe interessam outros efeitos, porventura válidos, que decorram desses contratos e que obriguem as empresas contraentes. Coisa semelhante ocorre na Justiça do Trabalho. Os contratos potencialmente dissimuladores não são analisados com o propósito de solucionar lide entre as empresas contraentes. Eles são analisados apenas quanto a aspectos pertinentes, como questão prejudicial, para verificar se são aptos a afastar o vínculo empregatício. 3.3 Presunção de legitimidade do ato administrativo Argumenta-se equivocadamente que, uma vez formalizado o contrato supostamente dissimulador, sua nulidade somente poderia ser reconhecida judicialmente. Já analisamos a questão à luz das regras que tratam da nulidade dos atos jurídicos. Convém, agora, ponderar que o argumento se fundamenta numa inconcebível inversão de valores. Dizer que os contratos dissimuladores podem ter sua nulidade reconhecida apenas judicialmente corresponde a atribuir a esses contratos uma presunção de legitimidade que eles não têm. Em verdade, os atos praticados pelas autoridades públicas é que gozam da presunção de legitimidade. “A presunção de legitimidade diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997. p. 164.) A lei não confere presunção de legitimidade aos contratos privados. Constatando o Auditor-Fiscal do Trabalho a existência da relação de emprego e a invalidade do contrato dissimulador (quanto ao efeito de afastar a relação de emprego), a autoridade pública pode (e deve) lavrar o auto de infração para que seja possível punir o infrator. Não há necessidade de esperar a manifestação do Poder Judiciário sobre a validade do contrato dissimulador. O ato administrativo de imposição de multa ao infrator é que goza de presunção de legitimidade. O empregador, pessoa física ou jurídica de direito privado, é que deverá levar a questão ao Poder Judiciário, caso considere injusta a sanção imposta. 3.4 O exercício do poder de polícia administrativa e o atributo da auto-executoriedade A
Inspeção do Trabalho exerce poder de polícia administrativa.
O poder de polícia administrativa exercido pela Inspeção do Trabalho é a atividade da administração pública que limita e disciplina direito, interesse ou liberdade de empregadores e tomadores de serviço, em razão de interesse público concernente à ordem jurídica e ao respeito a direitos trabalhistas indisponíveis individuais ou coletivos. Essa limitação de direito, interesse ou liberdade pode ocorrer de forma direta, como no embargo de obra e na interdição de estabelecimento, serviço ou máquina (CLT, art. 161), ou de forma indireta, mediante a aplicação de multas administrativas aos infratores, observado o procedimento administrativo. Quando o Auditor-Fiscal do Trabalho lavra auto de infração, iniciando o processo administrativo que pode culminar com a imposição de multa pela Administração, pretende-se, de modo indireto, limitar uma atividade do administrado considerada lesiva ao interesse e à ordem pública. Espera-se sobretudo que, com a sanção pecuniária, o administrado se corrija, deixando de praticar o ato ilícito. A Inspeção do Trabalho tem a missão de fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e impor sanção (multa) ao infrator. Não se lhe pode negar, então, a capacidade de proceder às análises indispensáveis para realizar essa missão. A Inspeção do Trabalho deve, por si, averiguar a conformidade do fato concreto à norma legal para constatar situações de infração à lei. De fato, é atributo do poder de polícia administrativa a auto-executoriedade, segundo a qual “o ato será executado diretamente pela Administração, não carecendo de provimento judicial para tornar-se apto” (ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2001. p. 64). É a própria Administração (Inspeção do Trabalho) que reconhece a situação de infração à lei e impõe multa ao infrator, sem necessidade de provimento judicial. A
administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro faz distinção
entre exigibilidade e executoriedade, desdobramentos do princípio
da auto-executoriedade: A
auto-executoriedade (que os franceses chamam de executoriedade apenas)
é a possibilidade que tem a Administração de, com
os próprios meios, pôr em execução as suas
decisões, sem precisar recorrer previamente ao Poder Judiciário.
Pelo
atributo da auto-executoriedade, a Administração compele
materialmente o administrado, usando meios diretos de coação.
Por exemplo, ela dissolve uma reunião, apreende mercadorias, interdita
uma fábrica. Em resumo, pode-se dizer que a exigibilidade está presente em todas as medidas de polícia, mas não a executoriedade (privilège d’action d’office). (Direito administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997. p. 97-98) O art. 628 da CLT é claro em dizer que é o Agente de Inspeção (antiga denominação do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho) que, após verificar o fato concreto, conclui pela existência de infração à lei. A ele cabe a atividade intelectual de analisar documentos, indícios, circunstâncias e informações, de interpretar a lei e finalmente de confrontar o fato concreto com a lei, para concluir, ou não, pela existência de violação a norma de proteção ao trabalho: Art.
628 - Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação
em que o agente da inspeção concluir pela existência
de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena
de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração. Há interesse público na observância das normas de proteção ao trabalho, que deve prevalecer sobre o interesse privado do empregador na manutenção de seus contratos civis com terceiras empresas (os contratos dissimuladores). Se o Auditor-Fiscal do Trabalho, ao analisar fatos, circunstâncias e documentos, constata que o empregador pratica atos com o propósito de deixar de reconhecer seus empregados (infração ao art. 41 da CLT) e fraudar direitos trabalhistas, a autoridade deve logo punir o infrator, em prol do interesse público. A supremacia do interesse público impele a Inspeção do Trabalho à repressão das fraudes. Com relação à indisponibilidade do interesse público, adverte a doutrina que “segundo tal princípio é vedado à autoridade administrativa deixar de tomar providências ou retardar providências que são relevantes ao atendimento do interesse público, em virtude de qualquer outro motivo” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 153). A Administração (Inspeção do Trabalho) não age por interesse próprio. Age por interesse público: sua missão é assegurar o cumprimento da lei e a ordem pública nas relações de trabalho. A fraude perpetrada contra a relação de emprego geralmente envolve grande número de trabalhadores. Os prejuízos extrapolam a questão trabalhista, quando importam em sonegação de contribuições sociais. Por essas razões, é inconcebível que a Administração, para impor a sanção administrativa (multa), não possa agir rapidamente, com o fim de preservar a ordem pública e assegurar a observância de direitos trabalhistas indisponíveis. A
propósito, se a multa é administrativa, e não judicial,
é disparatado o entendimento segundo o qual sua imposição
depende de decisão judicial. 3.5 Jurisprudência Embora haja decisões judiciais contrárias à nossa tese, são majoritárias as que declaram a legitimidade da Inspeção do Trabalho para reconhecer o vínculo empregatício dissimulado por contrato diverso. Exemplificam-se as últimas com as seguintes ementas de acórdão: ADMINISTRATIVO
- AUTUAÇÃO - RELAÇÃO EMPREGATÍCIA.
Dentre as atribuições da Delegacia Regional do Trabalho,
está a de fiscalizar e conseqüentemente aplicar sanções
às possíveis infrações da legislação
trabalhista e, sobretudo, fraudes à relação empregatícia.
Não há, in casu, direito líquido e certo
a ser protegido e, ademais, a matéria necessita de dilação
probatória. Recurso improvido para manter a sentença. (TRF
2ª Região, 1ª Turma, Rel.: Juiz Chalu Barbosa. AMS nº
9002081197. Dec. 08.11.1995 [unânime]. DJ 18.01.1996, pág.
1.510.) 4. Competência da Justiça do Trabalho O principal argumento a ser rebatido é o de que a competência para reconhecer a existência ou inexistência da relação de emprego é atribuída pela Constituição Federal à Justiça do Trabalho, razão pela qual a Inspeção do Trabalho, ao lavrar autos de infração capitulados no art. 41, estaria usurpando competência. É compreensível a dificuldade de perceber a diferença entre a competência da Justiça do Trabalho e a da Inspeção do Trabalho. Essa questão está contida em outra, que outrora atormentava renomados juristas: a distinção entre jurisdição (atividade do Poder Judiciário) e administração (atividade típica do Poder Executivo). José Afonso da Silva refere o problema: “Não
é difícil distinguir jurisdição e legislação.
Esta edita normas de caráter geral e abstrato e a jurisdição
se destina a aplicá-las na solução das lides. [...] Devemos analisar, pois, o caput do art. 114 da CF/88, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho: Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. O dispositivo constitucional estabelece uma competência judicial, e não administrativa. A norma fala em conciliar e julgar dissídios, isto é, ações judiciais. Quando a Inspeção do Trabalho fiscaliza o cumprimento das normas de proteção ao trabalho, não concilia nem julga dissídios. Os Auditores-Fiscais do Trabalho sequer procuram saber se existe lide ou litígio entre empregador e trabalhador, isto é, se existe conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, conforme a clássica lição de Carnelutti (apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 19. ed. São Paulo : Forense, 1997. p. 35). Eles procuram averiguar, apenas, se há violação de norma de proteção ao trabalho. Ainda que o Auditor-Fiscal do Trabalho interprete a lei e a confronte com o caso concreto, para lavrar autos de infração ? atividade intelectiva que necessariamente deve ocorrer em qualquer procedimento fiscal ?, suas conclusões não são julgamentos, no sentido técnico do termo, pois as autuações não produzem coisa julgada nem fazem lei entre empregados e empregadores. Atos administrativos como o auto de infração e a decisão processual de imposição de multa ficam sempre sujeitos a controle jurisdicional. 5. Distinção entre a competência da Justiça do Trabalho e a da Inspeção do Trabalho O fato de a Justiça do Trabalho ter competência exclusiva para julgar e conciliar dissídios entre empregados e empregadores não afasta a atuação da Inspeção do Trabalho. Esta possui natureza administrativa, com funções preventiva e punitiva; aquela é órgão judicial, com função eminentemente reparadora. As duas atividades (a jurisdicional e a administrativa) coexistem, pois são de natureza distinta e possuem objetivos imediatos diversos. Se fosse válido o argumento de que a competência judicial repeliria a atividade administrativa, a Inspeção do Trabalho nada teria para investigar, pois quase tudo que ela fiscaliza pode ser discutido na Justiça do Trabalho num dissídio entre empregador e trabalhador: registro de empregado, pagamento de salários e de verbas rescisórias, concessão e pagamento de férias, pagamento de horas extras, recolhimento de FGTS, todos esses direitos e muitos outros podem ser pleiteados pelo trabalhador e ter sua inviolabilidade fiscalizada pela Inspeção do Trabalho. 6. Conclusão Compete
à Inspeção do Trabalho fiscalizar o fiel cumprimento
das normas de proteção ao trabalho, dentre as quais a que
determina ao empregador registrar seus empregados: art. 41 da CLT. A empresa
que dissimula a relação de emprego mediante a formalização
de outra espécie de contrato infringe o art. 41 da CLT, devendo
ser-lhe imposta a multa administrativa prevista no art. 47 da CLT. A possibilidade de os Auditores-Fiscais do Trabalho reconhecerem a nulidade de contratos dissimuladores tem vários fundamentos: a própria competência, pois não seria possível fiscalizar o cumprimento da norma e punir o infrator, se fosse impossível debelar a fraude para constatar a existência de infração; o poder de polícia administrativa, que tem como um de seus atributos a auto-executoriedade, segundo a qual a decisão administrativa pode ser imposta ao administrado sem necessidade de provimento judicial; o princípio de Direito do Trabalho denominado primazia da realidade, segundo o qual as reais condições de trabalho são mais importantes do que os documentos na definição das situações jurídicas; e o instituto das nulidades dos atos jurídicos, na medida em que os atos praticados com o fim de desvirtuar ou impedir a aplicação de norma de proteção ao trabalho, por serem nulos de pleno direito (art. 9º da CLT), podem ter sua nulidade reconhecida independentemente de provimento judicial. Tanto o Juiz do Trabalho quanto o Auditor-Fiscal do Trabalho, para exercerem suas respectivas competências, devem analisar a natureza da relação entre a empresa e o trabalhador que lhe presta serviço. Trata-se de interpretar a lei e aplicá-la ao caso concreto, atividade necessária para a prática de todo ato administrativo e de toda decisão judicial. O Juiz do Trabalho empreende a análise para solucionar litígios, isto é, para julgar dissídios individuais ou coletivos, competência que lhe é atribuída pela Constituição Federal. O Auditor-Fiscal do Trabalho empreende a análise para fiscalizar o fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e, se for o caso, autuar o infrator, competência que lhe é atribuída pela lei. Referências
bibliográficas Delegacias
Regionais do Trabalho são órgãos do Ministério
do Trabalho e Emprego que atuam nos Estados; há uma Delegacia em
cada estado. Os Auditores-Fiscais do Trabalho ficam lotados em Delegacias
ou em órgãos a elas subordinados: Subdeledegacias do Trabalho
e Agências de Atendimento. NOTA DE RODAPÉ
1. Delegacias Regionais do Trabalho são órgãos do
Ministério do Trabalho e Emprego que atuam nos Estados; há
uma Delegacia em cada estado. Os Auditores-Fiscais do Trabalho ficam lotados
em Delegacias ou em órgãos a elas subordinados: Subdeledegacias
do Trabalho e Agências de Atendimento. |
REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |