A Mulher e o debate sobre direitos humanos no Brasil

Autora: Prof. Dra. Flávia Piovesan
(Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos Humanos e Direito Constitucional; Professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC/SP e da PUC/PR; Procuradora do Estado de São Paulo; Visiting fellow do Harvard Human Rights Program (1995 e 2000); membro do Comitê Latino- Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana)

| Artigo publicado em 24.08.2004 |

1. Introdução

A reflexão a respeito da mulher e o debate sobre direitos humanos no Brasil suscita duas questões centrais: a) Como compreender a gramática contemporânea dos direitos humanos das mulheres?1 e b) Quais os principais desafios e perspectivas para a proteção destes direitos no cenário brasileiro?

Em face do processo de internacionalização dos direitos humanos, foi a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 que, de forma explícita, afirmou, em seu parágrafo 18, que os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Esta concepção foi reiterada pela Plataforma de Ação de Pequim, de 1995. O legado de Viena é duplo: não apenas endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos invocada pela Declaração Universal de 19482, mas também confere visibilidade aos direitos humanos das mulheres e das meninas, em expressa alusão ao processo de especificação do sujeito de direito e à justiça enquanto reconhecimento de identidades.

Importa ressaltar que a primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela ótica da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia sido orientada para o extermínio), com base na igualdade formal. A título de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração Universal de 1948, bem como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância pautada na destruição do “outro”, em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou religião. Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Neste sentido, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Transita-se do paradigma do homem, ocidental, adulto, heterossexual e dono de um patrimônio para a visibilidade de novos sujeitos de direitos.

Neste cenário as mulheres devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. O direito à diferença implica o direito ao reconhecimento de identidades próprias, o que propicia a incorporação da perspectiva de gênero3, isto é, repensar, revisitar e reconceptualizar os direitos humanos a partir da relação entre os gêneros, como um tema transversal.

O balanço das últimas três décadas permite arriscar que o movimento internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres centrou seu foco em três questões centrais: a) a discriminação contra a mulher; b) a violência contra a mulher e c) os direitos sexuais e reprodutivos.

O próximo tópico será dedicado ao exame destas três bandeiras, que orientaram a luta pela emancipação feminina na ordem contemporânea.

2. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos das Mulheres

Quanto à discriminação contra a mulher, cabe destacar a aprovação, em 1979, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. A Convenção conta com 170 Estados-partes4, o que inclui o Brasil, que a ratificou em 1984. Foi resultado de reivindicação do movimento de mulheres, a partir da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México, em 1975. Frise-se, contudo, que, no plano dos direitos humanos, esta foi a Convenção que mais recebeu reservas por parte dos Estados signatários5, especialmente no que tange à igualdade entre homens e mulheres na família. Tais reservas foram justificadas com base em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal, havendo países (como Bangladesh e Egito) que acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher de praticar “imperialismo cultural e intolerância religiosa”, ao impor-lhes a visão de igualdade entre homens e mulheres, inclusive na família6. Isto reforça o quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está condicionada à dicotomia entre os espaços público e privado, que, em muitas sociedades, confina a mulher ao espaço exclusivamente doméstico da casa e da família. Vale dizer, ainda que se constate, crescentemente, a democratização do espaço público, com a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais, resta o desafio de democratização do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do espaço público.

A Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade. Logo, a Convenção consagra duas vertentes diversas: a) a vertente repressiva-punitiva, voltada à proibição da discriminação e b) a vertente positiva-promocional, voltada à promoção da igualdade. A Convenção objetiva não só erradicar a discriminação contra a mulher e suas causas, como também estimular estratégias de promoção da igualdade. Combina a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo, mediante a adoção de medidas afirmativas, enquanto medidas especiais e temporárias voltadas a aliviar e remediar o padrão discriminatório que alcança as mulheres. Alia-se à vertente repressiva-punitiva a vertente positiva-promocional.

No que se refere à violência contra a mulher, cabe menção à Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela ONU, em 1993, bem como à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”), de 1994. Ambas reconhecem que a violência contra a mulher, no âmbito público ou privado, constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais. Definem a violência contra a mulher como "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico `a mulher, tanto na esfera pública, como na privada" (artigo 1o). Vale dizer, a violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher, porque é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional. Adicionam que a violência baseada no gênero reflete relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres. A Convenção de “Belém do Pará” elenca um importante catálogo de direitos a serem assegurados `as mulheres, para que tenham uma vida livre de violência, tanto na esfera pública, como na esfera privada. Consagra ainda a Convenção deveres aos Estados-partes, para que adotem políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.

O terceiro grande tema introduzido pelo movimento de mulheres reporta-se aos direitos sexuais e reprodutivos.7 Em 1994, na Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, ineditamente, 184 Estados reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos.8 Em 1995, as Conferências internacionais de Copenhaguem e Pequim reafirmaram esta concepção. Com efeito, a Conferência do Cairo estabeleceu relevantes princípios éticos concernentes aos direitos reprodutivos9, afirmando o direito a ter controle sobre as questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de coerção, discriminação e violência, como um direito fundamental.10 Há ainda a recomendação internacional de que sejam revistas as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser reconhecido como um problema de saúde pública.

Importa enfatizar que o conceito de direitos sexuais e reprodutivos aponta a duas vertentes diversas e complementares. De um lado, aponta a um campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção e violência. Eis um terreno em que é fundamental o poder de decisão no controle da fecundidade. Consagra-se o direito de mulheres e homens de tomar decisões no campo da reprodução (o que compreende o direito de decidir livre e responsavelmente acerca da reprodução, do número de filhos e do intervalo entre seus nascimentos). Trata-se de direito de autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual. Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos reprodutivos demanda políticas públicas, que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, fundamental é o direito ao acesso a informações, meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Fundamental também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual, tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e reproduzir-se com a liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que freqüência.

Considerando a gramática contemporânea de direitos humanos das mulheres, transita-se ao contexto brasileiro, a fim de que se avalie os desafios e perspectivas para a efetivação destes direitos, à luz da dinâmica interação entre as ordens internacional e local.

3. Os Direitos Humanos das Mulheres no Brasil: Desafios e Perspectivas

Na experiência brasileira, a Constituição Federal de 1988, enquanto marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país, incorporou a maioria significativa das reivindicações formuladas pelas mulheres. O êxito do movimento de mulheres, no tocante aos avanços constitucionais, pode ser claramente evidenciado pelos dispositivos constitucionais que, dentre outros, asseguram: a) a igualdade entre homens e mulheres em geral (artigo 5º, I) e especificamente no âmbito da família (artigo 226, parágrafo 5º); b) a proibição da discriminação no mercado de trabalho, por motivo de sexo ou estado civil (artigo 7º, XXX, regulamentado pela Lei 9.029, de 13 de abril de 1995, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho); c) a proteção especial da mulher no mercado de trabalho, mediante incentivos específicos (artigo 7º, XX, regulamentado pela Lei 9.799, de 26 de maio de 1999, que insere na Consolidação das Leis do Trabalho regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho); d) o planejamento familiar como uma livre decisão do casal, devendo o Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (artigo 226, parágrafo 7º, regulamentado pela Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que trata do planejamento familiar, no âmbito do atendimento global e integral à saúde); e e) o dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, parágrafo 8º). Além destes avanços, merece ainda destaque a Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, dispondo que cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. Adicione-se, também, a Lei 10.224, de 15 de maio de 2001, que ineditamente dispõe sobre o crime de assédio sexual.

Há que se observar que os avanços obtidos no plano internacional têm sido capazes de impulsionar transformações internas. Neste sentido, cabe destaque ao impacto de documentos como a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher de 1979, a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, a Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994 e a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995, na plataforma de construção dos direitos humanos das mulheres no contexto brasileiro. Estes instrumentos internacionais têm possibilitado ao movimento de mulheres exigir, no plano local, a implementação de avanços obtidos na esfera internacional.

No que se refere à discriminação contra a mulher, a experiência brasileira está em absoluta consonância com os parâmetros protetivos internacionais, refletindo tanto a vertente repressiva-punitiva (pautada pela proibição da discriminação contra a mulher), como a vertente promocional (pautada pela promoção da igualdade, mediante políticas compensatórias).

Quanto à violência contra a mulher, embora a Constituição de 1988 seja a primeira a explicitar a temática, merecendo destaque também a lei que tipifica a violência do assédio sexual, não há ainda legislação específica a tratar, por exemplo, da violência doméstica. Faz-se emergencial a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações, eis que este padrão de violência constitui grave violação aos direitos humanos das mulheres. 11

No que tange aos direitos reprodutivos, a Carta de 1988 simboliza novamente um avanço ao reconhecer o planejamento familiar como uma livre decisão do casal, devendo o Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer coerção. Resta, todavia, a necessidade de assegurar amplos programas de saúde reprodutiva12, reavaliando a legislação punitiva referente ao aborto, de modo a convertê-lo efetivamente em problema de saúde pública.

4. Conclusão

Não obstante os significativos avanços obtidos na esfera constitucional e internacional, reforçados, por vezes, mediante legislação infra-constitucional esparsa, que refletem, cada qual ao seu modo, as reivindicações e anseios contemporâneos das mulheres, ainda persiste na cultura brasileira uma ótica sexista e discriminatória com relação às mulheres, que as impede de exercer, com plena autonomia e dignidade, seus direitos mais fundamentais.

Os avanços constitucionais e internacionais, que consagram a ótica da igualdade entre os gêneros, têm, por vezes, a sua força normativa gradativamente pulverizada e reduzida, mediante uma cultura que praticamente despreza o alcance destas inovações, sob uma perspectiva discriminatória, fundada em uma dupla moral, que ainda atribui pesos diversos e avaliações morais distintas a atitudes praticadas por homens e mulheres. Vale dizer, os extraordinários ganhos internacionais, constitucionais e legais não implicaram automaticamente a sensível mudança cultural, que, muitas vezes, adota como referência os valores da normatividade pré-1988 e não os valores da normatividade introduzida a partir da Carta democrática de 1988, reforçados e revigorados pelos parâmetros protetivos internacionais.

Daí a urgência em se fomentar uma cultura fundada na observância dos parâmetros internacionais e constitucionais de proteção aos direitos humanos das mulheres, visando à implementação dos avanços constitucionais e internacionais já alcançados, que consagram uma ótica democrática e igualitária em relação aos gêneros. Há que se criar uma doutrina jurídica, sob a perspectiva de gênero, que seja capaz de visualizar a mulher e fazer visíveis as relações de poder entre os gêneros. Essa doutrina há de ter como pressuposto o padrão de discriminação e as experiências de exclusão e violência sofridas por mulheres.13 Deve ter como objetivo central a tarefa de trans-formar essa realidade. Como meio, essa doutrina deve se valer dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos da mulher e das Constituições democráticas.14

Incorporar a perspectiva de gênero na doutrina jurídica impõe, sobretudo, o desafio de mudança de paradig-mas. Esse desafio aponta à necessidade de introjetar novos valo-res e uma nova visão de Direito, de sociedade e de mundo. Tra-duz também a necessidade de inclusão de grande parcela da população mundial e da inclusão de seu modo de perceber e compreender a realidade.15

Observe-se que, no amplo horizonte histórico de construção dos direitos das mulheres, jamais se caminhou tanto quanto nas últimas três décadas. Elas compõem o marco divisório em que se concentram as maiores reivindicações, desejos e anseios das mulheres, invocando, sobretudo, a reinvenção da gramática de seus direitos.

Para encerrar, reitere-se o legado de Viena: os direitos humanos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Não há direitos humanos sem a plena observância dos direitos das mulheres, ou seja, não há direitos humanos sem que metade da população mundial exerça, em igualdade de condições, os direitos mais fundamentais. Afinal, como lembra Amartya Sen, “nada atualmente é tão importante na economia política do desenvolvimento quanto o reconhecimento adequado da participação e da liderança política, econômica e social das mulheres. Esse é um aspecto crucial do desenvolvimento como liberdade”.16

NOTA DE RODAPÉ


1. No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução (Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134). No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos”. (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente.” (Allan Rosas, So-Called Rights of the Third Generation, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243).
2. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.

3. Afirma Alda Facio: “(...) Gender ou gênero sexual corresponde a uma dicotomia sexual que é imposta socialmente através de papéis e estereóti-pos”. (Cuando el genero suena cambios trae. San José da Costa Rica: ILANUD - Proyecto Mujer y Justicia Penal, 1992, p. 54). Gênero é, assim, concebido como uma relação entre sujeitos socialmente construídos em determinados contextos históricos, atravessando e construindo a identidade de homens e mulheres. Sobre a matéria, ver ainda BUNCH, Charlotte. Transforming human rights from a feminist perspective. In: Women’s rights human rights. Routledge: 1995, p. 11-17; BARTLETT, Katharine T. Gender and law. Boston: Litle, Brown, 1993. p. 633-636; SCALES, Ann. The emergence of feminist jurisprudence: an essay. In: SMITH, Patricia (Editor). Feminist jurisprudence. New York: Oxford University Press, 1993, p. 94-109; WEST, Robin. Jurisprudence and gender. In: SMITH, Patricia (Editor). Feminist jurisprudence. New York: Oxford University Press, 1993, p. 493-530; MACKINNON, Catharine. Toward feminist jurisprudence. In: SMITH, Patricia (Editor). Feminist jurisprudence. New York: Oxford University Press, 1993, p. 610-619.
4. A respeito, consultar Human Development Report 2003, UNDP, New York/Oxford, Oxford University Press, 2003.

5. Trata-se do instrumento internacional que mais fortemente recebeu reservas, dentre as Convenções internacionais de Direitos Humanos, considerando que ao menos 23 dos mais de 100 Estados-partes fizeram, no total, 88 reservas substanciais. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação da Mulher pode enfrentar o paradoxo de ter maximizado sua aplicação universal ao custo de ter comprometido sua integridade. Por vezes, a questão legal acerca das reservas feitas à Convenção atinge a essência dos valores da universalidade e integridade. A título de exemplo, quando da ratificação da Convenção, em 1984, o Estado brasileiro apresentou reservas ao artigo 15, parágrafo 4º e ao artigo 16, parágrafo 1º (a), (c), (g), e (h), da Convenção. O artigo 15 assegura a homens e mulheres o direito de, livremente, escolher seu domicílio e residência. Já o artigo 16 estabelece a igualdade de direitos entre homens e mulheres, no âmbito do casamento e das relações familiares. Em 20 de dezembro de 1994, o Governo brasileiro notificou o Secretário Geral das Nações Unidas acerca da eliminação das aludidas reservas.
6. Henkin, Louis e outros. Human Rights. New York, New York Foundation Press, 1999, p.364.
7.
Os direitos reprodutivos envolvem a concepção, o parto, a contracepção e o aborto, como elementos interligados “onde a impossibilidade de acesso a qualquer um deles remete a mulher para um lugar de submissão” (Maria Betânia de Melo Ávila, Modernidade e cidadania reprodutiva, In: Ávila, Maria Betânia de Melo, Berquó, Elza. Direitos reprodutivos: uma questão de cidadania. Brasília: Centro Feminista de Estudos e Assessoria - CFEMEA, 1994. p. 9).
8. Como explica Leila Linhares: “No Cairo, em 1994, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento introduziu um novo paradigma à temática do desenvolvimento populacional, deslocando a questão demográfica para o âmbito das questões relativas aos direitos reprodutivos e ao desenvolvimento. (...) A ativa participação do movimento internacional de mulheres nas fases preparatórias e durante a própria Conferência permitiram a legitimação da noção de direitos reprodutivos.(...) Ainda em 1995, em Beijing, foi realizada a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz, que incorporou as agendas das Conferências de Direitos Humanos (1993), de População e Desenvolvimento (1994) e da Cúpula de Desenvolvimento Social (1995), avançando e firmando, de modo definitivo, a noção de que os direitos das mulheres são direitos humanos; a noção de saúde e direitos reprodutivos, bem como o reconhecimento de direitos sexuais, com a recomendação de que sejam revistas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado, tal como na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (1994), um problema de saúde pública”. (Leila Linhares. As Conferências das Nações Unidas influenciando a mudança legislativa e as decisões do Poder Judiciário. In: Seminário “Direitos Humanos: Rumo a uma jurisprudência da igualdade”, Belo Horizonte, de 14 a 17 de maio de 1998).
9. Note-se que o Plano de Ação do Cairo recomenda à comunidade internacional uma série de objetivos e metas, tais como: a) o crescimento econômico sustentado como marco do desenvolvimento sustentável; b) a educação, em particular das meninas; c) a igualdade entre os sexos; d) a redução da mortalidade neo-natal, infantil e materna e e) o acesso universal aos serviços de saúde reprodutiva, em particular de planificação familiar e de saúde sexual.
10. A Conferência do Cairo realça ainda que as mulheres têm o direito individual e a responsabilidade social de decidir sobre o exercício da maternidade, assim como o direito à informação e acesso aos serviços para exercer seus direitos e responsabilidades reprodutivas, enquanto que os homens têm uma responsabilidade pessoal e social, a partir de seu próprio comportamento sexual e fertilidade, pelos efeitos desse comportamento na saúde e bem-estar de suas companheiras e filhos.
11. A respeito, destacam-se os seguintes estudos acerca da violência doméstica: a) pesquisa feita pela Human Rights Watch (“Injustiça Criminal x Violência contra a Mulher no Brasil”,1993), que aponta que, a cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas; b) pesquisa realizada pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (“Primavera já Partiu”, 1998), que demonstra que 66,3% dos acusados em homicídios contra mulheres brasileiras são seus parceiros; e c) dados da ONU que demonstram que a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo. Adicione-se que, em conformidade com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), uma em cada cinco mulheres que faltam ao trabalho o faz por ter sofrido agressões física. A violência doméstica agrava o processo de feminização da probreza, na medida em que empobrece as mulheres e, por sua vez, a mulher com dependência econômica torna-se mais vulnerável à violência doméstica, o que, por seu turno, ainda agrava o empobrecimento das mulheres. Deflagra-se, assim, um perverso ciclo vicioso, em que a violação de direitos civis leva à violação de direitos sociais e vice-versa.
12. A taxa de mortalidade materna no Brasil é cerca de 110 mortes por 100.000, contra 3,6 no Canadá. Conforme conclusões da CPI da Mortalidade Materna, o Brasil apresenta um índice de mortalidade materna de cerca de 10 a 20 vezes da considerada aceitável. Observe-se que a distribuição do óbito materno não é homogênea no país, sendo mais alta na região Norte e mais baixa na região Sudeste. O aborto é a terceira causa de óbito materno no país como um todo. Estudo realizado em 15 municípios do país aponta a eclampsia, as síndromes hemorrágicas e a cardiopatia como as principais causas de óbitos maternos nos municípios considerados.
13. Observa Alda Facio: “(...) se é certo que os homens têm sofrido discriminações por sua pertença a uma classe, etnia, e/ou preferência sexual, etc., NENHUM homem sofre discriminação por pertencer ao sexo masculino, ao passo que TODAS as mulheres a sofrem por pertencer ao sexo feminino (além da discrimi-nação por classe, etnia, e/ou preferência sexual, etc.)”. (op. cit., p. 13). A respeito, afirma Katharine T. Bartlett e Rosanne Kennedy: “(...) há um amplo consenso de que, embora seja pedagógico à teoria feminista expor as implícitas hierarquias e exclusões e o modo pelo qual são construídas, as feministas também devem adotar atitudes positivas no sentido de transformar as práticas institucionais e sociais”. (Feminist legal theory: reading in law and gender. Boulder: Westview Press, 1991. p. 10). Consultar ainda RHODE, Deborah L. Feminist critical theories. In: BARTLETT, Katharine T., Kennedy, Rosanne, op. cit. supra, p. 333-350.
14. “Não obstante as dificuldades e o desafio em buscar transformações através do Direito, este apresenta oportunidades ao feminismo. Direito é poder. (...) As re-formas legais podem não apenas criar, como também resolver problemas relativos ao feminismo. Ainda que essas reformas não impliquem instantaneamente em avanços na vida das mulheres, constituem, todavia, um requisito necessário a uma significativa mudança social”.(BARTLETT, Katharine T., KENNEDY, Rosanne, op. cit., p. 4). No mesmo sentido, afirma Alda Facio: “O Direito, apesar de ser um obstáculo para o desenvolvimento da personalidade feminina, pode ser um ins-trumento de transformações estruturais, culturais ou pessoais, que necessaria-mente levará mulheres a melhores condições de vida”. (op. cit., p. 22).
15. Afirma Boutros Boutros Ghali, ex-Secretário Geral da ONU: “Sem progresso na situação das mulheres não pode haver nenhum desenvolvimento social verda-deiro. Os direitos humanos não merecem esse nome se excluem a metade da humanidade. A luta pela igualdade da mulher faz parte da luta por um mundo melhor para todos os seres humanos e todas as sociedades”. No mesmo sentido, pondera Deborah L. Rhode: “Embora nós não possamos saber a priori o que caracteriza uma boa sociedade, nós seguramente sabemos o que não a caracteriza. Trata-se da sociedade baseada na disparidade entre os gêneros, no que tange ao status, ao poder e à segurança. Trata-se da sociedade que nega à maioria de seus membros o controle efetivo sobre aspectos de sua existência diária”. (RHODE, Deborah L., op. cit., p. 345).
16. Amartya Sen, O Desenvolvimento como Liberdade, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, pág. 220.



 
REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS