Terrenos de marinha: aspectos destacados

Autor: Joel de Menezes Niebuhr
(Advogado, Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP, Professor Convidado de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina.)

| Artigo publicado em 24.08.2004 |

I. Considerações Gerais

1. Terreno de marinha constitui-se numa faixa de 33 (trinta e três) metros, a contar da linha da preamar-média de 1831, para dentro da terra, nas áreas banhadas por águas sujeitas à maré, conforme se depreende do artigo 2º do Decreto-Lei nº 9.760, de 05 de setembro de 1946. 1

2. Nesse contexto, os terrenos de marinha só existem nas áreas que sofrem a influência das marés. A propósito, o parágrafo único do artigo 2º do Decreto nº 9.760/46 esclarece que a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano. Isso significa que áreas na margem de rios e lagoas também podem constituir terreno de marinha, desde que os mesmos sofram a influência das marés.

3. Convém, por oportuno, determinar o que é a linha da preamar-média de 1831, já que, como visto, o terreno de marinha parte dela. Conforme anota Humberto Haydt de Souza Mello, “preamar é o ponto mais alto a que sobe a maré. É o mesmo que maré cheia.” 2 Já a preamar-média, segue o autor, “corresponde à posição média de preamares observadas durante uma ou várias lunações, de maneira a atender-se, não só à ação conjunta da lua e do sol, como também à ação das causas perturbadoras normais, e a reduzir ao mínimo a influência das causas acidentais ou anormais.” 3

Ou seja, a linha da preamar-média significa a média da maré alta em determinado período; a linha da preamar-média de 1831 é a média da maré alta apurada em 1831. Cumpre advertir, já a essa altura, que os terrenos de marinha partem da linha da preamar-média de 1831, não da linha da preamar-média atual, do próximo ano ou de qualquer outro período.

4. Os terrenos de marinha são bens públicos, pertencentes à União, a teor da redação incontroversa do inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal. E isso não é novidade alguma, dado que os terrenos de marinha são considerados bens públicos desde o período colonial, conforme retrata a Ordem Régia de 04 de dezembro de 1678 e, em especial, a Ordem Régia de 21 de outubro de 1710, cujo teor desta última apregoava “que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra.”

5. Vê-se, desde períodos remotos da história nacional, que os terrenos de marinha sempre foram relacionados à defesa do território. A intenção era deixar desimpedida a faixa de terra próxima da costa, para nela realizar movimentos militares, instalar equipamentos de guerra, etc. Por essa razão, em princípio, é que os terrenos de marinha são bens públicos e, ademais, pertencentes à União, na medida em que é dela a competência para promover a defesa nacional (inciso III do artigo 21 da Constituição Federal).

Na atualidade, cabe questionar os préstimos dos terrenos de marinha, porquanto, efetivamente, os mesmos não são aproveitados para fins bélicos e, a bem da verdade, noutros tempos, foram em pequeníssima escala.

Talvez o grande interesse em enunciar os terrenos de marinha no rol dos bens públicos esteja relacionado ao aspecto patrimonial, como já apontava Themistocles Brandão Cavalcanti, “pela riqueza de sua contribuição para o domínio público, e renda arrecadada pelo Tesouro dos foros e laudêmios devidos pelos concessionários.” 4

6. De acordo com os incisos do artigo 99 do novo Código Civil, os bens públicos dividem-se em bens de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças (inciso I); bens de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviços ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias (inciso II); e bens dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades (inciso III).

O artigo 11 do Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934, qualifica o terreno de marinha como bem dominical, o que significa que o povo não tem livre acesso a eles. Os terrenos de marinha, nessa qualidade, podem ser utilizados privativamente pela União, quer de modo direto, quer por meio da celebração de contratos com terceiros, como, por exemplo, o de enfiteuse ou aforamento, o de cessão, permissão de uso, etc. Inclusive é permitido à União alienar os terrenos de marinha, com amparo no artigo 101 do Código Civil. Noutras palavras, o povo não goza, em princípio, de livre acesso aos terrenos de marinha; eles são utilizados pela União, da maneira que convém a ela.

7. Os terrenos de marinha não se confundem com as praias. Segundo o § 3º do artigo 10 da Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, “entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.”

Veja-se que a praia é de dimensão variável: há faixas de praias, por exemplo, de 1 (um) metro, 10 (dez) metros ou de 60 (sessenta) metros, dependendo da largura da faixa de material detrítico. Nesse sentido, os 33 (trinta e três) metros a partir da linha da preamar-média de 1831, que constituem o terreno de marinha, podem ultrapassar a faixa da praia, bem como a faixa da praia pode ultrapassá-los, ou mesmo pode haver terreno de marinha em locais em que não haja praia.

Ademais, a praia é bem de uso comum, ao contrário dos terrenos de marinha, que, como visto, são bens dominicais. Quer-se dizer que todos do povo têm acesso irrestrito às praias, podem utilizá-las livre e indistintamente, o que não ocorre com os terrenos de marinha.

8. Os terrenos de marinha também não se confundem com os denominados terrenos acrescidos, que, consoante as lições de Humberto Haydt de Souza Mello, “são terrenos que se formam por acréscimo, natural ou artificialmente, para os lados do mar, para as margens dos rios ou para a orla dos lagos, tornando mais ampla a área do terreno a que se somam. São os aterros, os terrenos de aluvião – esses também conhecidos como terrenos aluviais.” Tais áreas constituem bens públicos dominicais, pertencentes à União (inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal). O ponto é que, não importa a dimensão do terreno acrescido, o terreno de marinha continua onde sempre esteve, desde 1831. Por exemplo, o Poder Público promove aterro de 100 (cem) metros para dentro do mar. Nesse caso, a contar da praia ter-se-ão 100 (cem) metros de terreno acrescido e outros 33 (trinta e três) metros, ao final dele, de terreno de marinha. Cumpre ressaltar que o regime jurídico a respeito dos terrenos de marinha se aplica em sua integralidade aos terrenos acrescidos. Portanto, todas as considerações sobre terrenos de marinha valem para os acrescidos.

9. Noutro sentido, acontece, com freqüência, que o mar avança, ao longo dos anos, em direção ao continente, tomando as áreas de terrenos de marinha. Nessas situações, o terreno de marinha não avança sobre os terrenos alodiais, mas continua, repita-se, onde sempre esteve, a contar da linha da preamar-média de 1831. Se o mar avança sobre os terrenos de marinha, o prejuízo é da União, que acaba por perder a área. 5

10. A Constituição Federal prescreve algumas normas em torno dos terrenos de marinha. Em primeiro lugar, repita-se que o inciso VII do artigo 20 arrola os terrenos de marinha entre os bens da União. Em segundo lugar, também o § 2º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dispõe sobre o assunto, especialmente para assegurar os direitos dos ocupantes de terrenos de marinha inscritos até a época da promulgação da Constituição Federal. Quanto à legislação infraconstitucional, merece destaque o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe, de modo geral, sobre os bens imóveis da União, e a Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1988, que, entre outras coisas, regulamenta o referido § 2º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispondo sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União. Além desses diplomas legislativos, pode-se contar uma série de decretos, portarias e instruções normativas sobre o assunto, boa parte delas citadas ao longo do presente texto.

II. Da delimitação da linha da PREAMAR-MÉDIA de 1831

11. Um dos pontos mais controvertidos do assunto em causa diz respeito à delimitação da linha da preamar-média de 1831, marco inicial a partir do qual se conta a faixa de terra de 33 (trinta e três) metros que constitui o terreno de marinha. Como visto, a linha da preamar-média de 1831 significa a média das marés altas apuradas em 1831. Ocorre que, na quase totalidade da costa brasileira, a linha não foi traçada, bem como a União se recusa a fazê-lo, sob a escusa de falta de elementos técnicos.

Essa situação é relatada por João Alfredo Raymundo e Silva, que observa o seguinte: “Sucede que, em pouquíssimos pontos do litoral brasileiro este marco inicial – linha do preamar médio de 1831 - foi fixado. Como saber, então, onde começam e terminam os terrenos de marinhas e seus acrescidos. Isto acarreta sérios problemas às municipalidades quando da aprovação de plantas para construções e loteamentos e da prática de outros atos de administração.” 6

12. Nada obstante isso, a Secretaria do Patrimônio da União expediu a Instrução Normativa nº 02, de 12 de março de 2001, que se dispõe a regulamentar a demarcação dos terrenos de marinha. Em complemento, também a Orientação Normativa GEADE-002, de 12 de março de 2001, visa a estabelecer critérios para a demarcação dos terrenos de marinha.

Ambos os diplomas normativos supracitados reconhecem que a determinação da linha da preamar-média de 1831 é pressuposto para a demarcação dos terrenos de marinha. No entanto, o procedimento previsto em ambos os diplomas legislativos presta-se, quanto mais, a apurar a linha da preamar-média de 1831 de modo presumido, sem exatidão e precisão científicas. Tal procedimento não prevê metodologia para realizar o cálculo da preamar-média de 1831, apenas do atual ou de período próximo, que é coisa bem diferente. Repita-se que para a legislação brasileira os terrenos de marinha partem da linha da preamar-média de 1831 e não da linha da preamar-média de qualquer outra época.

13. Sem embargo, na prática, o procedimento previsto na Instrução Normativa nº 02, de 12 de março de 2001, e na Orientação Normativa GEADE-002, de 12 de março de 2001, ainda que leve a demarcações imprecisas, não é sequer obedecido pela própria Secretaria do Patrimônio da União - autora, insista-se, de tais diplomas normativos. Já há algum tempo, a Secretaria do Patrimônio da União adotou a prática de contar os terrenos de marinha aleatoriamente, a partir da linha de vegetação que marca o fim das praias, que costuma ser denominada de linha de jundu,7 em ostensivo desalinho à ordem jurídica.

Diógenes Gasparini denuncia essa prática atentatória à legalidade: “O Judiciário, os particulares e os órgãos públicos, inclusive o SPU, têm aceito outro critério, diferente do previsto no Decreto-Lei nº 9.760/46 para determinar a linha que separa as marinhas das terras particulares. Substituem os peritos a linha da preamar média de 1831 pela linha do jundu, caraceterizada pelo início de uma vegetação (jundu), sempre existente além das praias e para o interior das terras que com elas confinam. O critério, a nosso ver, embora resolva na prática os problemas de demarcação da faixa dos trinta e três metros, ressente-se de legalidade. A aceitação pelo Judiciário e pelo SPU não o torna legal. Por ele não se atende ao prescrito no art. 2º do Decreto-Lei nº 9.760/46, que exige sejam os trinta e três metros contados da linha da preamar média de 1831, e desconhece-se, por conseguinte, que os requisitos legais para a sua determinação são registrados no art. 10. Esses são os únicos válidos.” 8

14. Quer dizer que a União, em vez de contar os terrenos de marinha da linha da preamar-média de 1831, vem tomando como marco a linha de jundu, isto é, a linha que indica o final das praias e o início da vegetação que a segue, denominada de jundu, ou, de uns anos para cá, apelidada de vegetação de restinga, em razão do acidente geográfico (restinga) que costuma encobrir. Ou seja, em vez de apurar, na forma do artigo 2º do Decreto-Lei nº 9.760/46, a linha da preamar-média de 1831, a União, alegando a impossibilidade técnica de fazê-lo, pura e simplesmente, sem qualquer amparo legal ou mesmo técnico, tomou como referência a linha de jundu, ou seja, a linha entre o final da praia e o começo da vegetação.

15. A União, ao proceder dessa forma, viola abertamente o princípio da legalidade, cuja dicção, como sabido e ressabido, prescreve a ela fazer apenas o permitido em lei. A propósito, insista-se que a lei é de claridade solar ao prescrever que os terrenos de marinha se contam a partir da linha da preamar-média de 1831. Não há qualquer disposição legal que autorize a União a contar os terrenos de marinha a partir do início da vegetação de jundu, o que revela a ilegalidade de tal procedimento, malgrado corrente. Por conseqüência, não resta alternativa afora reconhecer a invalidade de todas as demarcações de terrenos de marinha realizadas pela União a partir da linha de jundu, em descompasso com a linha da preamar-média de 1831 e, ipso facto, às normas legais regentes da matéria.

16. Além disso, ao contar os terrenos de marinha a partir da linha de jundu, a União acaba, na maior parte das vezes, por usurpar parte de áreas que, a rigor jurídico, pertencem aos proprietários dos terrenos alodiais (confrontantes com os terrenos de marinha). Isso porque, em regra, a linha da preamar-média de 1831 deve se posicionar abaixo da linha de jundu, em direção às águas. Então, ao contar os terrenos de marinha da linha de jundu, a União avança os seus domínios indevidamente mais alguns metros para o continente, sobre os terrenos alodiais, que, por dedução, perdem espaço.

A título ilustrativo, imagine-se que a linha da preamar-média de 1831 se encontre 5 (cinco) metros abaixo, em direção às águas em relação à linha do jundu. Contando-se a metragem do terreno de marinha a partir da linha de jundu, os terrenos alodiais, percebe-se, perdem 5 (cinco) metros em toda a sua extensão.

Trata-se, a todas as luzes, de espécie de grilhagem oficializada a favor da União e em desfavor de todos os proprietários de terrenos alodiais. Esse procedimento não se afaz à legalidade, bem como à própria moralidade administrativa e deve ser veementemente repudiado pelo Poder Judiciário, por meio das ações que tocam à espécie.

17. Sem embargo, vasta parcela dos experts no assunto refuta o argumento da União de que é tecnicamente inviável ou impossível delimitar atualmente a linha da preamar-média de 1831.

Entre outros, Humberto Haydt de Souza Mello pondera que “não há razão para que se determinem, tecnicamente, os preamares médio e máximo atuais e não se faça, também, com a mesma técnica e a mesma precisão, a determinação dos de 1831.” 9

18. Obéde Pereira de Lima apresentou tese de doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulada Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, propondo-se a comprovar a viabilidade técnica de demarcar nos dias de hoje a linha da preamar-média de 1831, valendo-se das técnicas e dos avanços científicos da atualidade, refutando os procedimentos adotados pela Secretaria do Patrimônio da União.
Em apertadíssima síntese, de acordo com a metodologia desenvolvida pelo autor, deve-se instalar e pôr em operação estação maregráfica, para a obtenção de dados amostrados da maré durante período mínimo de um ano, em conjunto com a determinação das coordenadas geodésicas de pelo menos dois pontos extremos, utilizando aparelho de GPS (Global Positioning System) em posicionamento com precisão de 1 ppm, para amarração de controle de levantamento plani-altimétrico da linha de costa e dos perfis de praia. Em seguida, deve-se processar os dados levantados, efetuando-se a análise harmônica das marés e a retrovisão da preamar-média para o período de 1831, utilizando o auxílio de computadores. Então, processados esses dados, basta se valer de técnicas de topografia para precisar a linha da preamar-média de 1831 no terreno em análise e, por conseqüência, os verdadeiros limites do terreno de marinha. 10

19. Obéde Pereira de Lima acrescenta que houve avanço do mar sobre o continente, o que é resultado de fenômenos climáticos como, por exemplo, o efeito estufa, que provoca o degelo de camadas glaciais. Em razão disso, segue o autor, grande parte dos terrenos de marinha, se contados rigorosamente - como devido - da linha da preamar-média de 1831, já estão encobertos pelo mar, isto é, já não existem. 11

O referido autor, no desenvolvimento da tese, procedeu à pesquisa de campo, tendo determinado, através da metodologia que propõe, a linha da preamar-média de 1831, na Praia da Enseada, no Município de São Francisco do Sul, Estado de Santa Catarina. O resultado dessa pesquisa de campo é deveras surpreendente, especialmente para os leigos, dado que se constatou avanço do mar em direção ao continente de mais de 100 (cem) metros, por efeito do que a faixa de terreno de marinha, de 33 (trinta) metros a contar da linha da preamar-média de 1831, está totalmente encoberta, já não existe, ao contrário do que pretende a União. 12

Isso traz enormes repercussões jurídicas, dado que, na Praia da Enseada, os pretensos terrenos de marinha, na verdade, pertencem aos proprietários dos terrenos alodiais. Ademais, a imposição aos proprietários de tais terrenos alodiais de pagamento de foros, laudêmios, taxas de ocupação, etc, constituem atos administrativos inválidos. As importâncias já pagas, por sua vez, devem ser ressarcidas.

Cumpre ressaltar, a esta altura, que o avanço do mar ocorrido na Praia da Enseada não se constitui fenômeno isolado. Repita-se que isso é resultado do aquecimento global, que, por sua vez, produz o degelo das camadas glaciais. Portanto, cabe vaticinar que fenômenos semelhantes se sucederam ao longo de toda a costa brasileira e que, por corolário, em muitos lugares, já não há terrenos de marinha. Ou seja, muitos dos terrenos que a União reputa como seus, a rigor jurídico, não o são, porquanto pertencem a terceiros, aos proprietários dos terrenos alodiais, já que as faixas de 33 (trinta e três) metros a contar da linha da preamar-média de 1831, correspondente aos terrenos de marinha, foram encobertas pelo mar. Na mesma senda, nesses lugares, as obrigações de pagamento de foros, laudêmios, taxas de ocupações e outras injunções impostas pela União são inválidas.

20. A Secretaria do Patrimônio da União, ardilosamente e sem qualquer amparo legal, atenta à perda dos terrenos de marinha, pretende, através da cláusula 4.8.12. da Ordem de Serviço GEADE-002, de 12 de março de 2001, ao constatar o avanço das marés, tomar como linha preamar para a contagem do terreno de marinha a linha que coincidir com o batente das ondas, abstraindo-se os referidos avanços.

Esse procedimento - repita-se - é ilegal, não subsiste aos olhos do Direito. Não existe dispositivo legal que legitime essa postura. A Lei, ou melhor, o Decreto-Lei nº 9.760/46 é extremamente claro ao preceituar que o terreno de marinha corresponde à faixa de terra de 33 (trinta e três) metros a contar da linha da preamar-média de 1831. Se essa faixa de terra já não existe, por dedução lógica, já não existe o terreno de marinha. A Ordem de Serviço em comento, na qualidade de ato administrativo, está abaixo da lei, é-lhe vedado contrariar as disposições legais, criar primariamente obrigações.

III. Processo administrativo para a demarcação dos terrenos da Marinha

21. De todo modo, cumpre salientar que, conforme o artigo 9º do Decreto-Lei nº 9.760/46, é de competência da Secretaria do Patrimônio da União a determinação da posição das linhas da preamar-média do ano de 1831. Em seguida, o mesmo Decreto-Lei preocupa-se em delinear processo administrativo a ser observado pela Secretaria do Patrimônio da União para realizar a demarcação.

Por força do artigo 11, do mesmo diploma legal, a Secretaria do Patrimônio da União deve convidar os interessados certos e incertos, pessoalmente ou por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo plantas, documentos e outros esclarecimentos sobre o terreno demarcando. Já o artigo 13 determina que sejam realizados trabalhos topográficos, para que, então, o Chefe do órgão local da Secretaria do Patrimônio da União determine a posição da linha em despacho. Esse despacho deve ser publicado por meio de edital, dando-se ciência aos interessados e abrindo-lhes o prazo de 10 (dez) dias para impugnação. Havendo impugnação, a autoridade local deve reexaminar a sua decisão e, ex officio, recorrer ao Diretor da Secretaria do Patrimônio da União, sem prejuízo do recurso das partes interessadas. Da decisão do Diretor, cabe ainda recurso, no prazo de 20 (vinte) dias, para o Conselho de Terras da União.

22. Portanto, é visivelmente ilegal e, sobretudo, inconstitucional, por obséquio aos incisos LIV e LV do artigo 5º da Carta Magna, o procedimento adotado assaz das vezes pela Secretaria do Patrimônio da União, que, sem atenção a qualquer formalidade, determina, de modo unilateral, a linha da preamar-média de 1831, sem sequer dar oportunidade para os interessados se manifestarem, especialmente os proprietários e legítimos possuidores dos imóveis alodiais.

Esse procedimento revela vício procedimental, que afeta um dos pressupostos de validade do ato administrativo. Por isso, as demarcações de terreno de marinha promovidas pela Secretaria do Patrimônio da União de maneira unilateral, em desalinho ao preceituado nos artigos 11 e seguintes do Decreto-Lei nº 9.760/46, padecem de vício que lhes afeta a validade, em virtude do que, mais uma vez, se impõe atuação enérgica do Poder Judiciário, para o efeito de restaurar a ordem jurídica violada.


IV. Modos de utilização dos terrenos de Marinha por terceiros

23. Como dito, os terrenos de marinha são reputados bens dominicais e, nessa qualidade, com arrimo no artigo 64 do Decreto-Lei nº 9.760/46, podem ser utilizados, de acordo com a conveniência da União, por terceiros, através de contratos de aforamento, cessão onerosa de uso, permissão de uso, etc. Neste tópico, pretende-se discorrer sobre os modos de utilização dos terrenos de marinha por terceiros, analisando o regime jurídico próprio aos contratos usualmente celebrados pela União.

(a) Aforamento ou enfiteuse

24. Inicialmente, é oportuno observar que o aforamento ou a enfiteuse é utilizado pelo Direito Civil e pelo Direito Público, com distinções pontuais. 13 O antigo Código Civil tratava do assunto nos artigos 678 e seguintes. O artigo 2.038 do novo Código Civil proíbe a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do antigo Código Civil. Sem embargo, o § 2º do mesmo artigo ressalva que a enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial, própria ao regime jurídico público. Ou seja, quer-se esclarecer que o aforamento ou enfiteuse de terrenos de marinha não foi sequer tocado pelo novo Código Civil; continua a ser disciplinado pelas leis especiais, regentes da Administração Pública.

25. Pois bem, conforme o § 2º do artigo 64 do Decreto-Lei nº 9.760/46, “o aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e de manter-se o vínculo da propriedade pública.” Destarte, para que terreno da União seja aforado, é necessária a autorização do Presidente da República, salvo expressa disposição legal nesse sentido (caput do artigo 99 do Decreto-Lei nº 9.760/46). Além disso, as alíneas do artigo 100 do mesmo Decreto-Lei exigem a audiência dos ministros da guerra, do Ministério da Agricultura, do Ministério da Viação e Obras Públicas e das Prefeituras Municipais. A Secretaria do Patrimônio da União é o órgão competente pela aplicação e pelo gerenciamento dos contratos de aforamento.

O aforamento é espécie de contrato através do qual se transfere direito real sobre bem imóvel alheio. Nele, ocorre o desdobramento do domínio entre o efetivo proprietário, apelidado de senhorio, e aquele que recebe o direito real sobre o imóvel, apelidado de foreiro ou enfiteuta. O senhorio é titular do domínio direto, enquanto o foreiro do domínio útil, o que outorga a ele amplos poderes sobre a coisa, podendo aproveitá-la como se ela o pertencesse.14 O foreiro conserva esses direitos perpetuamente, podendo transferi-los aos seus herdeiros ou a terceiros, de modo gratuito ou oneroso.

Em contrapartida, o foreiro deve pagar anualmente à União o foro correspondente a 0,6% (seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno (caput do artigo 101 do Decreto-Lei nº 9.760/46), bem como, em caso de transferência onerosa do aforamento - que deve contar com o assentimento da União, que inclusive exerce direito de preferência (caput e § 1º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 9.760/46) -, deve pagar o laudêmio correspondente a 5% (cinco por cento) sobre o valor do domínio pleno e benfeitorias (§ 1º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 9.760/46). Ressalva-se que os carentes são isentos do pagamento do foro, desde que tal encargo comprometa o sustento próprio e familiar (artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.876, de 15 de julho de 1981).

A inadimplência do foreiro por 3 (três) anos consecutivos ou 4 (quatro) anos intercalados importa na caducidade do aforamento (§ 2º do artigo 101 do Decreto-Lei nº 9.760/46, com a redação dada pelo artigo 32 da Lei nº 9.639/46). Sem embargo, ainda antes de se extinguir o domínio útil do foreiro, a Secretaria do Patrimônio da União deve notificá-lo, concedendo-lhe o prazo de 90 (noventa) dias para apresentar reclamação ou solicitar a revigoração do aforamento, última oportunidade para que ele cumpra as suas obrigações e, com isso, mantenha o contrato (artigo 118 e 119 do Decreto-Lei nº 9.760/46). Quanto aos terrenos de marinha, o pedido de revigoração só pode ser negado pela União nas hipóteses em que ela necessitar deles para o serviço público, devendo, então, indenizar o foreiro pelas benfeitorias existentes (artigo 120 do Decreto-Lei nº 9.760/46).

O aforamento também pode extinguir-se pelo acordo entre as partes (senhorio e foreiro) ou pela remição do foro, a critério do Presidente da República, por proposta do Ministério da Fazenda, nas zonas onde já não subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico (caput do artigo 103 do Decreto-Lei nº 9.760/46, com redação dada pelo artigo 32 da Lei nº 9.636/98). A remição é o ato pelo qual o foreiro adquire o domínio pleno da coisa, isto é, passa a ser efetivamente o proprietário da coisa em sua plenitude. Para proceder à remição, o foreiro deve pagar à União importância correspondente a 17% (dezessete por cento) do valor do domínio pleno do terreno (artigo 123 do Decreto-Lei nº 9.760/46, com a redação dada pelo artigo 32 da Lei nº 9.636/98).

(b) Ocupação

26. Em paralelo ao contrato de aforamento ou enfiteuse, a União passou a permitir que particulares utilizem terrenos de marinha, expedindo em favor deles certificados de ocupação. De acordo com João Alfredo Raymundo e Silva, a ocupação é mais vantajosa à União, pois lhe possibilita cobrar dos ocupantes taxas bem mais rentáveis do que o foro pertinente ao contrato de aforamento ou enfiteuse. 15 Esse regime de ocupação - informa o autor supracitado - foi instituído em 31 de dezembro de 1920, pelo então Presidente da República Epitácio Pessoa, através do Decreto de nº 14.595, que disciplinava o inciso V do artigo 2º da Lei nº 3.595, de 31 de dezembro de 1919.

A ocupação constitui estado de mera tolerância por parte da União, que consente na utilização, por terceiros, dos seus terrenos de marinha. Diferentemente do aforamento ou enfiteuse - em que há divisão entre o domínio útil (do foreiro) e o domínio direto (da União), conferindo série de prerrogativas ao foreiro ou enfiteuta -, na ocupação o domínio pleno permanece nas mãos da União, ou seja, não há divisão do domínio, o bem pertence integralmente a ela, sem que assistam maiores direitos aos ocupantes. Trata-se, a rigor, de ato administrativo unilateral e precário, realizado, historicamente, sem critério algum, em desalinho ao preceito isonômico, pelo que, através dele, se concedeu uma série de privilégios a apadrinhados.

De todo modo, os ocupantes ficam obrigados ao pagamento anual de taxa de ocupação (artigo 127 do Decreto-Lei nº 9.760/46), que corresponde a 1% (um por cento) sobre o valor do domínio pleno do terreno (§ 1º do mesmo artigo). O valor dessa taxa é periodicamente atualizado pela Secretaria do Patrimônio da União (§ 2º do mesmo artigo). Em caso de não-pagamento da taxa durante 2 (dois) anos consecutivos, a Secretaria do Patrimônio da União deve providenciar a cobrança executiva e promover as medidas de direito para a desocupação do imóvel (§ 2º do artigo 129 do referido Decreto-Lei). Cabe anotar que os ocupantes carentes são isentos do pagamento da taxa de ocupação (artigo 1º do Decreto-Lei nº 1.876/81).

A inscrição da ocupação na Secretaria do Patrimônio da União e o pagamento da taxa não conferem ao ocupante direito de propriedade ou ao aforamento (artigo 131 do Decreto-Lei nº 9.760/46). A União preserva o direito de, a qualquer tempo, imitir-se na posse dos imóveis então ocupados (artigo 132 do mesmo Decreto-Lei).

(c) Inovações Introduzidas pela Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998.

27. A Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, sucessora da Medida Provisória nº 1567, de 14 de fevereiro de 1997, assentou transformações contundentes no regime de gerenciamento dos bens públicos e, notadamente, dos terrenos de marinhas e seus acrescidos. O artigo 1º da Lei já consigna que o objetivo dela consiste em regularizar as ocupações e promover a utilização ordenada dos bens da União.

Pois bem, a seção II da referida Lei, em seus artigos 6º e seguintes, cuida do cadastramento das ocupações. O artigo 9º da mesma Lei veda a inscrição de ocupações que ocorreram ou que ocorram após 15 de fevereiro de 1997 (data da publicação da Medida Provisória nº 1.567, que, convertida, deu origem à Lei nº 9.636/98) ou que estejam comprometendo áreas de uso comum, de segurança nacional, de preservação ambiental, das necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, das reservas indígenas, das ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, das vias federais de comunicação, das reservadas para construção de hidrelétrica ou congêneres.

28. Os terrenos de marinha ocupados por terceiros poderão ser aforados, mediante leilão ou concorrência pública (artigo 12 da Lei nº 9.639/98). Na concessão do aforamento será dada preferência a quem, comprovadamente, em 15 de fevereiro de 1997, já ocupava o imóvel há mais de um ano e esteja, até a data da formalização do contrato de alienação do domínio útil, regularmente inscrito como ocupante e em dia com suas obrigações junto à Secretaria do Patrimônio da União (artigo 13 da mesma Lei). Tal direito de preferência redunda na prerrogativa em favor do ocupante de não se sujeitar à concorrência ou ao leilão para celebrar o aforamento. Ele, o ocupante, é notificado pela Secretaria do Patrimônio da União a respeito do preço mínimo para o aforamento, que deve ser celebrado no prazo de seis meses a contar da notificação, prazo esse sujeito à prorrogação por outros seis meses, a pedido do interessado. O ocupante deve pagar pelo domínio útil apenas o preço mínimo, que pode ser quitado à vista, no ato da assinatura do contrato (inciso I do artigo 14 da Lei em comento), ou mediante entrada mínima de 10% (dez por cento) do preço, a título de sinal e princípio de pagamento, e do saldo em até cento e vinte prestações mensais e consecutivas, devidamente atualizadas, desde que o término do parcelamento não ultrapasse a data em que o adquirente complete oitenta anos de idade (inciso II do mesmo artigo). Esclareça-se que, através dessa operação, os então ocupantes não adquirem o domínio pleno dos terrenos de marinha, porém apenas o domínio útil, sujeitando-se ao regime de aforamento ou enfiteuse.

29. Os terrenos de marinha e acrescidos vagos ou ocupados há até um ano em 15 de fevereiro de 1997, bem assim aqueles cujos ocupantes não tiverem exercido direito de preferência, devem ser aforados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os interessados (artigo 15 da Lei 9.636/46). Os ocupantes que não exercerem direito de preferência devem desocupar os imóveis em até sessenta dias, findo o qual devem pagar indenização pela ocupação ilícita, correspondente a 10% do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano, até que a União seja reintegrada na posse do imóvel (§ 7º do mesmo artigo 15). Ademais, os ocupantes que não exercerem direito de preferência devem ser ressarcidos a respeito das benfeitorias por eles realizadas.

30. Sem embargo, os ocupantes inscritos até 5 de outubro de 1988, que não exercerem a preferência para o aforamento, não precisam desocupar os respectivos imóveis, desde que celebrem contrato de cessão onerosa de uso, por prazo indeterminado (artigo 17 da Lei nº 9.636/98). Essa opção, que é dada aos ocupantes inscritos até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, decorre do § 2º do artigo 49 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, cuja redação prescreve que “os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato”.

Trocando-se em miúdos: os ocupantes inscritos até a data da entrada em vigência da Constituição estão protegidos pelo aludido dispositivo, o que impede a União de forçá-los a celebrar o contrato de aforamento, já que os direitos deles estão assegurados, impondo a eles, pura e simplesmente, a aplicação de outra modalidade contratual, denominada de cessão de uso onerosa. Por corolário, os ocupantes devem passar a cessionários.

A opção pelo contrato de cessão de uso onerosa deve ser realizada no prazo de seis meses a contar da data da notificação para o aforamento a que se refere o § 1º do artigo 13 da Lei nº 9.636/98 (§ 1º do artigo 17 da mesma Lei). O cessionário, mesmo que não exerça o direito de preferência para o aforamento num primeiro momento, poderá fazê-lo quando lhe for conveniente, excetuada a hipótese de haver sido declarado o interesse do serviço público sobre o imóvel, na forma do artigo 5º do Decreto-Lei nº 2.398, de 1987 (§ 3º do artigo 17).

(d) Benfeitorias e acessões realizadas por ocupantes ou cessionários

31. A ocupação e a cessão onerosa de uso são atos precários, na medida em que a União, para a satisfação do interesse público, goza do direito de, a qualquer tempo, imitir-se na posse dos terrenos de marinha e desalojar os ocupantes ou cessionários. Acontece que os ocupantes ou cessionários - na maior parte das vezes - realizam construções (acessões) e, nelas, benfeitorias, tudo sobre os terrenos de marinha. Logo, se a União desaloja os ocupantes ou cessionários e toma para si os terrenos de marinha, resta apurar a situação das acessões e benfeitorias; especialmente se os ocupantes ou cessionários têm ou não direito à indenização por elas.

32. Com efeito, conforme o regime estatuído pelo Decreto-Lei nº 9.760/46, a União reservava para si o direito de imitir-se na posse dos terrenos ocupados, devendo, no entanto, indenizar as benfeitorias existentes sobre os mesmos, desde que a ocupação seja reputada de boa-fé (§ 1º do mesmo artigo 132).

Aliás, o Decreto-Lei nº 9.760/46 reconhece os direitos dos ocupantes às benfeitorias, tanto que é permitido transferi-los de modo oneroso, desde que com a prévia licença da Secretaria do Patrimônio da União, que deve cobrar o laudêmio de 5% (cinco por cento) sobre o valor do terreno e das benfeitorias nele existentes (artigo 130 do mesmo Decreto-Lei).

Em sentido oposto, o § 1º do artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.561, de 13 de julho de 1977, prescreve que os ocupantes não têm direito à indenização pelas benfeitorias. Essa orientação foi mantida pela Lei nº 9.636/98, cujo § 2º do artigo 17 prescreve que, se houver interesse do serviço público, é facultado à União, em qualquer tempo, revogar o contrato de cessão onerosa e reintegrar-se na posse do imóvel, após o decurso do prazo de noventa dias da notificação administrativa, não sendo reconhecidos ao cessionário quaisquer direitos sobre o terreno ou à indenização por benfeitorias realizadas.

Sob esse quadro, há de se respeitar os direitos adquiridos dos ocupantes que realizaram suas benfeitorias sob o regime do Decreto-Lei nº 9.760/46, isto é, antes de 13 de julho de 1977, data do Decreto-Lei nº 1.561, a partir do qual se passa a negar o direito à indenização por benfeitorias. Ou seja, quem realizou benfeitorias antes de 13 de julho de 1977, caso a União queira imitir-se na posse do terreno de marinha, tem direito à indenização. E esse direito mantém-se intacto, mesmo que o então ocupante tenha realizado opção pela cessão onerosa de uso, porquanto o § 2º do artigo 49 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias assegura os direitos dele.

No entanto, quem realizou benfeitorias após 13 de julho de 1977, a priori, não tem direito à indenização. Essa situação é, em tudo e por tudo, iníqua, especialmente com aqueles que realizaram benfeitorias necessárias, cujo propósito é manter e conservar algo que já existia anteriormente. Recusar indenização por benfeitorias necessárias fere de morte o princípio da boa-fé, da própria moralidade administrativa, uma vez que a União estaria se locupletando às custas do zelo e da retidão dos ocupantes.

33. Repare-se que os decretos-leis supracitados e a própria Lei nº 9.636 referem-se à benfeitoria, que é coisa bem diferente da acessão. Por exemplo, se alguém recebe terreno de marinha da União a título de ocupante e sobre ele constrói uma residência, realizou acessão, não benfeitoria.

O ponto é que sobre a acessão não existe norma alguma que negue aos ocupantes de boa-fé o direito à indenização. Aliás, nesse particular, deve-se aplicar analogicamente o Código Civil, cujo artigo 1.255 preceitua: “Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito à indenização”. Portanto, trazendo-se à colação o Código Civil, assegura-se indenização pelas acessões realizadas pelos ocupantes de boa-fé.

Pondera-se, entretanto, em torno do parágrafo único do mesmo artigo 1.255 do Código Civil, que, em síntese, prescreve ao responsável pela acessão o direito à aquisição da propriedade, se o valor dela, da acessão, for consideravelmente superior ao valor do terreno em si. Essa norma não pode ser aplicada analogicamente aos terrenos de marinha, porque é flagrantemente contrária ao princípio da superioridade do interesse público sobre o privado, um dos vetores máximos do regime jurídico administrativo. Ocorre que a União não pode perder a propriedade sobre imóvel de interesse público, em razão de outrem, um ocupante, ter levantado sobre ele construção de alto valor. Nessa situação, a União desaloja o ocupante e o indeniza sobre o valor da acessão.

(e) Outros tipos contratuais

A Lei nº 9.636/98, além de tratar do aforamento, da situação dos ocupantes e da sessão de uso onerosa, prescreve disposições acerca da permissão de uso e da alienação, que, por sua vez, é realizada por meio da venda, da permuta e da doação. Existem muitos outros tipos de contratos afora os mencionados, que, nada obstante também sejam relevantes, não são tratados no presente estudo. Seguem apressados comentários sobre as espécies de contratos que são objetos da Lei nº 9.636/98.

A permissão de uso é ato precário, de competência do Secretário do Patrimônio da União, ou, por delegação, das Delegacias do Patrimônio da União, através do qual a União autoriza a utilização de imóvel seu, entre os quais os terrenos de marinha, para a realização de eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional (artigo 22 da Lei nº 9.636/98).

Já a alienação de bens públicos - entre os quais, é possível, de terrenos de marinha - depende de autorização do Presidente da República ou, por delegação deste, do Ministro da Fazenda, precedida de parecer da Secretaria do Patrimônio da União (artigo 23 da Lei nº 9.636). A alienação só é permitida nas situações em que não há interesse público, econômico ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto à preservação ambiental e à defesa nacional, no desaparecimento do vínculo de propriedade (§ 1º do artigo 23 da Lei nº 9.636/98).

O primeiro modo de alienação dá-se através da venda, em que o adquirente paga preço certo pelo imóvel de propriedade da União. A venda deve ser feita mediante processo de licitação pública, sob a modalidade concorrência ou leilão (caput do artigo 24 da Lei nº 9.636/98).

A segunda forma de alienação é a permuta - moldada pelo artigo 533 e seguintes do Código Civil -, através da qual os contratantes trocam um bem por outro, melhor explicando, a União transfere um bem e recebe outro em contrapartida. O § 2º do artigo 30 da Lei nº 9.636/98 prescreve que, sempre que houver condições de competitividade, devem ser observados os procedimentos de licitação. Cumpre ressaltar que a alínea c do inciso I do artigo 17 da Lei nº 8.666/93 autoriza a dispensa de licitação para a permuta de imóveis da Administração Pública, desde que o imóvel a ser recebido na troca seja destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha.

A terceira espécie de alienação diz respeito à doação. De acordo com o artigo 583 do Código Civil, “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”

O caput do artigo 31 da Lei nº 9.636/98 autoriza a doação de bens imóveis de domínio da União a Estados, Municípios e a fundações e autarquias públicas federais, estaduais e municipais. Portanto, é vedado à União doar imóveis para pessoas jurídicas de direito privado. Essa restrição vale para a União, não para os estados e para os municípios, sujeitos à alínea b do inciso I do artigo 17 da Lei nº 8.666/93, que reputa dispensada a licitação para esse tipo de operação contratual.

A propósito, a parte final da alínea b do inciso I do artigo 17 da Lei nº 8.666/93 proibia que a doação fosse realizada para pessoas estranhas à Administração Pública. No entanto, essa parte do dispositivo foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, já que questionada pelo Estado do Rio Grande do Sul, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 927-3. Em suma, atualmente os estados, Distrito Federal e municípios decidem para quem doar os seus bens, sem que se reconheça à União legitimidade para lhes impor qualquer espécie de restrição.

Acrescente-se que as doações de imóveis realizadas pela União são acompanhadas de encargo permanente e resolutivo (§ 2º do artigo 31 da Lei nº 9.636/98). Em virtude de tal encargo, os imóveis doados devem reverter para a União diante das seguintes situações: os encargos forem descumpridos; se cessarem as razões que justificaram outrora a doação; ou se o imóvel for utilizado de maneira diversa da prevista (incisos I a III do § 2º do artigo 31 da Lei nº 9.636/98). Enfim, ao donatário não é permitido alienar os imóveis recebidos, salvo se o mesmo pretende proceder a projeto de assentamento de famílias carentes (§ 3º do artigo 31 da Lei nº 9.636/98).

V. Críticas à proposta de mudança da linha da PREAMAR-MÉDIA de 1831 como referencial para a demarcação do início dos terrenos da Marinha

O ex-Senador Paulo Hartung propôs o Projeto de Lei nº 617, de 09 de novembro de 1999, cujo texto, substancialmente, pretendia alterar a faixa dos terrenos de marinha de 33 (trinta e três) metros para 13 (treze) metros; bem como a linha a partir do qual essa faixa deve ser contada, a partir, de acordo com a redação original do Projeto, da linha da preamar-média de 1999, em vez da linha da preamar-média de 1831, atualmente vigente.

Esse projeto passou pela Comissão de Assuntos Econômicos e pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, onde foram apostas algumas emendas, que imprimiram modificações ao texto inicial para o efeito de retornar à metragem da faixa correspondente aos terrenos de marinha aos 33 (trinta e três) metros, atualmente vigente, e para alterar a data de referência da preamar-média, então do ano de 1999, para o ano de 2000.

Aprovado no Senado Federal, o Projeto foi remetido à Câmara dos Deputados, onde foi aprovado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional e seguiu para a Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, tendo recebido, em 26 de junho de 2002, parecer contrário da lavra do Deputado Gerson Gabrielli. Pois bem, o Projeto continua em tramitação, portanto a discussão sobre o assunto está aberta.

A idéia que permeia o Projeto de Lei – depreende-se da justificativa apresentada junto com ele – centra-se em estabelecer novo referencial para a medição dos terrenos de marinha, a contar da aprovação dele, de linha da preamar-média mais recente, do ano de 2000 em vez do distante ano de 1831.

Recorde-se que a União sempre se recusou a demarcar com exatidão os terrenos de marinha sob a escusa de que não dispunha de elementos técnicos para determinar a linha da preamar-média de 1831. Por isso, a praxe da União é adotar a linha de preamar presumida, substituindo, de modo ofensivo à legalidade, a de 1831, pela linha de jundu, ponto a partir do qual se inicia a vegetação. Em vista da alegada impossibilidade técnica de se demarcar a linha de 1831, o Projeto pretende adotar linha recente, pondo fim aos argumentos da União.

No entanto, essa alteração na linha a partir do qual se contam os terrenos de marinha, do ano de 1831 para o ano de 2000, gera uma série de repercussões jurídicas, provavelmente desconsideradas pelos parlamentares.

Sobretudo, ganha importância o fenômeno do degelo das calotas polares, que provocou, ao longo dos anos, o avanço do mar em direção ao continente. Isso fez com que, em muitos lugares da costa brasileira, já não existam terrenos de marinha, porque os mesmos foram encobertos pelo mar. Daí que a mudança da preamar para o ano de 2000 produz o efeito de fazer ressurgir e de avançar os terrenos de marinha sobre o continente, mais precisamente sobre os terrenos alodiais, pertencentes a terceiros, o que fere de morte o inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal, cujo texto garante o direito de propriedade.

Por obséquio, desta vez, ao inciso XXIV do mesmo artigo 5º da Constituição Federal, é imperativo que a União se valha do procedimento de desapropriação a fim de tomar para si imóvel de outrem, o que pode ser feito por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro. Como o Projeto de Lei em comento sequer cogita de desapropriação, ele é inconstitucional.

Presume-se que o autor do Projeto de Lei e os parlamentares não atentaram ao fato de que, ao contarem-se os terrenos de marinha a partir da linha da preamar-média do ano de 2000, está-se, na maior parte dos casos, a tomar propriedade de terceiros. Por isso é que, cogita-se, ninguém levantou a lebre da desapropriação. De todo modo, se o Projeto de Lei for aprovado e se o Judiciário não o reputar inconstitucional, por certo os proprietários dos terrenos alodiais que perderam parte de seus imóveis irão reclamar indenização, que, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo paga pelos cofres públicos, já com juros, correção monetária, honorários advocatícios, etc. Quer-se dizer que a aprovação desse Projeto de Lei produz mais um dos apelidados “esqueletos”, que geram enormes prejuízos ao Erário.

De tudo quanto se disse ressoa que o grande problema em torno dos terrenos de marinha diz respeito à demarcação da linha da preamar-média de 1831, a partir da qual ele é contado. Como enfatizado, a União recusa-se a levantar essa linha, sob a escusa de ausência de elementos técnicos, o que é negado por parcela expressiva dos especialistas no assunto. Alterar a linha da preamar-média para data recente, como pretende o Projeto de Lei, não resolve coisa alguma; traz, quanto mais, novas perplexidades. Os deputados e senadores - sensibilizados com a situação dos proprietários de terrenos alodiais, já há tempo extorquidos pela União - se quiserem dar solução ao assunto, que exijam a efetiva demarcação da linha da preamar-média de1831 pela Secretaria do Patrimônio da União. Isso já bastaria!

Florianópolis, 10 de março de 2004.


NOTAS DE RODAPÉ

1. Confira-se a redação do dispositivo: “art. 2º - São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha do preamar-média de 1831:
(a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
(b) os que contornam as ilhas situadas em zona se faça sentir a influência das marés.
Parágrafo Único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.”
2. MELLO, Humberto Haydt de Souza.Terrenos de Marinha, Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, 12:239.
3. Idem.
4. CAVALCANTI. Themistocles Brandão.Tratado de Direito Administrativo. v. III. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964. p. 6.
5. Sobre esse tópico, confira-se ementa do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Terreno de Marinha. Aforamento. Faixa que se encontra há séculos na posse da municipalidade, como lougradoro do uso comum do povo. Avanço do mar pela encosta, tragando várias dezenas de metros. Fato que não faculta ao foreiro avançar, na mesma proporção, acompanhando a erosão para o interior, para chamar a si as terras que estão ocupadas com serviços públicos desde os primórdios da República. Ação improcedente. Recurso provido. Voto vencido.” (Apelação nº 111.596. Capital. RT 330/257)
6. SILVA, João Alfredo Raymundo e. Terrenos de marinha, seus acrescidos e administração municipal. Revista de Direito Público, jan-jun de 1976. n. 37-38, p. 326
7. O grupo de geógrafos coordenados por Aroldo de Azevedo, autores de Brasil - A Terra e o Homem, ao discorrer sobre as formações litorâneas, descortina a expressão vegetação de jundu: “Por trás das dunas, nas áreas dos cordões litorâneos ou melhor, das restingas, aparece o tipo de vegetação que na paisagem mais se destaca. É o que vários autores denominam de restinga, por extensão do termo que indica a forma de terreno sobre o qual aparece. Para evitar confusão, preferimos o termo jundu, designação que é utilizada em algumas regiões do litoral paulista e cuja generalização já havia sido proposta por Lofgren.” (Brasil – A Terra e o Homem. v. 1. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. p. 545).
8. GASPARINI, Diógenes. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. nº 72. p. 417
9. Ob. cit. p. 240
10. LIMA, Obéde Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Florianópolis, SC, 2002. xx, 250 p. Tese (Doutorado em Engenharia) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, UFSC, 2002.
11. Idem. p. 93.
12. Idem. p.
13. A respeito das distinções entre o aforamento civil e o administrativo, confira-se: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Os terrenos de marinha aforados e o poder municipal. Revista de Direito Público. p. 24.
14. Em comentários ao instituto da enfiteuse regrado pelo antigo Código Civil, Caio Mário da Silva Pereira observa: “O foreiro ou enfiteuta tem a posse direta do imóvel aforado, do que lhe resulta a faculdade de aproveitá-la segundo o seu interesse nos limites legais, perceber os seus frutos e rendimentos, e usá-lo sem lhe destruir a substância (...)” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. IV v. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 173)
15. SILVA, João Raimundo e. Terrenos de Marinha, acrescidos e Administração Municipal. Revista de Direito Público nº 37-38. São Paulo: RT, jan/jun 1976. p. 323.

| Artigo publicado em 24.08.2004 |




REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS