Princípio do Juiz Natural Autor:
Desembargador Federal Nylson Paim de Abreu |
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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina; 3. Princípio do juiz natural na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 4. Princípio do juiz natural no direito constitucional brasileiro positivo; 5. Juiz natural e a formação do litisconsórcio; 6. Princípio do juiz natural e os mutirões de julgamentos nos Tribunais; 7. Juiz natural e foro especializado em razão da matéria ou por prerrogativa de função; 8. Conclusão; 9. Bibliografia.
Antes mesmo do início da idade média os cidadãos já esboçavam o desejo da institucionalização de um juiz natural, o que veio a acontecer mais tarde em França, consoante o escólio de Rui Portanova: “A primeira referência legal à expressão ‘juiz natural’ é do artigo 17 do título II da Lei Francesa de 24.08.1790. Também aos franceses se deve a prioridade da primeira referência constitucional no texto fundamental de 1791. Contudo, a Magna Carta Inglesa de 1215, mesmo com a distribuição da justiça ainda pelos proprietários de terra e a incipiente justiça estatal, já previa sanções a condes e barões (art. 21) e homens livres (art. 39) após ‘julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra’. No mesmo diploma encontra-se: ‘nenhuma multa será lançada senão pelo juramento de homens honestos da vizinhança.’ (art. 39).”1 Com efeito, o princípio do juiz natural, amalgamado nos princípios da legitimidade, da imparcialidade e da igualdade, constitui apanágio da justiça, anseio maior de toda sociedade civilizada. Nesse sentido,é oportuna a lição sempre lúcida da Profª. Ada Pellegrini Grinover: “mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível”.2 Segundo a doutrina processual autorizada, o primeiro requisito do juiz natural é a sua legitimidade, ou seja, órgão estatal investido de jurisdição conforme os ditames legais e constitucionais. Como decorrência lógica daquele princípio, o órgão jurisdicional há de ser imparcial, de molde a que sua decisão seja imune a interferências externas. Por isso, o juiz deve subordinar-se única e exclusivamente à Constituição e às leis, sendo que quanto a estas poderá deixá-las de aplicar se reconhecê-las inconstitucionais, valendo-se do exercício do controle difuso. A respeito do aludido princípio, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 230009-RJ, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, assentou: “A imparcialidade do magistrado, um dos pilares do princípio do juiz natural, que reclama juiz legalmente investido na função, competente e imparcial, se inclui dentre os pressupostos de validade da relação processual, que se reflete na ausência de impedimento, nos termos do art. 134 do Código de Processo Civil.” (DJU, ed. 27.03.2000, p. 113) Por conseguinte, o órgão julgador somente pode ser constituído nos termos estabelecidos na Constituição e mediante lei específica para tanto. Logo, seria impensável a sua criação por meio de resoluções ou provimentos baixados por Tribunais, salvo quando autorizados por lei. 2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina Conforme já referido ao início, a idéia do juiz natural tem sua origem na Magna Carta de 1215, a qual previa “julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra”. Mais tarde, segundo a Prof. Ada Grinover, “na Petition of Rigths e no Bill of Rights o princípio do juiz natural realmente assume a dimensão atual, de proibição de juízos ex post facto.”3 Porém, consoante anota aquela festejada autora, foi a Lei francesa, de 24.08.1790, que estabeleceu: “A ordem constitucional das jurisdições não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei”.4 Dissertando a respeito do conteúdo do juiz natural, o festejado catedrático da Faculdade de Direito de Montevidéu, Eduardo J. Couture, escreveu: “Tratando de ordenar, em um sistema de idéias, os princípios basilares, radicais, aqueles em torno de que se agrupa toda experiência acerca da função e da incumbência do juiz, eu me permiti reduzi-los a três ordens necessárias: - a de independência, a de autoridade e a de responsabilidade. A de independência, para que suas decisões não sejam uma conseqüência da fome ou do medo; a de autoridade, para que suas decisões não sejam simples conselhos, divagações acadêmicas, que o Poder Executivo possa desatender segundo seu capricho; e a de responsabilidade, para que a sentença não seja um ímpeto da ambição, do orgulho ou da soberbia, e sim da consciência vigilante do homem frente ao seu próprio destino.” 5 O professor Athos Gusmão Carneiro, na sua prestigiada monografia sobre jurisdição e competência, embora faça referência à ordem constitucional pretérita, elucida a matéria nas seguintes letras: “A atividade jurisdicional é ‘indeclinável’, e somente pode ser exercida, caso a caso, pelo ‘juiz natural’. Taxativamente proibidos que são, pela Lei Maior (art. 153, § 15), os ‘foros privilegiados’ e os ‘Tribunais de exceção’, a jurisdição somente pode ser exercida por pessoa legalmente investida no poder de julgar, como integrante de algum dos órgãos do Poder Judiciário, previstos no art. 112 da Constituição: Supremo Tribunal Federal, Tribunal Federal de Recursos e juízes federais, Tribunais e juízes da Justiça Militar Federal e Estadual, Tribunais e juízes do Trabalho, Tribunais e juízes eleitorais, Tribunais e juízes estaduais.” 6 Em seu clássico Manual de Direito Processual Civil, o saudoso Prof. José Frederico Marques anotou: “A jurisdição pode ser exercida apenas por órgão previsto na Constituição da República: é o princípio do juiz natural ou juiz constitucional. Considera-se investido de funções jurisdicionais, tão-só, o juiz ou tribunal que se enquadrar em órgão judiciário previsto de modo expresso ou implícito, em norma jurídico-constitucional. Há previsão expressa quando a Constituição exaure a enumeração genérica dos órgãos a que está afeta determinada atividade jurisdicional. Há previsão implícita, ou condicionada, quando a Constituição deixa à lei ordinária a criação e estrutura de determinados órgãos.” 7 O Prof. Nelson Nery Júnior, em sua conhecida obra sobre o princípio do juiz natural, ensina: “Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também o é. E para a facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas, que são atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário.” 8 Outrossim, alude o referido autor: “Juízo especial, permitido pela Constituição e não violador do princípio do juiz natural, é aquele previsto antecedentemente, abstrato e geral, para julgar matéria específica prevista na Lei.” 9 Noutro tópico assinala: “É, por assim dizer, antes de caracterizar-se como privilégio, uma garantia assegurada à independência e imparcialidade da justiça, destinada a proteger o interesse público geral.” 10 Aduz também: “Da mesma forma, os foros constituídos por intermédio de convenção das partes (foros de eleição), se contratados dentro dos limites da lei, isto é, versando apenas matéria de competência relativa, não ofendem o princípio do juiz natural. Isto porque a competência relativa, que já está previamente estabelecida na lei processual, pode ser objeto de prorrogação por acordo das partes ou por inércia do réu que deixar de argüir exceção de incompetência. O sistema processual civil disciplinou esse tipo de competência, relativa, como sendo de interesse disponível das partes, não sendo, pois, preceito de ordem pública. É importante salientar que o princípio do juiz natural, como mandamento constitucional, aplica-se, no processo civil, somente às hipóteses de competência absoluta, já que preceito de ordem pública. Assim, não se pode admitir a existência de mais de um juiz natural, como corretamente decidiu a Corte constitucional italiana. A competência cumulativa ou alternativa somente é compatível com os critérios privatísticos de sua fixação, isto é, em se tratando de competência relativa.” 11 Entrementes, adverte o ilustre processualista nominado: “Não é raro ver-se na administração pública ofensa ao princípio constitucional do julgador natural com a formação de comissões sindicantes ou processantes constituídas ex post facto, caracterizando indiscutivelmente juízo de exceção. Essas comissões, nomeadas depois da ocorrência do fato, tanto podem ter sido formadas para proteger o sindicado ou processado como para prejudicá-lo, pois a autoridade nomeante pôde escolher o acusador e/ou julgador administrativo já tendo conhecimento do fato e/ou de quem foi o seu autor.” 12 Também afirma o ilustre mestre paulista: “Esses membros da comissão é que instruirão a sindicância ou processo, interrogando o réu, ouvindo testemunhas, deferindo provas e, ao final, elaborarão o relatório sugerindo a aplicação da pena administrativa. Têm de ser pré-constituídos, competentes e imparciais.” 13 Sublinha, ainda: “Essa pré-constituição não empece a administração da justiça, como adverte setor da doutrina, sendo absolutamente necessária para a garantia da imparcialidade do juiz no julgamento da causa que lhe é afeta.” 14 Por fim, conclui as suas observações aduzindo: “O princípio do juiz natural aplica-se indistintamente ao processo civil, ao penal e ao administrativo. A cláusula constitucional brasileira, ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’ (art. 5º, LIII, CF) não distingue o tipo de processo que é abrangido pela garantia. A Constituição Imperial de 1824 dispunha expressamente que a garantia da inexistência de foros privilegiados valia para as ‘causas cíveis e crimes’ (art. 179, § 17). As constituições que se lhe seguiram não repetiram o termo ‘causas cíveis’, mas a doutrina sempre entendeu válido o princípio para o processo civil. Em alguns sistemas, como o constitucional português, o juiz natural é garantia expressa do processo penal (art. 32, 7, da Constituição da República portuguesa).” 15 A propósito do juiz natural, o ilustre magistrado Rui Portanova, em obra densa sobre a matéria, preleciona: “O conceito de juiz natural vem se ampliando. Não se pode mais pensar apenas na hipótese de proibição de tribunais de exceção. Ada Pellegrini Grinover (1990, p. 23), citando doutrina nacional e estrangeira, mostra que há um segundo aspecto do juiz natural: o juiz constitucional. Trata-se do efeito que ‘vincula a garantia a uma ordem taxativa, e constitucional, de competências’. O princípio do juiz natural exige não só uma disciplina legal da via judicial, da competência funcional, material e territorial do tribunal, mas também uma regra sobre qual dos órgãos judicantes (Câmara, Turma, Senado) e qual juiz, em cada um desses órgãos individualmente considerado, deve exercer a sua atividade (Schwab, 1987, p. 125). O princípio é amplamente acolhido pelo mundo afora. Ademais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 prevê em seu art. 10: ‘todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele’. No direito brasileiro, exceto no período do Estado Novo, sempre houve previsão legal a respeito do princípio do juiz natural. Tal acolhimento tem-se dado na dúplice faceta da proibição a tribunais extraordinários ex post facto (proibição de comissão) e proibição de transferência de uma causa para outro tribunal (proibição de avocação). Assim, juiz natural é aquele juiz integrante do Poder Judiciário, regularmente cercado das garantias próprias conferidas àqueles que exercem esse Poder, e, por isso mesmo, independentes e imparciais (Santos Filho, 1990, p. 137).” 16 Salienta, ainda, o referido autor: “Não há confundir juízos e tribunais ‘de exceção’ com juízos e tribunais ‘especiais’ ou ‘especializados’ no processo e julgamento de determinados litígios, segundo sua natureza. É da tradição do direito brasileiro a permissão ao poder de atribuição, ou seja, no Brasil não afronta o princípio do juiz natural a criação constitucional de juízos especiais desde que preconstituídos. Costuma-se justificar juízo e foro privilegiados como imposição estrutural e organizacional que viabiliza a distribuição, divisão e especialização de tarefas com vista a um melhor atendimento ao Poder Judiciário deste ou daquele tipo de processo (Andrade Filho, 1983, p. 14). Contudo, tem-se proibido o foro especializado em razão de privilégios pessoais.” 17 Vale mencionar, ademais, as oportunas observações do ilustre magistrado gaúcho referentemente às situações anômalas em que o juiz natural fora e continua sendo afastado do processo decisório, verbis: “Ao longo da história legislativa brasileira, têm-se constatado exemplos de violações ao princípio do juiz natural. Da legislação já revogada vale referir, de início, a discutida decisão da Corte Suprema brasileira sobre a constitucionalidade do Tribunal de Segurança de 1935. Por igual, o art. 84 do Decreto-Lei 898/69 era afrontoso ao juiz natural, uma vez que previa julgadores nomeados para julgamento de casos concretos. Eram hipóteses de crime contra a segurança nacional punidos com prisão perpétua e pena de morte. O julgamento se dava por Tribunal formado de ministros militares e membros do Conselho de Justiça. Por fim, também disposições processuais autorizando início de ação penal pela autoridade policial em casos de contravenção (art. 531 do CPP) e homicídio e lesões culposas (Lei 4.611/65) e infrações ao Código de Caça (Leis 4.771/65 e 5.197/67) são violações ao princípio do juiz natural. Há, ainda, alguma legislação de discutida vigência e/ou constitucionalidade com dispositivos afrontosos ao juiz natural. São os casos das execuções extrajudiciais previstas no Decreto-Lei 70/66 e na Lei 5.741/71 (referente ao Sistema Financeiro da Habitação) e aquela prevista no Decreto-Lei 911/60 (referente a bens alienados fiduciariamente).” 18 Importantes e elucidativas também são as anotações de Luís Antônio Longo sobre o princípio do juiz natural: “Nesse contexto, deverá o processo cumprir sua dupla finalidade, como já muito bem percebeu Galeno Lacerda: obter a solução da lide e restabelecer a paz social.” 19 Refere, ainda, a lição de Luiz Flávio Gomes: “A ele acham-se conectados outros importantes princípios, como a) o da igualdade, b) o da imparcialidade, c) o da anterioridade e o d) da legalidade.” 20 Acrescenta, noutro passo: “Assim, a imparcialidade de função e a igualdade não meramente formal das partes, mas, sobretudo, substancial, configuram-se nos pontos de partida para a incidência da garantia do Juiz Natural, ou Constitucional, consolidando-se assim, tal princípio, como manifestação de um Estado Democrático de Direito. Partindo-se da idéia de Galeno Lacerda de que o processo nasce com o objetivo de resolver a lide e obter a paz social, pode-se afirmar que, do ponto de vista individual, o princípio preponderante é o da igualdade. Contudo, sob o prisma coletivo, no sentido de o processo funcionar como efetivo instrumento de pacificação social, o princípio que consolida o juiz natural é o da imparcialidade.” 21 Valendo-se da doutrina italiana, salienta o aludido articulista: “Luigi Luchini, em obra escrita no início do século, assegurava que para a jurisdição ser considerada legítima deve ser: a) legal, no sentido de que não se poderá derrogar a organização judiciária senão por força de uma lei; b) positiva e indeclinável, afirmando que ninguém pode se subtrair à jurisdição exceto nos casos previstos em lei; c) inalterável, no sentido que uma vez que firmada pela lei, não possa modificar-se o juiz natural.” 22 Noutro tópico, assevera o mencionado autor: “O terceiro conteúdo dessa garantia diz respeito ao plano da imparcialidade. Aliás, a própria legislação processual, por intermédio das exceções, objetiva resguardar tal princípio por meio de mecanismos destinados a resolver questões que visem a evitar a prestação de atividade jurisdicional por juiz impedido ou suspeito.” 23 Salienta, ainda: “Como quinto e último tem-se a garantia de ordem taxativa de competência, que assegura a pré-constituição dos órgãos e agentes excluindo qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja. Eventual modificação de competência deve estar prevista em leis anteriores ao fato.” 24 Noutro parágrafo, diz o aludido autor: “Dessa maneira, vê-se que o juiz natural consiste em um dos elementos indispensáveis para a consumação do devido processo legal. Aliás, oportuna a lição de Vigoritti ao afirmar que: ‘a igualdade e contraditório das partes perante o juiz; pré-constituição por lei do juiz natural; sujeição do juiz somente à lei; proibição de juízos extraordinários ou especiais e, finalmente, a independência e imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, consistem nos principais elementos do due process of law.” 25 Em tópico seguinte, afirma: “Portanto, conforme acima demonstrado, a gênese da garantia do juiz natural encontra-se atrelada à própria existência do estado democrático de direito e do livre exercício da jurisdição, abstraindo-se de sua origem qualquer conteúdo capaz de violar direitos naturais inerentes a todos os cidadãos. Bem como qualquer idéia centralizadora e ilimitada do exercício dos poderes do estado sobre os jurisdicionados; tudo isso centrado e voltado à vontade geral. A ausência do juiz natural é sinônimo de violento retrocesso sociopolítico, inviabilizando o exercício do poder estatal, especialmente a jurisdição.” 26 Aduz, por fim: “A autonomia do juiz em relação aos demais poderes passou por lenta e gradual evolução, até chegarmos à pacífica conclusão da absoluta necessidade de que seja dada ao juiz a autonomia em relação aos demais poderes. Autonomia essa que, hodiernamente, se constata não dizer respeito somente ao exercício da jurisdição, mas constitui-se sinônimo de garantia a todos os jurisdicionados.” 27 Juliano Spagnolo, na mesma obra coletiva organizada pelo Professor Sérgio Gilberto Porto, preleciona: “Quanto aos pressupostos da garantia, conforme preceitua o constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, são atribuídos os seguintes: da existência de prévia individualização através de leis gerais; da neutralidade e da independência do juiz; da fixação de competência e da observância de determinações do procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos).” 28 Por derradeiro, é oportuno destacar as palavras do Professor Rui Portanova: “O princípio do juiz natural é verdadeira garantia a ser invocada contra toda e qualquer forma de autoritarismo que queira se justificar através do Poder Judiciário. A invocação do juiz natural, com seu extenso conteúdo democrático, consagra conquistas da humanidade, ao longo de sua história, contra um Judiciário subserviente a comandos ditatoriais que o afrontam. Com base no juiz natural, poderá o operador jurídico pleitear contra invenções legislativas. No mesmo passo, o princípio do juiz natural constitucional é fundamento para afastar toda sorte de influência estranha no Poder Judiciário (tribunais de ocasião, escolhas ou substituições de juízes) tão ao gosto de ditadores que conquistam o Executivo. Numa tentativa de resumo, poderíamos dizer que, sendo um princípio que obriga previsões legais claras e expressas para o futuro e não previsões incompletas e/ou para passado, trata-se de um dos princípios que dá sustentação política à independência do Poder Judiciário e que informa todos os outros princípios ligados à jurisdição.” 29 Como
se vê, o princípio do juiz natural é defendido pela
unanimidade da doutrina e encontra albergue em todas as legislações
dos países democráticos. O princípio do juiz natural tem sido objeto de análise em diversas oportunidades pela Colenda Suprema Corte, como se pode observar das ementas de seus acórdãos a seguir transcritas:
EMENTA: HABEAS CORPUS - Inexiste, no caso, ofensa ao princípio do juiz natural, porquanto o ora paciente foi processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por crime praticado durante o exercício do mandato de Prefeito Municipal de Aracu-GO. Observou-se, portanto, o disposto no art 29, X, da Constituição Federal. – Por outro lado, anteriormente à Lei 8.658, de 26 de maio de 1993, competia ao relator receber ou rejeitar a denúncia nas ações penais da competência originária dos Tribunais de Justiça (art. 557, parágrafo único, a, do Código de Processo Penal). Inexistência de nulidade a propósito, porquanto, no caso, a denúncia foi recebida, pelo relator antes da referida Lei 8.658/93. Habeas corpus indeferido. (HC 73021/GO. Relator Min. MOREIRA ALVES. DJU, 01.12.95, p. 41685) EMENTA: IV. STF: competência originária: CF, art. 102, I, n: inteligência: caso em que não há, em princípio, razões para afirmar-lhe a incidência. 4. No mandado de segurança em que juiz de determinado Tribunal pleiteia ser declarado eleito para um dos cargos de sua direção, em detrimento do litisconsorte – cuja eleição para o mesmo posto pretende nula –, o interesse direto na causa a ambos se adstringe. 5. Com relação aos demais membros do Tribunal, o fato de haverem participado com seus votos da formação dos atos administrativos questionados não lhes acarreta, por si só, nem interesse direto ou indireto na solução do mandado de segurança, nem impedimento para julgá-lo. 6. Do princípio do juiz natural, não cabe inferir a presunção de parcialidade dos magistrados que hajam votado na eleição discutida, para a decisão jurisdicional acerca de sua legitimidade jurídica: de bem pouco valeria a isenção juramentada dos juízes, se o fato de haver sufragado um ou outro candidato, em determinada eleição, tolhesse a cada um dos eleitores a imparcialidade para julgar – à luz dos princípios e não da preferência eleitoral – da validade do pleito. (AO 813 AgR/CE. AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO ORIGINÁRIA. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJU, 31.08.01, p. 37) EMENTA: SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE RECEBER DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de qualquer outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada contra membro do Congresso Nacional, reveste-se de nulidade, pois, no sistema jurídico brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal dispõe dessa especial competência, considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos comuns. (Inq 1544 QO/PI. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 14.12.01) EMENTA:
HABEAS CORPUS - NULIDADE - PRESSUPOSTO DA DECLARAÇÃO
- PREJUÍZO. A declaração da nulidade pressupõe
que do ato impugnado tenha surgido prejuízo para a acusação
ou para a defesa – artigos 563 e 566 do Código de Processo
Penal. Isto não se verifica quando a pecha é articulada
pela defesa tendo em conta atuação do Juízo que resultou
na absolvição do réu, conclusão robustecida
pela circunstância de, ao contrário do alegado, não
estar em questão o princípio do juiz
natural, no que a colocação da Vara em regime de
exceção, passando a atuar certo magistrado, ocorreu cerca
de sete meses antes da representação que deu origem a ação
penal pública condicionada. ( HC 69791/SC. Relator Min. MARCO AURÉLIO.
DJU, 23.04.93). EMENTA: HABEAS CORPUS - 2. Alegada inobservância do princípio do juiz natural. 3. Substituição regular de Desembargador por Juiz do Tribunal de Alçada local. 4. Vinculação ao feito do convocado, na condição de relator, por ter aposto o visto no processo. 5. Habeas corpus indeferido. (HC 80841/PR. Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA. DJU, 14.09.01). EMENTA: Penal. Processual Penal. Habeas Corpus. Interrogatório: Delegação específica. Ofensa ao princípio do juiz natural. Inocorrência. C.F., art. 5º, LIII. Lei 8.038/90, art. 9º, I. – A delegação pelo ministro relator da competência para realização de atos de instrução criminal a um juiz ou desembargador específico não ofende o princípio do juiz natural. Habeas corpus indeferido. (HC 82111/RJ. Relator Min. CARLOS VELLOSO. DJU, 11.10.2002) EMENTA: HABEAS CORPUS - É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado – consagrou, agora de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política, prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC 79865/RS. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 06.04.01) EMENTA: OFICIAL DA POLÍCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, CONDENADO PELO CRIME DO ART. 303 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL QUE CONSISTIRIA EM AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DOSAGEM DA PENA E EM OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, POR NÃO HAVER PARTICIPADO DO SEU JULGAMENTO JUIZ-AUDITOR. A existência de Auditoria Militar sem que houvesse sido criado o cargo de Juiz-Auditor constitui situação de fato institucional equivalente à vacância que, conquanto suprível por meio de Juiz de Direito Substituto, urge seja regularizada, mediante iniciativa legislativa do Tribunal de Justiça. Nulidade inexistente. Fundamentação suficiente para fixação da pena no dobro do mínimo legal. Habeas corpus indeferido. (HC 75861/RJ. Relator Min. ILMAR GALVÃO. DJU, 12.12.97) EMENTA: O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política não confere, por si só, ao Prefeito Municipal o direito de ser julgado pelo Plenário do Tribunal de Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua competência normativa, indicar no âmbito dessa Corte, o órgão fracionário (Câmara, Turma, Seção, v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas causas penais. (HC 72465/SP. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 24.11.95). EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que a submissão de Prefeitos Municipais e de ex-Prefeitos Municipais (estes, na hipótese de infração cometida ao tempo em que exerceram a Chefia do Poder Executivo local) à competência de órgãos fracionários do Tribunal de Justiça (Câmaras ou Turmas), nas ações penais originárias, não importa em transgressão ao postulado do juiz natural, eis que, em tal situação, a jurisdição penal é exercida originariamente pelo próprio órgão investido, ope constitutionis, do poder de julgar aqueles agentes públicos. – O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política não confere, por si só, ao Prefeito Municipal, o direito de ser julgado pelo Plenário do Tribunal de Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua competência normativa, indicar, no âmbito dessa Corte Judiciária, o órgão fracionário (Câmara, Turma, Seção, v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas causas penais. (HC 73917/MG. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 05.12.97). EMENTA: CRIMINAL. JUSTIÇA FEDERAL. PRINCÍPIOS DO PROMOTOR E DO JUIZ NATURAL E DA AMPLA DEFESA. Impossibilidade de apreciação do alegado cerceamento de defesa, porquanto, ainda que houvesse ocorrido – o que não restou demonstrado – teria resultado de inobservância a normas processuais de natureza infraconstitucional, que, a teor da jurisprudência do STF, não rende ensejo ao recurso extraordinário. Denúncia e sentença elaboradas por quem fora previamente legitimado a atuar no feito, mediante designação de natureza genérica, fundada em critérios abstratos e predeterminados, previstos em lei, hipótese em que não se pode ter por configurada ofensa ao princípio consagrado no art. 5º, LIII, da Constituição. Recurso não conhecido. (RE 255639/SC. Relator Min. ILMAR GALVÃO. DJU, 18.05.01) EMENTA: Habeas Corpus. 2. Alegação de ofensa ao princípio do juiz natural e incompetência do juízo para recebimento de denúncia. 3. Magistrado que, embora promovido, prosseguiu no exercício de sua jurisdição, até assumir na nova comarca. Inexistência de ilegalidade. 4. Habeas corpus indeferido. (HC 81036/SP. Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA. DJU, 06.09.01) EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que se revela compatível com o preceito inscrito no art. 29, X, da Constituição a norma local que designa, no âmbito do Tribunal de Justiça, o órgão colegiado investido de competência penal originária para processar e julgar Prefeitos Municipais. Compete ao Tribunal de Justiça, mediante exercício do poder de regulação normativa interna que lhe foi outorgado pela Carta Política, a prerrogativa de dispor, em sede regimental, sobre as atribuições e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais (CF, art. 96, I, a). Precedentes. RECURSO EXTRAORDINÁRIO – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE – COMPETÊNCIA DO VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL A QUO. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o ato de controle preliminar pertinente à admissibilidade do recurso extraordinário também insere-se na esfera de competência monocrática do Vice-Presidente do Tribunal inferior. A expressão “Presidente do Tribunal” reveste-se de sentido amplo, abrangendo todos os magistrados que, na condição de Presidente ou de Vice-Presidente, compõem a estrutura orgânica incumbida da administração superior de qualquer Tribunal. (AI 177313/MG. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 17.05.-96) EMENTA: O RESPEITO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – QUE SE IMPÕE À OBSERVÂNCIA DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO – TRADUZ INDISPONÍVEL GARANTIA CONSTITUCIONAL OUTORGADA A QUALQUER ACUSADO, EM SEDE PENAL. – O Supremo Tribunal Federal qualifica-se como juiz natural dos membros do Congresso Nacional (RTJ 137/570 – RTJ 151/402), quaisquer que sejam as infrações penais a eles imputadas (RTJ 33/590), mesmo que se cuide de simples ilícitos contravencionais (RTJ 91/423) ou se trate de crimes sujeitos à competência dos ramos especializados da Justiça da União (RTJ 63/1 – RTJ 166/785-786). Precedentes. SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE RECEBER DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de qualquer outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada contra membro do Congresso Nacional, configura hipótese caracterizadora de usurpação da competência penal originária desta Suprema Corte, revestindo-se, em conseqüência, de nulidade, pois, no sistema jurídico brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal dispõe dessa competência, considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos penais comuns. (Rcl 1861/MA. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 21.06.02) EMENTA: HABEAS CORPUS – ALEGAÇÃO DE VÍCIO NA COMPOSIÇÃO DO ÓRGÃO JULGADOR – INOCORRÊNCIA – LEI COMPLEMENTAR Nº 646/90 DO ESTADO DE SÃO PAULO – CONSTITUCIONALIDADE DESSE ATO LEGISLATIVO LOCAL – LEGITIMIDADE DO QUADRO DE JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU – RESPEITO AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – PEDIDO INDEFERIDO. O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da lei. Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma de extração regimental, a disciplina das convocações para substituição nos Tribunais de Justiça estaduais. – O Estado de São Paulo adotou um sistema de substituição em segunda instância que se ajusta, com plena fidelidade, ao modelo normativo consagrado pela Carta Federal. Esse sistema, instituído mediante lei local (Lei Complementar nº 646/90), obedece a mandamento consubstanciado na Carta Política estadual que, além de prever a criação de cargos de Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, dispõe que a respectiva designação, sempre feita pelo Tribunal de Justiça, destinar-se-á, dentre outras funções específicas, a viabilizar a substituição de membros dos Tribunais paulistas. – O procedimento de substituição dos Desembargadores no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mediante convocação de Juízes de Direito efetuada com fundamento na Lei Complementar estadual nº 646/90, evidencia-se compatível com os postulados constitucionais inscritos no art. 96, II, b e d, da Carta Federal, e revela-se plenamente convivente com o princípio fundamental do juiz natural. Com isso, resta descaracterizada a alegação de nulidade do julgamento efetuado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a participação de Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, por evidente inocorrência do vício de composição do órgão julgador. (HC 69601/SP. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJU, 18.12.92) 4. Princípio do juiz natural no direito constitucional brasileiro positivo No
Direito Constitucional positivo, à exceção da Carta
Política outorgada de 1937, todas as constituições
brasileiras contemplaram o princípio do juiz natural nos termos
seguintes: “Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela seguinte maneira: XI Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, por virtude de lei anterior, e na forma por ela prescrita. XVII
À exceção das causas que por sua natureza pertencem
a juízos particulares, na conformidade das leis, não
haverá foro privilegiado, nem comissões especiais
nas causas cíveis e crimes.” § 15. Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada. § 23. À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais, não haverá foro privilegiado.” c)
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
de 16.07.1934: 25 Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção; admite-se, porém, juízos especiais em razão da natureza das causas. 26
Ninguém será processado, nem sentenciado
senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior
ao fato, e na forma por ela prescrita.” Na formação do litisconsórcio facultativo posterior à distribuição da demanda, pode ocorrer importante questão processual atinente ao juiz natural. Isso acontece quando proferida decisão liminar favorável à parte autora. Nesta hipótese, o pedido de ingresso de terceiro no feito, como litisconsorte, após a concessão de medida cautelar, oportunizaria a escolha do juízo ao seu talante, burlando aquele princípio. Sobre tal circunstância, oportuno é o escólio do ilustre professor Sérgio Gilberto Porto: “Posto isso e tendo a exata compreensão daquilo que representa o litisconsórcio facultativo-ulterior (seja unitário ou não), uma vez concedida liminar em determinado feito, a partir deste momento – embora não fosse originalmente, em face do sistema adotado – obrigatória torna-se a recusa na formação de qualquer litisconsórcio, pena de violação do juízo natural, muito embora presentes qualquer das hipóteses do art. 46 do CPC.” 30 Seguindo a mesma trilha são as observações de Juliano Spagnolo, anteriormente citado: “ Ocorria que poderiam ser distribuídas a diversos juízos ações versando sobre o mesmo objeto, propostas por autores distintos, todas com pedido de liminar. Quando a primeira delas tivesse a sua liminar deferida, os demais autores desistiam de suas ações e reiteravam o pedido em litisconsórcio com o autor que obteve a concessão de sua liminar. Assim, havia a possibilidade, totalmente inconstitucional, da parte ‘aproveitar-se’ da liminar já concedida, uma vez que o magistrado poderia acolher o pedido e estendê-lo ao litisconsorte.” 31 Com
efeito, tal comportamento deve ser sancionado com a aplicação
da pena de litigância de má-fé. Conquanto seja louvável, essa iniciativa deve respeitar o princípio do juiz natural, mediante autorização legislativa específica. Assim como os Tribunais somente podem ser criados por lei, a convocação de magistrados de primeiro grau para prestar-lhes auxílio, nos chamados mutirões, também deverá observar o mesmo procedimento, isto é, por meio de lei. (Art. 96, II, da CF) A propósito dessa matéria, a Lei nº 9.788, de 19.02. 99, autorizou aos Tribunais Regionais Federais a convocação de juízes federais para prestar-lhes auxílio, verbis: “Art. 4º. Os Tribunais Regionais Federais poderão, em caráter excepcional e quando o acúmulo de serviço o exigir, convocar Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos, em número equivalente ao de juízes de cada Tribunal, para auxiliar em Segundo Grau, nos termos de resolução a ser editada pelo Conselho da Justiça Federal”. Conseqüentemente, não podem os Tribunais, por meio de simples resoluções administrativas, sem autorização legislativa, mesmo quando aprovadas pelo seu órgão máximo, convocar magistrados de primeiro grau para atuar em mutirões de julgamentos de processos de sua competência, pena malferimento do princípio do juiz natural, expressamente consagrado na Constituição da República (Art. 5º, LIII). Essa, aliás, é a posição firmada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, como se pode ver na ementa expressa nos seguintes termos: “EMENTA: - O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da lei. Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma de extração regimental, à disciplina das convocações para substituição nos Tribunais de Justiça Estaduais. Precedente do STF. Essa orientação, firmada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, prestigia o postulado do juiz natural, cuja proclamação deriva de expressa referência contida na Lei Fundamental da República (art. 5º, LIII). O princípio da naturalidade do Juízo – que traduz significativa conquista do processo penal liberal, essencialmente fundado em bases democráticas – atua como fator de limitação dos poderes persecutórios do Estado e representa importante garantia de imparcialidade dos juízes e tribunais.” (HC 696015/SP. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJ, 18.12.92). Assim, diante de tais premissas, os julgamentos de processos acumulados nos Tribunais, por meio da convocação de juízes de primeiro grau, hão de satisfazer a exigência constitucional do juiz natural, pena de nulidade. Outrossim, os “mutirões” nos juízos de primeiro grau, com a redistribuição de processos entre juízes de mesma hierarquia, não ofendem o princípio do juiz natural, consoante já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus nº 10.341-SP, Relator Min. Gilson Dipp, verbis: “É descabida a alegação de violação ao Princípio do Juiz Natural pela redistribuição de processo, se a mesma foi realizada em razão do acúmulo de processos na vara de origem e feita à outra com a mesma competência material.” (DJU, ed. 22.11. 99) 7. Juiz natural e foro especializado em razão da matéria ou por prerrogativa de função Sobre o foro especial, o Professor Rui Portanova ensina: “A legislação brasileira, tradicionalmente, vem instituindo justiças especializadas como Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar. Permite-se, ainda, a intervenção do Poder Legislativo em casos específicos previamente contemplados na Constituição, tanto para processar e julgar (como no caso de impeachment) como para fazer depender de licença ação contra parlamentar. Encontra-se na doutrina brasileira dissenso sobre se alguns fatos estariam ou não englobados na vasta gama de garantias abrangidas pelo princípio constitucional que impede tribunais de exceção. Por exemplo, quando a Constituição cria tribunais especializados ou modifica competência antes atribuída à justiça ordinária, ressurgem discussões. Ada Pellegrini Grinover (1983, p. 23) faz distinção: não viola o juiz natural ‘meras modificações da competência entre os diversos órgãos da justiça comum’. Contudo, seria afrontoso ao princípio modificar a competência de casos pendentes iniciados na justiça comum em favor da justiça especializada criada pela Constituição. Nessa hipótese, o novo órgão judiciário só atenderia casos futuros. Com apoio em doutrina estrangeira, justifica a posição entendendo que o princípio do juiz natural limita a esfera do cânone (tempus regit actum) segundo o qual a lei do processo consiste nas normas vigentes no momento em que se procede.” 32 De fato, a discussão tem pertinência e oportunidade em face da edição da Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que alterou a redação do art. 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a qual ficou expressa nos seguintes termos: “Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º. Em decorrência dessa alteração legislativa, todas as demandas referentes a casos de improbidade administrativa passaram para a competência dos tribunais, conforme a posição hierárquica da autoridade responsável pela infração, o que não ocorria anteriormente à edição da Lei nº 10.628/2002, circunstância que tem ensejado exacerbadas críticas da doutrina autorizada. 8. Conclusão De todo o exposto, vê-se que todos os povos civilizados acolheram o princípio do juiz natural em suas leis maiores. Assim, é válido afirmar que o princípio do juiz natural é inafastável a uma prestação jurisdicional independente e imparcial, sob a égide do devido processo legal. Conseqüentemente,
todos os operadores do direito – magistrados, membros do ministério
público e advogados – têm o dever indeclinável
de zelar pelo respeito ao princípio do juiz natural, como instrumento
fundamental para a realização da Justiça e aperfeiçoamento
da democracia, que é o bem maior da humanidade, em consonância
com a evolução das ciências jurídicas e do
direito constitucional positivo das sociedades organizadas, ou bem ordenadas,
nas palavras de John Rawls. 1.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4 ed. –
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 63.
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REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |