Ampla Defesa e Processo Penal

Autor: Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

| Artigo publicado em 24.08.2004 - 2ª edição |

A Constituição Federal, em seu art. 5º, LV, declara que a lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.

Abre-se, assim, com o texto constitucional, ao acusado ampla possibilidade de interferência na produção da prova e no debate das mais variadas quaestionis juris.

Em cumprimento ao mandamento constitucional, impõe-se ao legislador ordinário, por meio da legislação processual penal, conferir ao acusado a possibilidade de defender-se da forma mais completa possível, sem, contudo, inviabilizar o normal prosseguimento da ação penal.

O tema é torturante e desafia, há décadas, as maiores inteligências na matéria.

A respeito, assinala, em obra clássica, NICOLA CARULLI, verbis:

“...la storia del processo penale è la storia della difesa.
Il processo penale, anche nei suoi aspetti più rudimentali, non può prescindire dalla posizione del soggetto che si giudica, dalle garanzie che ad esso si attribuiscono, dall'ampiezza dell’intervento che gli si consente.
E quando si discute di sistemi processuali , sia in relazione a tempi più antichi, sia in relazione a tempi più prossimi, sia in prospettiva di riforma degli attuali ordinamenti sia infine nell’esame comparativo dei sistemi adottati nei diversi Stati, il centro dell’indagine è, in realtà, sempre costituito dal tema della difesa
” (In Il Diritto Di Difesa Dell’Imputato, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene , Napoli, 1967, p. 3)

O exame do direito processual penal brasileiro revela que ele considera indispensável, sob pena de nulidade, a defesa técnica do réu, assegurando-lhe contrariar a acusação, produzir provas e manifestar, acerca delas, juízo crítico.

Ora, tal defesa, sob pena de tornar letra morta a garantia constitucional, importa a realização de atos positivos em prol da tese sustentada pelo acusado, reclamando de seu procurador empenho efetivo no decorrer da instrução probatória.

Nesse sentido, pronuncia-se a jurisprudência, como se verifica de aresto do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em que foi relator o então Desembargador THOMPSON FLORES, posteriormente Ministro e Presidente do Supremo Tribunal Federal, verbis:

“DEFENSOR QUE NÃO EXERCITA A DEFESA - NULIDADE - ARTS. 141, § 25, DA C. FEDERAL; 261, 381, II, do CPP.
- É nulo o processo quando a defesa concedida ao acusado foi apenas aparente, formal, sem atingir no entanto, ao fim colimado pela franquia constitucional e preceitos da legislação processual.
- Defensor judicial. Embora não precise a lei como deve exercer sua missão no processo, sua completa inação em prol do imputado, atenta contra a garantia da Carta Maior que impõe o contraditório.
- Aplicação do art. 141, § 25, da Const. Fed. e arts. 261, 381, inc. II, do CPP.
- Apelação provida.”
(In Revista Jurídica, v. 7, p. 244)

Em seu douto voto, salientou o Desembargador THOMPSON FLORES, verbis:

“(...)
II - É flagrante a absoluta ausência de defesa, como ressaltou o relatório e resumiu a rememoração anterior. Com a simples investidura de defensor, realizada de parte do dr. juiz de direito, iniciou-se apenas a determinação legal. Foi, porém, de todo ineficaz, em vista da inação completa em que se manteve.
Certo que, como acentuava Orozimbo Nonato, ‘o juiz da instrução não é juiz da ação do advogado, não podendo medir-lhe a eficiência, nem prefixar-lhe os rumos...’ (D. da Justiça, de 31.8.49, Apenso nº 201, págs. 2521-13). Exato que a lei se conforma com a atuação profissional que pode ser modesta, discreta, desbrilhante e até mesmo ineficiente. Nem mesmo em certos lugares poder-se-ia exigir maior rigor. Mas a realização de atos positivos de defesa se impõe. Requer-se a ação, o empenho, e não o reverso, inércia total, como a que os autos espelham. Com esse proceder houve apenas aparência da garantia, jamais o cumprimento da norma constitucional que exige seja ampla e permita firmar o contraditório. O feito se conduziu, simplesmente, pelo ângulo da acusação, contrariando a recomendação da Exposição de Motivos, quando acentua: ‘Ao contrário das leis processuais em vigor, o projeto não pactua, em caso algum, com a insídia de uma acusação, sem o correlativo da defesa’ (Francisco Campos, Expos. de Motivos ao CPP, II, in fine, grifei). Privado ficou o magistrado que sentenciou de atender à exigência atribuída em o art. 381, inc. II, do Estatuto Processual. É manifesta, assim, a invalidade do processado, cumprindo que seja renovado guardadas as exigências legais. É a lição dos comentadores, aceita nos Tribunais, inclusive no Pretório Excelso, dando inteligência ao disposto em o art. 141, § 25, e art. 261, respectivamente do Super Estatuto Federal e Diploma Processual Penal.” (In Revista Jurídica, v. 7, p. 245).

Em voto que proferiu no julgamento do HC nº 54.531-DF, disse o saudoso Min. BILAC PINTO, verbis:

“Está escrito na Súmula 523 que ‘No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu’. Tem-se aí que nulo será o processo se o acusado não teve defensor (CPP art. 564, III, c), mas, se o teve, embora deficiente, só ocorrerá a nulidade diante da prova de prejuízo.

Sobre o prejuízo disse o Ministro Victor Nunes Leal, no HC 42.274, in R.T.J. 33/717:

‘Tais são, por exemplo, os casos em que o defensor oferece razões omissas, ou não repergunta as testemunhas, ou tem pouco tirocínio - embora com habilitação legal - circunstâncias que se traduzem em deficiência da defesa...’

A este respeito, no RHC 43.501, in R.T.J. 43/581, ao ser concedida a ordem com o provimento do recurso afirmou o Ministro Oswaldo Trigueiro:

‘A paciente foi processada à sua inteira revelia. Não teve defesa, a despeito de ter-lhe sido dado defensor, na forma da lei. Mas este não apresentou defesa prévia, não arrolou testemunhas, não teve qualquer intervenção no sumário da culpa e, à guisa de razões finais, escreveu as poucas linhas que constam da fotocópia de fl. 26. Nestas condições - não é de estranhar-se que os outros co-réus hajam sido absolvidos e somente a paciente seja, a final, tida como responsável pela trama delituosa.’

Estes dois julgados servem de referência à Súmula 523, e estão citados, numa demonstração do seu alcance, no HC 54.185, recen-temente julgado e deferido pela Segunda Turma, em pedido patrocinado pelo Professor Heleno Cláudio Fragoso, como relator o Ministro Leitão de Abreu.

A jurisprudência desta Corte tem-se colocado, mais a mais, no sentido de que ‘o exercício da defesa é indeclinável injunção da lei, que não se preenche apenas com a nomeação meramente formal de um defensor’ (RHC 43.011, in R.T.J., 36/198; RHC 43.501, in R.T.J., 38/581; HC 50.951, in DJ de 21.5.76). A propósito, volto a mencionar o HC 54.185, que traz, a este respeito, a doutrina e a jurisprudência.”

Da mesma forma, manifesta-se a melhor doutrina, como ALFREDO DE MARSICO, Mestre da Universidade de Roma, verbis:

La difesa dell’imputato dev’essere energia reale spesa nel contrasto delle forze che fanno l'essenza- del rapporto processuale per una utile e concreta cooperazione all’accertamento del vero ed all’applicazione della legge.” (In Lezione di Diritto Processuale Penale, 3ª ed., Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, NapoIi, 1952, p. 94, n. 66)

Igualmente, GIROLAMO BELLAVISTA, ao afirmar “che la difesa -penale non risponde ad una mera facoltà dell’imputato, ma ad una necessità processuale irrinunziable” (In Lezioni di Diritto Processuale Penale, Dott. A. Giuffrè Editore, Milano, 1965, p. 189, n. 118).

Outro não é o ensinamento de NICOLA CARULLI, verbis:

“...il diritto di difesa come diritto a difendersi è in se e per sè indisponibile ed inviolabile: la rinuncia a tale diritto sarebbe del tutto priva di effetti...” (In Op. cit., p. 69)

Para GIOVANNI LEONE, Mestre da Universidade de Roma, ‘il diritto alla difesa è un diritto soggettivo pubblico, che, nel ripristinato regime delle nullittà assolute, trova più ampio riconoscimento’ (In Trattato Di Diritto Processuale Penale, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli, 1961, v. I, p. 577).

Por conseguinte, para tornar efetiva a garantia constitucional insculpida no art. 5º, LV, da CF/88, é imperioso assegurar ao acusado, no decorrer do processo penal, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, devendo o seu procurador, constituído ou dativo, empenhar-se efetivamente em sua defesa, sob pena da posterior declaração da nulidade do processo, na forma da Súmula 523 do Pretório Excelso.

Para concluir, recordo a célebre oração forense de CH. LACHAUD, ao patrocinar a causa de Troppmann, verbis:

Troppmann m’a demandé de le défendre, c’est un devoir que je viens remplir ici. Ceux qui ignorent quelle est la mission de l’avocat, quelques-uns du moins, ont pu s’en étonner. Ceux qui disent qu’il y a des crimes tellement abominables, des criminels tellement horribles qu’il est impossible qu’on essaye de demander pour eux la moindre atténuation dans l’application de la peine; ceux qui pensent ainsi, Messieurs, se trompent, et dans leur indignation généreuse ils confondent la justice avec la colère et la vengeance. Ils n’ont pas compris qu’excités par cette passion ardente et par leur pitié pour les nombreuses victimes, ils demandent ainsi de laisser commettre un crime social, le plus dangereux de tous: le sacrifice de la loi. Je comprends autrement les obligations de la défense. Le législateur a voulu qú’à côté de l’accusé, quelqu’il fût, il y eût toujours une parole loyale et honnête pour arrêter, s’il est possible, les émotions de la foule, qui sont d’autant plus terribles qu’elles sont généreuses; elles peuvent étouffer la vérité.
Le loi est calme, Messieurs, elle n’a jamais de ces emportements, même des plus généreux; elle s’est dit que la vérité n’est possible à découvrir que quand elle est recherchée par l’accusation et par la défense. Elle a compris qu’il arrive une heure où il faut ne plus regarder les spectacles et s’éloigner des champs de carnage. Elle a compris que tout n’est pas dans les victimes et qu’il faut aussi jeter un regard surl’accusé; qu’il est du devoir de la justice et du juge d’interroger l’homme, sa nature, ses entrainements, son inteligence, son état moral. Elle dit alors à l’avocat: “Vous serez à la barre, vous y serez avec votre conscience.” C’est le premier mot de ce débat solennel, prononcé par M. le Président, quand il a rappelé au défenseur que tout ce qu’il avait à dire de l’accusé devait sortir de sa conscience. Le droit de la défense, la liberté de la défense, le législateur les confie a l’honneur professionnel de l’avocat; il concilie ainsi les droits légitimes de la société avec les droits non moins sacrés de la défense, et vous étes bien sûrs, Messieurs, qu’en nous présentant devant vous, c’est avec honnèteté que nous venons chercher à expliquer la vérité telle que nous la comprenons.
Si jamais une affaire criminelle a demandé une défense, n’est-ce pas celle-ci, Messieurs? Un crime sans précédent, des forfaits commis dans la plaine de Pantin, et au milieu de cette émotion générale des clameurs ardentes et inévitables, qui réclament contre le coupable vos sévérités implacables! Comprenez-vous, Messieurs, que la parole d’un défenseur doit vous prémunir contre ce danger? Vous avez juré de ne sacrifier ni les intérêts de la société, ni les intérêts de l’accusé; vous avez promis d’être calmes, de rechercher la vérité en dehors des passions tumultueuses de la foule; vous avez juré de laisser parler votre conscience quand elle sera recueillie et quand vous aurez tout entendu. Eh bien! Je vous en conjure, imposez silence à voz consciences, ayez ce courage! attendez!

(In Plaidoyers de Ch. Lachaud,
recueillis pour Félix Sangnier, Bibliothèque-Charpentier, Paris, t. 2, pp. 282/3)


Bibliografia


CARULLI, Nicola. In Il Diritto di Difesa Dell’Imputato, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli, 1967, p.3.

MARSICO, Alfredo de. In Lezione di Diritto Processuale Penale, 3.ed., Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli, 1952, p. 94, n.66.

BELLAVISTA, Girolano. In Lezione di Diritto Processuale Penale, Dott. A. Giuffrè Editore, Milano, 1965, p.189, n. 118.

LEONE, Giovanni. In Trattato di Diritto Processuale Penale, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli, 1961, v. I, p.577.

LACHAUD, Ch. In Plaidoyers de Ch. Lachaud, recueillis pour Félix Sangnier, Bibliothèque-Charpentier, Paris, t. 2, p.282/3.



 
REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS