Poder discricional da administração pública


Autor: Pedro Máximo Paim Falcão
(Desembargador Federal Aposentado do TRF da 4ª Região)

| Artigo publicado em 25.10.2004 |


| Palestra ministrada no curso de Currículo Permanente, módulo II - Direito Administrativo, no dia 07 de agosto de 2004, em Porto Alegre. |

1. Considerações iniciais

Um dos temas que, a meu juízo, vem se revestindo de grande importância para uma efetiva implantação do “Estado Democrático de Direito”, cabe trazer ao debate neste encontro com os ilustres colegas.

Reveste-se de importância, porque pode o uso deste poder que, diga-se de passagem, é essencial à ação administrativa do Estado, ser desvirtuado, esvaziando os preceitos de uma Constituição que, ao seu nascer, pretendeu ser normativa, tornando-a em uma constituição nominal, para usarmos a terminologia da classificação de LOEWESTEIN, em sua conhecida “Teoria da Constituição”.

Neste momento, cresce o papel de juiz.

Efetivamente, é no Judiciário que se irá procurar por um limite ao uso deste Poder.

Com prudência, e fazendo a indispensável ponderação, como prega ALEXY, o juiz converte-se na única barreira com que o cidadão comum pode contar para que as coisas retornem ao seu caminho normal.

Qual a razão para que esta situação se revele potencialmente perigosa?

Para responder a esta indagação, é imperioso fazer-se uma rememoração do conceito de Poder Discricional.

Com vistas a alcançar tal objetivo, vamos buscar socorro em AGUSTIN GORDILLO.

2. Poder discricional e poder vinculado

Introduzindo o tema, GORDILLO defende que a questão em exame seja examinada de modo autônomo e não na abordagem do ato administrativo.

Começa o autor mencionado, fazendo uma distinção entre Poder Vinculado e Poder Discricionário, por ele chamados de faculdades da Administração.

Temos o Poder Vinculado quando “uma norma jurídica predetermina, de forma concreta, uma conduta definida que o administrador deve seguir, ou seja, quando o ordenamento jurídico estabelece de antemão aquilo que especificamente o órgão deve fazer num caso concreto”.

Neste caso, a lei se substitui ao critério do órgão administrativo e predetermina o que é conveniente ao interesse público. O administrador não possui qualquer alternativa. Deve seguir o que diz a lei, pois sua conduta está regrada.

Prosseguindo na abordagem do Poder Vinculado, Gordillo, em seus “Princípios gerais de direito público”, afirma que o regramento pode ocorrer de distintas maneiras:

1) através de regulação direta- quando a lei deixa estabelecida a conduta da Administração de forma expressa, ou razoavelmente implícita, definindo a competência, a forma e o procedimento em que a administração vai exteriorizar suas declarações ou manifestação de vontade;

2) regulação indireta ou inversa – aqui a lei regulamenta não o direito da Administração atuar sobre os particulares, mas o direito subjetivo dos particulares a que ninguém interfira com suas atividades. Assim, se no realizar uma obra pública, e não havendo uma regulação de como ela deve ser feita, nem por isto a Administração tem discricionariedade total, eis que deverá respeitar o direito de propriedade, indenizar o particular pelos danos eventualmente sofridos;

3) regulação residual - quando falta a regulação, seja a direta ou a inversa, ainda assim, não há discricionariedade administrativa, pois, o ordenamento jurídico prevê um terceiro caso de colisão de direitos subjetivos-negativos da Administração e dos administrados.

Esta barreira, vamos encontrá-la no dispositivo constitucional que não permite, nem ao Poder Constituinte Derivado, atentar contra os direitos e garantias individuais por ela reconhecidos.

Ora, se o Poder Constituinte Derivado não pode, quanto menos um ato da Administração.

Aqui é que surge um ponto de extrema importância, dando ensejo à doutrina das normas constitucionais inconstitucionais, como já reconheceu o STF, ao apreciar, em 1993, que o então IPMF não poderia, mesmo tendo sido instituído e com cobrança autorizada por Emenda Constitucional, ser exigido naquele ano, por violar o princípio da anualidade.

Examinado, rapidamente, o Poder Vinculado, sigamos Gordillo, para adentrarmos no Poder Discricionário, tema de nosso encontro.

De acordo com este autor, e usando sua terminologia, “as faculdades serão discricionárias, quando o ordenamento jurídico outorgue à administração certa liberdade para eleger, entre um ou outro tipo de ação, para fazer uma ou outra coisa, ou fazê-la de uma ou outra maneira”.

Diferente do Poder Vinculado, quando a Administração Pública tem sua conduta predeterminada pela lei, no uso do Poder Discricionário, é o órgão atuante, que aprecia a conveniência ou oportunidade da medida a ser tomada.

Há, como bem observa Gordillo, uma correspondência entre o objeto do ato e as circunstâncias de fato exteriores a ele.

No Poder Vinculado, como já vimos, a lei precisa as circunstâncias de fato, que devem dar lugar ao ato.

Exemplo: o funcionário preencheu os requisitos para obter sua aposentadoria. Requerida esta, a Administração tem de conceder o benefício.

No Poder Discricionário, não há esta correspondência, o ato pode dar-se livremente diante de qualquer situação de fato.

Aqui, a Administração tem a liberdade de adotar essa ou aquela decisão, diante de uma situação de fato.

Exemplo: a promoção, por merecimento do funcionário: a Autoridade competente recebe uma lista tríplice, com os nomes de A, B e C.

No uso de sua faculdade discricional, pode promover qualquer dos três, já que todos preenchem os requisitos legais. Usando da faculdade discricional, a Autoridade competente inclina-se pelo nome de B.

3. O poder discricionário e o estado de direito

Muito embora essa liberdade, o Poder Discricionário não se acha livre de amarras jurídicas. Ele é inconfundível com o arbítrio.

A respeito do tema, são judiciosas as observações do Desembargador e Professor de Direito Administrativo, Oswaldo Aaranha Bandeira de Mello, contida em seus “Princípios gerais de direito administrativo”, quando afirma:

“Embora os poderes discricionários da Administração Pública, ao contrário dos vinculados, se achem libertos de estritas determinações legais, de maneira a poder escolher como deve proceder, tendo em vista considerações de conveniência e oportunidade, não se confunde com poder arbitrário. Ao passo que este corresponde a atividade sem limites jurídicos, em que o agente atua segundo seu exclusivo critério, aquele diz respeito a atividade circunscrita dentro de limites jurídicos”.

Prosseguindo, afirma:

“Esses limites dos poderes discricionários se encontram nos motivos determinantes do ato jurídico, e no fim com que é praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto jurídico. Toda a atividade do Estado-poder tem por baliza o interesse público.”

Assim, continua,

“não se tolera motivo determinante estranho ao interesse coletivo e nem preocupação da autoridade pública em conflito com ele. Por outro lado, não basta seja praticado o ato tendo em vista o interesse coletivo, outrossim, se impõe a consideração do interesse coletivo específico, objeto do instituto jurídico a que se refere o ato. Portanto, mesmo os atos administrativos praticados pela Administração no exercício dos seus poderes discricionários encontram os limites acima expostos. Não podem transpô-los, sob pena de envolver exercício abusivo de direito.”


As observações acima feitas já tinham sido objeto de apreciação naquele que se constitui numa decisão paradigmática do direito público brasileiro:

No anos 40, o então Desembargador Seabra Fagundes, componente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, foi o Relator da Apelação Cível nº 1.422, deixando explícito na Ementa:

“O ATO QUE, ENCONBRINDO FINS DE INTERESSE PÚBLICO, DEIXA À MOSTRA FINALIDADES PESSOAIS, PODERÁ CAIR NA APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO, NÃO OBSTANTE ORIGINÁRIO DO EXERCÍCIO DE COMPETÊNCIA LIVRE
O FIM LEGAL DOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO PODE VIR EXPRESSO OU APENAS SUBTENDIDO NA LEI.”

E, aqui ,Senhores, desejo ressaltar:

“O DIREITO QUE RESULTA, NÃO DA LETRA DA LEI, MAS DO SEU ESPÍRITO, EXSURGINDO IMPLICITAMENTE DO TEXTO...”

Vejam a acuidade e, mesmo após 60 anos, a atualidade do texto de Seabra Fagundes, numa época em que reinava, no mundo jurídico, sem quase nenhuma contestação, o positivismo jurídico: “O DIREITO QUE RESULTA, NÃO DA LETRA DA LEI, MAS DO SEU ESPÍRITO, EXSURGINDO IMPLICITAMENTE DE SEU TEXTO.”

Sem dúvida, a decisão de Seabra Fagundes abalou, fortemente os fundamentos das convicções então vigentes e continua a mostrar uma atualidade fundamental.

Victor Nunes Leal vale-se das lições de Seabra Fagundes para abordar o tema em sua obra “Problemas de direito público”.

Após referir-se à lição de Fritz Fleiner, mencionada no voto de Seabra, Nunes Leal afirma:

“(...) o poder discricionário é o que se move numa zona livre, isto é, não vinculada pela legislação. Pouco importa, para se conceituar o poder discricionário a extensão dessa zona livre. Os próprios órgãos administrativos superiores podem limitar a área de ação discricionária dos inferiores, desde que não haja proibição legal.”

E, após mencionar, mais uma vez a Fritz Fleiner, diz:
“Conseguintemente, qualquer que seja sua extensão, desde que exista uma zona livre na qual a administração, por si mesma, deva escolher, entre as várias possibilidades de solução, aquela que melhor responda, no caso concreto, à intenção da lei aí encontramos um campo de ação do poder discricionário.

O Poder Discricionário move-se, portanto, por definição, em uma zona livre, privativa da administração, o que exclui, sob pena de contradição nos próprios termos, a possbilidade de revisão por parte do Poder Judiciário. Desde que, nesta zona livre, ao critério da administração se pudesse sobrepor outro critério (a saber do judiciário), então já não teríamos uma zona livre, nem se poderia mais falar de poder discricional.

Não resta dúvida porém, que a demarcação dessa zona livre é, em si mesma, uma questão jurídica, suscetível de apreciação jurisdicional. Não é à administração mas ao judiciário que compete a tarefa de verificar os limites do poder discricionário, em virtude da faculdade que possui, em nosso ordenamento constitucional de interpretar, final e conclusivamente, o direito positivo.”

4. Limites do poder discricional

Podemos, seguindo a doutrina de Gordillo, apontar, como limites ao Poder Discricionário da Administração, os seguintes tópicos:

1º - A RAZOABILIDADE;
2º - A PROPORCIONALIDADE;
3º - O DESVIO DE PODER;
4º - A BOA FÉ;
5º - ALTERUM NON LAEDERE.

Examinemos os limites mencionados.

1º - A RAZOABILIDADE

Temos, aqui, um dos fundamentos mais importantes do Direito Público, num moderno Estado de Direito.

O Juiz, ao prolatar sua decisão, adverte Recasens Siches, realiza um juízo estimativo e não um juízo de conhecimento. Trata-se, como adverte aquele jusfilósofo, de um juízo de valor. A sentença, prossegue o autor, não é uma descrição de fatos, não é uma narração. É uma estimativa, é um juízo de valor.

Isso é a razoabilidade.

Em outras palavras, na estimativa de valor, há de se perquirir se a ação do Estado é, ou não, razoável.

A conveniência e o interesse da Administração podem levar à extinção, ao aniquilamento do direito individual?

É a razoabilidade que irá responder.

A questão é de uma complexidade tremenda. Mas, a meu juízo, deve começar a ser enfrentada respondendo-se a uma questão fundamental da filosofia política: “o homem é o fim último do Estado ou não?”.

Para o totalitário, a resposta será negativa. Para o democrata, será positiva.

Assim, quando a decisão administrativa refletir uma vontade arbitrária, ou o capricho do funcionário, ausente está a razoabilidade, ensejando que se limite a ação do Poder Discricional.

Aqui, fica mais uma vez estampada a atualidade do voto de Seabra Fagundes, antes mencionado, quando, na Ementa, fala:
“O ato que, encobrindo fins de interesse público, deixa à mostra finalidades pessoais, poderá cair na apreciação do Poder Judicial, não obstante originário do exercício de competência livre.”

Portanto, nos é permitido concluir que são as circunstâncias de fato que nos possibilitarão avaliar, fazer uma estimativa, um juízo de valor a que se referiu Recasens Siches, da existência, ou não, de razoabilidade na ação administrativa.

Se esta criar um ônus excessivo ao particular, impõe-se a nulificação do ato da administração.

Seria o caso, por exemplo, da Prefeitura, desapropriar área maior do que a que necessita, com vistas à realização de uma obra pública, inviabilizando o uso da propriedade.

Aqui, é evidente a irrazoabilidade da ação estatal, impondo-se que se limite a sua ação.

2º - PROPORCIONALIDADE

Nada retrata melhor o que seja proporcionalidade do que o dispositivo constitucional que estabelece: “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...”

Vê-se, assim, que a proporcionalidade pode ser vista como um limitador ao ônus imposto pelo Estado.

Ultrapassado este limite, criando-se um ônus excessivo, rompe-se a proporção.

Novamente, são as circunstâncias de fato que dirão quando o limite foi ultrapassado. Há de se buscar, ainda, se os meios, eleitos pelo ato, para atingir suas finalidades não se revelam excessivos, desequilibrando - em favor da Administração - a situação do Administrado.

3º - DESVIO DE PODER

Volto, mais uma vez, à Ementa do voto do Min. Seabra Fagundes, na parte que diz: “O ATO QUE, ENCONBRINDO FINS DE INTERESSE PÚBLICO, DEIXA À MOSTRA FINALIDADES PESSOAIS...”

Nada mais é preciso para caracterizar o que seja desvio de poder.

Este ocorre quando a Administração Pública, valendo-se do seu “poder de império”, emprega-o para fins que não tem por objetivo o interesse público.

Seria o caso, por exemplo, da Administração Pública, invocando a utilidade pública, desapropriar um imóvel e, tão logo imitida na posse, transferi-lo a um particular.

Novamente as circunstâncias fáticas é que dirão se não ocorreu o uso indevido do Poder Estatal, para beneficiar um terceiro.

Valendo-se, a Administração, de expediente como este, sustentando que faz uso do seu Poder Discricional, cabível a anulação do ato.


4º - A BOA-FÉ

O Direito tem, como um de seus princípios fundamentais, a boa-fé ,

Vale este princípio tanto para o direito privado como para o direito público.

Neste, então, reveste-se de uma importância vital, posto que o Administrado tem de confiar na ação de seus governantes e de suas instituições.

Enganando por meio de subterfúgios ou artimanhas, o ato da Administração praticado com o uso da Discricionariedade administrativa é sujeito à nulificação, com a responsabilização do agente que assim procedeu.

5º - ALTERUM NON LAEDERE
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Princípio, cunhado por Ulpiano e por ele considerado fundamental, o não prejudicar a ninguém é também um limitador do Poder Discricionário.

Só se excepciona tal princípio se uma situação fática o justificar, havendo fundamento legal suficiente e razoável.

Digamos: num estado de guerra, uma propriedade imóvel é requisitada para instalar uma peça de artilharia que, é muito provável, venha a ser atacada pelo exército inimigo.

É evidente que, em razão da colocação de tal artefato bélico, e do provável ataque, os danos serão de maior monta do que seriam se a requisição fosse para fins pacíficos.

Mas, não configuradas situações extremas, como a retratada, a Administração Pública não pode lesar ninguém, quando faz uso do seu Poder Discricional.

Caso assim proceda, pode ser anulado o ato, independentemente de futura indenização.

CONCLUSÃO

Muito se poderia, ainda, dizer. Deixo, para uma próxima ocasião, se honrado for com convite, para abordar a “discricionariedade zero”, ligada com os “conceitos jurídicos indeterminados” e que, desenvolvida pela doutrina espanhola, vem ganhando adeptos em vários países.



REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS