A Aposentadoria por Idade e a Lei 10.666/2003

Autor: Vilian Bollmann
(Juiz Federal Substituto da Vara do Juizado Especial Federal de Blumenau (SC)

| Artigo publicado em 25.10.2004 |

 

Resumo

O estudo aborda os reflexos da Lei nº 10.666/2003 na aposentadoria por idade. São analisadas tanto a origem desta hipótese de concessão de benefício a quem não é mais segurado quanto a atual configuração positiva dos requisitos para a sua percepção.

1. Nota introdutória

É sabido que, orientada pela nova perspectiva democrática que lhe deu origem, a Constituição da República Federativa do Brasil (CR), promulgada em 1988, comete, expressamente, ao Estado os objetivos de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, da CR) e “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III, da CR).

A partir desses resultados que devem ser buscados, o constituinte traçou diversos institutos, igualmente inscritos na Carta Constitucional, que visam determinar a atuação estatal. Dentre eles, destaca-se a Previdência Social, que, embora organizada com caráter contributivo (art. 201, caput, CR), orienta-se, principalmente, para a cobertura de eventos de doença, invalidez, morte, idade avançada, proteção à maternidade, amparo ao trabalhador desempregado ou recluso (incisos I a V do art. 201 da CR).

Em verdade, tais eventos representam riscos sociais que, influenciando na capacidade da pessoa de manter, por seu trabalho, a si e a sua família, constituem o elemento material da regra jurídica de proteção, dando suporte a uma prestação devida pelo Estado ao segurado ou aos seus dependentes.

Sobre o tema, partindo de uma concepção analítica do fato jurídico que dá origem ao benefício previdenciário, concluiu-se, alhures (1), que o fato-benefício, especialização previdenciária do fato gerador, é, de forma analítica, decomposto em (1) Descrição, dividido em (1a) aspecto material (risco social que implica incapacidade); (1b) aspecto temporal (requisitos de ordem temporal); (1c) aspecto espacial; (1d) aspecto pessoal; e (2) Preceito, composto de (2a) sujeito ativo (o responsável pelo amparo); (2b) sujeito passivo (agente que será amparado); (2c) prestação devida (englobando tanto o aspecto quantitativo quanto a forma, tempo e local de pagamento).

Pois bem, em relação ao aspecto pessoal da descrição do fato-benefício (ou hipótese de incidência previdenciária), dizíamos que deve ser levada em conta a pessoa que sofre os efeitos do risco social, ainda que outra seja a que receberá as prestações devidas pelo sistema previdenciário. O elemento de ligação entre o risco social e a prestação é a pessoa que sofre o risco, ainda que os efeitos econômicos deste atinjam outrem, como a sua família.

Ocorre que a lógica dos sistemas previdenciários, que não se confundem com a assistência social, está ligada à possibilidade de o agente, mediante contribuição decorrente de uma atividade laboral, filiar-se para que, posteriormente, na ocorrência de um “fato-risco”, venha a perceber uma prestação. Assim, o aspecto pessoal é a existência da chamada qualidade de segurado, que traduz, também, o fato de que o sistema é economicamente mantido por esta pessoa (2).

É por esse motivo que, em regra, a percepção de um benefício previdenciário deve observar a existência do requisito da qualidade de segurado por parte daquele que sofreu o risco social na época de eclosão deste. Em outras palavras, a regra geral determina que, vitimado por uma circunstância prevista como base material da hipótese de incidência previdenciária, só haverá o direito ao benefício se, neste momento, a pessoa era filiada ao sistema (obrigatória ou facultativamente) e estivesse com a qualidade de segurado (seja por exercer a atividade de filiação obrigatória, seja por estar recolhendo na forma de segurado facultativo, seja, ainda, por estar abrigado por uma das hipóteses de período de graça, previstas no art. 15 da Lei 8.213/1991).

Esta lógica tem, contudo, uma exceção que, a cada dia, provoca um grande número de ações judiciais. Trata-se da aposentadoria por idade nos casos em que o segurado completou o requisito etário após ter perdido a qualidade de segurado. Inicialmente, as lides decorriam do não-reconhecimento literal desta hipótese por fonte formal de direito positivo (lei), mas pela interpretação jurisprudencial. Atualmente, as lides que são ajuizadas decorrem da aplicação literal do novo texto normativo, realizada pela Autarquia Previdenciária, da qual implicam indeferimentos dos pedidos administrativos.

Por isso, a fim de aclarar a situação ora existente, buscar-se-á (1) traçar o fundamento que justificou os primeiros julgados que deram origem a esta hipótese excepcional; para, em seguida, (2) indicar o novo parâmetro normativo e suas conseqüências práticas, seja para (3) o cálculo do benefício devido(3), seja para (4) definir qual o requisito de carência (4) a ser exigido dos segurados que já eram filiados ao sistema previdenciário antes de 1991.

2. Desenvolvimento

No plano infraconstitucional, os princípios acima declinados plasmaram-se na Lei 8.213/91 – LBPS – que, dentre os diversos benefícios previstos para abrigar os riscos delineados na Constituição, elenca, como proteção ao trabalhador idoso, a chamada Aposentadoria por Idade.

Com efeito, o art. 48, da LBPS, dispõe :

“A aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 anos de idade, se homem, e 60, se mulher”.

Por isso, são requisitos indispensáveis para concessão desta espécie de benefício: (1) a filiação à Previdência (5); (2) cumprimento do prazo de carência (6) e (3) requisito etário (sessenta e cinco anos para os homens e sessenta para as mulheres), que, dadas certas peculiaridades (7), pode sofrer redução (art. 48, §1º, LBPS) (8).

Nesse sentido, antes do advento da Lei 10.666/2003, ao aplicar a lei de ofício (tarefa eminente dos órgãos estatais executivos), a Autarquia Previdenciária negava os pedidos administrativos dos segurados que, na data do requerimento, não possuíssem qualidade de segurado. Argumentava-se que a redação do art. 48 da LBPS deixava claro que a aposentadoria “será devida ao segurado que (..) completar” a idade necessária. Além disso, não se preenchia o requisito da carência, pois, se perdida a qualidade de segurado, as contribuições anteriores só poderiam ser contadas com o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 24 da LBPS.

Todavia, a matéria passou a comportar interpretação mais benéfica ao segurado, seja pelo Superior Tribunal de Justiça – intérprete privilegiado da legislação federal (art. 106, III, CR), seja pelos Tribunais Regionais Federais e também pelas Turmas Recursais com competência para julgamento nos Juizados Especiais Federais, cortes competentes para decidir, em segundo momento, sobre eventuais recursos interpostos contra decisões do judiciário que negassem a concessão do benefício.

Um dos primeiros julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema fixou que:

I - PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA POR VELHICE - CONDIÇÕES
DE OBTENÇÃO - EX-CONTRIBUINTE DESEMPREGADO AO COMPLETAR A IDADE LIMITE (ART. 32 DA CLPS). II - PROCESSUAL - FUNDAMENTO DO PEDIDO - CONDIÇÕES DE AÇÃO - CONFUSÃO - DECISÃO DE MÉRITO - REFORMA - RETORNO AO TRIBUNAL A QUO.
1. A APOSENTADORIA POR VELHICE SUBORDINA-SE A ADIMPLEMENTO DE DUAS CONDIÇÕES: PAGAMENTO DE SESSENTA CONTRIBUIÇÕES MENSAIS E A CHEGADA DO APOSENTADO, COM VIDA, AO LIMITE DE IDADE FIXADA NO ART. 32 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. QUEM PRESTOU MAIS DE SESSENTA CONTRIBUIÇÕES MENSAIS E COMPLETA SESSENTA E CINCO ANOS TEM DIREITO À APOSENTADORIA POR VELHICE - AINDA QUE ESTEJA DESEMPREGADO, SEM CONTRIBUIR PARA A PREVIDÊNCIA SOCIAL.
2. ACORDÃO QUE EXTINGUE O PROCESSO, "SEM JULGAMENTO DO MÉRITO", AO FUNDAMENTO DE QUE O AUTOR NÃO PREENCHE OS REQUISITOS DA APOSENTADORIA PLEITEADA. NÃO SE CONFUNDEM AS CONDIÇÕES DA AÇÃO, COM OS FUNDAMENTOS DO PEDIDO. TAL DECISÃO, EM VERDADE, APRECIOU O MÉRITO. AO PROVER RECURSO ESPECIAL, CUMPRE AO STJ REFORMAR INTEGRALMENTE A DECISÃO A QUO, SEM DEVOLVER O PROCESSO, PARA NOVO JULGAMENTO (9).

Deste julgado, colhe-se a seguinte motivação:

"(..) ao recolher as contribuições à Previdência Social, o Trabalhador vai formando um pecúlio, em que cada prestação corresponde à sexagésima parte de um direito sob condição suspensiva: o implemento dos sessenta e cinco anos de idade. Atingida a idade prevista no Art. 32 da CLPS, o direito à aposentadoria é adquirido (Diga-se, apenas para ilustrar, que o adimplemento desta condição é fato raro entre os integrantes da baixa classe média nordestina). Não há, no texto legal, qualquer outro requisito ou condição: a aposentadoria é devida a quem prestar sessenta contribuições e completar sessenta e cinco anos. Não se exige do contribuinte que chegue à idade-condição em pleno exercício do trabalho.
A Previdência Social estabelece com o operário, uma relação jurídica em que cada parte corre um risco: o ente previdenciário arrisca-se ao pagamento da aposentadoria, se o trabalhador chegar, vivo, aos sessenta e cinco anos; o contribuinte, de sua parte, arrisca-se a perder o pecúlio, caso não consiga fugir da morte, até aquela idade.
Este jogo de risco é bancado à sombra de cálculos atuariais.
A idéia de que só pode ser aposentado quem está trabalhando parte de uma confusão de conceitos gerada na impressão de que apenas se aposenta quem está trabalhando. Vale dizer: quem está desempregado não se aposenta. Semelhante impressão foge à realidade.
Em verdade, não há incompatibilidade entre aposentadoria e desemprego. A incompatibilidade aparente gera-se na circunstância de que entre as duas situações existe algo em comum: a ausência de trabalho. Sob este aspecto, a aposentadoria é uma espécie de desemprego. Em substância, porém, aposentadoria é bem mais que simples ausência de trabalho. Em substância, este instituto pode ser conceituado como o direito que se outorga a quem foi trabalhador e contribuinte da Previdência Social, de continuar a receber estipêndios, embora não esteja mais obrigado a prestar serviços. Como se percebe, o status de aposentado pressupõe a perda da qualidade de empregado (ou de trabalhador): somente goza de aposentadoria, quem não é mais trabalhador. Existe uma confusão de conceitos que seria eliminada, se passássemos a chamar "aposentação", o fenômeno pelo qual determinada pessoa deixa de ser empregado para ser aposentado. Diríamos, assim, que "aposentação" é uma forma de liberar o trabalhador de sua obrigação de prestar serviços. Reservaríamos a palavra "aposentadoria" para referência à situação de quem já não necessita trabalhar, para receber. Sentiríamos, então, que a aposentadoria tem início após a aposentação.
Desfeita a confusão, percebe-se que o direito à aposentadoria é adquirido através do trabalho. Se tal exercício é interrompido antes de verificados os pressupostos da aposentadoria, esta não se aperfeiçoa.
Porém, se tais pressupostos são adimplidos, a aposentadoria incorpora-se ao patrimônio do contribuinte. Em contrapartida, o ente previdenciário obriga-se a prestar-lhe os benefícios da inatividade remunerada.
Na aposentadoria por velhice, o direito se aperfeiçoa através da conjunção de dois requisitos: o pagamento de sessenta contribuições e o sexagésimo quinto aniversário. O desemprego, longe de frustrar a aposentadoria, simplesmente faz desaparecer o fenômeno da aposentação.
Negar aposentadoria ao desempregado, pelo singelo motivo de que não estar empregado, é confiscar-lhe um pecúlio construído ao longo das anos, à custa do salário."

Como se vê, neste julgado, dentre outras, foram adotadas as seguintes premissas: (a) cada prestação de trabalho feita pelo segurado correspondia a uma parcela (sexagésima (10)) do direito; (b) desnecessidade de que o segurado estivesse trabalhando para perceber aposentadoria por idade; (c) a aposentadoria por velhice, prevista na CLPS, tinha apenas dois requisitos, a idade e o pagamento de sessenta contribuições.

Posteriormente, em correlação ao crescente número de ações sobre o tema, os julgados foram unificando o entendimento quanto à conclusão, embora por outros fundamentos.

Com efeito, colhe-se da jurisprudência:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO. IRRELEVÂNCIA. 1. Para concessão de aposentadoria por idade, não é necessário que os requisitos exigidos pela lei sejam preenchidos simultaneamente, sendo irrelevante o fato de que o obreiro, ao atingir a idade mínima, já tenha perdido a condição de segurado. 2. Embargos rejeitados (11).

E, ainda:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. PREENCHIMENTO DAS CONDIÇÕES APÓS A PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. 1. A aposentadoria por idade sempre manteve duplo requisito: idade e carência. 2. Precedentes do STJ informam como melhor a interpretação de que pode dar-se a reunião dos requisitos em diferentes momentos, mesmo quando o preenchimento da condição idade ocorra em época onde já tenha o interessado perdido a condição de segurado, se anteriormente cumprido o requisito de carência (12).

Tal corrente encontrou abrigo na legislação, que, na Lei 10.666/2003, determinou:

Art. 3o A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial.
§ 1o Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data do requerimento do benefício (GRIFEI).
§ 2o A concessão do benefício de aposentadoria por idade, nos termos do § 1o, observará, para os fins de cálculo do valor do benefício, o disposto no art. 3o, caput e § 2o, da Lei no 9.876, de 26 de novembro de 1999, ou, não havendo salários de contribuição recolhidos no período a partir da competência julho de 1994, o disposto no art. 35 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991.

Esta lei resultou da conversão da Medida Provisória nº 83, de 12.12.2002, a qual tinha o seguinte texto originário:

Art. 3º A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial.
Parágrafo único. Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, duzentas e quarenta contribuições mensais.

Ora, ao modificar o texto originário quando da conversão, o legislador excluiu o requisito de duzentas e quarenta contribuições mensais previsto no parágrafo único da redação originária da Medida Provisória, passando a exigir somente o número correspondente à carência na data do requerimento. Ele não distingue sequer o tempo de contribuição anterior à perda do posterior, permitindo, assim, sejam eles adicionados. Também não prevê a necessidade de cumprimento de outros requisitos em razão da perda da qualidade para efeito de carência (como ocorre na regra geral do art. 24, parágrafo único). Aliás, ao determinar, sem restrição expressa, que “a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício”, o §1o do art. 3o da Lei 10.666/2003 manda que este fato seja desconsiderado quando da apreciação administrativa do requerimento; logo, ela afasta a incidência do parágrafo único do art. 24 da LBPS, já que este dispositivo tem como hipótese justamente a perda da qualidade de segurado. Por isso, não há que se falar em outros requisitos adicionais aos previstos no texto citado, ainda que este não seja conforme o sistema do RGPS. Vale destacar que esse regramento trata de hipótese específica (aposentadoria por idade com perda da qualidade do segurado), não havendo, por isso, antinomia (13) com as regras gerais previstas na Lei 8.213/1991.

Como se vê, é possível, sim, a concessão do benefício mesmo que, ao completar o requisito etário, o segurado não mais detenha tal qualidade ou, ainda, que, após adquirida novamente tal qualidade, não tenha, ainda, vertido o número de contribuições necessário para a utilização das anteriores para fins de carência.

Vale registrar, ainda, que tais preceitos normativos foram reiterados pelo legislador quando da aprovação do “Estatuto do Idoso” (Lei 10.741/2003), no qual se previu:

Art. 30. A perda da condição de segurado não será considerada para a concessão da aposentadoria por idade, desde que a pessoa conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data de requerimento do benefício.
Parágrafo único. O cálculo do valor do benefício previsto no caput observará o disposto no caput e § 2º do art. 3º da Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999, ou, não havendo salários-de-contribuição recolhidos a partir da competência de julho de 1994, o disposto no art. 35 da Lei nº 8.213, de 1991.

Claro está, portanto, que, ao dar o tratamento infraconstitucional aos princípios delineados pela Constituição (incluindo-se, aí, a expressa determinação de que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”, art. 230 da CR), o legislador, sopesando as possibilidades econômicas do sistema e as necessidades sociais e os valores entranhados no (in)consciente coletivo nacional, teve, por bem, amparar a interpretação jurisprudencial e dar-lhe caráter de imperativo legal.

Seria possível cogitar-se da violação aos princípios de caráter contributivo e da necessidade de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial; porém, tal argumento não se sustenta por dúplice fundamentação. A uma, ainda que pequena (mínimo de sessenta), há contribuições do segurado para a futura aposentadoria por idade, devendo ser considerado o fato de que existem várias hipóteses de benefícios que independem de carência (pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família, auxílio-acidente e, em certos casos, auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), todos eles custeados pela Sociedade. A duas, sendo normas do tipo princípio, a exigibilidade de contribuições e manutenção de equilíbrio atuarial são sopesadas quando colidentes com outros fatores, tais como a proteção ao idoso e a solidariedade social, seja na via legislativa (que se presume constitucional), seja mediante cognição judicial no caso concreto, pela técnica da ponderação de interesses. Na espécie, a relação específica de preponderância, indicativa de qual princípio terá prevalência, foi realizada pelo legislador, que não apenas detalhou a forma de aferição do caso concreto (exigindo o número de contribuições equivalente ao da carência), como também o montante da conseqüente retribuição pecuniária.

Ultrapassada a admissibilidade da hipótese excepcional de benefício previdenciário cuja hipótese de incidência não requer a qualidade de segurado, resta, ainda, avaliar tanto o requisito temporal consistente na carência quanto no conseqüente aspecto quantitativo, matérias ainda controversas e sujeitas a ações judiciais.

Em relação à carência, conquanto não seja exigível, não se pode fugir do disposto no art. 142 da LBPS, dado o comando previsto no §1o do art. 3o da Lei 10.666/2003.

A carência, como aspecto temporal integrante da hipótese de incidência previdenciária da aposentadoria por idade, tem, como regra geral, o limite definido no art. 25, inc. II, da Lei de regência:

Art. 25. A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26: (..) II - aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de serviço e aposentadoria especial: 180 contribuições mensais. (Redação dada pela Lei nº 8.870, de 15.4.94)

Ocorre, contudo, que tal valor é a regra geral, mas não a única. A interpretação daquele dispositivo deve ser feito no contexto da Lei 8.213/1991. Além da ressalva expressa feita no caput do art. 25, que menciona as hipóteses do art. 26, o dispositivo legal deve ser interpretado sistematicamente, já que existe, ainda, outra exceção legal, esta prevista no art. 142 da mesma lei, inserido nas disposições finais e transitórias daquele Diploma.

Dispõe o art. 142 da Lei 8.213/91:

Para o segurado inscrito na Previdência Social Urbana até 24 de julho de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência Social Rural, a carência das aposentadorias por idade, por tempo de serviço e especial obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou todas as condições necessárias à obtenção do benefício:

Como se vê, além da regra geral imposta a todos os beneficiários do sistema previdenciário advindo com a Lei 8.213/1991, há ressalva legal para aqueles que, uma vez inscritos nos regimes anteriores (dentre eles o decorrente da CLPS), estiveram, por algum tempo, sujeitos a regime jurídico diferente.

Vale lembrar que no regime pretérito o benefício similar ao postulado tinha prazo de carência de apenas 60 meses (= 5 anos), conforme delineava a Consolidação das Leis Previdenciárias (Decreto 89.312/84):

Art. 32. A aposentadoria por velhice é devida ao segurado que, após 60 (sessenta) contribuições mensais, completa 65 (sessenta e cinco) anos de idade se do sexo masculino, ou 60 (sessenta) se do feminino, consistindo numa renda mensal calculada na forma do § 1º do artigo 30, observado o disposto no § 1º do artigo 23.

Logo, a nova Lei quis, claramente, estipular dois regimes de carência: (a) o novo regime, com prazos maiores válidos para os novos segurados e (b) regime transitório, com prazos diferenciados para os que já haviam sido segurados e que tiveram o prazo de carência abruptamente majorado.

Por isso, para os segurados filiados ao sistema antes da vigência daquela Lei, “a carência das aposentadorias por idade (..) obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou todas as condições necessárias à obtenção do benefício (...)”.

Ou seja, para os filiados antes da Lei 8.213/1991, ainda que utilizadas as contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado para fins de carência, deverá ser comprovado o número necessário conforme a tabela prevista no art. 142 daquele Diploma legal.

Ocorre, contudo, que o disposto no §1o do art. 3o da Lei 10.666/2003 não pode ser aplicado em sua literalidade quando determina a busca na tabela do art. 142 da Lei 8.213/1991, pela data do requerimento, pois implicaria sua inconstitucionalidade substancial.

Ora, em relação à inconstitucionalidade da referida busca, basta seja analisada a hipótese de dois segurados nascidos no mesmo ano (ex: idade suficiente para o benefício no ano de 2003) com idêntico tempo de serviço (ex: 135 contribuições), mas requerimentos administrativos em anos distintos (ex: um em 2003 e o outro em 2004). Eventual impossibilidade de se conceder o benefício a um e deferi-lo a outro força o reconhecimento da violação ao princípio da igualdade, pois o elemento discriminador utilizado não guarda pertinência razoável com os elementos que pretende discriminar.

O benefício em tela é devido pela presunção de que a idade faz surgir uma incapacidade para o trabalho. Tal presunção é reforçada não apenas pela perda da força pelo cidadão cuja idade é avançada, mas também pelas regras de experiência do que normalmente ocorre (art. 5o Lei 9.099/1995, e art. 335 CPC), sobremodo durante a contínua crise econômica que produz uma alta competitividade no mercado de trabalho. Logo, imputar à mora de um dos segurados a qualidade de elemento de extinção do seu direito não é conduta que se coaduna com a presunção decorrente da idade.

Aliás, lembrando a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello em suas conclusões da já clássica obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, “há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando: (..) II – a norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no objeto – como critério diferencial” (GRIFEI) (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3a ed. 7a tir., SP: Malheiros, 1999, p. 47). Mais a frente, ele esclarece que:

(...) ao se examinar a distinção, ao se examinar algum discrímen legal, para fins de buscar-lhe afinamento ou desafinamento com o preceito isonômico, o que se tem de perquirir é se os fatos ou situações alojados no tempo transacto são, eles mesmos, distintos, ao invés de se indagar pura ou simplesmente se transcorreram em momentos passados diferentes. Se são iguais, não há como diferençá-los, sem desatender à cláusula de isonomia. Portanto se a lei confere benefício a alguns que exerceram tais e quais cargos, funções, atos, comportamentos, em passado próximo e os nega aos que exerceram em passado mais remoto (ou vice-versa) estará delirando do preceito isonômico, a menos que existam, nos próprios atos ou fatos, elementos, circunstâncias, aspectos relevantes em si mesmos, que os hajam tornado distintos quando sucedidos em momentos diferentes (ob. cit. p. 34) (GRIFEI).

A única desigualdade existente no exemplo citado acima é a mora do segurado em buscar seu direito. Logo, ela não pode afetar o fundo do direito consistente no gozo de benefício etário, mas tão-somente as parcelas que deixou de auferir porque não as buscou tempestivamente. Pensar de forma diversa seria atribuir a esta mora o caráter de fato extintivo de direito similar à decadência, o que não se afigura razoável.

Portanto, diante da ausência de situação distinta nos casos exemplificados, resta certa a conclusão de que a distinção trazida pela lei viola o princípio da isonomia jurídica, devendo, por isso, ser interpretado de forma a aplicar o art. 142 da LBPS, com base no ano em que o segurado completou a idade necessária à aposentadoria, servindo o requerimento administrativo apenas como termo inicial da mora da entidade previdenciária para pagamento das parcelas decorrentes da nova situação jurídica do segurado.

Por fim, em relação à forma de cálculo do valor do benefício, deve-se observar o disposto no § 2o do art. 3º da Lei 10.666/2003.

Pois bem, se o segurado recolheu contribuições após a competência de julho de 1994, deverá ser aplicado o disposto no art. 3o, caput e § 2o, da Lei 9.876/1999, in verbis:

Art. 3o Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condições exigidas para a concessão dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição, correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994, observado o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei no 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei.
(..) § 2o No caso das aposentadorias de que tratam as alíneas b, c e d do inciso I do art. 18, o divisor considerado no cálculo da média a que se refere o caput e o § 1o não poderá ser inferior a sessenta por cento do período decorrido da competência julho de 1994 até a data de início do benefício, limitado a cem por cento de todo o período contributivo.

Saliento, outrossim, que, tratando-se de favor legal (desconsideração da perda da qualidade de segurado aliada à possibilidade de considerar todas as contribuições sem aplicação do parágrafo único do art. 24 da LBPS), com evidente prejuízo ao caráter contributivo da Previdência pela adoção de natureza assistencial, a aposentadoria por idade terá os seus contornos econômicos traçados exclusiva e restritivamente pelos ditames da Lei n. 10666/2003. Logo, ainda que a aplicação do § 2o do art. 3o da Lei 9.876/1999 implique valor inferior ao que poderia ser auferido se usado o regime anterior a esta modificação, deverá ser aquele o que regerá a hipótese.

3. Conclusões

Diante disso, conclui-se, de forma sintética, que (1), em regra, os benefícios previdenciários têm, como requisitos, a presença da qualidade de segurado e a carência na época da eclosão do risco social; (2) porém, como exceção, amparada em lei, há a aposentadoria por idade, que prescinde da qualidade de segurado na época em que atingida a idade legalmente prevista como requisito e não depende de carência; (3) havendo a perda da qualidade de segurado, a aposentadoria por idade tem como requisitos apenas o etário e um número determinado de contribuições, fixado (4) em 60, para os que completaram a idade antes da Lei 8.213/1991, ou (5) de acordo com a tabela prevista no art. 142 desta Lei, conforme o ano em que foi atingida a idade mínima, ou, por fim, (6) em 180, para aqueles que completarem a partir de 2011. Conclui-se, também, (7) que, por se tratar de favor legal que desvincula o benefício de seu caráter contributivo, o benefício concedido com fundamento na Lei 10.666/2003 tem os seus contornos econômicos ditados na forma por ela prevista.

4. Bibliografia

BOLLMANN, Vilian. Fato jurídico de benefício previdenciário: breve abordagem analítica. Revista de Previdência Social, v. 27, n. 275, out. 2003.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Cláudio de Cicco e Maria Celeste C.J. Santos, São Paulo: Polis; Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1989.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a ed. 7a tir., SP: Malheiros, 1999.

NOTAS DE RODAPÉ

1. Cf. BOLLMANN, Vilian, Fato jurídico de benefício previdenciário: breve abordagem analítica. A conclusão apontada no texto parte da idéia de que a busca de um contínuo aperfeiçoamento dos saberes ligados a um ramo do Direito implica, necessariamente, no detalhamento dos fenômenos jurídicos que dele são característicos. Por isso, a exemplo do que ocorre no Direito Tributário e no Direito Penal, há necessidade de se especializar a idéia de fato jurídico, que é moldura abstrata genérica do fenômeno jurídico. Esta especialização, que liga o plano abstrato-formal das estruturas lógico-jurídicas ao plano concreto das relações sociais existentes no mundo fático, é orientada pelos princípios fundamentais da área visada, surgindo, daí, uma abordagem analítica que disseca o fato jurídico com a óptica de um ramo mais específico. O Direito Previdenciário é caracterizado, fundamentalmente, pela proteção do trabalhador que, vítima da eclosão de um risco social, se vê incapaz de produzir o seu próprio sustento, o que, em razão do princípio da solidariedade, implica, para a sociedade, o dever de providenciar os meios de garantir a sobrevivência do vitimado.

2. Obviamente que, além destas contribuições, há aquelas que são devidas por toda a sociedade, sejam as incidentes sobre faturamento ou receita das empresas, sejam as derivadas da receita de concursos de prognósticos e outras. Estes valores justificam-se não apenas porque o sistema previdenciário é fundado na solidariedade social, mas também pela necessidade de serem cobertos riscos para benefícios devidos sem carência etc.
3. Aspecto quantitativo do conseqüente normativo da hipótese de incidência previdenciária.
4. Um dos aspectos temporais que compõem o descritivo do fato-benefício.
5. Devida “(..) ao segurado que”.
6. “(..) cumprida a carência”.
7. “(..)completar 65 anos de idade, se homem, e 60, se mulher”.
8. Os limites fixados no caput são reduzidos para sessenta e cinqüenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea a do inciso I, na alínea g do inciso V e nos incisos VI e VII do art. 11.
9. STJ - RESP 13392 / PE - 1991/0015742-2 – DJ, 26/04/1993, p. 07169, RSTJ 50/186 – Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS – j. 17/03/1993.
10. Notar que, na Legislação anterior, o prazo de carência era de apenas 60 (sessenta) meses, e não os atuais 180 (cento e oitenta) previstos como regra permanente, e nem os prazos crescentes que vigoram para o regime de transição entre aquele regime e o atual (vide art. 142, LBPS).
11. STJ – EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO ESPECIAL 175265 – Processo 199900686764/SP, j. 23/08/2000, DJ, 18/09/2000, p. 91, RSTJ 138/91 – Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES.
12. TRF4 – AC 123820 – Processo: 9504273670/RS – j. 18/12/2001, DJU 13/03/2002, p. 1058 – Rel. Des. Federal NÉFI CORDEIRO.
13. Com efeito, não há, na espécie, identidade no âmbito de aplicação das normas. Sobre o tema, leciona BOBBIO que as antinomias podem ser propriamente ditas (jurídicas) ou impróprias. As antinomias próprias têm como requisitos: (a) as normas devem ser do mesmo ordenamento e (b) as normas devem ter o mesmo âmbito de validade, nos seus quatro aspectos, pessoal, temporal, espacial e material. Essas antinomias têm graduações, podendo ser total-total, parcial-parcial e total-parcial (Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 86/91).



REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS