Sumário:
1. Introdução – 2. Sistemas de valoração
– 3. A ficção jurídica no CPC – 4. A
ficção jurídica no JEF – 5. A interpretação
da Lei 10.259/01 – 6. Conclusões.
1.
Introdução
Já
não é pequena a celeuma jurídica em torno das disposições
que regem o valor da causa no âmbito dos Juizados Especiais Federais,
sendo de todo oportuno que o assunto seja enfrentado por diversos ângulos,
mormente porque cuida de matéria relevante, qual seja, a competência
nos JEF’s.
2. Sistemas de valoração
As
leis de processo admitem, de modo geral, dois sistemas de fixação
para o valor da causa. Um deles é o da determinação
legal, ou seja, a lei prevê os critérios, impondo-os coercitivamente
ao demandante. O outro estabelece liberdade de movimento na determinação
do valor da causa, por impossibilidade de previsão legal para as
hipóteses. A tendência, por óbvio, é a do legislador
tentar, sempre que possível, a tarifação.
3.
A ficção jurídica no CPC
As ações judiciais têm, é certo, determinado
conteúdo econômico.
Entretanto, a aritmética não se aplica de forma pura no
Foro, pois a lei de processo predetermina o valor a ser atribuído
à causa. Exemplos estão configurados nos artigos 259 e 260
do CPC.
Por que, então, dissemos que a matemática não se
aplica?
Porque, em várias hipóteses legais, o conteúdo econômico
do litígio, apurado matematicamente, não confere com a definição
criada pelo legislador para o mesmo caso.
Sem embargo, quando o artigo 260 do CPC prescreve a soma das prestações
vencidas e vincendas, limitando as últimas a apenas 12 (doze),
quando poderiam ser 24, 48, 180, ou mais, de acordo com a relação
jurídica material (pensão previdenciária, por exemplo),
observamos que o real “conteúdo econômico da lide”
é muito superior ao fixado na lei pelo nosso legislador, o qual
criou verdadeira ficção jurídica.
Aliás, prova inconteste de que a lei processual cria e aceita a
existência de ficções jurídicas é a
exigência, mesmo para os processos sem conteúdo econômico,
do valor da causa na inicial, como se fosse possível uma aferição
realista. Qual o significado econômico de mera averbação
de tempo de serviço?
Outro fácil exemplo. Quando, nas ações de divisão,
demarcação e de reivindicação, elege-se como
valor da causa a “estimativa oficial para lançamento do imposto”
(art. 259, VII). Ora, é público e notório que as
tais estimativas estão muito aquém de refletir a verdade
imobiliária.
Destarte, chegamos a uma conclusão inarredável, qual seja,
a de que é a lei processual a real fonte para determinação
do valor da causa, independentemente dela (lei) refletir o verdadeiro
conteúdo econômico da lide.
4.
A ficção jurídica no JEF
Se
assim estamos conformados, temos dever de observar a Lei 10.259/01 e suas
próprias definições para o valor de suas causas,
as quais, como no regime do CPC, não guardam, necessariamente,
relação com o conteúdo econômico do processo.
Há, sem dúvida, relativismo neste conceito (o de conteúdo
econômico).
E
por que assim acontece? Porque inexiste forma diversa de cuidar abstratamente
do assunto. Damos gênese a ficções para facilitar
a determinação do valor para a causa. A lei fornece os balizamentos
e nós não podemos transformar a questão em problema
insolúvel, mormente quando subsumidos aos princípios da
informalidade, simplicidade e celeridade.
Joel Dias Figueira Júnior (1), citando Liebman
(2), aduz:
“A exemplo do Direito italiano, encontramos no art. 259 do CPC ‘(...)
regras destinadas a aplicar o princípio geral aos casos particulares,
com alguns desvios intencionais para facilitar a
determinação do valor da causa; outras disposições
têm o escopo de estimá-lo ou fixá-lo
em modo aproximativo, com rapidez e simplicidade prescindindo de qualquer
preocupação de mensuração rigorosa.
O valor determinado com estes critérios sumários ou aproximados
não é, naturalmente, sempre exato e por isso tem importância
para os efeitos exclusivos de estabelecer a competência, sem influir
no mérito (...)’”. (O grifo é nosso).
Então vejamos. Na hipótese do artigo 260, o legislador elegeu
apenas 12 (doze) prestações vincendas por mera conveniência.
Poderia, como dito, prescrever 24, 36, etc. O cálculo seria igualmente
simples. No caso do artigo 259, inciso VII, a “estimativa oficial”
fornece segurança quanto à fonte, minimizando a discussão.
Por isto, defendemos ponto de vista atento a esta realidade, relativizando
a problemática do conteúdo econômico do litígio
para fins de determinação do valor da causa e, conseqüentemente,
da competência nos Juizados.
A Turma Recursal do Rio Grande do Sul, compreendendo estas particularidades,
definiu, contrariamente ao estatuído no inciso II do art. 259 do
CPC(3), o seguinte:
“A Turma, por unanimidade, entendeu que o limite de 60 (sessenta)
salários mínimos referidos no art. 3o da Lei 10.259/01,
deve ser considerado em relação a cada pedido formulado
pelo autor, evitando a multiplicação de ações”.
(Questão de Ordem VII).
Prosseguindo no raciocínio, qual seja, de que a lei processual
é quem define o valor econômico da lide para fins de alçada,
deixando de lado a preocupação com qualquer estimativa mais
rigorosa, é mister transcrever parcialmente o artigo 3o da Lei
10.259/01:
“Art. 3o - Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar,
conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal
até o valor de sessenta salários mínimos, bem como
executar as suas sentenças.
§ 2o - Quando a pretensão versar sobre obrigações
vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma
de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no
art. 3o, caput.”
Para entendermos as disposições transcritas é necessário
algum esclarecimento prévio. Quando os Juizados foram criados,
o foram, basicamente, para lidar com ações de natureza previdenciária.
Entre elas, podemos citar as causas de concessão e as de revisão
de benefício previdenciário (aposentadorias, auxílios-doença
e pensões). Por outro lado, era imperioso aliviar a carga de trabalho
imposta aos Tribunais Federais, poupando-os das questões de menor
potencial econômico.
Prova da assertiva foi a limitação de competência(4)
imposta aos Juizados pela Resolução 252/01 do Conselho da
Justiça Federal, no âmbito das 3o, 4o e 5o Regiões.
A propósito, tal limitação foi prorrogada até
30 de abril de 2003 pela Resolução 275, de 30 de agosto
de 2002.
Os benefícios mantidos pela Previdência Social, cujo órgão
executivo é o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS,
classificam-se como prestações de índole continuada
ou de trato sucessivo. Ou seja, seu término depende de fato sem
prazo determinado ou determinável.
Desta forma, naquelas causas em que exista litigiosidade sobre uma relação
de trato sucessivo, ou sobre aspectos dela, como revisões, concessões,
restabelecimento de benefícios, etc., e por isto cuidar-se de prestações
vincendas por excelência, porque o que se quer é alteração
do status quo atual e futuro (e não do passado), aplicaremos
somente o § 2o, sem olvidar que possam existir atrasados a serem
ressarcidos na mesma causa.
A propósito, a existência de prestações vencidas
é, corriqueiramente, certa. Assim, estamos diante de mais uma ficção
jurídica estabelecida pelo legislador, pois o real conteúdo
econômico da lide deveria abranger todas as prestações,
sem qualquer limitação, alcançando-se com realidade
o valor da causa.
Mas é necessário ressaltar: o parágrafo segundo do
artigo terceiro fala que “quando a pretensão versar sobre
obrigações vincendas”, e não “quando
a pretensão versar exclusivamente
sobre obrigações vincendas”, a soma de doze parcelas
não pode superar o teto de 60 salários mínimos, pois
é notório que toda relação jurídica
que possua prestações a vencer tem, como antecedente natural,
prestações vencidas.
Quando não for relação de trato sucessivo, aplica-se
o caput do artigo 3o, como, p. ex., repetição de
tributos, anulatórias de ato administrativo previdenciário
ou fiscal, de indenização, etc. Ou seja, procura-se a reparação
do passado. Inexiste futuro a ser alterado pela ação judicial.
Aqui, entretanto, não se verifica outra ficção do
legislador, pois, de regra, o valor da causa coincidirá com o conteúdo
econômico da lide.
Impossível ao intérprete combinar o caput do art.
3o com o seu parágrafo 2o para justificar a soma das prestações
vencidas com as vincendas, pois tal resultado levaria ao art. 260 do CPC,
tornando supérfluas as disposições da Lei 10.259,
o que é inadmissível ao hermeneuta.
5. A interpretação da Lei
10.259/01
O exegeta, para resolver qualquer conflito no âmbito dos Juizados,
deve recorrer aos princípios que regem este sistema, nascido sob
a égide da necessidade de conferir o acesso à Justiça
aos mais carentes, de forma barata, simples e célere.
Notem. Tanto a Lei 10.259 como a Lei 9.099 não fazem remissão
expressa ao CPC. E vejam que a Lei 9.099 manda aplicar subsidiariamente
os Códigos Penal e Processual Penal no artigo 92.
Em assim procedendo, as omissões da Lei e as dúvidas porventura
surgidas deverão ser resolvidas, sempre, a partir dos princípios
do próprio Juizado Federal – oralidade, simplicidade, informalidade,
economia processual e celeridade, consoante determinação
expressa do art. 2º da Lei 9.099.
Ora, se fosse vontade do legislador socorrer-se no velho regime, bastava
ter ficado silente e mandado observar, de forma subsidiária, o
CPC.
A única forma de superação do atual sistema é
o gradativo abandono do Código de Processo Civil, adotando-se soluções
inteiramente novas e peculiares aos Juizados, inspiradas, como vimos,
nos princípios da nova modalidade de se fazer Justiça, verdadeira
contraposição ao antigo modo de pensar a jurisdição.
Oportuna é a transcrição das palavras do Ministro
Ruy Rosado de Aguiar:
“A aplicação subsidiária do Código de
Processo Civil é que não deve ser feita, pois não
está dito na Lei. Entendo que as questões procedimentais
dos juizados, quando surgirem e não estiverem reguladas na Lei,
devam ser resolvidas de acordo com os princípios desta lei, para
preencher a lacuna, mas não usar, subsidiariamente, o formalismo
do Código de Processo Civil”. (Anais do Seminário
Juizados Especiais Federais – Inovações e aspectos
polêmicos. AJUFE, 2002, p.195).
6. Conclusões
A lei processual é quem define o valor da causa para fins de alçada,
não havendo relevância para o legislador se a definição
legal não corresponde exatamente ao conteúdo econômico
do bem almejado na ação.
Maneja o intérprete, propositada e calculadamente, ficções
jurídicas com o objetivo de facilitar a determinação
do valor da causa, prevenindo embaraços processuais, como as impugnações
do artigo 261 do Código.
A Lei 10.259/01 reservou para as causas que versem sobre relações
de trato sucessivo, em particular as previdenciárias, apenas a
consideração das prestações vincendas, criando,
por excelência, mais uma ficção jurídica no
âmbito do nosso Direito.
NOTAS
DE RODAPÉ
1.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais federais cíveis
e criminais: comentários à Lei 10.259, de 10.07.2001/ Fernando
da Costa Tourinho Neto, Joel Dias Figueira Júnior. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002.
2. ENRICO
TULLIO LIEBMAN, Manuale di diritto processuale civile, vol. I, p. 52,
1984.
3. “II – havendo cumulação de pedidos, a quantia
correspondente à soma dos valores de todos eles;”
4. Competência para causas relacionadas com a previdência
e assistência social
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