I
– Introdução
Cabe-me, inicialmente, agradecer ao ilustre Presidente do Tribunal,
Conselheiro Victor Faccioni – e eu o faço com profundo
desvanecimento – a honra deste convite para proferir uma conferência
acerca da competência do Tribunal de Contas e seus efeitos perante
o Poder Judiciário.
E para participar em posição de tal preeminência,
que nada – a não ser a nímia gentileza de Vossa
Excelência – poderia justificar.
II – Origens do Tribunal de Contas
no Brasil.
Consoante afirmou GUIZOT, "la connaissance des faits doit précéder
l’étude des institutions” (1)
A idéia da criação de um Tribunal de Contas, no
Brasil, vem de 1826, em projeto apresentado no Senado do Império
por FELISBERTO CALDEIRA BRANT e por JOSÉ INÁCIO BORGES.
A respeito, registra PONTES DE MIRANDA, verbis:
“A idéia de um Tribunal de Contas vem, no Brasil, de 1826,
em projeto apresentado ao Senado do Império por FELISBERTO CALDEIRA
BRANT (Visconde de Barbacena) e por JOSÉ INÁCIO BORGES.
Combateu-o MANUEL JACINTO NOGUEIRA DA GAMA, Conde (pouco depois Marquês
de , Baependi), que, em discurso de 6 de julho daquele ano, disse: ‘...
se o Tribunal de Revisão de Contas, que se pretende estabelecer,
se convertesse em tribunal de fiscalização das despesas
públicas, antes de serem feitas em tôdas e quaisquer repartições,
poder-se-ia colhêr dêle proveito; mas, sendo ùnicamente
destinado ao exame das contas e documentos, exame que se faz no Tesouro,
para nada servirá, salvo para a novidade do sistema e o aumento
das despesas com os nêle empregados’. Por, onde se vê
que, se, de um lado, combatia a criação proposta, por
outro se manifestava partidário de um Tribunal de Contas mais
eficiente, mais poderoso. Em 1845 MANUEL ALVES BRANCO, Ministro do Império,
propôs a organização de um Tribunal de Contas que,
sôbre exercer fiscalização financeira, apurasse
a responsabilidade dos exatores da Fazenda Pública, com o poder
de ordenar a prisão dos desobedientes e contumazes e de julgar
à revelia as contas que tivessem de prestar. Se bem que a idéia
volvesse com PIMENTA BUENO (depois, Marquês de São Vicente),
SILVEIRA MARTINS, o VISCONDE DE OURO PRÊTO, e JOÃO ALFREDO,
o Império não possuiu o seu Tribunal de Contas.”
(2)
PIMENTA BUENO, o mais autorizado intérprete da Constituição
Imperial, advogara a criação da Corte de Contas em nosso
país, conforme se constata de sua consagrada obra Direito
Publico Brazileiro, verbis:
“É de summa necessidade a creação de um tribunal
de contas, devidamente organisado, que examine e compare a fidelidade
das despezas com os creditos votados, as receitas com as leis do imposto,
que perscrute e siga pelo testemunho de documentos authenticos em todos
os seus movimentos a applicação e emprego dos valores
do Estado, e que emfim possa assegurar a realidade e legalidade das
contas. Sem esse poderoso auxiliar nada conseguiráõ as
camaras”. (3)
A importância de uma instituição dessa natureza,
incumbida de velar pela fiscalização orçamentária
e financeira do país, portanto, já era reconhecida pelas
mais importantes personalidades do período imperial.
Em realidade, a necessidade de estabelecer-se o controle das contas
públicas é antiga, remontando à Antigüidade.
Revela-o, em trabalho doutrinário exaustivo, GIUSEPPE MOFFA,
no verbete “Corte dei Conti”, do Nuovo Digesto Italiano,
verbis:
“La necessità di un supremo organismo di vigilanza
e di controlo sulle pubbliche entrate e sulle pubbliche spese è
stata avvertita in ogni epoca e presso ogni popolo.
Risale, infatti, ai tempi antichissimi l’origine e l’organizzazione
del sindicato finanziario sull’attività statale e si riconnette
alle stesse origini della Finanza e della Contabilità erariale.
Vi sono scrittori, i quali hanno ricercati, attraverso le vicende storiche
dei primi popoli dell'antichità (Assiri, Babilonesi, Egiziani),
i più svariati istituti, relativi alle responsabilità
per la gestione del danaro pubblico.
Atene e Roma meritano, senza dubbio, maggiore attenzione.
I Greci inaugurarono, dopo i loro trionfi nelle arti, lo studio teorico
dell’economia sociale e del diritto pubblico; il genio amministrativo
e giuridico dei Romani ne proseguì ed organizzò lo sviluppo
pratico, col metodo e la sagacia previdente, che dovevano poi chiamar
Roma, secondo il voto profetico del suo maggior poeta, a reggere il
mondo con le sue armi e le sue leggi.” (4)
Logo após a sua unificação, em meados do século
XIX, a primeira Corte a ser instalada no Reino da Itália, com
jurisdição em todo o seu território, foi justamente
o Tribunal de Contas.
A propósito, convém recordar as palavras de QUINTINO SELLA,
então Ministro das Finanças, quando, em 27 de setembro
de 1862, procedeu à instalação do Tribunal de Contas
italiano, anunciando a importância para aquela nação
da instituição que naquele momento iniciava as suas atividades,
verbis:
“capirete, o signori, con quanta emozione io sia oggi entrato
in questo palazzo, nel quale si sta per l’appunto compiendo la
grandiosa opera della unificazione del debito pubblico; e sia venuto
tra voi ad inaugurare il primo magisrato civile, che estende la sua
giurisdizione a tutto il Regno. Solenne evento è questo, o signori,
imperocchè la creazione di questa Corte, non solo compie la unificazione
in uno importan-tissimo ramo della pubblica amministrazione, ma inizia
quella unità di legislazione civile, che giova ad eguagliare
le condizioni dei cittadini, qualunque sia la parte d’Italia,
ov'ebbero nascimento o tengono di-mora.
“Io considero, quindi, l’istituzione di questa Corte come
una delle più provvide e sapienti deliberazioni, che la Nazione
debba al suo Parlamento, in questa memoranda ed imperitura sessione
del 1861, in cui esso tanto operò per la Patria e tante prove
diede di virtù, di senno e di patriottismo.
“A voi, o signori magistrati ditutto il regno d’Italia,
e vivamente me ne congratulo, è toccata la ventura di inaugurare
sì splendido fato.” (5)
Em conceituada obra intitulada Le Gouvernement Parlementaire en
Angleterre, noticia A. TODD a existência de órgão
semelhante na Inglaterra, criado em 1861, e denominado Comité
des Comptes Publics, verbis:
“Le 9 avril suivant, sur la motion du Chancelier de l’Echiquier,
un comité spécial fut nommé pour l’examen,
d'année en année, des comtes apurés de la dépense
publique; et le Chancelier fit connaître son intention de proposer
que l'institution de ce comité eût un ca-ractère
permanent. Le 31 de mars 1862, cette promesse fut remplie par la nomination
d’un comité permanent, appelé ‘Comité
des comptes publics’, pour l'examen des comptes, indiquant l’affectation
des crédits alloués par le Parlement pour faire face à
la dépense publique. (...) Ce comité a été
définie par M. Gladstone: ‘une institution bien fondée
sur les principes du gouvernement parlementaire’, destinée
‘à compléter notre système de contrôle
parlementaire sur les deniers publics’, et fournissant à
la Chambre des Communes, par ses investigations, ‘la meilleure
garantie que les comptes publics seront examinés et rendus régulièrement,
rapidement et efficacement”. (6)
No Brasil, coube à República a instalação
do Tribunal de Contas, sem a qual, nas palavras de JOÃO BARBALHO,
“as leis de despezas são simulacros e a responsabilidade
do emprego dos dinheiros publicos uma simples ficção”.(7)
Com efeito, com a edição do Decreto nº 966-A, de
07 de novembro de 1890, a instâncias de RUY BARBOSA, na época
Ministro da Fazenda, criava-se “um Tribunal de Contas para o exame,
revisão e julgamento dos actos concernentes à receita
e despesa da Republica”.
Escolhida a primeira composição, o Ministro da Fazenda,
SERZEDELLO CORRÊA, promoveu a instalação do Tribunal
de Contas em 17 de janeiro de 1893, felicitando “o país
e a República pelo estabelecimento de uma instituição
que será a garantia de boa administração e o maior
embaraço que poderão encontrar os governos para a prática
de abusos no que diz respeito a dinheiros públicos”.
Após a sua instalação, nos anos subseqüentes,
a Corte de Contas foi bastante combatida em seus pronunciamentos, precisamente
por incomodar e refrear os atos do governo.
Nesse sentido, prelecionou JOÃO BARBALHO, verbis:
“Mas a funcção, de si mesma austera, correctoria
e meticulosa, do tribunal de contas é de natureza a gerar contra
elle malquerenças, antipathias e desforços”. (8)
Essa lúcida constatação de JOÃO BARBALHO
não se perdeu no tempo.
O legislador constituinte, contudo, a partir de 1934, compreendendo
a verdadeira dimensão do sistema de controle financeiro no contexto
da Administração Pública, consolidou a instituição,
em todos os seus níveis, ampliando as suas atribuições,
hoje consagrada na Carta de 1988.
Esse aspecto foi percebido pelo eminente Ministro CELSO DE MELLO quando
na Presidência do Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisão
na Suspensão de Segurança nº 1.308-9/RJ, verbis:
“A essencialidade dessa Instituição – surgida
nos albores da República com o Decreto nº 966-A, de 7-11-1890
, editado pelo Governo Provisório sob a inspiração
de Rui Barbosa – foi uma vez mais acentuada com a inclusão,
no rol dos principios constitucionais sensíveis, da indeclinabilidade
da prestação de contas da administração
pública, direta e indireta (CF, art. 34, VII, d). A atuação
do Tribunal de Contas, por isso mesmo, assume importância fundamental
no campo do controle externo. Como natural decorrência do fortalecimento
de sua ação institucional, os Tribunais de Contas tornaram-se
instrumentos de inquestionável relevância na Administração
Pública e o comportamento de seus agentes, com especial ênfase
para os principios da moralidade administrativa, da impessoalidade e
da legalidade. Nesse contexto, o regime de controle externo, institucionalizado
pelo ordenamento constitucional, propicia, em função da
própria competência fiscalizadora outorgada aos Tribunais
de Contas, o exercicio, por esses órgãos estatais, de
todos o poderes – explícitos ou implícitos –
que se revelem inerentes e necessários à plena consecução
dos fins que lhes foram cometidos”. (9)
III - Os Tribunais de Contas e o controle
difuso de constitucionalidade
Consoante dispõe a Súmula nº 347 do Pretório
Excelso, a Corte de Contas, no exercício de suas atribuições,
pode apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público.
Acerca do exato alcance dessa Súmula, anota o ilustre Professor
ROBERTO ROSAS, em seu já clássico Direito
Sumular, verbis:
“O art. 72 da Constituição prevê o exercício
pelo Tribunal de Contas da verificação da ilegalidade
de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos etc. (§
5°); a legalidade das concessões iniciais de aposentadoria,
reformas e pensões (§ 7°). Em face desses preceitos
basilares, cabe à Corte de Contas o exame das exigências
legais nos casos enunciados e em geral a ela submetidos, colocando o
seu exame em confronto com a Constituição, não
procedendo o argumento da privatividade da interpretação
das leis pelo Poder Judiciário. Se os atos submetidos ao Tribunal
de Contas não estão conforme a Constituição
logo são atos contra a lei, portanto inconstitucionais. Lúcio
Bitencourt não foge deste ponto quando afirma caber a todos os
tribunais ordinários ou especiais, apesar de perten-cer a última
palavra ao STF (O Controle..., pág. 34), encontrando
a adesão de Carlos Maximiliano (Comentários à
Constituição, vol. III, 263).” (10)
Quando do julgamento do MS nº 19.973-DF (PLENO), disse o saudoso
Ministro RODRIGUES DE ALCKMIN, verbis:
“...cabia ao Tribunal de Contas, no exercício de atribuição
que é constitucionalmente sua, recursar sumissão à
determinação inconstitucional. O fato de o Tribunal de
Contas ser órgão auxiliar do Poder Legislativo não
lhe retira o poder de recusar-se a cumprir ordens inconstitucionais”.
(11)
A Corte de Contas da Itália não dispõe de tal atribuição,
consoante deliberou aquela Corte, verbis:
“927 – Sez. contr. – 7 dicembre 1978 – Pres.
(ff.) Costa – Rel. Di Stefano – Istituti di previdenza.
Corte dei conti - Controllo - Limiti - Disapplicazione di atti presupposti
non assoggettati al controllo - Esclusione - Illegittimità derivata
da atti sottoposti a controllo - Accertabilità.
Corte dei conti - Controllo - Atti di enti pubblici territoriali - Presupposto
di atti assoggettati al controllo - Esclusione del controllo della Corte
dei conti - Segnalazione alla Presidenza del Consiglio per l'annullamento
- Obbligo.
(T.u. 12 luglio 1934 n. 1214, art. 15; t.u. 3 marzo 1934 n. 383, art.
6).
La Corte dei conti, nell'esercizio delle attribuzioni di controllo,
non può disapplicare provvedimenti di enti pubblici territoriali,
che costituiscono presupposto di atti assoggettati al suo controllo,
ancorché ne accerti incidenter tantum la illegittimità,
neppure al limitato fine di dichiarare in via derivata la non conformità
a legge degli atti sottoposti al suo esame, sia perché il potere
di disapplicare gli atti amministrativi illegittimi è riconosciuto
soltanto al giudice dei diritti, sia perché la Corte dei conti
non può sindacare atti sui quali il controllo compete, in via
esclusiva, ad altri organi.” (12)
IV - A Apreciação das Contas
do Chefe do Poder Executivo e o Controle Jurisdicional das decisões
dos Tribunais de Contas
No ordenamento constitucional brasileiro, a competência para o
julgamento das contas do Chefe do Poder Executivo, federal, estadual
ou municipal, incumbe, com exclusividade, ao Poder Legislativo respectivo.
Nesse caso, a função do Tribunal de Contas é opinativa,
atuando como órgão auxiliar do Legislativo.
É o que dispõe o art. 71, I, da Lei Maior.
No exercício dessa competência, apenas em uma oportunidade
em sua história o Tribunal de Contas da União manifestou-se
pela não aprovação das contas do Presidente da
República, no já distante ano de 1937.
O fato é relatado por ALIOMAR BALEEIRO, em célebre conferência,
verbis:
“Ficou célebre até hoje no Brasil. E no próprio
Tribunal de Contas podemos encontrar personalidades que deram exemplos
altos de grandeza cívica.
Thompson Flôres foi Ministro do Tribunal de Contas, logo no comêço
ou um pouco antes da ditadura – 1936. Teve de relatar as contas
– e de memória não posso afirmar se foram as de
1935 ou as de 1936. Deu parecer contrário à aprovação
e, creio, êsse parecer foi aprovado pelo Tribunal de Contas. Em
resumo: Não se passou recibo de quitação ao Presidente
da República, porque êle não aplicou as leis orçamentárias
e contábeis.
Daí minha condenação ao regime presidencial. Quando
o impeachment funcionar bem, êle não é
mais preciso. Quando um País utilizar àgilmente o
impeachment, já está na hora do parlamentarismo.
Já não precisa mais daquela medida heróica. Basta
uma moção de desconfiança e cai o Govêrno.
Não precisa cortar a cabeça do rei como se fazia na Inglaterra.
No livro do Prof. Brossard há vários nomes de cavalheiros
que ficaram com a cabeça cortada e, outros metidos na Tôrre
de Londres, etc. Mas, cabeças cortadas, foram várias,
porque não era só a condenação política,
não! Era cortar a cabeça de fato. Thompson Flôres
fêz isso e talvez essa seja uma das causas do Estado Nôvo,
talvez êsse ato do Tribunal de Contas, criando um embaraço
tremendo, expondo o Presidente Vargas a um processo de impeachment,
tenha sido uma das causas do Estado Nôvo. Acredito que S. Exa.,
não ficou com um tostão do Tesouro. Eu o combati a vida
tôda, mas acredito que era um homem probo. Contudo, não
respeitou a lei, nem sentiu falta de autorização, nem
coisa alguma. Gastava sem crédito, gastava além do crédito
e emitia sem autorização, etc.
Thompson Flôres foi aposentado compulsòriamente, logo após
o Estado Nôvo. Basta êsse fato!” (13)
Em premiada monografia, destacou ARTUR COTIAS E SILVA, verbis:
“O Tribunal de Contas sentiu o peso do autoritarismo de Vargas
antes mesmo da implantação do novo regime. As contas do
exercício de 1936 – cujo Relator foi o ministro Francisco
Thompson Flores – mereceram parecer contrário à
aprovação, acolhido pelo Plenário da Corte em sessão
de 26 de abril de 1937. Foi aquela a primeira e única vez em
que tal fato ocorreu.
A Câmara dos Deputados, entretanto, por força do Decreto
Legislativo nº 101, de 25 de agosto seguinte, acolhendo Mensagem
do presidente da República a ela encaminhada em 15 de maio pelo
ministro da Fazenda, declarou-as aprovadas.
A atitude, adotada com amparo em critérios estritamente técnicos,
custaria caro ao ministro Thompson Flores. Por ato do governo foi ele
posto em disponibilidade, não mais regressando ao Tribunal, vindo
a ser aposentado anos depois, em 30 de outubro de 1950.” (14)
No exercício dessa competência atribuída ao Tribunal
de Contas, onde é examinado se na execução do orçamento
o Executivo agiu de acordo com as autorizações legislativas
e as regras de contabilidade pública, funcionando como controlador
da legalidade de tais atos, sem emitir juízo político
das despesas e receitas públicas, que incumbe exclusivamente
ao Legislativo, reside, talvez, a mais delicada e importante das atribuições
conferidas pela Constituição àquele Tribunal.
No inciso II do art. 71, dispõe a Carta Magna que à Corte
de Contas compete o julgamento das contas dos administradores, ou seja,
todo aquele que estiver na situação prevista no art. 70,
§ único, da Constituição.
No exercício dessa competência, goza a Corte de Contas
de ampla autonomia, notadamente observando-se o disposto no art. 70
da Lei Maior, ou seja, a fiscalização financeira abrange
todos os aspectos ali discriminados: contábil, financeiro, orçamentário,
ope-racional e patrimonial.
A respeito, leciona MANOEL GONÇALVES FERREIRA Fº, verbis:
“Deve-se registrar, entretanto, que a Constituição
vigente, como se verá logo abaixo, amplia essa fiscalização,
mandando-a apreciar o uso do dinheiro público de ângulos
que antes não eram cogitados. Ou, pelo menos, não o eram
na fiscalização ‘financeira’, rotineira e
tradicional.
Legalidade. Este ângulo, essencial para a validade de
qualquer ato da Administração, já era examinado
na fiscalização financeira. A fiscalização
de legalidade consiste em verificar se o ato se coaduna com as exigências
formais ou com os padrões materiais que para ele formula a lei.
A doutrina sempre enfatizou que, nessa verificação de
legalidade, se inscreveria a apreciação da adequação
do ato à finalidade, portanto, não apenas a apreciação
da forma, mas também da substância do ato, para a qual
é dado à Administração o poder de praticar
o ato (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, 9.
ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, p. 74).
Legitimidade. Quando se distingue legitimidade de legalidade
é exatamente para sublinhar que aquela concerne à substância
do ato. O ato legítimo não observa apenas as formas prescritas
ou não defesas pela lei, mas também em sua substância
se ajusta a esta, assim como aos princípios não-jurídicos
da boa administração.
Economicidade. Aqui se autoriza a apreciação
se o ato foi realizado, de modo a obter o resultado a custo adequado,
razoável, não necessariamente ao menor custo possível.”
(15)
Nesse sentido, também, o magistério de DIOGO DE FIGUEIREDO
MOREIRA NETO, verbis:
“Este inciso também se agrega como poderoso reforço
da interpretação aqui preconizada, pois
nele se institui uma claríssima competência autônoma
do Tribunal de Contas para apreciar não apenas a legalidade
e a economicidade das contas do Chefe do Poder Executivo, como se estende
à sua legitimidade, abrindo-lhe
uma extensa margem discricionária para emitir um parecer,
um ato fundamentado que não poderá ser modificado pelo
Poder Legislativo, mas apenas considerado ou não por ocasião
do julgamento parlamentar dessas contas (art. 49, IX, CF), tratando-se,
portanto, de uma cooperação de natureza
mista: parte técnica, parte política, como a seguir
se aponta.” (16)
Dessa forma, a CF de 1988, rompendo com a tradição constitu-cional
anterior, onde a Corte de Contas exercia apenas um controle contábil,
financeiro e orçamentário, exclusivamente sob o prisma
da legalidade, a Carta de 1988 conferiu ao Tribunal de Contas a competência
para fiscalizar, inclusive, aspectos operacionais e patrimoniais, no
tocante à legitimidade e à economicidade. (17)
Esse é o magistério de LOUIS TROTABAS, verbis:
“La Cour a juridiction sur les comptes et non sur les comptables,
bien que la loi affirme que “tous les comptables de deniers publics
sont justiciables de la Cour des comptes” (L. 4 avr. 1941, art.
4). (...) Si la Cour n’a pas à rechercher si le comptable
est subjectivement responsable d’une faute commise dans la tenue
de ses comptes cela ne signifie pas toutefois qu’elle juge in
abstracto les pièces qui lui sont soumises. Devant la multiplicité
de ces pièces, surtout depuis les réformes de 1935, les
magistrats de la Cour sont conduits à l’enquête directe,
parfois sur place, et même à “l’investigation
psychologique, après arraisonnement, étude des choses
et des lieux”. (18)
GABRIEL MONTAGNIER, ao adotar, no ponto, o magistério de LAFERRIÈRE
e WALINE, conclui, verbis:
“...le jugement de la ligne du compte, qui appartient à
la Cour, est à l’égard du comptable plus sévère
que le jugement de sa conduite. Celle-ci peut être excusable,
cela ne 1’empêche pas d’être irrégulière”.
(19)
Questão pouco versada na doutrina e na jurisprudência é
se cabe, e em que extensão, o controle jurisdicional das decisões
do Tribunal de Contas, nos casos previstos no art. 71, incisos I e II,
da Lei Maior.
Em julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
de que fui relator, deliberou a Corte, verbis:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.019240-0/SC
RELATOR : DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO
THOMPSON FLORES LENZ
AGRAVANTE : PAULO HENRIQUE CARDOSO
ADVOGADO : Flavio Luiz Yarshell e outros
: Carlos Roberto Fornes Mateucci
AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO
ADVOGADO : Luis Alberto D'Azevedo Aurvalle
INTERESSADO : RAFAEL VALDOMIRO GRECA DE MACEDO
: ARTPLAN-PRIME PUBLICIDADE S/A
ADVOGADO : Rodrigo de Carvalho
INTERESSADO : RICARDO DALCANALE BORNHAUSEN
: FERNANDA MARIA BARRETO BORNHAUSEN SÁ
: EVIDENCIA
:PERICH PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
E COM/ DE IMP/ E EXP/ LTDA/
: BD PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E CULTURAIS LTDA/
: BEATRIZ FERREIRA LESSA
: CESARIO MELANTONIO NETTO
: FUNDAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ PARA O
DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA
DA TECNOLOGIA E DA CULTURA –
FUNPAR
: UNIÃO FEDERAL
ADVOGADO : José Diogo Cyrillo da Silva
INTERESSADO : EMBRATUR – INSTITUTO
BRASILEIRO DE TURISMO e outro
ADVOGADO : Julio Cesar Barbosa Melo
EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
PETIÇÃO INICIAL. REQUISITOS. ILEGITIMIDADE PASSIVA “AD
CAUSAM”. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. EFEITOS.
1. Ação de Improbidade Administrativa, de alto destaque
na vida democrática da Nação, notadamente para fiscalizar
o agente público, no pertinente ao patrimônio público
que lhe está afeto, enseja, através de meios prontos e eficazes,
alcançar judicialmente a decretação de invalidade
dos atos lesivos ao erário, obrigando os responsáveis ao
ressarcimento do dano causado.
A demanda, contudo, deverá ser idônea para produzir os efeitos
procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há
certas exigências, de cunho processual, que precisam transparecer
na petição inicial que necessita estar apta ao estabelecimento
da relação processual. Destarte, a peça vestibular
deve ser precisa quanto à indicação do fato e os
fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja
decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou
e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da
entidade indicada. Dessa forma, os fatos, antes da citação,
devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para
que os réus possam, com base neles, oferecer a sua defesa.
No caso em exame, a inicial não apontou o ato ilícito atribuído
ao recorrente, a justificar a sua permanência na presente ação,
na forma do art. 282, III, do CPC.
Com efeito, é ônus do autor da ação de improbidade
administrativa apresentar na peça vestibular a indicação
precisa do fato e dos fundamentos jurídicos da demanda, ou seja,
o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício
de ilegalidade e a sua lesividade ao patrimônio público.
No que concerne ao recorrente não se aponta, de forma concreta
e objetiva, como e em que condições teria praticado os atos
de improbidade que lhe são imputados, sobretudo considerando-se
que o agravante não exerce função pública.
Argumenta-se que, após a instrução, poderia o Parquet
comprovar ditos fatos.
In casu, a prova é exclusivamente documental e, no caso
do agravante, a inicial encontra-se instruída apenas em matéria
de jornal, o que, com a devida vênia, não justifica o ônus
de figurar como réu em ação de improbidade administrativa.
Pelo contrário, os documentos que constam do processo corroboram
a tese sustentada pela defesa.
A defesa do recorrente demonstra que a sua atuação nos fatos
foi meramente consultiva, não tendo o condão de vincular
a decisão do agente público, por apresentar caráter
opinativo (FÁBIO MEDINA OSÓRIO, in Improbidade
Administrativa, 2ª edição, São Paulo,
p. 113).
Por conseguinte, o recorrente é parte passiva ilegítima
no feito, impondo-se a sua exclusão do processo, nos termos do
art. 267, VI, do CPC.
2. Ademais, a Eg. Corte de Contas, acolhendo o pronunciamento do Parquet
junto àquele Tribunal, afastou o caráter ilícito
de grande parte dos fatos noticiados na peça vestibular, o que,
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal
de Justiça, impede o seu reexame na via judicial, a não
ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta, o
que não se verifica no caso em exame (RE nº 55.821-PR, rel.
Ministro Victor Nunes Leal, in RTJ 43/151; REsp nº 8.970-SP,
rel. Ministro Gomes de Barros, in RJSTJ 30/378, respectivamente).
Em julgado publicado na RSTJ, volume 30, pp.395/7, assinalou o eminente
Ministro Gomes de Barros, quando do julgamento do REsp nº 8.970/SP,
verbis:
“III - Sustentam os recorrentes ser impossível a reapreciação
judicial de atos administrativos, cuja regularidade foi atestada pelo
Tribunal de Contas.
Trazem, em socorro de sua tese, afirmação de que o Acórdão
recorrido destoa da Jurisprudência tradicionalmente consagrada no
Supremo Tribunal Federal.
Como paradigma, citam o Acórdão relativo ao MS nº 7.280,
do qual relator o saudoso Min. Henrique D'Ávila, resumido nesta
ementa:
“TRIBUNAL DE CONTAS - Apuração de alcance dos responsáveis
pelos dinheiros públicos - Ato insuscetível de revisão
perante a Justiça comum - Mandado de Segurança não
conhecido.
- Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos,
o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão
na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna
de ilegalidade manifesta” (fls. 3.881).
Em seu relatório, o saudoso Ministro transcreveu o Parecer do então
Procurador-Geral da República - o igualmente saudoso Ministro Carlos
Medeiros Silva, in verbis:
"Conforme decidiu o Pretório Excelso, no Mandado de Segurança
nº 6.960 (sessão de 31 de julho de 1959, decisão unânime,
relator o Sr. Ministro Ribeiro da Costa), não cabe mandado de segurança
contra decisão do Tribunal de Contas que julgou contas de responsáveis
por dinheiros públicos.
Disse, então, o Sr. Min. Ribeiro da Costa: “a decisão
sobre a tomada de contas de gastos de dinheiros públicos, constituindo
ato específico do Tribunal de Contas da União ex vi do disposto
no artigo nº 77, II, da Constituição Federal, é
insuscetível de impugnação pelo mandado de segurança,
no concernente ao próprio mérito do alcance apurado contra
o responsável, de vez que não cabe concluir de plano, sobre
a ilegalidade desse ato, salvo se formalmente eivado de nulidade substancial,
o que, na espécie, não é objeto de controvérsia”
(fls. 3.968).
No voto, com que conduziu o Tribunal Pleno, o Ministro Henrique D'Ávila
observou:
“Na realidade o Tribunal de Contas quando da tomada de contas dos
responsáveis por dinheiros públicos, pratica ato insuscetível
de impugnação na via judicial, a não ser quanto ao
seu aspecto formal ou ilegalidade manifesta.
Na espécie o que o impetrante impugna é o mérito
da ação do Tribunal de Contas. Entende ele que não
existia o apontado, ou seria menor do que o apurado.
O assunto, é evidente que não pode ser tratado através
processo expedido do mandado de segurança. Só pelos meios
mais regulares é que poderá o impetrante demonstrar o contrário,
ou invalidar a apuração feita pelo Tribunal de Contas União.”
(Fls. 3.968/9).
Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal não reconhece na decisão
do Tribunal de Contas a força da coisa julgada material.
A Corte admite se reveja acórdão de Tribunal de Contas,
“em seu aspecto formal” ou em caso de “ilegalidade manifesta”.
Esta velha jurisprudência veio a ser confirmada em acórdão
conduzido pelo saudoso Ministro Victor Nunes Leal, e reduzida a ementa
nestes termos:
“TRIBUNAL DE CONTAS. Julgamento das contas de responsáveis
por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade
por irregularidade formal grave (MS 6.960, 1959), ou manifesta ilegalidade
aparente (MS 7.280, 1960)” (RTJ 43/151).
Merece destaque, neste aresto, a manifestação do saudoso
Ministro Barros Monteiro, nestas palavras:
“A segunda questão, de serem preclusivas e insuscetíveis
de apreciação pelo Judiciário as decisões
do Tribunal de Contas, eu acolho, com reservas, diante do preceito do
artigo 150, § 4º, da CF, que reproduziu o dispositivo da Constituição
anterior, segundo o qual não se pode subtrair da apreciação
do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual.
Mas, feita essa ressalva, estou de pleno acordo em que não se pode
chegar a outra conclusão senão àquela do acórdão
mencionado pelo eminente Ministro Victor Nunes, do qual foi Relator o
Ministro Henrique D'Ávila, e que, exprime o pensamento deste Tribunal.
As decisões do Tribunal de Contas não podem ser revistas
pelo Poder Judiciário, a não quanto ao seu aspecto formal.”
(RTJ 43/157).
Destes pronunciamentos resta clara uma constatação: é
impossível desconstituir o ato administrativo ungido pela aprovação
do Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão deste colegiado.
E para rescindi-la, é necessário que nela se apontem irregularidades
formais graves ou ilegalidades manifestas.”
Nesse sentido, ainda, a lição do saudoso Prof. Ruy Cirne
Lima, em sua conceituada obra Pareceres (Direito
Público), Livraria Sulina Editora, 1963, Porto Alegre, pp.
246/7, verbis:
“Tem, portanto, entre nós, o tribunal de Contas, jurisdictio;
falta-lhe, porém, competência para o judicium e,
a fartiori, competência para dá-lo e cometê-lo
a outrem, porque, estranha à sua função, naquele
ou neste aspecto, a idéia de ação (em sentido material).
Certo, são, as decisões do Tribunal de Contas, terminativas,
quando julga, ele, as contas dos responsáveis por dinheiros ou
bens públicos (Const. Fed. Art. 77, II). Esse julgamento compete-lhe,
porém, em função do ato político (F. GIESE,
GRUND-GESETZ FÜR DIE BUNDESREPUBLIK DEUTSCHLAND, Frankfurt, a. M.,
1955, p. 190; F. GIESE, DIE VERFASSUNG DES DEUTSCHEN REICHES, Berlin,
1931, p. 211) do Congresso Nacional, que julga as contas do Poder Executivo
(Const. Fed. Art. 66, VIII). E como a competência do Tribunal de
Contas, acerca do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros
ou bens públicos, somente lhe é atribuída em função
daquele ato político (RUY BARBOSA, COMENTÁRIOS, cit. T.
VI, p. 451; RUBEN ROSA, DIREITO E ADMINISTRAÇÃO, Rio de
Janeiro, 1940, p. 25 e 26), as decisões do Tribunal de Contas,
nessa matéria, não poderiam, por isso mesmo, ficar sujeitas
a reexame judiciário. O julgamento político exclui o pronunciamento
judicial ulterior, nos mesmos termos em que o julgado criminal exclui
a ação civil, “...não se poderá...questionar
mais sobre a existência do fato, ou quem seja o autor...”
(art. 1525, Cód. Civil). De outro lado, o julgamento político
tem precedência necessária sobre o pronunciamento judiciário
(Cf. AURELIANO LEAL, TEORIA E PRÁTICA DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL BRASILEIRA, t. I, Rio de Janeiro, 1925, p. 493). Em conseqüência,
nem antes nem depois das decisões do Tribunal de Contas, enquanto
às contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos,
toca, aos Juízes e Tribunais comuns, pronunciar-se sobre o fato
sujeito, ou quem lhe seja o autor. A eficácia exclusiva e terminativa
das decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não
é mais, no entanto, do que uma aplicação do princípio
de independência e harmonia dos poderes políticos (Const.
Fed., art. 36).”
3. Agravo de instrumento conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide
a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do
relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo
parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 03 de dezembro de 2002.
Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Relator (20)
Essa a lição, também, de RUY BARBOSA, verbis:
“O processo de liquidar a receita e despesa, portanto, e verificar
a sua legitimidade é um processo prévio: tem de anteceder
o exercicio das funcções do Congresso Nacional, tocantes
á receita e despesa.
Dest’arte, quando essa autoridade, a unica a que está sujeito
o Tribunal de Contas, faz as Leis de receita e des-pesa conhecendo, em
ultima instancia, do exame das con-tas, a que elle procedeu, ultimado
está esse processo, pelo exercicio da autoridade soberana que o
remata.
Já não se póde cogitar outra vez da liquidação
dessas mesmas contas, nem a apuração da sua legalidade.
Uma e outra foram ventiladas e decididas, suprema e definitivamente pelas
autoridades a que a Constituição pro-veu no julgamento dessas
materias: a do Tribunal de Contas, em primeira instancia e, em gráu
final, a do Congresso.
Não sômos nós; não é a nossa interpretação,
ou theo-ria nossa, que nos conduz e obriga a esta conclusão: é
o texto constitucional que peremptoriamente declara que ‘antes
de serem prestadas ao Congresso’,
serão as contas da receita da despesa apresentadas ao Tribunal
de Contas, ‘para as liquidar’, e ‘verificar a sua legalidade’.
Assim, quando esse Tribunal liquidou as contas, quan-do as declarou
legaes, instaurou-se a competencia do Con-gresso para examinar a liquidação,
para considerar o julgamento da legalidade; e, exercidas taes funcções,
esgotaram-se todas as que a Constituição lhe commetteu no
concernente a essas contas, cujas regularidade e legalidade ficam, para
todos os efeitos, irrecorrivelmente, sentenciadas e approvadas, não
havendo mais nenhum poder, a quem assista o direito de as alterar, embaraçar
ou suspender.” (21)
Da mesma forma, conclui PONTES DE MIRANDA, verbis:
“Desde 1934, a função de julgar as contas estava,
claríssima, no texto constitucional. Não havíamos
de interpretar que o Tribunal de Contas julgasse, e ou juiz as rejulgasse
depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem”.
(22)
Incide, aqui, o ensinamento de JOSEPH STORY, quando afirma em memorável
lição, verbis:
“No iterpretation of the words, in which those powers are granted,
can be a sound one, which narrows down their ordinary import, so as to
defeat those objects. That would be to destroy the spirit, and to cramp
the letter”. (23)
A jurisprudência da Suprema Corte, ora reafirmada pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, bem como da melhor doutrina,
orienta-se no sentido de que o julgamento proferido pelos Tribunais de
Contas, ao apreciar as contas do Chefe do Poder Executivo e julgar a dos
administradores, no caso do inciso II do art. 71 da CF/88, configura tal
competência uma jurisdição especial, na expressão
do saudoso jurista RUY CIRNE LIMA, no que diz com o seu merecimento, o
que revela a importância que a Constituição conferiu
às Cortes de Contas, visando afastar da vida pública aquelas
autoridades que não observaram, no desempenho de suas atribuições,
as normas de direito administrativo e de contabilidade pública.
V - Conclusão
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988,
restaram ampliadas, significativamente, as atribuições e
as esferas de competência dos Tribunais de Contas, rompendo o modelo
inaugurado pela Carta Republicana de 1891, ensejando, agora, a fiscalização
contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial dos entes estatais e órgãos da administração
direta e indireta, tornando-se, ditas Cortes, instrumentos de inquestionável
relevância na Administração Pública e, sobretudo,
a conduta de seus agentes, com destaque para os princípios da moralidade
administrativa, da impessoalidade e da legalidade.
Como ensina LAFAYETTE PONDÉ, “não há como se
possa dizer o Tribunal de Contas órgão da estrutura legislativa,
ou dela dependente, senão no amplo sentido em que todos nós
somos, cidadãos ou órgãos públicos, entre
os quais o próprio legislador – subordinado ao imperioso
dever de respeito e obediência às leis. A função
do Tribunal ultrapassa a interferência episódica, de natureza
puramente opinativa, com que se comunica naquele processo, não
de elaboração de lei mas de conteúdo administrativo,
e, ultrapassando-a, estende sua ação por igual sobre as
unidades dos três Poderes assim como sobre todo e qualquer administrador
ou gestor responsável pela aplicação dos dinheiros
públicos”. (24)
Desde a sua criação pela Carta de 1891, sob a inspiração
de RUY BARBOSA, estabeleceu-se no Tribunal de Contas um “corpo de
magistratura intermediaria á administração e á
legislatura, que, collocado em posição autonoma, com attribuições
de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaesquer
ameaças, possa exercer as suas funcções vitaes no
organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição
de ornato apparatoso e inutil. Só assim o orçamento, passando,
em sua execução, por esse cadinho, tornar-se-á verdadeiramente
essa verdade, de que fala entre nós, em vão, desde que neste
paiz se inauguraram assembléas parlamentares”. (25)
A lição do notável jurista baiano revela, de forma
cristalina, a verdadeira missão para a qual foi instituída
a Corte de Contas: todo e qualquer ato, quer do Executivo, quer do Legislativo,
ou mesmo do Poder Judiciário, de que resulte despesa, tem de ser
conferido com as normas de direito administrativo e de contabilidade pública.
Se verificada alguma violação, dá-se a ilegalidade,
impondo-se a sua pronta correção e, se for o caso, a punição
do responsável, na forma do art. 70, § único, da Lei
Maior.
Fundadas, portanto, são as razões para o reconhecimento
do eminente lugar que ocupa a Corte de Contas entre as instituições
do Brasil, o papel capital que representa na vida da Administração
Pública, bem como o merecido prestígio que cerca as personalidades
que a integram.
Seu papel não deixou de crescer desde a sua criação,
há mais de cem anos. As atribuições restritas que
lhe confiara a Constituição Republicana de 1891 foram consideravelmente
ampliadas pelas Constituições subseqüentes, atingindo
o seu ápice na Carta de 1988. Às prerrogativas que lhes
conferem os textos, os seus membros acrescentaram aquelas que resultam
de uma jurisprudência corajosa, atenta aos superiores interesses
da sociedade brasileira, “animé par la passion du bien public”,
na feliz expressão MICHEL DEBRÉ. (26)
Senhor Presidente.
Ao participar deste evento, sinto-me feliz em prestar a homenagem a esta
Casa, herdeira que é dessa grande tradição iniciada
nos albores da República.
Eis porque, Senhor Presidente, em lhes agradecendo a acolhida, que tanto
me comove quanto me honra, lhe peço para transmitir aos demais
integrantes desta Corte o preito de minha estima e admiração.
Muito obrigado.
NOTAS
(1) GUIZOT, M. Histoire des Origines du Gouvernement Représentatif
en Europe. Libraire-Éditeur Didier, Paris, 1851, t. 2, p. 23.
(2) MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição
de 1967 com a Emenda nº 1/69. 2ª ed., Revista dos Tribunais,
1970, t. 3, pp. 244/245.
(3) PIMENTA BUENO, José A. Direito Publico Brazileiro e Analyse
da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro, 1857, v. I,
p. 90.
(4) In Nuovo Digesto Italiano, Unione Tipografico-Editrice Torinese, Torino,
1938, t. IV, p. 310.
(5) In Op. cit., p. 318.
(6) TODD, A. Le Gouvernement Parlementaire en Angleterre. V. Giard &
E. Brière, Paris, 1900, pp. 419/420.
(7) BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira
- Commentarios. 2ª ed., F. Briguiet e Cia. Editores, 1924, p. 496.
(8) In Op. cit., p. 496.
(9) In DJU - I - de 19.10.1998, p. 26.
(10) ROSAS, Roberto. Direito Sumular. 4ª ed.,
Revista dos Tribunais, p. 146.
(11) In RTJ 77/42.
(12) In Il Foro Amministrativo, anno LV - nº 11/novembre 1979, pp.
2288/9.
(13) BALEEIRO, Aliomar. “O Direito Financeiro na Constituição
Federal de 1967”, in Revista de Direito Público, nº
11, p. 167.
(14) In A História do Tribunal de Contas da União. Monografia
publi-cada pelo TCU, Brasília, 1999, p. 74.
(15) FERREIRA Fº, Manoel G. Coments. à
Constituição Brasileira de 1988. Editora Saraiva, 1992,
v. 2, pp. 125/6.
(16) MOREIRA NETO, Diogo de F. O Novo Tribunal de Contas. Editora Forum,
2003, p. 68.
(17) Nesse sentido: Valmir Campelo, in O Novo Tribunal de Contas. Ed.
Forum, 2003, p. 134.
(18) TROTABAS, Louis. Précis de Science et Législation Financières.
Libr. Dalloz, Paris, 1950, pp. 131/2.
(19) MONTAGNIER, Gabriel. Le Trésorier-Payeur Général.
L.G.D.J., Pa-ris, 1966, p. 305.
(20) In Revista do TRF/4ª Região, nº
51, pp. 322/7.
(21) BARBOSA, Ruy. Commentarios á Constituição Federal
Brasileira. Saraiva, São Paulo, 1934, v. 6, pp. 451/2.
(22) In Op. cit., p. 251.
(23) STORY, Joseph. Commentaries on the Constitution of the United States.
Fred B. Rothman Publications, Second Printing, 1999, v. I, p. 406.
(24) PONDÉ, Lafayette. Estudos de Direito Administrativo. Del Rey,
1995, p. 205.
(25) In Op. cit., p. 427.
(26) DEBRÉ, Michel. Trois Républiques pour une France -
Mémoires. Albin Michel, Paris, 1988, t. 2, p. 426.
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