O Tribunal de Contas e o Poder Judiciário
(Conferência proferida no Tribunal de Contas do Estado
do Rio Grande do Sul, em 26.10.2004)


Autor: Desembargador Federal Carlos
Eduardo Thompson Flores Lenz
(Desembargador Federal do TRF da 4ª Região)

| Artigo publicado em 17.12.2004 |

I – Introdução

Cabe-me, inicialmente, agradecer ao ilustre Presidente do Tribunal, Conselheiro Victor Faccioni – e eu o faço com profundo desvanecimento – a honra deste convite para proferir uma conferência acerca da competência do Tribunal de Contas e seus efeitos perante o Poder Judiciário.

E para participar em posição de tal preeminência, que nada – a não ser a nímia gentileza de Vossa Excelência – poderia justificar.

II – Origens do Tribunal de Contas no Brasil.

Consoante afirmou GUIZOT, "la connaissance des faits doit précéder l’étude des institutions(1)

A idéia da criação de um Tribunal de Contas, no Brasil, vem de 1826, em projeto apresentado no Senado do Império por FELISBERTO CALDEIRA BRANT e por JOSÉ INÁCIO BORGES.

A respeito, registra PONTES DE MIRANDA, verbis:

“A idéia de um Tribunal de Contas vem, no Brasil, de 1826, em projeto apresentado ao Senado do Império por FELISBERTO CALDEIRA BRANT (Visconde de Barbacena) e por JOSÉ INÁCIO BORGES. Combateu-o MANUEL JACINTO NOGUEIRA DA GAMA, Conde (pouco depois Marquês de , Baependi), que, em discurso de 6 de julho daquele ano, disse: ‘... se o Tribunal de Revisão de Contas, que se pretende estabelecer, se convertesse em tribunal de fiscalização das despesas públicas, antes de serem feitas em tôdas e quaisquer repartições, poder-se-ia colhêr dêle proveito; mas, sendo ùnicamente destinado ao exame das contas e documentos, exame que se faz no Tesouro, para nada servirá, salvo para a novidade do sistema e o aumento das despesas com os nêle empregados’. Por, onde se vê que, se, de um lado, combatia a criação proposta, por outro se manifestava partidário de um Tribunal de Contas mais eficiente, mais poderoso. Em 1845 MANUEL ALVES BRANCO, Ministro do Império, propôs a organização de um Tribunal de Contas que, sôbre exercer fiscalização financeira, apurasse a responsabilidade dos exatores da Fazenda Pública, com o poder de ordenar a prisão dos desobedientes e contumazes e de julgar à revelia as contas que tivessem de prestar. Se bem que a idéia volvesse com PIMENTA BUENO (depois, Marquês de São Vicente), SILVEIRA MARTINS, o VISCONDE DE OURO PRÊTO, e JOÃO ALFREDO, o Império não possuiu o seu Tribunal de Contas.” (2)

PIMENTA BUENO, o mais autorizado intérprete da Constituição Imperial, advogara a criação da Corte de Contas em nosso país, conforme se constata de sua consagrada obra Direito Publico Brazileiro, verbis:

“É de summa necessidade a creação de um tribunal de contas, devidamente organisado, que examine e compare a fidelidade das despezas com os creditos votados, as receitas com as leis do imposto, que perscrute e siga pelo testemunho de documentos authenticos em todos os seus movimentos a applicação e emprego dos valores do Estado, e que emfim possa assegurar a realidade e legalidade das contas. Sem esse poderoso auxiliar nada conseguiráõ as camaras”. (3)

A importância de uma instituição dessa natureza, incumbida de velar pela fiscalização orçamentária e financeira do país, portanto, já era reconhecida pelas mais importantes personalidades do período imperial.

Em realidade, a necessidade de estabelecer-se o controle das contas públicas é antiga, remontando à Antigüidade.

Revela-o, em trabalho doutrinário exaustivo, GIUSEPPE MOFFA, no verbete “Corte dei Conti”, do Nuovo Digesto Italiano, verbis:

“La necessità di un supremo organismo di vigilanza e di controlo sulle pubbliche entrate e sulle pubbliche spese è stata avvertita in ogni epoca e presso ogni popolo.
Risale, infatti, ai tempi antichissimi l’origine e l’organizzazione del sindicato finanziario sull’attività statale e si riconnette alle stesse origini della Finanza e della Contabilità erariale.

Vi sono scrittori, i quali hanno ricercati, attraverso le vicende storiche dei primi popoli dell'antichità (Assiri, Babilonesi, Egiziani), i più svariati istituti, relativi alle responsabilità per la gestione del danaro pubblico.

Atene e Roma meritano, senza dubbio, maggiore attenzione.

I Greci inaugurarono, dopo i loro trionfi nelle arti, lo studio teorico dell’economia sociale e del diritto pubblico; il genio amministrativo e giuridico dei Romani ne proseguì ed organizzò lo sviluppo pratico, col metodo e la sagacia previdente, che dovevano poi chiamar Roma, secondo il voto profetico del suo maggior poeta, a reggere il mondo con le sue armi e le sue leggi.
(4)

Logo após a sua unificação, em meados do século XIX, a primeira Corte a ser instalada no Reino da Itália, com jurisdição em todo o seu território, foi justamente o Tribunal de Contas.

A propósito, convém recordar as palavras de QUINTINO SELLA, então Ministro das Finanças, quando, em 27 de setembro de 1862, procedeu à instalação do Tribunal de Contas italiano, anunciando a importância para aquela nação da instituição que naquele momento iniciava as suas atividades, verbis:

capirete, o signori, con quanta emozione io sia oggi entrato in questo palazzo, nel quale si sta per l’appunto compiendo la grandiosa opera della unificazione del debito pubblico; e sia venuto tra voi ad inaugurare il primo magisrato civile, che estende la sua giurisdizione a tutto il Regno. Solenne evento è questo, o signori, imperocchè la creazione di questa Corte, non solo compie la unificazione in uno importan-tissimo ramo della pubblica amministrazione, ma inizia quella unità di legislazione civile, che giova ad eguagliare le condizioni dei cittadini, qualunque sia la parte d’Italia, ov'ebbero nascimento o tengono di-mora.
“Io considero, quindi, l’istituzione di questa Corte come una delle più provvide e sapienti deliberazioni, che la Nazione debba al suo Parlamento, in questa memoranda ed imperitura sessione del 1861, in cui esso tanto operò per la Patria e tante prove diede di virtù, di senno e di patriottismo.
“A voi, o signori magistrati ditutto il regno d’Italia, e vivamente me ne congratulo, è toccata la ventura di inaugurare sì splendido fato.
(5)

Em conceituada obra intitulada Le Gouvernement Parlementaire en Angleterre, noticia A. TODD a existência de órgão semelhante na Inglaterra, criado em 1861, e denominado Comité des Comptes Publics, verbis:

“Le 9 avril suivant, sur la motion du Chancelier de l’Echiquier, un comité spécial fut nommé pour l’examen, d'année en année, des comtes apurés de la dépense publique; et le Chancelier fit connaître son intention de proposer que l'institution de ce comité eût un ca-ractère permanent. Le 31 de mars 1862, cette promesse fut remplie par la nomination d’un comité permanent, appelé ‘Comité des comptes publics’, pour l'examen des comptes, indiquant l’affectation des crédits alloués par le Parlement pour faire face à la dépense publique. (...) Ce comité a été définie par M. Gladstone: ‘une institution bien fondée sur les principes du gouvernement parlementaire’, destinée ‘à compléter notre système de contrôle parlementaire sur les deniers publics’, et fournissant à la Chambre des Communes, par ses investigations, ‘la meilleure garantie que les comptes publics seront examinés et rendus régulièrement, rapidement et efficacement”. (6)

No Brasil, coube à República a instalação do Tribunal de Contas, sem a qual, nas palavras de JOÃO BARBALHO, “as leis de despezas são simulacros e a responsabilidade do emprego dos dinheiros publicos uma simples ficção”.(7)

Com efeito, com a edição do Decreto nº 966-A, de 07 de novembro de 1890, a instâncias de RUY BARBOSA, na época Ministro da Fazenda, criava-se “um Tribunal de Contas para o exame, revisão e julgamento dos actos concernentes à receita e despesa da Republica”.

Escolhida a primeira composição, o Ministro da Fazenda, SERZEDELLO CORRÊA, promoveu a instalação do Tribunal de Contas em 17 de janeiro de 1893, felicitando “o país e a República pelo estabelecimento de uma instituição que será a garantia de boa administração e o maior embaraço que poderão encontrar os governos para a prática de abusos no que diz respeito a dinheiros públicos”.

Após a sua instalação, nos anos subseqüentes, a Corte de Contas foi bastante combatida em seus pronunciamentos, precisamente por incomodar e refrear os atos do governo.

Nesse sentido, prelecionou JOÃO BARBALHO, verbis:

“Mas a funcção, de si mesma austera, correctoria e meticulosa, do tribunal de contas é de natureza a gerar contra elle malquerenças, antipathias e desforços”. (8)

Essa lúcida constatação de JOÃO BARBALHO não se perdeu no tempo.

O legislador constituinte, contudo, a partir de 1934, compreendendo a verdadeira dimensão do sistema de controle financeiro no contexto da Administração Pública, consolidou a instituição, em todos os seus níveis, ampliando as suas atribuições, hoje consagrada na Carta de 1988.

Esse aspecto foi percebido pelo eminente Ministro CELSO DE MELLO quando na Presidência do Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisão na Suspensão de Segurança nº 1.308-9/RJ, verbis:

“A essencialidade dessa Instituição – surgida nos albores da República com o Decreto nº 966-A, de 7-11-1890 , editado pelo Governo Provisório sob a inspiração de Rui Barbosa – foi uma vez mais acentuada com a inclusão, no rol dos principios constitucionais sensíveis, da indeclinabilidade da prestação de contas da administração pública, direta e indireta (CF, art. 34, VII, d). A atuação do Tribunal de Contas, por isso mesmo, assume importância fundamental no campo do controle externo. Como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, os Tribunais de Contas tornaram-se instrumentos de inquestionável relevância na Administração Pública e o comportamento de seus agentes, com especial ênfase para os principios da moralidade administrativa, da impessoalidade e da legalidade. Nesse contexto, o regime de controle externo, institucionalizado pelo ordenamento constitucional, propicia, em função da própria competência fiscalizadora outorgada aos Tribunais de Contas, o exercicio, por esses órgãos estatais, de todos o poderes – explícitos ou implícitos – que se revelem inerentes e necessários à plena consecução dos fins que lhes foram cometidos”. (9)

III - Os Tribunais de Contas e o controle difuso de constitucionalidade

Consoante dispõe a Súmula nº 347 do Pretório Excelso, a Corte de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público.

Acerca do exato alcance dessa Súmula, anota o ilustre Professor ROBERTO ROSAS, em seu já clássico Direito Sumular, verbis:

“O art. 72 da Constituição prevê o exercício pelo Tribunal de Contas da verificação da ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos etc. (§ 5°); a legalidade das concessões iniciais de aposentadoria, reformas e pensões (§ 7°). Em face desses preceitos basilares, cabe à Corte de Contas o exame das exigências legais nos casos enunciados e em geral a ela submetidos, colocando o seu exame em confronto com a Constituição, não procedendo o argumento da privatividade da interpretação das leis pelo Poder Judiciário. Se os atos submetidos ao Tribunal de Contas não estão conforme a Constituição logo são atos contra a lei, portanto inconstitucionais. Lúcio Bitencourt não foge deste ponto quando afirma caber a todos os tribunais ordinários ou especiais, apesar de perten-cer a última palavra ao STF (O Controle..., pág. 34), encontrando a adesão de Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição, vol. III, 263).” (10)

Quando do julgamento do MS nº 19.973-DF (PLENO), disse o saudoso Ministro RODRIGUES DE ALCKMIN, verbis:

“...cabia ao Tribunal de Contas, no exercício de atribuição que é constitucionalmente sua, recursar sumissão à determinação inconstitucional. O fato de o Tribunal de Contas ser órgão auxiliar do Poder Legislativo não lhe retira o poder de recusar-se a cumprir ordens inconstitucionais”. (11)

A Corte de Contas da Itália não dispõe de tal atribuição, consoante deliberou aquela Corte, verbis:

927 – Sez. contr. – 7 dicembre 1978 – Pres. (ff.) Costa – Rel. Di Stefano – Istituti di previdenza.
Corte dei conti - Controllo - Limiti - Disapplicazione di atti presupposti non assoggettati al controllo - Esclusione - Illegittimità derivata da atti sottoposti a controllo - Accertabilità.
Corte dei conti - Controllo - Atti di enti pubblici territoriali - Presupposto di atti assoggettati al controllo - Esclusione del controllo della Corte dei conti - Segnalazione alla Presidenza del Consiglio per l'annullamento - Obbligo.
(T.u. 12 luglio 1934 n. 1214, art. 15; t.u. 3 marzo 1934 n. 383, art. 6).
La Corte dei conti, nell'esercizio delle attribuzioni di controllo, non può disapplicare provvedimenti di enti pubblici territoriali, che costituiscono presupposto di atti assoggettati al suo controllo, ancorché ne accerti incidenter tantum la illegittimità, neppure al limitato fine di dichiarare in via derivata la non conformità a legge degli atti sottoposti al suo esame, sia perché il potere di disapplicare gli atti amministrativi illegittimi è riconosciuto soltanto al giudice dei diritti, sia perché la Corte dei conti non può sindacare atti sui quali il controllo compete, in via esclusiva, ad altri organi.”
(12)

IV - A Apreciação das Contas do Chefe do Poder Executivo e o Controle Jurisdicional das decisões dos Tribunais de Contas

No ordenamento constitucional brasileiro, a competência para o julgamento das contas do Chefe do Poder Executivo, federal, estadual ou municipal, incumbe, com exclusividade, ao Poder Legislativo respectivo. Nesse caso, a função do Tribunal de Contas é opinativa, atuando como órgão auxiliar do Legislativo.

É o que dispõe o art. 71, I, da Lei Maior.

No exercício dessa competência, apenas em uma oportunidade em sua história o Tribunal de Contas da União manifestou-se pela não aprovação das contas do Presidente da República, no já distante ano de 1937.

O fato é relatado por ALIOMAR BALEEIRO, em célebre conferência, verbis:

“Ficou célebre até hoje no Brasil. E no próprio Tribunal de Contas podemos encontrar personalidades que deram exemplos altos de grandeza cívica.

Thompson Flôres foi Ministro do Tribunal de Contas, logo no comêço ou um pouco antes da ditadura – 1936. Teve de relatar as contas – e de memória não posso afirmar se foram as de 1935 ou as de 1936. Deu parecer contrário à aprovação e, creio, êsse parecer foi aprovado pelo Tribunal de Contas. Em resumo: Não se passou recibo de quitação ao Presidente da República, porque êle não aplicou as leis orçamentárias e contábeis.

Daí minha condenação ao regime presidencial. Quando o impeachment funcionar bem, êle não é mais preciso. Quando um País utilizar àgilmente o impeachment, já está na hora do parlamentarismo. Já não precisa mais daquela medida heróica. Basta uma moção de desconfiança e cai o Govêrno. Não precisa cortar a cabeça do rei como se fazia na Inglaterra. No livro do Prof. Brossard há vários nomes de cavalheiros que ficaram com a cabeça cortada e, outros metidos na Tôrre de Londres, etc. Mas, cabeças cortadas, foram várias, porque não era só a condenação política, não! Era cortar a cabeça de fato. Thompson Flôres fêz isso e talvez essa seja uma das causas do Estado Nôvo, talvez êsse ato do Tribunal de Contas, criando um embaraço tremendo, expondo o Presidente Vargas a um processo de impeachment, tenha sido uma das causas do Estado Nôvo. Acredito que S. Exa., não ficou com um tostão do Tesouro. Eu o combati a vida tôda, mas acredito que era um homem probo. Contudo, não respeitou a lei, nem sentiu falta de autorização, nem coisa alguma. Gastava sem crédito, gastava além do crédito e emitia sem autorização, etc.

Thompson Flôres foi aposentado compulsòriamente, logo após o Estado Nôvo. Basta êsse fato!” (13)

Em premiada monografia, destacou ARTUR COTIAS E SILVA, verbis:

“O Tribunal de Contas sentiu o peso do autoritarismo de Vargas antes mesmo da implantação do novo regime. As contas do exercício de 1936 – cujo Relator foi o ministro Francisco Thompson Flores – mereceram parecer contrário à aprovação, acolhido pelo Plenário da Corte em sessão de 26 de abril de 1937. Foi aquela a primeira e única vez em que tal fato ocorreu.

A Câmara dos Deputados, entretanto, por força do Decreto Legislativo nº 101, de 25 de agosto seguinte, acolhendo Mensagem do presidente da República a ela encaminhada em 15 de maio pelo ministro da Fazenda, declarou-as aprovadas.

A atitude, adotada com amparo em critérios estritamente técnicos, custaria caro ao ministro Thompson Flores. Por ato do governo foi ele posto em disponibilidade, não mais regressando ao Tribunal, vindo a ser aposentado anos depois, em 30 de outubro de 1950.” (14)

No exercício dessa competência atribuída ao Tribunal de Contas, onde é examinado se na execução do orçamento o Executivo agiu de acordo com as autorizações legislativas e as regras de contabilidade pública, funcionando como controlador da legalidade de tais atos, sem emitir juízo político das despesas e receitas públicas, que incumbe exclusivamente ao Legislativo, reside, talvez, a mais delicada e importante das atribuições conferidas pela Constituição àquele Tribunal.

No inciso II do art. 71, dispõe a Carta Magna que à Corte de Contas compete o julgamento das contas dos administradores, ou seja, todo aquele que estiver na situação prevista no art. 70, § único, da Constituição.

No exercício dessa competência, goza a Corte de Contas de ampla autonomia, notadamente observando-se o disposto no art. 70 da Lei Maior, ou seja, a fiscalização financeira abrange todos os aspectos ali discriminados: contábil, financeiro, orçamentário, ope-racional e patrimonial.

A respeito, leciona MANOEL GONÇALVES FERREIRA Fº, verbis:

“Deve-se registrar, entretanto, que a Constituição vigente, como se verá logo abaixo, amplia essa fiscalização, mandando-a apreciar o uso do dinheiro público de ângulos que antes não eram cogitados. Ou, pelo menos, não o eram na fiscalização ‘financeira’, rotineira e tradicional.

Legalidade. Este ângulo, essencial para a validade de qualquer ato da Administração, já era examinado na fiscalização financeira. A fiscalização de legalidade consiste em verificar se o ato se coaduna com as exigências formais ou com os padrões materiais que para ele formula a lei. A doutrina sempre enfatizou que, nessa verificação de legalidade, se inscreveria a apreciação da adequação do ato à finalidade, portanto, não apenas a apreciação da forma, mas também da substância do ato, para a qual é dado à Administração o poder de praticar o ato (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, 9. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, p. 74).

Legitimidade. Quando se distingue legitimidade de legalidade é exatamente para sublinhar que aquela concerne à substância do ato. O ato legítimo não observa apenas as formas prescritas ou não defesas pela lei, mas também em sua substância se ajusta a esta, assim como aos princípios não-jurídicos da boa administração.

Economicidade. Aqui se autoriza a apreciação se o ato foi realizado, de modo a obter o resultado a custo adequado, razoável, não necessariamente ao menor custo possível.” (15)

Nesse sentido, também, o magistério de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, verbis:

“Este inciso também se agrega como poderoso reforço da interpretação aqui preconizada, pois nele se institui uma claríssima competência autônoma do Tribunal de Contas para apreciar não apenas a legalidade e a economicidade das contas do Chefe do Poder Executivo, como se estende à sua legitimidade, abrindo-lhe uma extensa margem discricionária para emitir um parecer, um ato fundamentado que não poderá ser modificado pelo Poder Legislativo, mas apenas considerado ou não por ocasião do julgamento parlamentar dessas contas (art. 49, IX, CF), tratando-se, portanto, de uma cooperação de natureza mista: parte técnica, parte política, como a seguir se aponta.” (16)

Dessa forma, a CF de 1988, rompendo com a tradição constitu-cional anterior, onde a Corte de Contas exercia apenas um controle contábil, financeiro e orçamentário, exclusivamente sob o prisma da legalidade, a Carta de 1988 conferiu ao Tribunal de Contas a competência para fiscalizar, inclusive, aspectos operacionais e patrimoniais, no tocante à legitimidade e à economicidade. (17)

Esse é o magistério de LOUIS TROTABAS, verbis:

La Cour a juridiction sur les comptes et non sur les comptables, bien que la loi affirme que “tous les comptables de deniers publics sont justiciables de la Cour des comptes” (L. 4 avr. 1941, art. 4). (...) Si la Cour n’a pas à rechercher si le comptable est subjectivement responsable d’une faute commise dans la tenue de ses comptes cela ne signifie pas toutefois qu’elle juge in abstracto les pièces qui lui sont soumises. Devant la multiplicité de ces pièces, surtout depuis les réformes de 1935, les magistrats de la Cour sont conduits à l’enquête directe, parfois sur place, et même à “l’investigation psychologique, après arraisonnement, étude des choses et des lieux”. (18)

GABRIEL MONTAGNIER, ao adotar, no ponto, o magistério de LAFERRIÈRE e WALINE, conclui, verbis:

“...le jugement de la ligne du compte, qui appartient à la Cour, est à l’égard du comptable plus sévère que le jugement de sa conduite. Celle-ci peut être excusable, cela ne 1’empêche pas d’être irrégulière”. (19)

Questão pouco versada na doutrina e na jurisprudência é se cabe, e em que extensão, o controle jurisdicional das decisões do Tribunal de Contas, nos casos previstos no art. 71, incisos I e II, da Lei Maior.

Em julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de que fui relator, deliberou a Corte, verbis:

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2002.04.01.019240-0/SC
RELATOR : DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO
THOMPSON FLORES LENZ
AGRAVANTE : PAULO HENRIQUE CARDOSO
ADVOGADO : Flavio Luiz Yarshell e outros
: Carlos Roberto Fornes Mateucci
AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO
ADVOGADO : Luis Alberto D'Azevedo Aurvalle
INTERESSADO : RAFAEL VALDOMIRO GRECA DE MACEDO
: ARTPLAN-PRIME PUBLICIDADE S/A
ADVOGADO : Rodrigo de Carvalho
INTERESSADO : RICARDO DALCANALE BORNHAUSEN
: FERNANDA MARIA BARRETO BORNHAUSEN SÁ
: EVIDENCIA
:PERICH PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
E COM/ DE IMP/ E EXP/ LTDA/
: BD PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E CULTURAIS LTDA/
: BEATRIZ FERREIRA LESSA
: CESARIO MELANTONIO NETTO
: FUNDAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ PARA O
DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA
DA TECNOLOGIA E DA CULTURA –
FUNPAR
: UNIÃO FEDERAL
ADVOGADO : José Diogo Cyrillo da Silva
INTERESSADO : EMBRATUR – INSTITUTO
BRASILEIRO DE TURISMO e outro
ADVOGADO : Julio Cesar Barbosa Melo

EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PETIÇÃO INICIAL. REQUISITOS. ILEGITIMIDADE PASSIVA “AD CAUSAM”. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. EFEITOS.



1. Ação de Improbidade Administrativa, de alto destaque na vida democrática da Nação, notadamente para fiscalizar o agente público, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto, enseja, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente a decretação de invalidade dos atos lesivos ao erário, obrigando os responsáveis ao ressarcimento do dano causado.

A demanda, contudo, deverá ser idônea para produzir os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências, de cunho processual, que precisam transparecer na petição inicial que necessita estar apta ao estabelecimento da relação processual. Destarte, a peça vestibular deve ser precisa quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da entidade indicada. Dessa forma, os fatos, antes da citação, devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles, oferecer a sua defesa.

No caso em exame, a inicial não apontou o ato ilícito atribuído ao recorrente, a justificar a sua permanência na presente ação, na forma do art. 282, III, do CPC.
Com efeito, é ônus do autor da ação de improbidade administrativa apresentar na peça vestibular a indicação precisa do fato e dos fundamentos jurídicos da demanda, ou seja, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício de ilegalidade e a sua lesividade ao patrimônio público.
No que concerne ao recorrente não se aponta, de forma concreta e objetiva, como e em que condições teria praticado os atos de improbidade que lhe são imputados, sobretudo considerando-se que o agravante não exerce função pública.
Argumenta-se que, após a instrução, poderia o Parquet comprovar ditos fatos.
In casu, a prova é exclusivamente documental e, no caso do agravante, a inicial encontra-se instruída apenas em matéria de jornal, o que, com a devida vênia, não justifica o ônus de figurar como réu em ação de improbidade administrativa.
Pelo contrário, os documentos que constam do processo corroboram a tese sustentada pela defesa.
A defesa do recorrente demonstra que a sua atuação nos fatos foi meramente consultiva, não tendo o condão de vincular a decisão do agente público, por apresentar caráter opinativo (FÁBIO MEDINA OSÓRIO, in Improbidade Administrativa, 2ª edição, São Paulo, p. 113).
Por conseguinte, o recorrente é parte passiva ilegítima no feito, impondo-se a sua exclusão do processo, nos termos do art. 267, VI, do CPC.

2. Ademais, a Eg. Corte de Contas, acolhendo o pronunciamento do Parquet junto àquele Tribunal, afastou o caráter ilícito de grande parte dos fatos noticiados na peça vestibular, o que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, impede o seu reexame na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta, o que não se verifica no caso em exame (RE nº 55.821-PR, rel. Ministro Victor Nunes Leal, in RTJ 43/151; REsp nº 8.970-SP, rel. Ministro Gomes de Barros, in RJSTJ 30/378, respectivamente).

Em julgado publicado na RSTJ, volume 30, pp.395/7, assinalou o eminente Ministro Gomes de Barros, quando do julgamento do REsp nº 8.970/SP, verbis:

“III - Sustentam os recorrentes ser impossível a reapreciação judicial de atos administrativos, cuja regularidade foi atestada pelo Tribunal de Contas.
Trazem, em socorro de sua tese, afirmação de que o Acórdão recorrido destoa da Jurisprudência tradicionalmente consagrada no Supremo Tribunal Federal.

Como paradigma, citam o Acórdão relativo ao MS nº 7.280, do qual relator o saudoso Min. Henrique D'Ávila, resumido nesta ementa:

“TRIBUNAL DE CONTAS - Apuração de alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos - Ato insuscetível de revisão perante a Justiça comum - Mandado de Segurança não conhecido.
- Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta” (fls. 3.881).
Em seu relatório, o saudoso Ministro transcreveu o Parecer do então Procurador-Geral da República - o igualmente saudoso Ministro Carlos Medeiros Silva, in verbis:
"Conforme decidiu o Pretório Excelso, no Mandado de Segurança nº 6.960 (sessão de 31 de julho de 1959, decisão unânime, relator o Sr. Ministro Ribeiro da Costa), não cabe mandado de segurança contra decisão do Tribunal de Contas que julgou contas de responsáveis por dinheiros públicos.
Disse, então, o Sr. Min. Ribeiro da Costa: “a decisão sobre a tomada de contas de gastos de dinheiros públicos, constituindo ato específico do Tribunal de Contas da União ex vi do disposto no artigo nº 77, II, da Constituição Federal, é insuscetível de impugnação pelo mandado de segurança, no concernente ao próprio mérito do alcance apurado contra o responsável, de vez que não cabe concluir de plano, sobre a ilegalidade desse ato, salvo se formalmente eivado de nulidade substancial, o que, na espécie, não é objeto de controvérsia” (fls. 3.968).
No voto, com que conduziu o Tribunal Pleno, o Ministro Henrique D'Ávila observou:
“Na realidade o Tribunal de Contas quando da tomada de contas dos responsáveis por dinheiros públicos, pratica ato insuscetível de impugnação na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou ilegalidade manifesta.
Na espécie o que o impetrante impugna é o mérito da ação do Tribunal de Contas. Entende ele que não existia o apontado, ou seria menor do que o apurado.
O assunto, é evidente que não pode ser tratado através processo expedido do mandado de segurança. Só pelos meios mais regulares é que poderá o impetrante demonstrar o contrário, ou invalidar a apuração feita pelo Tribunal de Contas União.” (Fls. 3.968/9).
Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal não reconhece na decisão do Tribunal de Contas a força da coisa julgada material.
A Corte admite se reveja acórdão de Tribunal de Contas, “em seu aspecto formal” ou em caso de “ilegalidade manifesta”.

Esta velha jurisprudência veio a ser confirmada em acórdão conduzido pelo saudoso Ministro Victor Nunes Leal, e reduzida a ementa nestes termos:

“TRIBUNAL DE CONTAS. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade por irregularidade formal grave (MS 6.960, 1959), ou manifesta ilegalidade aparente (MS 7.280, 1960)” (RTJ 43/151).
Merece destaque, neste aresto, a manifestação do saudoso Ministro Barros Monteiro, nestas palavras:
“A segunda questão, de serem preclusivas e insuscetíveis de apreciação pelo Judiciário as decisões do Tribunal de Contas, eu acolho, com reservas, diante do preceito do artigo 150, § 4º, da CF, que reproduziu o dispositivo da Constituição anterior, segundo o qual não se pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual. Mas, feita essa ressalva, estou de pleno acordo em que não se pode chegar a outra conclusão senão àquela do acórdão mencionado pelo eminente Ministro Victor Nunes, do qual foi Relator o Ministro Henrique D'Ávila, e que, exprime o pensamento deste Tribunal. As decisões do Tribunal de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a não quanto ao seu aspecto formal.” (RTJ 43/157).
Destes pronunciamentos resta clara uma constatação: é impossível desconstituir o ato administrativo ungido pela aprovação do Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão deste colegiado. E para rescindi-la, é necessário que nela se apontem irregularidades formais graves ou ilegalidades manifestas.”

Nesse sentido, ainda, a lição do saudoso Prof. Ruy Cirne Lima, em sua conceituada obra Pareceres (Direito Público), Livraria Sulina Editora, 1963, Porto Alegre, pp. 246/7, verbis:

“Tem, portanto, entre nós, o tribunal de Contas, jurisdictio; falta-lhe, porém, competência para o judicium e, a fartiori, competência para dá-lo e cometê-lo a outrem, porque, estranha à sua função, naquele ou neste aspecto, a idéia de ação (em sentido material). Certo, são, as decisões do Tribunal de Contas, terminativas, quando julga, ele, as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos (Const. Fed. Art. 77, II). Esse julgamento compete-lhe, porém, em função do ato político (F. GIESE, GRUND-GESETZ FÜR DIE BUNDESREPUBLIK DEUTSCHLAND, Frankfurt, a. M., 1955, p. 190; F. GIESE, DIE VERFASSUNG DES DEUTSCHEN REICHES, Berlin, 1931, p. 211) do Congresso Nacional, que julga as contas do Poder Executivo (Const. Fed. Art. 66, VIII). E como a competência do Tribunal de Contas, acerca do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, somente lhe é atribuída em função daquele ato político (RUY BARBOSA, COMENTÁRIOS, cit. T. VI, p. 451; RUBEN ROSA, DIREITO E ADMINISTRAÇÃO, Rio de Janeiro, 1940, p. 25 e 26), as decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não poderiam, por isso mesmo, ficar sujeitas a reexame judiciário. O julgamento político exclui o pronunciamento judicial ulterior, nos mesmos termos em que o julgado criminal exclui a ação civil, “...não se poderá...questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o autor...” (art. 1525, Cód. Civil). De outro lado, o julgamento político tem precedência necessária sobre o pronunciamento judiciário (Cf. AURELIANO LEAL, TEORIA E PRÁTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, t. I, Rio de Janeiro, 1925, p. 493). Em conseqüência, nem antes nem depois das decisões do Tribunal de Contas, enquanto às contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, toca, aos Juízes e Tribunais comuns, pronunciar-se sobre o fato sujeito, ou quem lhe seja o autor. A eficácia exclusiva e terminativa das decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não é mais, no entanto, do que uma aplicação do princípio de independência e harmonia dos poderes políticos (Const. Fed., art. 36).”

3. Agravo de instrumento conhecido e provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 03 de dezembro de 2002.

Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Relator (20)

Essa a lição, também, de RUY BARBOSA, verbis:

“O processo de liquidar a receita e despesa, portanto, e verificar a sua legitimidade é um processo prévio: tem de anteceder o exercicio das funcções do Congresso Nacional, tocantes á receita e despesa.
Dest’arte, quando essa autoridade, a unica a que está sujeito o Tribunal de Contas, faz as Leis de receita e des-pesa conhecendo, em ultima instancia, do exame das con-tas, a que elle procedeu, ultimado está esse processo, pelo exercicio da autoridade soberana que o remata.
Já não se póde cogitar outra vez da liquidação dessas mesmas contas, nem a apuração da sua legalidade.
Uma e outra foram ventiladas e decididas, suprema e definitivamente pelas autoridades a que a Constituição pro-veu no julgamento dessas materias: a do Tribunal de Contas, em primeira instancia e, em gráu final, a do Congresso.
Não sômos nós; não é a nossa interpretação, ou theo-ria nossa, que nos conduz e obriga a esta conclusão: é o texto constitucional que peremptoriamente declara que ‘antes de serem prestadas ao Congresso’, serão as contas da receita da despesa apresentadas ao Tribunal de Contas, ‘para as liquidar’, e ‘verificar a sua legalidade’.
Assim, quando esse Tribunal liquidou as contas, quan-do as declarou legaes, instaurou-se a competencia do Con-gresso para examinar a liquidação, para considerar o julgamento da legalidade; e, exercidas taes funcções, esgotaram-se todas as que a Constituição lhe commetteu no concernente a essas contas, cujas regularidade e legalidade ficam, para todos os efeitos, irrecorrivelmente, sentenciadas e approvadas, não havendo mais nenhum poder, a quem assista o direito de as alterar, embaraçar ou suspender.” (21)

Da mesma forma, conclui PONTES DE MIRANDA, verbis:

“Desde 1934, a função de julgar as contas estava, claríssima, no texto constitucional. Não havíamos de interpretar que o Tribunal de Contas julgasse, e ou juiz as rejulgasse depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem”. (22)

Incide, aqui, o ensinamento de JOSEPH STORY, quando afirma em memorável lição, verbis:

No iterpretation of the words, in which those powers are granted, can be a sound one, which narrows down their ordinary import, so as to defeat those objects. That would be to destroy the spirit, and to cramp the letter”. (23)

A jurisprudência da Suprema Corte, ora reafirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, bem como da melhor doutrina, orienta-se no sentido de que o julgamento proferido pelos Tribunais de Contas, ao apreciar as contas do Chefe do Poder Executivo e julgar a dos administradores, no caso do inciso II do art. 71 da CF/88, configura tal competência uma jurisdição especial, na expressão do saudoso jurista RUY CIRNE LIMA, no que diz com o seu merecimento, o que revela a importância que a Constituição conferiu às Cortes de Contas, visando afastar da vida pública aquelas autoridades que não observaram, no desempenho de suas atribuições, as normas de direito administrativo e de contabilidade pública.

V - Conclusão

Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, restaram ampliadas, significativamente, as atribuições e as esferas de competência dos Tribunais de Contas, rompendo o modelo inaugurado pela Carta Republicana de 1891, ensejando, agora, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes estatais e órgãos da administração direta e indireta, tornando-se, ditas Cortes, instrumentos de inquestionável relevância na Administração Pública e, sobretudo, a conduta de seus agentes, com destaque para os princípios da moralidade administrativa, da impessoalidade e da legalidade.

Como ensina LAFAYETTE PONDÉ, “não há como se possa dizer o Tribunal de Contas órgão da estrutura legislativa, ou dela dependente, senão no amplo sentido em que todos nós somos, cidadãos ou órgãos públicos, entre os quais o próprio legislador – subordinado ao imperioso dever de respeito e obediência às leis. A função do Tribunal ultrapassa a interferência episódica, de natureza puramente opinativa, com que se comunica naquele processo, não de elaboração de lei mas de conteúdo administrativo, e, ultrapassando-a, estende sua ação por igual sobre as unidades dos três Poderes assim como sobre todo e qualquer administrador ou gestor responsável pela aplicação dos dinheiros públicos”. (24)

Desde a sua criação pela Carta de 1891, sob a inspiração de RUY BARBOSA, estabeleceu-se no Tribunal de Contas um “corpo de magistratura intermediaria á administração e á legislatura, que, collocado em posição autonoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaesquer ameaças, possa exercer as suas funcções vitaes no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato apparatoso e inutil. Só assim o orçamento, passando, em sua execução, por esse cadinho, tornar-se-á verdadeiramente essa verdade, de que fala entre nós, em vão, desde que neste paiz se inauguraram assembléas parlamentares”. (25)

A lição do notável jurista baiano revela, de forma cristalina, a verdadeira missão para a qual foi instituída a Corte de Contas: todo e qualquer ato, quer do Executivo, quer do Legislativo, ou mesmo do Poder Judiciário, de que resulte despesa, tem de ser conferido com as normas de direito administrativo e de contabilidade pública. Se verificada alguma violação, dá-se a ilegalidade, impondo-se a sua pronta correção e, se for o caso, a punição do responsável, na forma do art. 70, § único, da Lei Maior.

Fundadas, portanto, são as razões para o reconhecimento do eminente lugar que ocupa a Corte de Contas entre as instituições do Brasil, o papel capital que representa na vida da Administração Pública, bem como o merecido prestígio que cerca as personalidades que a integram.

Seu papel não deixou de crescer desde a sua criação, há mais de cem anos. As atribuições restritas que lhe confiara a Constituição Republicana de 1891 foram consideravelmente ampliadas pelas Constituições subseqüentes, atingindo o seu ápice na Carta de 1988. Às prerrogativas que lhes conferem os textos, os seus membros acrescentaram aquelas que resultam de uma jurisprudência corajosa, atenta aos superiores interesses da sociedade brasileira, “animé par la passion du bien public”, na feliz expressão MICHEL DEBRÉ. (26)

Senhor Presidente.

Ao participar deste evento, sinto-me feliz em prestar a homenagem a esta Casa, herdeira que é dessa grande tradição iniciada nos albores da República.
Eis porque, Senhor Presidente, em lhes agradecendo a acolhida, que tanto me comove quanto me honra, lhe peço para transmitir aos demais integrantes desta Corte o preito de minha estima e admiração.
Muito obrigado.


NOTAS
(1) GUIZOT, M. Histoire des Origines du Gouvernement Représentatif en Europe. Libraire-Éditeur Didier, Paris, 1851, t. 2, p. 23.
(2) MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1/69. 2ª ed., Revista dos Tribunais, 1970, t. 3, pp. 244/245.
(3) PIMENTA BUENO, José A. Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro, 1857, v. I, p. 90.
(4) In Nuovo Digesto Italiano, Unione Tipografico-Editrice Torinese, Torino, 1938, t. IV, p. 310.
(5) In Op. cit., p. 318.
(6) TODD, A. Le Gouvernement Parlementaire en Angleterre. V. Giard & E. Brière, Paris, 1900, pp. 419/420.
(7) BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira - Commentarios. 2ª ed., F. Briguiet e Cia. Editores, 1924, p. 496.
(8) In Op. cit., p. 496.
(9) In DJU - I - de 19.10.1998, p. 26.
(10) ROSAS, Roberto. Direito Sumular. 4ª ed., Revista dos Tribunais, p. 146.
(11) In RTJ 77/42.
(12) In Il Foro Amministrativo, anno LV - nº 11/novembre 1979, pp. 2288/9.
(13) BALEEIRO, Aliomar. “O Direito Financeiro na Constituição Federal de 1967”, in Revista de Direito Público, nº 11, p. 167.
(14) In A História do Tribunal de Contas da União. Monografia publi-cada pelo TCU, Brasília, 1999, p. 74.
(15) FERREIRA Fº, Manoel G. Coments. à Constituição Brasileira de 1988. Editora Saraiva, 1992, v. 2, pp. 125/6.
(16) MOREIRA NETO, Diogo de F. O Novo Tribunal de Contas. Editora Forum, 2003, p. 68.
(17) Nesse sentido: Valmir Campelo, in O Novo Tribunal de Contas. Ed. Forum, 2003, p. 134.
(18) TROTABAS, Louis. Précis de Science et Législation Financières. Libr. Dalloz, Paris, 1950, pp. 131/2.
(19) MONTAGNIER, Gabriel. Le Trésorier-Payeur Général. L.G.D.J., Pa-ris, 1966, p. 305.
(20) In Revista do TRF/4ª Região, nº 51, pp. 322/7.
(21) BARBOSA, Ruy. Commentarios á Constituição Federal Brasileira. Saraiva, São Paulo, 1934, v. 6, pp. 451/2.
(22) In Op. cit., p. 251.
(23) STORY, Joseph. Commentaries on the Constitution of the United States. Fred B. Rothman Publications, Second Printing, 1999, v. I, p. 406.
(24) PONDÉ, Lafayette. Estudos de Direito Administrativo. Del Rey, 1995, p. 205.
(25) In Op. cit., p. 427.
(26) DEBRÉ, Michel. Trois Républiques pour une France - Mémoires. Albin Michel, Paris, 1988, t. 2, p. 426.

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. ,dez. 2004. Disponível em:
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Acesso em: .

REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS