Análise
constitucional da medida de destruição
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Autor:
Marcel Peres de Oliveira | Artigo publicado em 17.12.2004 | |
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Sumário 1. Introdução; 2. Desenvolvimento do tema; 2.1. O princípio da autodefesa; 2.2. A soberania e a dignidade da pessoa humana; 2.3. Os direitos e garantias constitucionais e a medida de destruição; 2.3.1. O Direito à vida e a vedação da adoção da pena de morte; 2.3.2. O devido processo legal; 2.3.3. O princípio da legalidade e a delegação legislativa disfarçada; 2.3.4. A segurança jurídica; 2.3.5. A delegação inconstitucional; 3. Conclusões; 4. Bibliografia. 1. Introdução Recentemente
regulamentado pelo Decreto nº 5.144, de 16 de julho de 2004, o parágrafo
segundo do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica
– CBA(1), instituído pela Lei nº
9.614, de 05 de março de 1998, criou a figura da medida
de destruição(2), destinada
às aeronaves consideradas hostis ou, segundo o regulamento, suspeitas
de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. A Lei 9.614/98, conhecida como “lei do abate”, é considerada imprescindível para incrementar o policiamento do espaço aéreo brasileiro, segundo as autoridades envolvidas na sua elaboração, criando um instrumento mais eficaz para prevenir e reprimir os chamados movimentos aéreos não regulares.(3) A principal justificativa para a criação da medida de destruição é a necessidade de se potencializar o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, pois o tiro de advertência, algumas vezes utilizado, não foi suficiente para impedir os vôos clandestinos.(4) Dessa forma, depois de esgotados os meios coercitivos, determinada aeronave pode ser considerada como hostil e, conseqüentemente, ficar sujeita à medida de destruição. Analisando o parágrafo segundo do citado dispositivo, observa-se que a lei utilizou conceitos indeterminados, tais como, aeronave hostil e medida de destruição. Para regulamentá-los, adveio o Decreto nº 5.144/04,(5) editado depois de decorridos mais de seis anos desde a promulgação da “lei do abate”.(6) A demora, segundo a imprensa, teve como causa a pressão internacional, notadamente dos EUA.
Antes da análise sobre a eventual compatibilidade material das normas em relação à Constituição Federal, necessária uma breve incursão no DIP, notadamente sobre o princípio da autodefesa.(7) O art. 2º da “Carta da ONU” prevê a solução pacífica das controvérsias entre os sujeitos de DI, de modo que a paz, a segurança e a justiça internacionais não sejam ameaçadas. Está consagrada, portanto, a proibição do uso da força. Porém, há exceções. Dentre elas, destaca-se a autodefesa ou legítima defesa, consignada na própria Carta, especificamente no art. 51,(8) desde que haja um ataque armado ocorrido contra a integridade territorial ou independência política de determinado Estado.(9) Oportuna a transcrição do seguinte ensinamento doutrinário, que traz o conteúdo jurídico do direito de defesa e conservação. Para o autor, este “é uma conseqüência necessária do direito à existência. Se o Estado deve viver, cabe-lhe o direito de se defender”.(10) Deveras, tal direito não é absoluto, sendo inapto para justificar o cometimento de atos ilegais contra Estado inocente. Porém, “isto não implica o desconhecimento do direito de legítima defesa, admitido na ordem internacional, como na ordem interna. A legítima defesa, porém, só existe em face de uma agressão injusta e atual, contra a qual o emprego de violência é o único recurso possível”.(11) Portanto, se o Estado, utilizando-se dos meios necessários, de forma moderada, repele agressão injusta, limitando-se à cessação desta, tais atos não serão considerados antijurídicos. Não geram responsabilidade internacional. Como bem disse o autor acima mencionado, a legítima defesa é instituto aplicável tanto na ordem externa, quanto na interna.(12) Por isso, seus contornos são semelhantes. Nesse diapasão, a medida de destruição poderia ser considerada como mera explicitação do direito de autodefesa ou de legítima defesa, já consagrado pelo DIP? A resposta a tal questionamento é que definirá a sua validade frente ao ordenamento jurídico pátrio. Preliminarmente, porém, é necessário delimitar os contornos estabelecidos pela Constituição Federal, principalmente os decorrentes dos princípios, direitos e garantias fundamentais.
Os princípios fundamentais, segundo abalizada doutrina, são constituídos por decisões políticas fundamentais do constituinte.(13) Derivados de tais princípios, encontram-se os jurídico-constitucionais ou gerais, que estabelecem limitações à atuação estatal, com maior carga axiológica. Nesse sentido, a medida de destruição aparentemente coloca em atrito dois dos principais fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo este opção política fundamental do constituinte. Em pólos distintos aparecem a soberania e a dignidade da pessoa humana. Essa dicotomia abrolha da necessidade de se resguardar a ordem interna contra injunções externas ilícitas e, em contrapartida, de se assegurar a observância das garantias fundamentais aos destinatários destas. Se a soberania é considerada elemento essencial para a existência do próprio Estado (14), a dignidade da pessoa humana é imprescindível à existência do Estado Democrático de Direito, enquanto regime jurídico-político adotado no Brasil. Poder-se-ia concluir que a soberania deve sobrepujar o princípio da dignidade da pessoa humana, pois enquanto este se relaciona com traço qualificativo do Estado, aquela interage com a própria existência deste. No entanto, tal conclusão não pode ser fechada, hermética. É que o conflito normativo não pode ser resolvido com a aplicação de uma norma constitucional, suprimindo totalmente a outra (princípio da cedência recíproca). “(...) essa chamada lacuna de conflito deve ser resolvida com base no princípio exposto, que indica ao intérprete a tarefa de encontrar no interior do sistema um ponto comum que possibilite a convivência das duas normas constitucionais conflituosas. A tarefa do intérprete, no ponto, é extrair de cada norma em conflito uma função útil no interior do sistema, sem que a aplicação de uma implique a supressão da outra”.(15) Portanto, como suposto fundamento para a implantação da medida de destruição, a soberania nacional não pode aniquilar as garantias e os direitos previstos na Constituição Federal, posto que esses, em regra classificados como direitos fundamentais de primeira dimensão, limitam a própria atuação estatal. “A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual”.(16)
Consoante dispõe o art. 5º da Carta Magna, ficou assegurado o direito à vida, ou seja, é proibida a “adoção de qualquer mecanismo que, em última análise, resulte na solução não espontânea do processo vital”.(17) Apesar
de o caput do referido dispositivo constitucional prever expressamente
como destinatários dos direitos e garantias ali elencados apenas
os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, a doutrina(18)
e jurisprudência(19) entendem, acertadamente,
que os estrangeiros em trânsito também estão contemplados. A questão é semelhante ao delito de resistência. O fato de a pessoa resistir à prisão, de tentar esquivar-se à sua efetivação, fugindo, legitima a sua execução? Evidentemente que não. No exemplo citado no parágrafo anterior, se o criminoso estrangeiro utilizasse transporte diverso do aéreo, estaria sujeito à pena privativa de liberdade, mas não à pena de morte. Diferente seria a solução se presente a legítima defesa, ou seja, em caso de agressão atual e injusta que seja apta a quebrantar a integridade territorial, a independência política do Estado, ou ainda se a violência se dirigir à pessoa da autoridade que aborda o agente. O tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins, por si, não autoriza a medida, salvo se nas hipóteses mencionadas no parágrafo anterior. Da mesma forma se conclui em relação à necessidade de se resguardar a segurança pública.
Abstraindo-se a vedação comentada no tópico anterior, a medida de destruição é desprovida de razoabilidade, pelo menos na forma disciplinada pelo Decreto 5.144/04. Em primeiro lugar, estar-se-á aplicando sanção sem processo, sem direito de defesa, sem julgamento. Com a efetivação do tiro de destruição, o criminoso que utiliza o transporte aéreo para comercializar substância entorpecente está sujeito a ser privado da sua vida ou de seus bens sem qualquer possibilidade de se defender, ou seja, sem a garantia do contraditório e da ampla defesa, que engloba a defesa técnica. Há ofensa à isonomia, pois o criminoso que utiliza meio de transporte diverso está sujeito a tratamento distinto, mais benéfico. Obviamente, não há contraditório diferido, por efeito das próprias características da medida. Outra questão grave é que o Regulamento trabalha com presunções e suspeitas, ilações totalmente incompatíveis com a medida extrema.(21) Enquanto a pena privativa de liberdade ou de perdimento de bens só pode ser estabelecida na sentença, proferida após cognição exauriente, com base em juízo de certeza, a medida de destruição prescinde de qualquer ato judicial. Não é medida de natureza cautelar, pois não resguarda provimento jurisdicional futuro.
O legislador ordinário, ao instituir a medida de destruição, utilizou-se de técnica considerada inconstitucional pela doutrina mais abalizada, consistente na utilização de termos e conceitos vagos ou imprecisos. O parágrafo segundo do art. 303 do CBA fala em meios coercitivos legalmente previstos, aeronave hostil e medida de destruição,(22) mas sem estabelecer qualquer tipo de parâmetro ou abalizamento legal a ser seguido pelo Chefe do Poder Executivo no exercício do Poder Regulamentar. Como não há contornos legais mínimos, o decreto acaba estabelecendo direitos e criando deveres, obrigações ou limitações não previamente previstos em lei, fugindo à sua característica constitucional precípua, que é a de assegurar a fiel execução das leis (regulamento de execução), sem inovar na ordem jurídica. Tampouco a matéria está circunscrita na exceção criada pela EC 32/01, que alterou o inciso VI do art. 84 da Carta Magna. No caso da Lei 9.614/98, ocorreu o que a doutrina intitula de “delegação legislativa disfarçada”. “Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege”.(23) Não há requisitos ou pressupostos legais mínimos para se considerar determinada aeronave como hostil, ou ainda para se definir o que é medida de destruição. Oportuna a observação de que a identificação não precisa ser absoluta. Do contrário, o regulamento teria eficácia reduzida. Mas também não é possível a outorga total ao mencionado ato normativo. A situação se agrava quando se trata de provimento ablatório, como é o caso da inovação legislativa em análise. Por isto, “a lei que limitar-se a (pretender) transferir ao Executivo o poder de ditar, por si, as condições ou meios que permitem restringir um direito configura delegação disfarçada, inconstitucional”.(24) Mesmo que permitida a referida delegação, o Decreto 5.144/04 sequer define o que seria aeronave hostil, limitando-se equipará-la à utilizada no comércio de substâncias entorpecentes ou drogas afins. Portanto, configurada a ofensa ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF), bem como ao princípio da separação dos poderes, na medida que o Legislativo delega competência exclusivamente sua, fora das hipóteses constitucionalmente previstas (art. 2º, §único, da CF).
Neste ponto, não pode ser esquecido o princípio da segurança jurídica. Tal princípio, juntamente com o princípio da legalidade, compõe o alicerce do Estado Democrático de Direito. Sob tal perspectiva, o decreto não é o instrumento normativo mais adequado para tratar da matéria, pelo menos na forma atual, conforme exposto no tópico anterior. É que o regulamento não possui a estabilidade jurídica necessária para disciplinar inteiramente a medida de destruição, se comparada à encontrada nos atos normativos emanados do Legislativo, que exigem requisitos mais rígidos para a sua modificação. O próprio decreto admite a apontada instabilidade, quando dispõe que os procedimentos ali previstos deverão ser objeto de avaliação periódica, com vistas ao seu aprimoramento (art. 9º).
Em regra, as atribuições do Presidente da República são indelegáveis. As exceções estão definidas na própria Constituição Federal, tais como as mencionadas no parágrafo único do art. 84. Nota-se que são delegáveis as atribuições de cunho preponderantemente administrativo. Porém, determinadas competências, pela sua própria natureza, são insuscetíveis de delegação, principalmente quando relacionadas ao Presidente da República enquanto no exercício das funções de Chefe de Estado. Desse modo, ainda que fosse válida a instituição da medida de destruição, a delegação da competência para o Comandante da Aeronáutica(25) seria de constitucionalidade duvidosa, principalmente porque não incluída nas exceções constitucionais, além de que, se fundamentada no direito de legítima defesa, configura ato de soberania estatal. Guardadas as devidas proporções, é competência semelhante à definida no inciso XIX do art. 84 da CF(26). Portanto, somente o Presidente da República poderia determinar a medida extrema.
Após as breves e superficiais ponderações realizadas neste trabalho, verificou-se que a medida de destruição, instituída pela Lei 9.614/98 e regulamentada pelo Decreto nº 5.144/04, não é mera explicitação do direito de legítima defesa, na medida que as hipóteses trazidas pelo Regulamento não são compatíveis com os contornos trazidos pelo DIP. Não se trata de ataque armado contra a integridade territorial ou independência política de determinado Estado. Igualmente não há respaldo na ordem jurídica interna. A necessidade de se resguardar segurança pública não é suficiente para a implementação da medida, sob pena de se permitir a sua aplicação às situações análogas, como por exemplo, no tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins realizado dentro do território nacional. Não é válida a fundamentação da medida legal como ato de soberania, pois, além de as hipóteses trazidas pelo Decreto 5.144/04 não ensejarem a autodefesa, não é permitido o total aniquilamento das garantias constitucionais, penais e processuais penais asseguradas às pessoas, que conformam o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo ser aplicado o princípio da cedência recíproca. Outrossim, a legislação correlata trabalha com suspeitas e presunções, incompatíveis com a medida extrema. Ainda que fosse admissível, do ponto de vista constitucional, a instituição da medida de destruição, a Lei 9.618/94 trabalha com conceitos exageradamente vagos e imprecisos, sem qualquer balizamento, delegando ao regulamento a competência para defini-los, configurando a delegação legislativa disfarçada, com conseqüências mais graves, em se tratando de provimento ablatório. Destarte, ofendido o princípio da legalidade. Com fundamento semelhante, o princípio da segurança jurídica impõe a adoção de lei, para tratamento mais específico à matéria. A volatilidade do regulamento pode gerar instabilidade jurídica, principalmente em face da gravidade da medida. A delegação da competência ao Comandante da Aeronáutica para a determinação da medida de destruição é de constitucionalidade duvidosa, pois não está circunscrita às hipóteses constitucionais.
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público – 11. ed., 10 tiragem – São Paulo: Saraiva, 1993. ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de direito constitucional / Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior. – 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2002. Entenda a Lei do tiro de destruição. Centro de Comunicação Social da Aeronáutica, 30 de julho de 2004. Disponível em: <http://www.aer.mil.br/Publicacao/Imprensa/Noticias/3007_abate.htm>. Acesso em 10 set. 2004. KOTEZ, Daniel Naum Sobral. A questão da legalidade da Segunda Guerra do Golfo . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 267, 31 mar. 2004. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5024>. Acesso em: 10 set. 2004. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo – 11. ed., rev. atual. e ampl. – São Paulo: Malheiros, 1999. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional – 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2004. 1.
Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas,
fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:
21. Art. 1o Este Decreto estabelece os procedimentos a serem seguidos
com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico
de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que
estas podem apresentar ameaça à segurança pública. |
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REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |