Crime de corrupção passiva: análise do art. 317 do Código Penal

Autor: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
(Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região)
| Artigo publicado em 18.07.2005 |

 


No delito de corrupção passiva, previsto no art. 317 do CPB, a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem, porém a ação deve, necessariamente, relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá exercer (se ainda não a tiver assumido), já que é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício.

Assim, nesse delito, o funcionário público mercadeja com a sua função, sendo que o ato a que visa a corrupção praticada não deve, necessariamente, constituir uma violação do dever de ofício, já que haverá o crime mesmo se a vantagem é solicitada ou recebida para a prática de ato regular e legal (corrupção imprópria). É imprescindível, todavia, que o ato seja da competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função, pois, caso contrário, o crime a identificar-se será outro. (Esse o magistério do Dr. Rui Stoco, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2001, v. 2, p. 3867)

Nesse sentido, julgado do antigo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em que foi relator o então Desembargador Nelson Hungria, verbis:

“(...). Não se pode identificar no caso vertente, como fez a sentença recorrida, o crime de corrupção, passiva ou ativa, que pressupõe um ato de ofício em torno do qual se realiza a transação. É necessário que haja a aceitação por parte do funcionário público, ou o oferecimento a este, de vantagem indevida para a prática (ou omissão ou retardamento) de ato pertinente à função específica do subornado ou peitado.” (Apelação Criminal nº 7.884, rel. Desembargador Nelson Hungria, in Revista de Direito Administrativo, v. 13, jul./set. de 1948, p. 182)

No mesmo sentido, ainda, outros julgados, verbis:

“A corrupção passiva exige para a sua configuração a prática de atos de ofício, dando ensejo ao recebimento de vantagem indevida. E por ato de ofício, consoante uniforme jurisprudência, se entende somente aquele pertinente à função específica do funcionário.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Cantidiano de Almeida, in RT 390/100)

“Se o funcionário público executa outros atos, não inerentes à sua função ou ao próprio ofício, mesmo quan­do a sua qualidade facilite tal cumprimento ou execução, falha definitivamente um dos extremos legais constitutivos do crime de corrupção passiva.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Gonçalves Santana, in RT 381/52).

“Para a configuração do delito do art. 317 do Código Penal, é pressuposto indispensável que o ato praticado seja legal e atinente ao ofício do funcionário.” (TJSP - Rev. Crim. - Rel. Des. Arruda Sampaio, in RT 374/164)

Da mesma forma, pronuncia-se Francesco Carrara, verbis:

Certo è però che l’atto deve spettare allo speciale ufficio che si esercita dall’ufficiale a cui fu dato l’indebito lucro. Se un magistrato che non giudica in un affare prenda una mercede per raccomandare lo affare stesso ad un suo collega che vi giudica, a procurarne lo scioglimento favorevole, egli senza dubbio farà cosa altamente vituperosa; potrà nei debiti termini soggiacere all’accusa di vendita di fumo; ma non potrà applicarglisi il titolo di baratteria, tranne quando egli sia agente secreto del suo collega.” (In Programma del Corso di Diritto Criminale, 10ª ed., Casa Editrice Libraria Fratelli Cammelli, Firenze, 1924, v. 5, p. 129, § 2.553)

Em trabalho publicado no Digesto Italiano, conclui, a respeito, o jurista Luigi d’Antonio, verbis:

“20. Il secondo estremo del reato è l’atto d’ufficio, in cui s’incarna la corruzione. L’atto dev’essere di quelli che entrano nella cerchia delle attribuzioni del pubblico ufficiale, che sono sottoposti alla sua attività come parte integrante dell’ufficio a lui affidato.

(...)

Il pubblico ufficiale nel compiere atti estranei al suo ministero non può mai esser notato del reato di corruzione, sebbene entri in rapporti d’interessi coi privati, come, a cagion d’esempio, se per rimunerazione­ data o promessa si fosse determinato a sollecitare un atto presso qualche altro ufficiale pubblico. In questo­ caso si potrà parlare di atti che mettono a repentaglio­ la dignità dell’ufficio, ma non già di atti che costituiscono abuso dell’ufficio, perocchè l’abuso presuppone l’uso. Per gli atti estranei all’ufficio non esiste ­la violazione dei doveri del pubblico ufficiale e non rimane lesa la fiducia in lui riposta.” (‘Corruzione di Pubblico Ufficiale’, in Il Digesto Italiano, Unione Tipografico-Editrice, Torino, 1898-1900 v. VIII, parte terza, pp. 987/988)

A doutrina antes transcrita restou consagrada pelo Eg. Supremo Tribunal Federal em memorável julgado, publicado na RTJ 162/3, quando do julgamento da Ação Penal nº 307-DF, verbis:

Ação criminal. Código Penal. Corrupção passiva (art. 317, caput ), corrupção ativa de testemunha (art. 343), coação no curso do processo (art. 344), supressão de documento (art. 305) e falsidade ideológica (art. 299). Preliminares: inadmissibilidade de provas consideradas obtidas por meio ilícito e incompetência do Supremo Tribunal Federal para os crimes do art. 299, à ausência de conexão com o de corrupção passiva, que determinou a instauração do processo perante essa Corte, posto que atribuído, entre outros, a presidente da república.

1. Crimes de corrupção passiva (art. 317, caput) atribuídos, em concurso de pessoas, ao primeiro, ao segundo e ao terceiro acusados, e que, segundo a denúncia, estariam configurados em três episódios distintos: solicitação, de parte do primeiro acusado, por intermédio do segundo, de ajuda, em dinheiro, para a campanha eleitoral de candidato a Deputado Federal; gestões desenvolvidas pelo primeiro acusado, por intermédio do Secretário-Geral da Presidência da República, junto à direção de empresas estatais, com vistas à aprovação de proposta de financiamento de interesse de terceiros; e nomeação do Secretário Nacional dos Transportes em troca de vultosa quantia que teria sido paga por empreiteira de cuja diretoria participava o nomeado, ao segundo acusado, parte da qual teria sido repassada ao primeiro.

1.1. Inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica e de registros contidos na memória de microcomputador, obtidos por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal); no primeiro caso, por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação à privacidade alheia (art. 5°, X, da CF); e, no segundo caso, por estar-se diante de microcomputador que, além de ter sido apreendido com violação de domicílio, teve a memória nele contida sido degravada ao arrepio da garantia da inviolabilidade da intimidade das pessoas (art. 5°, X e XI, da CF).

1.2. Improcedência da acusação. Relativamente ao primeiro episódio, em virtude não apenas da inexistência de prova de que a alegada ajuda eleitoral decorreu de solicitação que tenha sido feita direta ou indiretamente, pelo primeiro acusado, mas também por não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo então por ele exercido. No que concerne ao segundo, pelo duplo motivo de não haver qualquer referência, na denúncia, acerca de vantagem solicitada ou recebida pelo primeiro acusado, ou a ele prometida, e de não ter sido sequer apontado ato de ofício prometido ou praticado pelo primeiro acusado; e, quanto ao último, por encontrar-se elidida, nos autos, a presunção de que os créditos bancários e pagamentos efetuados pelo segundo acusado em favor do primeiro, decorreram de vantagem ilícita paga pela empreiteira pela nomeação de seu ex-diretor, ante a plausibilidade da explicação dada pelos acusados de que, ao revés, tais transferências foram custeadas pelos saldos de recursos arrecadados para a campanha eleitoral de 1989, cuja existência restou demonstrada por meio de exame pericial.

2. Crimes dos arts. 343, 344 e 305 atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo, ao terceiro e ao quarto acusados.

2.1. Improcedência da denúncia referentemente ao crime do art. 343, posto não haver resultado demonstrado haverem os acusados dado, oferecido ou prometido, qualquer vantagem às testemunhas apontadas, nem, tampouco, que lhes houvessem eles sequer induzido à prestação de falso testemunho; ao do art. 344, face à ausência de prova de uso de violência ou de grave ameaça contra as ditas testemunhas, por qualquer dos acusados; e, no que tange ao do art. 305, não apenas por falta de prova da destruição de documentos (recibos de pagamento de aluguel de veículo), mas também da própria existência destes, aliada à circunstância de não serem eles indisponíveis.

3. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) de faturas e notas fiscais, atribuídos ao segundo acusado.

3.1. Improcedência da denúncia, nesse ponto, ante a ausência de prova, seja da materialidade, seja da autoria dos delitos.

4. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) consistentes na abertura de contas correntes bancárias e movimentação de cheques em nomes fictícios, nas praças de Brasília e de São Paulo, atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo, à sexta, à sétima, ao oitavo e ao nono acusados.

4.1. Inconsistência da tese de haver-se esfumado, com a rejeição da denúncia pelo crime de quadrilha, a razão pela qual os ditos crimes, por efeito de conexão, foram incluídos na denúncia e, em conseqüência, atraídos para a competência do STF.

Liame que, ao revés, está revelado por diversas circunstâncias, avultando a de haverem as mencionadas contas sido utilizadas como meio de viabilizar a transferência, para o primeiro acusado, das vantagens consideradas indevidas, com ocultação de sua origem.

4.2. Autoria comprovada, inclusive por comissão, do segundo acusado, como mentor, e da sétima acusada, como executora, relativamente à falsificação, ocorrida em Brasília e em São Paulo, das contas bancárias e dos cheques enumerados na denúncia; comprovação, por meio de perícia técnica, realizada em juízo, de que o oitavo acusado foi o autor do crime, relativamente à emissão de dois cheques (n os 773.710 e 773.704) e ao endosso de mais quatro (n os 072.170, 072.171, 072.172 e 072.173), do Banco Rural, todos apontados na denúncia; e de que o quinto acusado também o foi, relativamente à abertura das contas correntes n os 01.6173-0 e 01.6187, no Banco Rural.

4.3. Descabimento da pretendida descaracterização dos ilícitos, ao fundamento de ausência de prejuízo, ante a evidência de haverem sido praticados com o manifesto propósito de escamotear a verdade sobre fatos juridicamente relevantes (a existência, a origem e a destinação do dinheiro depositado nas contas abertas em nomes fictícios).

4.4. Desarrazoada, por igual, a alegação de que a sétima acusada agiu à falta de conhecimento potencial quanto à ilicitude dos atos praticados e sob sujeição de poder hierárquico. Primeiramente, por haver, ela própria, revelado o conhecimento da ilicitude de sua conduta, com o que afastou a ocorrência de erro de proibição, que se caracteriza pela absoluta inconsciência do injusto. E, em segundo lugar, diante da falta de comprovação de que as instruções recebidas de seu empregador, relativamente às contas fictícias que abriu e movimentou, vieram acompanhadas de ameaça de qualquer natureza; do caráter manifesta e reconhecidamente ilegal dessas instruções; e do fato de não se estar diante de relação hierárquica de direito administrativo, circunstâncias que afastam a segunda excluente.

4.5. Denúncia declarada improcedente, relativamente: a) ao nono acusado, por insuficiência da prova de haver falsificado os cheques n os 419.567 e 696.811, do Banco Rural; b) à sexta acusada, à ausência de prova de haver sido ela autora da falsificação do cheque n° 443.414, do Banco Rural e da abertura da conta de depósito n° 01.6101-2, e por insuficiência de prova de ter falsificado os cheques n os 412.672, 412.674 e 412.679, do Banco Rural; e c) ao quinto acusado, por insuficiência de prova, no que tange à imputação de haver aberto a conta n° 01.6101-2, do Banco Rural e contra ela movimentado cheques.

4.6. Reconhecimento da continuidade delitiva tão-somente no concernente às falsificações verificadas na mesma praça. Orientação assentada no STF.

4.7. Reconhecimento da primariedade e dos bons antecedentes, relativamente a todos os acusados.”

Esse entendimento foi reafirmado pela Suprema Corte no Inquérito nº 785-DF, in RTJ 176/50, verbis:

“Crime de corrupção passiva. Art. 317 do Código Penal.

A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias.

Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência.

Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo penal excogitado.

Acusação rejeitada.”

Em seu voto, disse o eminente Ministro Celso de Mello, verbis:

“Entendo, Sr. Presidente, na linha do voto que proferi no julgamento da Ação Penal 307-DF, que o ato de ofício constitui requisito indispensável à plena configuração típica do crime de corrupção passiva, tal como vem este delito definido no art. 317, caput, do Código Penal. A essencialidade do ato de ofício torna-o elemento imprescindível ao exame da subsunção de determinado comportamento ao preceito de incriminação constante da norma penal referida.

Sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, caput, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de seu ofício – ou sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais –, não se poderá ausente a indispensável referência a determinado ato de ofício atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva.

Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal – e ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal em causa – é de rigor a existência de uma relação da conduta do agente (que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida) com a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício.

Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, caput, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e um determinado ato de ofício pertencente à esfera de atribuições do intraneus.

Não custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração delituosa definida no art. 317, caput, do Código Penal, que constitui elemento indispensável – em face do caráter necessário de que se reveste esse requisito típico – a existência de um vínculo que associe o fato atribuído ao agente estatal (solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida com, ao menos, a perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício vinculado ao âmbito das funções inerentes ao cargo desse mesmo servidor público.

Basta, assim, e para efeito de integral realização do tipo penal, que a conduta do agente – quando não venha este a concretizar, desde logo, a prática (ou abstenção) de um ato de seu próprio ofício – tenha sido motivada pela perspectiva da efetivação ulterior de um determinado ato funcional.

Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo de suas atribuições funcionais (RT 390/100 - RT 526/356 - RT 538/324) –, revela-se inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caracterização típica do crime de corrupção passiva definido no caput do art. 317 do Código Penal.

Daí o magistério de nossa melhor doutrina penal (Magalhães Noronha, Direito Penal, vol. 4/244, item n° 1.320, 17ª ed., 1986, Saraiva), que salienta, na análise do tema, que o comércio da função pública, caracterizador do gravíssimo delito de corrupção passiva, reclama, dentre os diversos elementos que tipificam essa modalidade delituosa, um requisito de ordem objetiva consistente em ‘haver relação entre o ato executado ou a executar e a coisa ou utilidade’ oferecida, entregue ou meramente prometida ao servidor público faltoso.

Sem a consideração de um ato de ofício e sem que se possa vincular à conduta do agente, como referência subordinante de sua atuação, uma prática ou omissão funcional, ou, ainda, a promessa de sua ocorrência, torna-se penalmente irrelevante, como conseqüência necessariamente derivada da ausência de tipicidade, o comportamento atribuído ao servidor público.

Revela-se essencial, portanto, no caso em exame, sob pena de absoluta descaracterização típica da conduta objetivada na denúncia, a precisa identificação de um ato de ofício que, incluível na esfera de atribuições do cargo de Ministro de Estado exercido pela ora denunciada, teria sido por esta, direta ou indiretamente, prometido ou oferecido como resposta à indevida vantagem alegadamente solicitada, recebida ou esperada.

Definitivo, sob esse aspecto, é o magistério doutrinário de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, vol. II/438, 1980, Forense), para quem o delito de corrupção passiva, tal como tipificado no caput do art. 317 do Código Penal, ‘está na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do processo’.

Desse modo, assiste inteira razão a Julio Fabbrini Mirabete cujo magistério salienta a imprescindibilidade da relação entre a conduta do agente e um ato funcional específico inscrito no complexo das atribuições legais inerentes ao cargo público (Manual de Direito Penal, vol. 3/313-314, 9ª ed., 1995, Atlas), verbis:

‘É indispensável para a caracterização do ilícito em estudo que a prática do ato tenha relação com a função do sujeito ativo (ratione oficii). O ato ou abstenção a que se refere a corrupção deve ser da competência do funcionário, isto é, deve estar compreendido nas suas especificadas atribuições funcionais, porque somente nesse caso se pode deparar com o dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração. Além disso, o pagamento feito ou prometido deve ser a contraprestação de ato de atribuição do sujeito ativo (RF 201/297; JTJ 160/306; RT 374/164, 390/100). Não se tipifica a infração se a vantagem desejada pelo corruptor não é da atribuição e competência do funcionário (RT 505/296,526/356,538/324).

...

Pode o ato objeto do tráfico ser legítimo, lícito, justo (corrupção imprópria) ou ilegítimo, ilícito, injusto (corrupção própria). Há crime, assim, se a vantagem é solicitada ou recebida ou a promessa é aceita para a prática de ato regular e legal. É indiferente, também, que se trate de ato definitivo ou irrevogável ou sujeito a recurso e confirmação ou revogação.

Desde que a solicitação, recebimento ou aceitação tenha relação com o ato de ofício, pode a conduta ser anterior à prática do ato (corrupção antecedente), como posterior a esta (corrupção subseqüente). Não importa, assim, que o agente tenha solicitado ou fixado o quantum da vantagem indevida ou que a receba no dia seguinte à prática do ato. Ele pode praticar o ato na esperança ou convicção da recompensa imoral, vindo a aceitá-la posteriormente e de acordo com a sua expectativa. Há do mesmo modo mercancia de função (RT 534/319, 548/306). Entretanto, é necessário que se tenham elementos probatórios que indiquem ter havido essa esperança ou convicção da recompensa por parte do funcionário para que se configure o ilícito quando o pagamento efetuado ao funcionário o foi posteriormente à prática do ato de ofício (RT 699/299).’ (Grifei)

O ilustre Magistrado paulista, Dr. Rui Stoco, ao comentar o tema pertinente ao objeto material do crime de corrupção passiva, anota, em fundamentadas considerações, que ‘A ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. A ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. O agente aqui mercadeja com sua função. O ato a que visa a corrupção praticada não deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício (...). Deve, todavia, o ato ser da competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função...’ (Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, p. 3046, 5ª ed., 1995, RT – grifei)

Orienta-se, nesse mesmo sentido – indispensabilidade da existência de conduta do agente vinculada a determinado ato de seu ofício – a jurisprudência dos Tribunais, cujo magistério destaca que o crime de corrupção passiva somente se perfaz quando se evidencia, como pressuposto indispensável que é, que o servidor público, na concreção de seu comportamento venal, agiu, ao menos, na perspectiva de um ato de ofício inscrito em sua esfera de atribuições funcionais (RT 374/164 - RT 388/200 - RT 390/100 - RT 526/356 - RT 538/324).” (In RTJ 176/65-8)

Outro não é o magistério clássico de R. Garraud, em seu Traité Théorique Et Pratique Du Droit Pénal Français, Troisième Édition, Recueil Sirey, Paris, 1922, t. 4, pp. 387/8, nº 1.526, verbis:

“1526. Pour que le crime de corruption de fonctionnaire existe, l’article 177 exige une seconde condition. Il faut que le but à atteindre par le corrupteur consiste, soit en un acte, soit en une abstention d’acte de la fonction de la personne corrompue. Les termes des articles 177 et 179 sont très précis sur ce point. L’article 177 dit: ‘Pour faire un acte de son emploi, même juste, mais non sujet à salaire...’, et 1’ar­ticle l79: ‘Pour obtenir, soit une opinion favorable..., soit tout autre acte du ministère du fonctionnaire, agent ou pré­posé, soit énfin l’abstention d’un acte qui rentrait dans l’exercice de ses devoirs.’ Ces deux dispositions, bien que n’ayant pas la même rédaction, imposent cependant la même condition pour l’existence du crime ou du délit de corruption. Il faut que le fonctionnaire fasse ou s’abstienne de faire un acte de son emploi (art. 177), ou qu’il fasse ou s’abstienne de faire un acte de son rninistère, rentrant dans l’exercice de ses devoirs (art. 179). Il résulte de ce caractère même que la loi française punit, dans la corruption, le trafic de la fonction même et non le trafic de l’influence accessoire qu’elle donne. En un mot, la corruption est un délit de fonction, bien plus qu’un délit de fonctionnaire.

Cette proposition va nous permettre de délimiter le cercle d’application du crime de corruption de fonctionnaire, soit au point de vue des faits qu’il embrasse, soit au point de vue de ceux qu’il exclut.

a) La corruption a lieu seulement à raison d’un acte de fonc­tion, c’est-à-dire d’un acte qui fait partie des attributions légales de celui qui l’accomplit ou qui s’abstient de l’accom­plir. Cette qualification conviendrait, par conséqueut: 1º à l’acte d’un officier de police judiciaire, qui s’abstiendrait, moyennant argent, de dresser procès-verbal d’un délit ou d’une contravention qu’il avait le droit et le devoir de constater; 2° à l’acte des membres du conseil de revision, autres que les médecins et chirurgiens, qui recevraient des dons pour exempter du service militaire des jeunes gens appelés pour le recrutement; 3° à l’acte du secrétaire de mairie, chargé de la délivrance des passeports, qui accepterait une somme d’argent pour accomplir cet office de sa fonction; etc.

b) Si l’acte le fonctionnaire accomp1it ou dont il s’abstient à prix d’argent ne rentre pas dans l’ordre des devoirs que la loi lui impose, le fait peut constituer une escroquerie, mais non une corruption., à moins qu’il ne rentre dans les termes du § 5 de l’article 177. C’est ce qui a été décidé particulièrement, par un arrêt des chambres réunies de la Cour de cassa­tion, du 31 mars 1827, pour l’acte d’un garde champêtre qui, saisissant un délit de chasse hors de sa circonscription territoriale, avait menacé de dresser un procès-verbal et s’était abstenu de le faire à prix d’argent. (Dans l’espèce, le garde champêtre avait été d’abord absous, la cour ayant jugé qu’il n’y avait, dans ce fait, ni crime ni délit. Après cassation, la cour de renvoi appliqua au garde champêtre non pas l’article 177, mais l’article 405 du Code pénal, c’est-à-dire qualifia l’acte reproché, non de cor­ruption, mais d’escroquerie. Sur un nouveau pourvoi du ministère public, la question fut portée devant les chambres réunies de la Cour de cassation, et le pourvoi fut rejeté par ces motifs: ‘Attendu qu’il résultait de la déclaration du jury que l’accusé avait sciemment abusé de sa qualité pour exiger une somme d’argent en promettant de s’abstenir de rédiger un pro­cès-verbal qu’il n’avait pas le droit de dresser, et qui n’entrait pas, par conséquent, dans l’ordre de ses devoirs; et qu’en appliquant à un fait ainsi qualifié l’article 405 du Code pénal, la cour d’assises n’avait point violé l’ar­ticle 177.’ Cass., 31 mars 1827 (D. J. G., vº Forfaiture, nº 119). Un arrét de la Cour de Limoges a adopté la même doctrine, dan’s une espèce analogue (Limoges, 4 janv. 1836, D. J. G., vº Forfaiture, n° 120-2°).”

Por conseguinte, o tipo insculpido no art. 317 do Código Penal Brasileiro visa ao tráfico da função pública, ou seja, a solicitação, o recebimento ou a aceitação por parte do agente tem de ser para a prática ou omissão de ato inerente à sua função.

A corrupção passiva, nos termos da melhor doutrina, exige para a sua configuração a prática de atos de ofício – isto é, aquele pertinente à função específica do funcionário público –, ensejando o recebimento de vantagem indevida.




 
REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS