Lei n. 10.409/2002: competência para o processo e julgamento do crime de tráfico internacional de entorpecentes (art. 27 da Lei n. 6.368/76)

Autor: Augusto Yuzo Jouti
(Servidor da Justiça Federal do Paraná)
| Artigo publicado em 16.09.2005 |

Sumário

1. Introdução. 2. Delegação legal de competência. 3. Derrogação do capítulo IV da Lei n. 6.368/76. 4. Razões de veto ao art. 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991. 5. Vigência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas. 8. Bibliografia.

Resumo

Apresenta debate originado pela edição da Lei n. 10.409/02, que derrogou dispositivos da Lei n. 6.368/76, ambas cuidando, em suma, da prevenção e da repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes. Discute a vigência ou não do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, que delega competência à Justiça Estadual para processamento do crime de tráfico internacional de drogas, quando inexistente Vara da Justiça Federal no Município. Conclui, com força na doutrina e na jurisprudência, que referido artigo 27 mantém-se em vigor, com plena aplicabilidade.

Palavras-chave: Competência - Delegação - Artigo 27 - Lei n. 6.368/76 - Lei n. 10.409/02 - Tráfico internacional - Entorpecentes - Justiça Federal - Justiça Estadual

1. Introdução

Em 11 de janeiro de 2002, foi promulgada a Lei Federal n. 10.409 (originada do Projeto de Lei n. 1.873/1991 - n. 105/96 no Senado Federal), dispondo, em resumo, sobre a repressão ao uso e ao tráfico de entorpecentes. A intenção legislativa era ab-rogar a Lei n. 6.368/76, de igual conteúdo, mas os vetos presidenciais a determinados artigos deram outros rumos à aplicação do novo diploma legal.

Surgiu, então, o conflito intertemporal a respeito da competência para julgamento de crime de tráfico internacional de entorpecentes, quando apreendidos em município que não é sede de Justiça Federal. A lei anterior atribuía competência ao Juízo Estadual do local. A nova lei silenciou. O presente estudo visa a sugerir uma resposta, a qual é pouco explorada pela doutrina.

2. Delegação legal de competência

O artigo 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991 - n. 105/96 no Senado Federal, que originou a Lei n. 10.409/2002, referia: "Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão à Justiça Federal. 'Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça federal, o processo e julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para o Tribunal Regional Federal da circunscrição."

Assim, o projeto da nova lei antitóxicos previa a delegação de competência para a Justiça Estadual, desde que inexistisse no Município do lugar do delito sede de Justiça Federal, vale dizer, uma Vara Federal, reproduzindo o teor do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, devidamente autorizada pela Constituição Federal (art. 109, § 3º, CF), e já consagrada pelas Súmulas n. 54 do extinto TFR e n. 522 do STF.

Diria uma corrente, com louvável fundamento, que tal delegação não tem mais força em nosso ordenamento, eis que vetado pelo Presidente da República, aquiescendo sugestão do Ministério da Justiça, cujas razões encontram-se na Mensagem n. 25, de 11 de janeiro de 2002, enviada ao Presidente do Senado Federal.(1) Assim, a vontade do artigo 56 do projeto estaria fulminada pela rejeição presidencial.

3. Derrogação do capítulo IV da Lei n. 6.368/76

Cabe, porém, fazer um estudo mais aprofundado desse veto, a fim de se levantar a melhor exegese acerca do tema. Primeiramente, não se pode admitir que todo o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi derrogado pela Lei n. 10.409/02. A norma do artigo 27 daquela e do artigo 56 do Projeto desta referem-se à competência, enquanto o mencionado Capítulo IV e os Capítulos IV e V da Lei nova tratam de procedimento. Por isso, a importância de se reconhecer a diferença entre esses dois conceitos: competência é medida da jurisdição; procedimento é o rito, conjunto de atos a serem seguidos.

Evidente que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 cuida de competência e está equivocadamente disposto no capítulo chamado de "Procedimento Criminal". Reforça esse entendimento o fato de o Projeto da Lei 10.409/02 corrigir essa atecnia legislativa, retirando o artigo 56 dos capítulos que determinam sobre procedimento e inserindo-o no "Capítulo VIII - Disposições Finais".

Como retrodito, o novo procedimento não derrogou inteiramente o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76, mas tão-somente os artigos que falam do mesmo assunto, qual seja, o procedimento para processar e julgar os crimes relativos a entorpecentes (STJ, HC 24779/MS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti).

4. Razões de veto ao art. 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991

O Capítulo III da Lei n. 10.409/02 - que cuidava dos tipos penais - foi vetado, por vício direto e reflexo de inconstitucionalidade, por ofender os princípios da legalidade e individualidade de pena. Restou, então, impraticável manter o art. 56 do Projeto que menciona sua aplicação nos casos dos artigos antes vetados. Logo, o veto do art. 56 foi decorrente de sua prejudicialidade em relação ao Capítulo III, não por falta de constitucionalidade ou de inconsistência de seu conteúdo. Ou seja, foi um veto meramente formal, por ricochete, não atingindo seu mérito. Não se quer dizer que um dispositivo rejeitado deve ter eficácia. Mas que sua essência pode ser aproveitada, pois não padece de vícios de inconstitucionalidade ou desinteresse público.

5. Vigência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76

A Lei n. 6.368/76 não foi ab-rogada (revogada por inteiro), mas somente derrogada (revogação parcial) no que pertine ao procedimento (e não quanto ao critério de competência!). Veja-se o que dispõe o art. 9º da Lei Complementar n. 95/98: "a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou dispositivos revogados".

O art. 59 do Projeto de Lei previa expressamente a revogação integral da Lei antiga. Mas esse artigo também foi vetado, pois "a cláusula que revoga a Lei n. 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público." (cf. Mensagem 25/02, idem).

Com isso, a Lei n. 6.368/76 continua em vigor naquilo que não contrariar a novel legislação. Observe-se que a intenção da Presidência da República é expressa em manter os artigos definidores de crime da lei antiga e outros dispositivos igualmente interessantes, dentre os quais a regra de delegação de competência à Justiça Estadual, no caso de traficância internacional.

Isso é revelado pela vontade legislativa ao introduzir o artigo 56 no Projeto, bem como as razões de veto não fazerem menção alguma quanto sua inconveniência, mas estritamente utilizou o critério de prejudicialidade, mesmo porque não poderia vetar apenas palavras (CF, art. 66, § 2º).

Talvez seja esse o exercício intelectual a ser feito para verificar a higidez do art. 27 da Lei n. 6.368/76. MIGUEL REALE(2) (1995, p. 285) leciona que "interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondem àqueles objetivos."

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, autêntico protetor das leis federais e condutor das orientações que cuidam de matérias não-constitucionais, em suas duas turmas para matérias criminais, caminha remansosamente ao entendimento de que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 foi recepcionado pela Constituição Federal e mantém-se aplicável (RHC 12029/SC, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 27.11.2001, grifo atuais); (HC 22893/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 19.09.2002, grifos atuais).

O Supremo Tribunal Federal, defensor universal, não-exclusivo, da constitucionalidade normativa, apontou recentemente (22.02.2005), através de sua Primeira Turma - num debate sobre a competência federal absoluta em razão da matéria (crime cometido a bordo de aeronave) em confronto com a competência territorial por delegação - que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 continua em vigor, conforme noticiado no seu Informativo n. 377:
"Salientou-se, também, o caráter federal da jurisdição exercida por juiz estadual na hipótese do citado art. 27 da Lei 6.368 (...), reforçado pelo disposto no art. 108, II, da CF, que determina caber aos Tribunais Regionais federais o julgamento de recurso das causas decididas pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição". (HC 85059/MS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 22.02.2005).

A decisão que mais tem força orientadora, no entanto, é a proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que reúne as duas Turmas criminais (5ª e 6ª), composta pelos eminentes Ministros Laurita Vaz (Relatora), Félix Fischer (Presidente), Paulo Medina, Hélio Quaglia Barbosa, Arnaldo Esteves Lima, Nilson Naves, José Arnaldo da Fonseca, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti. Saliente-se que o julgamento foi por unanimidade, chamando a atenção também a sua data: 23.02.2005 (um dia após a decisão do STF retro), publicado ainda neste mês, em 07.03.2005:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. TRÁFICO INTERNACIONAL. JUÍZO ESTADUAL. DELEGAÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CARTA PRECATÓRIA. CUMPRIMENTO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. Nos termos do art. 27 da Lei n. 6.368/76, c.c. art. 109, inciso V, e § 3º, da Constituição Federal, se o crime de tráfico internacional ocorreu em local que não é sede de Vara da Justiça Federal, caberá à Justiça Estadual processar e julgar o feito por delegação.
2. O cumprimento de carta precatória expedida por Juízo Estadual, no exercício de competência federal delegada deverá ser realizado por Juízo Federal.
3. (...)". (CC 40396/AM, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23.02.2005, publ. 07.03.2005, p. 138, grifos atuais).

6. Conclusão

Esse último decisum, corroborado especialmente pelo HC 85059 do STF, resume todo o trabalho exposto, conferindo vigência normativa ao artigo 27 da Lei n. 6.368/76. Com efeito, não há incompatibilidade seja vertical, seja horizontal, entre o art. 27 da lei velha com a Constituição Federal ou com a lei nova.

O processo e julgamento dos crimes de tráfico transnacional de entorpecentes, originalmente de competência da Justiça Federal, serão delegados à Justiça Estadual do Município que não tenha Vara Federal, entendimento esse reforçado pelos recentes julgados do STF (HC 85059) e STJ (CC 40396/AM).


REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

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NOTAS DE RODAPÉ

1. BRASIL. Mensagem n. 25, de 11 de janeiro de 2002: razões de veto parcial ao projeto de lei n. 1.873, de 1991 (n. 105/96 no Senado Federal). Brasília, Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/2002/Mv025-02.htm>. Acesso em: 24.fev.2005.

2. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.



REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS