Os direitos humanos e as concepções não-ocidentais: O que o Islã tem a ver com isto(1)?

Autor: César Augusto Baldi
(Servidor do TRF da 4ª Região, Professor de Direito Constitucional, Especialista em Direito Político pela UNISINOS, Mestre em Direito pela ULBRA/RS)
| Artigo publicado em 16.09.2005 |

 

1. A Umma islâmica e os direitos humanos

Raimon Panikkar estabelece, em relação aos direitos humanos, a seguinte metáfora:

[...] os direitos humanos são uma janela através da qual uma cultura determinada concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos, mas os que vivem naquela cultura não enxergam a janela; para isso, precisam da ajuda de outra cultura, que, por sua vez, enxerga através de outra janela. Eu creio que a paisagem humana vista através de uma janela é, a um só tempo, semelhante e diferente da visão de outra. Se for o caso, deveríamos estilhaçar a janela e transformar os diversos portais em uma única abertura, com o conseqüente risco de colapso estrutural, ou deveríamos antes ampliar os pontos de vista tanto quanto possível, e acima de tudo, tornar as pessoas cientes de que existe, e deve existir, uma pluralidade de janelas?(2)

Se é difícil abandonar a referência aos direitos humanos - uma vez que constituem nosso topos de referência -, é necessário, contudo, “abrir este topos ao máximo, para permitir a emergência de laços de encontro, de partilha e de enriquecimento mútuos com outras tradições humanas”.(3)

A proposta, tal como já delineada acima, busca encontrar equivalentes homeomórficos nas demais culturas, encontrar conceitos, designações ou cosmovisões que manifestem preocupações e aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis.

Os topoi, como já nos ensinara a Retórica, são lugares comuns teóricos, premissas fundantes da argumentação que, sendo auto-evidentes, permitem a produção de troca de argumentos e, portanto, o diálogo. O deslocamento dos topoi fortes de uma cultura para o contexto de outra, contudo, torna-os vulneráveis, porque, recontextualizados, passam a ser vistos como meros argumentos e não mais como premissas evidentes. Daí intitular-se “hermenêutica diatópica” (“dia”: através; “topos”: lugares comuns teóricos).

Os argumentos de uma cultura - e esta própria - somente podem ser reconhecidos como incompletos na presença de outra cultura; ou seja, a incompletude de uma cultura somente é perceptível à luz de outra. Daí a metáfora panikkariana da janela por meio da qual visualizamos determinadas questões: a finalidade é “ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro pé noutra”.(4)

Ora, como bem salientado por Rhoda Howard, se todas as sociedades têm uma concepção de dignidade humana e justiça social, somente uma parcela a traduz em termos de sistemas de direitos, ao passo que a grande maioria rejeita a expressão da dignidade em termos de direitos inalienáveis do ser humano fisicamente individualizado contra a família, a comunidade ou o Estado.(5)

Segundo Boaventura de Sousa Santos, é possível exercitar a referida hermenêutica diatópica entre o topos de direitos humanos e o topos de Umma da cultura islâmica. No seu entendimento, o conceito de Umma “refere-se sempre à comunidade étnica, lingüística ou religiosa de pessoas que são o objecto do plano divino de salvação” e, à medida que a atividade profética de Maomé “foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, conseqüentemente, a umma dos árabes foi transformada na umma dos muçulmanos”.(6)

A partir do topos da Umma, a incompletude dos direitos humanos individuais “reside no facto de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e muito menos prosperar”.(7) Esta dificuldade fica evidente no que diz respeito à aceitação de direitos coletivos de grupos sociais ou povos (mulheres, minorias étnicas, crianças, povos indígenas) e, que, no plano jurídico, é responsável também pela resistência aos mecanismos de litigação coletiva (de que dão mostra os intentos de reduzir legitimidade do Ministério Público e de sindicatos para a propositura de ações coletivas ou, mais ainda, na sua execução). Uma dificuldade que, no entender de Boaventura Santos, é mais ampla: é a “dificuldade em definir a comunidade enquanto arena de solidariedades concretas, campo político dominado por uma obrigação política horizontal”, idéia que, central para Rousseau, foi banida do pensamento liberal.

Por outro lado, a partir do topos de direitos humanos, a Umma destaca, demasiadamente, “deveres em detrimento de direitos e por isto tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos ou não-muçulmanos”. Weeramantry, por sua vez, entende que a cultura islâmica pode ajudar a enriquecer a cultura de direitos humanos justamente porque “a ênfase em direitos necessita ser temperada com a correspondente ênfase em deveres”, do mesmo modo que “a ênfase em valores puramente materiais necessita ser temperada por uma ênfase nos valores sociais, humanísticos e culturais, que tendem a ser obscurecidos pela discussão de direitos puramente civis e políticos”.(8) Assim, se a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em “estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia”, a fraqueza fundamental da cultura islâmica é devida ao fato de não “reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada”.(9)

Ora, se a hipótese de Boaventura Santos em relação ao equivalente homeomórfico do Islã está correta, os intentos de reconfiguração da Umma são altamente promissores.

A partir do reconhecimento da progressiva expansão do Islã pelo mundo, aí incluída a Europa, fala-se, inclusive, em “diáspora islâmica” (em comparação com a judaica), o que ensejou todo um novo imaginário em relação ao conceito de Umma. Tido como “lugar de pertença” ou de “comunidade imaginária”, o fato é que a noção apresenta um sério desafio à idéia tradicional de “nação”: “o Islã interrompe a lógica de nação”, porque o principal é o problema da integração - i.e. como incluir várias populações dentro das fronteiras de uma nação, e, ao mesmo tempo, ter um foco no problema das suas lealdades para edificar de forma mais abrangente que a nação.(10)

Neste contexto de mundo pós-westfaliano, Salman Sayyid(11) sustenta que a “diáspora islâmica” tem que ser vista como uma “antinação”, porque a Umma não é uma comunidade econômica ou comercial, uma civilização ou uma sociedade lingüística e também não demonstra um estilo de vida comum: existe a idéia de que a proclamação de uma subjetividade muçulmana pode ser encontrada em todas as comunidades islâmicas do mundo, e, assim, ocupando uma posição “dentro da periferia, ela está sujeita ao processo de desnacionalização”, o que abre a possibilidade de “reconfiguração de uma formação cultural que é menos e menos particular e mais e mais universal”. O mundo atual é caracterizado por duas formas de descentração: a do Ocidente, que marca o final da Era da Europa, e a do estado-nação periférico, que é associado com a globalização: “entre as duas formas de descentração, é que nós podemos localizar a Umma islâmica, e é esta posição que lhe dá o caráter diaspórico”.

Com o mesmo intento de ressignificação da Umma, Farish Noor(12) pugna pelo reconhecimento das diferenças internas e do pluralismo no interior desta, pela problematização da própria identidade enquanto multiplicidade e diferença do outro e pela procura dos caminhos comuns que ligam os muçulmanos e os outros. Daí o seu conceito de “Islam bi la hudud”, um Islã sem fronteiras e verdadeiramente universal, em que procura ressignificar três áreas problemáticas: a questão Israel/Palestina, gênero e igualdade, e, por fim, globalização, meio ambiente e futuro. Salientando que a luta inicial dos palestinos tinha por base uma sociedade pluralista e multireligiosa e que a caricatura do Ocidente em relação ao Islã é recíproca, destaca a necessidade de ver que “as tragédias na Bósnia, na Palestina, em Gujarat, na Cachemira, e em outros lugares não são somente ‘problemas muçulmanos’, mas sim catástrofes humanas e graves violações de direitos humanos universais”, uma luta em que judeus, cristãos, hindus e toda a humanidade está envolvida. No tocante à questão de gênero, importante é verificar as contradições internas e o duplo estândar dentro da comunidade islâmica, de forma a dar igual vez às vozes subalternas e garantir, “não somente o direito de falar, mas também o direito de professar e pronunciar”, porque “não se pode reclamar respeito e igual tratamento a menos - e até quando - não se mostrar o mesmo respeito entre nós”, ou seja, corrigindo os “erros existentes no mundo ao nosso redor”. Por fim, o último dilema diz respeito à impossibilidade de isolamento do resto do mundo, pondo em discussão a necessidade de responder a questões que não são estritamente religiosas, mas afetam a todas as pessoas (degradação do meio ambiente, exploração dos recursos finitos, a destruição das economias locais, a liberalização dos mercados e a globalização). Diante desta realidade - plural, multicultural, desigual, complexa, sem fronteiras e injusta - o cientista político malaio afirma:(13)

Necessitamos forjar uma nova cadeia de equivalências que equacione os interesses universais com os muçulmanos e os problemas universais com os muçulmanos. O coração muçulmano não pode sangrar somente quando vê lágrimas e sofrimentos muçulmanos. Se nós não formos movidos pelas condições ruins e o sofrimento dos outros, se não pudermos sentir a dor e as ansiedades dos outros, se não pudermos compartilhar a alegria e aspirações dos outros, então não podemos reivindicar os mesmos direitos e atribuições para nós mesmos. E tampouco podemos dizer que a nossa é uma abordagem universal do Islã. A mensagem universal do Islã não será – e não se transformará - uma realidade enquanto não ultrapassar os domínios do Dar-al-Islam.

Assim reconfigurada, a Umma passa a ser um fermento para um novo cosmopolitismo, baseado na idéia de que o sofrimento, a dor, as ansiedades não afetam somente os atingidos especificamente, mas toda a humanidade. A associação, aqui, poderia ser realizada com a metáfora do “cidadão peregrino”, criada por Richard Falk, para designar “a comunidade humana imaginada do futuro que encarne a não-violência, a justiça social, o equilíbrio ecológico e a democracia participativa em todas as arenas da política e de decisão, encarnando estas perspectivas em modos correntes de sentimento, pensamento e ação”.(14) Esta metáfora, que é uma nova invocação do “precursor medieval da era westphaliana de Estados”, busca dar conta desta realidade de “globalidade do normativo, direitos humanos, renascimento religioso, lei internacional, e do funcional, economia mundial e mudança do clima global”, desafiando a “hegemonia territorial do Estado”.(15) É o espírito de “um indivíduo com residência temporária, comprometido com a transformação tanto espiritual quanto material, e que esteja menos interessado na solução técnica que permitirá que o governo global seja bem-sucedido como um projeto funcional”(16) e, nesta perspectiva, a comunidade mundial sustentável deve resultar “de uma combinação de energias seculares e espirituais”, pois o “renascimento religioso é uma fonte indispensável de esperança, como um perigoso desafio às conquistas da modernidade”, e as muitas iniciativas para um diálogo intercultural são parte desta preparação:(17)

É neste futuro que o cidadão peregrino imaginará uma comunidade de crentes no destino coletivo das espécies humanas. Quando tais atitudes mesclarem tendências ao trabalho transnacional e inovação institucional, começarão a surgir as bases para as novas variedades de cidadania, como padrões apropriados de lealdade, participação e responsabilidade. Tais variedades permanecem acima do horizonte, além de nossa capacidade de imaginação, mas suas condições prévias estão começando a se tornar claras, com relação a um ethos de não-violência, sustentabilidade, compaixão e solidariedade.

2. A proposta de An-na’im

Naquela que se tornou a reelaboração islâmica mais conhecida junto ao público lusófono, Abdullahi Ahmed An-na’im propõe uma “Reforma Islâmica”. Com o termo árabe “islah”, o professor sudanês tem em mente não a evocação do processo europeu de secularismo, nem um revivalismo de um passado magnífico, mas sim uma “abordagem autêntica e nativa”, pois é possível encontrar no espírito e nas melhores tradições da fé a resposta aos “desafios intelectuais”.(18)

Depois de salientar a capacidade do Islã de se adaptar e responder às necessidades, aspirações e particularidades dos povos que o adotaram,(19) afirma que “Shari’a” é baseada no Corão e na Sunna (os ensinamentos do Profeta) e, desta forma, ao contrário de uma certa tradição, não tem natureza divina, mas é “produto do raciocínio humano sobre a fundação de uma inspiração divina”: O Corão e a Sunna são divinos, mas as outras fontes da “Sharia” como a qiyas (analogia) e ijma (consenso) são, evidentemente, humanas, e constituem elaborações realizadas cerca de 150-250 anos da morte de Maomé. É, portanto, reflexo do contexto socioeconômico e político da região nos séculos VIII e IX.

A implantação do direito islâmico ocorre, hoje em dia, em contexto absolutamente distinto: a Sharia não pode ser implementada, se não for repensada e recontextualizada.(20) Alguns autores sustentam, contudo, que a porta da ijtihad (entendimento racional) foi fechada nos séculos IX e X, mas para An-na’im este conceito deve ser reelaborado: “significa o fenômeno de manter uma mente aberta – de ser original, ousado e imaginativo no trato do texto – e em relação a este - perseguindo e interpretando a análise textual”.(21) Consistente com os novos tempos, um processo de raciocínio dialógico somente pode ser efetuado dentro da Umma geral, o que equivale a dizer que os ulemas (os expertos jurisprudenciais) exercitam a ijtihad através de um “engajamento democrático” com a comunidade, com a generalidade dos crentes da Umma.(22)

A partir destes pressupostos, propõe uma “interpretação iluminada”, por meio de discursos culturais internos e diálogos interculturais. De forma a aumentar a legitimidade cultural interna, ele explora as virtualidades de reinterpretação e reconstrução de valores, normas, conceitos e instituições da cultura islâmica: “os proponentes de uma visão cultural alternativa em matéria de direitos humanos devem procurar ampliar e dar uma efetiva aceitação às suas interpretações das normas culturais e instituições, mostrando a autenticidade e legitimidade daquela interpretação dentro do âmbito de sua própria cultura”.(23) Por outro lado, tendo em vista que as culturas estão sempre sendo modificadas e em constante contato mútuo, não é impossível introduzir elementos interculturais, que devem ser, contudo, sensíveis às necessidades de autenticidade e legitimidade internas: “nunca se deve aparecer como imposição externa de valores em defesa dos padrões de direitos humanos ”.(24)

Isto não significa, contudo, repudiar o padrão universal dos direitos humanos, por duas razões fundamentais: a) eles são úteis como pontos de referência - algo suscetível a debate, concordância ou discordância, com ou sem modificação - num esforço de aperfeiçoar o conceito e articular padrões de “genuínos direitos humanos universais”; b) constituem uma ferramenta jurídica importante para ativistas que podem necessitar alguma proteção contra os padrões culturais existentes e como forma de implementar padrões culturais mais legítimos.(25) Os esforços devem ser sensíveis à natureza interna da luta, enfatizando, na medida do possível, valores internos e normas, antes que fatores externos.(26) Isto implica, por outro lado, reconhecer que são possíveis revisões e reformulações dos padrões internacionais de direitos humanos, um processo que ele denomina de “legitimação retroativa”:(27)

[...] que envolve a possibilidade, ainda que seja superficial, que as revisões e reformulações sejam necessárias. É, precisamente, a minha crença pessoal na universalidade dos direitos humanos que me conduz a sugerir que nós devemos verificar e demonstrar ou comprovar a genuína universalidade dos padrões existentes. Este exercício, contudo, não será crível, se não estamos abertos à possibilidade de revisões e/ou reformulações que pareçam ser necessárias.

Reelaborando a cultura islâmica, a partir dos ensinamentos de Mahmoud Taha,(28) An-na’im demonstra que uma releitura do Corão e da Suna revela a existência de duas mensagens do Islã, em épocas distintas: uma, relativa ao período de Meca; outra, de Medina. A primeira mensagem é, para ele, eterna e fundamental, porque destaca a dignidade de todos os seres humanos, e, portanto, de Umma inclusiva, da qual mulheres e não-muçulmanos (dhiimi) são partes. Considerada muito avançada para a época, a mensagem foi suspensa no período de Medina, em que, inclusive, se elaborou a “Convenção de Medina”, que basicamente respeitava os costumes e religiões tribais, fossem cristãs, judias ou culto de ídolos, não se compelindo à conversão. No entender de An-na’im, o contexto socioeconômico e histórico é propício para esta mensagem.(29)

Coerente com os princípios de autodeterminação e de transformação interna de todos os movimentos sociais, o autor sudanês entende que os movimentos fundamentalistas islâmicos não “podem aceitar as limitações da interdependência global, a menos que possam contribuir para a sua construção”.(30)

Se a “natureza e a futura direção do Estado-nação” é, no mundo de hoje, “produto da contribuição de todos os cidadãos, os fundamentalistas islâmicos têm direito, tal como outros cidadãos, de contribuir a partir de sua perspectiva”.

O que equivale a afirmar que “os fundamentalistas islâmicos devem conceder iguais direitos para todos os outros, homens e mulheres, porque este é um pré-requisito para sua própria reivindicação de direitos iguais”,(31) mas, para isto, será necessário transformar sua ideologia e prática que pretendem exercitar seu direito igual à autodeterminação, uma modificação que deve ser efetuada primeiro em nível teológico, de acordo com as circunstâncias materiais de cada sociedade.

Em outras palavras: “a necessária transformação da ideologia e da prática dos fundamentalistas islâmicos deve refletir a sinergia entre a dimensão teológica e as condições materiais de todas as comunidades islâmicas ao redor do mundo, hoje.”(32)

Sua proposta, portanto, está, fundamentalmente, ancorada na “relevância e necessidade, para os direitos humanos, de uma perspectiva local, nativa”, diminuindo “formas de dependência intelectual e política”, de forma a ter, localmente, “formas sustentáveis de proteção de direitos humanos e democracia”.(33) No seu entender, direitos humanos implicam, basicamente, “uma luta pela dignidade humana e auto-determinação”, uma única luta “contra todas as formas de estruturais e institucionalizadas opressões”.(34) Partindo do pressuposto de que todas as culturas e civilizações têm desenvolvido tais conceitos, questiona:(35)

Se, por exemplo, eu quero falar sobre direitos humanos, liberdade de pensamento e racionalidade, porque eu deveria citar alguém como Kant? Por que não posso, como muçulmano, citar Ibn Rushd, que disse e escreveu as mesmas coisas centenas de anos antes de Kant? Esta é, para mim, a melhor forma, para nós, no mundo islâmico, de reavivar o debate sobre direitos humanos, individualismo, racionalidade e liberdade de pensamento e expressão. E é isto que eu entendo por desprender-se da dependência dos direitos humanos, que tem, pelo menos no passado, nos forçado a discutir o significado de direitos humanos em termos que não são, necessariamente, locais ou que não nos são próprios.

3. O direito islâmico e as penas cruéis

A transnacionalização da Umma, já referida anteriormente, também pode ser analisada com relação ao que se costuma denominar “direito islâmico”. Neste ponto, as classificações correntes do Direito Comparado – de René David a Zweigert & Kötz – além de exagerarem a importância da divisão entre common law e civil law, têm dificuldade de trabalhar fora do âmbito do Estado-Nação, procurando confinar ordens jurídicas religiosas e costumeiras em “sistemas legais nacionais que somente os reconhecem para propósitos limitados”:(36) mesmo tratando de pluralidades normativas, têm uma visão estatocêntrica do fenômeno.

Assim, como bem salienta William Twining, o direito islâmico não é somente importante em Estados islâmicos ou países nos quais há uma maioria muçulmana: “ele é uma tradição e um corpo de idéias e práticas que transcende as fronteiras nacionais. O direito islâmico é influente, tanto formal quando informalmente, em meu próprio país, embora não seja reconhecido, geralmente, como fonte do direito”, e os tratados de direito islâmico têm demonstrado que os parlamentos e cortes têm tido que levar em conta as idéias e práticas islâmicas, ainda quando não o reconheçam como fonte formal de direito.(37)

Este conjunto jurídico encontra-se estruturado, basicamente, como já salientado anteriormente, a partir do Corão e da Sunna. Esta, que é fonte secundária em relação à primeira, e significa “claro caminho” ou “prática normativa”: pode ser um bom ou mau exemplo, dirigido ao indivíduo ou à comunidade, em geral dizendo respeito a tudo que se refira ao Profeta, seus atos, suas palavras e aquilo que tacitamente tenha aprovado.(38) Existe, de fato, divergência quanto ao fato de ser a Sunna uma fonte independente, mas é certo que ela pode consistir:

a) de regras que meramente confirmam e reiteram o Corão, ou seja, as regras são originárias do Corão e meramente corroboradas por este;

b) de uma explanação ou clarificação para o Corão, seja pela ambivalência dos termos, seja para especificar termos gerais do Corão;

c) de regramentos para os quais o Corão é silente, e onde, portanto, o regramento é originado da própria Sunna. (38)

Além destas fontes jurídicas, ainda existe a ijma (consenso de opinião), que é, praticamente, uma prova racional e, para alguns teóricos, “nada menos que um universal consenso de todos expertos da comunidade islâmica como um todo pode ser aceita como uma conclusiva ijma. Esta noção, provavelmente, é inspirada na idéia da unidade política da Umma, antes que no total consenso em assuntos jurídicos”.(40) Aceita-se, ainda, a qiyas (dedução analógica), que, literalmente, significa “comparação” ou “similaridade entre duas coisas”: “o caso original é regulado por um dado texto, e qiyas procura estender a mesma regra textual para o novo caso”.(41) Isto tudo demonstra, ao contrário do tradicional entendimento ocidental, que racionalidade e fé não se encontram separadas no direito islâmico.

O conhecimento detalhado das distintas regras de direito islâmico em suas ramificações é chamado fiqh, ao passo que os métodos que são utilizados para a dedução de tais regras, a partir das suas fontes, denomina-se usul al-fiqh,(42) e o conhecimento das regras de fiqh deve ser adquirido diretamente de suas fontes. Boa parte dos tratadistas ocidentais, contudo, dedica-se apenas ao estudo do Corão e da Sunna, deixando de lado toda a complexidade do sistema jurídico, seja tratando de forma superficial as regras de interpretação, os comandos e as proibições, seja desprezando conceitos como qiyas, istihsan (eqüidade, para fins de solução de casos), istishab (presunção de continuidade), sadd al-dara’i (obstruir ou bloquear um significado para um determinado fim).(43)

O que é omitido, em geral, contudo, é que, apesar de constar de dois ritos básicos (sunita e xiita),(44) estes se organizam em distintas escolas jurídicas.(45) Desta forma, a jurisprudência xiita baseia-se no Corão e nos pronunciamentos do Profeta tal como recolhidos pelos imans (os descendentes masculinos de sua filha Fátima e seu genro Ali) e considerada, assim, a única interpretação correta. No que diz respeito aos sunitas, existem quatro escolas principais. Hanbal e Malik viveram em Medina e estão, portanto, mais próximos do “ethos social” daquela cidade e, ao mesmo tempo, das formulações jurídicas que o Profeta fez ou disse. Shafi e Hinafi, por seu turno, viveram, respectivamente, nos atuais Egito e Iraque, sociedades com maior confluência de cultura e, desta forma, são menos ortodoxos na metodologia. Enquanto os dois primeiros dão grande importância aos hadiths (ditos do Profeta), os dois últimos utilizam, de forma mais liberal, qiyas e ijma; os primeiros mais próximos dos ensinamentos de Meca e Medina; os dois últimos com influências de outras práticas. Tudo isto a indicar que, ainda que a fonte seja divina, a Sharia pode ser influenciada por situações humanas e incorporar mudanças, o que se verifica também com relação à questão da mulher.(46)

Se alguns, como An-na’im, sustentam que a porta da ijtihad (raciocínio pessoal) encontra-se fechada desde o século X, outros insistem num verdadeiro revival desse conceito, bem como a necessidade de a educação jurídica preparar para o exercício de tal habilidade, de forma a assegurar a harmonia desta com os princípios da Shari’a.(47) Muhammad Iqbal, por exemplo, via tal fechamento como “meramente fictício“, sugerido, em parte, pela “cristalização do pensamento jurídico no Islã, e, em parte, pela preguiça intelectual que, sobretudo em períodos de decadência espiritual, convertem em ídolos os pensadores”.(48) Hanifah, para ele, desfruta de absoluta liberdade e tem um “poder de adaptação criadora muito superior a qualquer outra escola jurídica”. Destacando que o Islã desfrutava de um momento histórico similar à Reforma, salientava que “nenhum povo pode rechaçar inteiramente seu passado, porque este é que forma sua identidade pessoal”,(49) o que é problemático em sociedades como a islâmica:

O Islã não tem caráter territorial; sua meta consiste em proporcionar um modelo para a integração final da humanidade, reunindo seguidores de uma variedade de raças que se repelem mutuamente, e transformando este conjunto atomizado em um povo dotado de consciência de si mesmo.

Para o pensador paquistanês, o Islã afasta a visão estática do universo, e a suprema base espiritual de toda a vida, que é eterna, revela-se na variedade e na mudança: “uma sociedade baseada em tal concepção de realidade deve reconciliar, em sua vida, as categorias da permanência e da mudança”.(50) O verdadeiro princípio do movimento na estrutura islâmica é justamente a ijtihad, que significa, literalmente, “esforçar-se” com vistas a formar um juízo pessoal em relação a uma questão legal.(51) Embora admitida na teoria pelos sunitas, uma ijtihad completa foi sempre negada na prática: “uma atitude semelhante parece sumamente estranha em um sistema jurídico baseado sobretudo nos fundamentos do Corão, que encerra um critério essencialmente dinâmico acerca da vida”.(52)

O revigoramento da ijtihad passa pelo reconhecimento de que ela “continua sendo o principal instrumento de interpretação da mensagem divina e relaciona-se com as condições mutáveis da comunidade islâmica em suas aspirações de atingir justiça, salvação e verdade”,(53) como principal instrumento para manter a harmonia entre revelação e razão. Kamali, neste sentido, após destacar as contribuições que os ulemas e juristas fizeram para “a incessante busca das melhores soluções e mais refinadas alternativas”, destaca que os governantes devem desempenhar um importante papel na “preservação da melhor herança dos tradicionais métodos de ensino, e encorajar os ulemas a realçar estas contribuições para o direito e desenvolvimento”,(54) treinando os operadores jurídicos não somente em modernas disciplinas, mas também nas tradicionais.

Dentro do conjunto do “direito islâmico”, um dos grandes obstáculos que têm sido citados relativamente à questão dos direitos humanos diz respeito às penas de apedrejamento, cruéis ou desumanas.

É de observar, contudo, que a visibilidade das aplicações destas penalidades é bem seletiva: é significativo, como salienta Javier de Lucas,(55) que a construção da identidade entre pena de morte e barbárie seja realizada com a significação de “barbárie de outros ordenamentos jurídicos e políticos que recorrem à pena de morte, como conseqüência de seus pressupostos culturais diferentes dos nossos”, tornando as outras culturas menos civilizadas e, portanto, defensoras da pena de morte. Salienta, para tanto, três hipóteses para atenção seletiva do “escândalo humanitário”, do qual a pena de lapidação, para Safiya Husseini e Amina Lawal, pelo delito de adultério, é a mais visível reação atual:

a) fervor genuinamente abolicionista para qualquer caso de pena de morte, hipótese que considera inverossímil, pela quantidade de casos aplicados cotidianamente em outros países;

b) fervor abolicionista com pressupostos culturais específicos - a crueldade da lapidação como método de execução, o fato de se tratar de uma mulher e a desproporção entre a pena e o ato ilícito (adultério). Enquanto o status de sujeição jurídica da mulher e a desproporção entre ilícito e pena pudessem explicar a indignação, parece menos clara a questão à crueldade do método - “não privativos destes Estados nigerianos, existe também no Sudão, Irã, Emirados Árabes Unidos e Afeganistão” - e, portanto, revela uma construção social de civilização impressionante: “a lapidação como barbárie, frente à civilizada cadeira elétrica, à câmara de gás, à injeção letal, ao enforcamento ou ao fuzilamento”.

c) fervor abolicionista por conta da “contaminação fundamentalista do Direito por uma tradição cultural” moral e religiosa: o Islã. O que, conforme salienta o autor, também é seletiva: impressiona o silêncio sobre a prática da pena de morte em Arábia Saudita, Paquistão, Irã, no regime interino de Afeganistão, Singapura, Somália, Sudão, Sri Lanka, além de Bahamas, Botswana, Tanzânia e Zimbabwe. Ironicamente, o sociólogo espanhol afirma: a mobilização talvez fosse devida à técnica e neutralidade do Direito “inspirado nos verdadeiros valores, aqueles da verdadeira religião, não da religião inimiga”.

Se, de um lado, Javier de Lucas destaca a simultânea hipervisibilidade e invisibilidade da mesma prática da pena de morte, no que diz respeito aos países islâmicos, por outro lado, Mohamed Talbi salienta a própria reelaboração doutrinária quanto à prática citada - o hudûd, ou seja, as penas de mutilação e degradantes, bem como a pena capital.

O professor de Direito na Tunísia,(56) após destacar que o termo consta no Corão apenas treze vezes, e nunca diz respeito às sanções penais, mas sim “à proteção da esposa contra os abusos do esposo” e que, portanto, foi na Charia desenvolvida como “um limite, uma fronteira a não ser ultrapassada” (Corão, 2: 187 e 2: 229). Assim, “quando se trata de penas, essas são máximas, limites além das quais é proibido se aventurar”, ou seja, “recomenda-se ficar antes disso”. A partir de hadits (conjuntos de atos ou palavras de Maomé) - “sempre que vós o podeis, não recorreis aos hudûd”, “eviteis recorrer aos hudûd” - o princípio a ser destacado é:

[...] fazer de tudo para evitar os erros judiciais, beneficiando o réu em caso de dúvida: mais vale soltar um culpado do que condenar um inocente: ‘Enquanto vós podeis, não ides recorrer aos hudûd entre muçulmanos. Se o réu pode ter saída, libere-o. É preferível que o chefe se engane por excesso de clemência que de rigor.

A conclusão a que chegamos é a seguinte: despenalização do adultério e de todas as faltas sexuais; abandono das penas de mutilação e degradantes. Tudo em nome de uma leitura vetorial e crítica do Alcorão e da Tradição, para aderir mais firmemente a eles, lendo-se em seu maqsad, na sua intencionalidade. Efetivamente, é a intencionalidade que conta, mais do que a sua palavra.

A definição do que é cruel, desumano e degradante, em especial a proibição da tortura, é, na visão de Balakrishnan Rajagopal, “um conceito legal que reproduz as estruturas coloniais de poder e cultura”, baseado na distinção “esquizofrênica” entre o sofrimento necessário e desnecessário.

As fronteiras entre os dois são definidas pública e privadamente:(57)

Sofrimento necessário tem sido, usualmente, utilizado para incluir não somente atos de indivíduos privados contra si mesmos ou cada um (privados), mas também a violência infligida sobre os nativos em nome do desenvolvimento e modernidade, por exemplo, o alistamento forçado dos nativos para a guerra ou os massivos projetos de desenvolvimento ou de destruição de modos de vida locais (público). ‘Sofrimento desnecessário’ inclui práticas da comunidade local, especialmente na área da religião, em que os indivíduos, muitas vezes, infligem danos mentais ou psíquicos a si mesmos (privado), bem como os padrões de excesso do moderno aparato coercitivo do Estado (público). Enquanto o aparato colonial dava desmedida proeminência ao aspecto privado do ‘sofrimento desnecessário’, declarando-o ilegal, mantinha silêncio em relação às violências que causavam ‘sofrimento necessário’.

O banimento do “sofrimento desnecessário” tinha um duplo efeito: estigmatizava as práticas locais como “tortura” e, ao mesmo tempo, reforçava a centralidade do Estado moderno como “antídoto às práticas locais más”, o que era realizado por meio, fundamentalmente, da “cláusula de repugnância”, critério para aceitação do direito costumeiro no sistema colonial. Segundo o autor indiano, a violência do desenvolvimento contra os pobres, a violência contra as mulheres e outros “invisíveis” não é incluída no conceito de tortura,(58) pois o propósito de definição deste conceito não é incluir toda forma concebível de sofrimento e dor: “existem várias formas de dor – para prazer sexual, esportes, religião, etc. –“ que não são pensadas como “tortura”, que é, em realidade, “um parcial, fragmentado conceito com limitado apelo”.(59)

4. O Islã reelaborado a partir da visão das mulheres

As releituras da tradição podem ser vistas no que tem sido denominado de “feminismo islâmico” e que, conforme bem salienta Asma Barlas, é uma expressão no máximo parcialmente correta, porque os conceitos de igualdade de gênero e justiça social estão absolutamente embebidos na tradição corânica e introduzidos para os muçulmanos catorze séculos atrás. Trata-se, portanto, de um entendimento de ambos os conceitos a partir de uma “epistemologia corânica” e não feminista.(60)

Rechaçando a interpretação de que a prática da poligamia seria aceita pelo Corão, sem exceções, a autora destaca a necessidade de tratamento igualitário entre homens e mulheres, inclusive porque seria uma incongruência que as mulheres são iguais aos homens perante Deus, mas desiguais perante os homens. O fato de o Corão tratar homens e mulheres de forma diferenciada em alguns casos não “significa que ele os trata de forma desigual ou que sua visão deles seja de seres desiguais”, porque “diferença não é sinônimo de desigualdade” e o “Corão nunca sugere que homens e mulheres são opostos uns aos outros ou incompatíveis, incomensuráveis ou desiguais, no sentido que defendem os muçulmanos misóginos”.(61)

Para tanto, ela sustenta que o conceito corânico de Tawhid, que afirma a unidade e soberania divina, é uma doutrina sobre a natureza de Deus e dos seres humanos, porque a “submissão” (islam) somente pode ser em relação a Deus e deve ser livremente escolhida; em outras palavras, “não poderia haver coerção em religião”. Ademais, Deus é justo, e a “justiça de Deus reside em nunca fazer zulm para os seres humanos”, conceito este que, no Corão, significa “transgredir seus direitos”, de forma que a justiça divina é o “reconhecimento do direito dos seres humanos a serem protegidos contra a transgressão”.(62) Da mesma forma, o Corão ensina que “homens e mulheres originaram-se de um mesmo self (nafs) e são ambos os representantes de Deus (khilafa) na terra, igualmente dotados de ações morais e capacidade para escolha moral e consciência divina (taqwa)”, ou seja, “Deus colocou seu amor e compaixão (sukun) entre esposas e maridos e os fez um do outro guia e amigo (awliya), e, portanto, ambos têm a obrigação de praticar o bem e se opor ao mal”. Serão, desta forma, ambos julgados, não pelo sexo biológico, mas pelos mesmos parâmetros e padrões. Toda sua leitura se debruça sobre quatro palavras - darajah, faddala, qawwarmun, daraba - das quais alguns muçulmanos extraem leituras patriarcais.(63)

Amina Wadud, por outro lado, dá especial atenção ao contexto, à gramática e à sintaxe do texto corânico e, seguindo esta matriz, faz uma releitura do Corão a partir da ótica da mulher.(64) Ao destacar que, no processo histórico de colonização, a população de muitos países que hoje são islâmicos foram pluralizados em termos de raça e credo, o desafio se constituiu na tarefa pós-colonial de construir um Estado-Nação e também de fundar uma nova ordem social plural deixada pelo colonialismo. Para este novo contexto, é necessária uma “nova metodologia de interpretação corânica”, a partir de um entendimento distinto da sharia, uma flexibilização da leitura, que não seja radical, mas sim consistente com a ética e os imperativos do Corão:(65)“a herança jurídica do Islã é flexível com a rica capacidade para adaptação” e, desta forma, deve-se, “inteligentemente”, avaliar as “possibilidades interpretativas - em nossos próprios interesses e no interesse mesmo do Islã”.(66) A crise, em realidade, não é do Islã, mas “daqueles muçulmanos que têm desvirtuado as promessas democráticas islâmicas e sua visão de mundo inerentemente igualitária e justa” e, uma vez que “o problema é de nossa própria realização, nós (muçulmanos) devemos também ser os melhores para refazê-lo”.(67)

No que diz respeito à proibição do véu, Alain Touraine afirma, a pretexto de justificativa para a legislação proibitiva de “símbolos religiosos ostensivos”, na França, recentemente: “somente quando a população estiver tranqüila - e em particular os professores, que pediam, com insistência, uma lei que os liberasse de decisões que se sentiam incapazes de tomar, pois não controlam a hierarquia administrativa acima deles - é que poderemos fazer valer os direitos do pluralismo cultural e, presente caso, os direitos das jovens que reivindicam o reconhecimento público de sua fé”, justamente porque “depende da imprensa” que “voz dos modernistas” seja “finalmente ouvida”, definindo-se “claramente, em toda a parte, os marcos administrativos e culturais que não podem ser contestados, sob o risco de abrir uma crise maior”.(68)

De observar, portanto, que:

a) a voz dos modernistas é somente aquela veiculada pela grande imprensa e, portanto, seletivamente escolhida à moda ocidental: “para os intelectuais laicos ocidentais que combatem o fanatismo, os únicos interlocutores muçulmanos válidos são os que se situam fora do Islã”;(69)

b) os direitos culturais podem ser suspensos enquanto a sociedade não esteja preparada;

c) o próprio pluralismo cultural somente pode ser admitido quando a população estiver “tranqüila”;

d) é preciso estabelecer limites ao pluralismo, porque “as conquistas do conhecimento científico não podem ser anuladas em nome do tradicionalismo ou do irracionalismo que se estabelece antes pelo terror que pelo convencimento”,(70) não se verificando, no caso concreto, qualquer semelhança com as restrições de direitos efetuadas após 11 de setembro de 2001 em nome do terrorismo;

e) ainda que falando em nome da modernidade para defesa das mulheres, posterga a estas o reconhecimento público da fé para o momento em que as condições sejam favoráveis.

Como bem salientado por Gema Martín-Muñoz,(71) a representação dominante da mulher muçulmana é de uma pessoa submissa, no papel de vítima e coberta pelo véu: “uma figura subordinada sofrendo pela opressão religiosa, donde o véu, a reclusão ou marginalização são temas comuns, símbolos das relações e limitações da mulher em terras islâmicas”. O véu, neste caso, ou se interpreta de forma orientalista, como sinônimo de mistério, ou de forma tradicionalista, como submissão e opressão, como se a mulher não desempenhasse responsabilidades, não tivesse filiações profissionais, ao mesmo tempo ignorando o caráter multidimensional do significado do véu (“como uma posição política, uma afirmação religiosa e uma prática social”) ou o próprio fato de “numerosas mulheres instruídas e trabalhadores estarem usando o véu voluntariamente nos últimos anos”. Uma visão, como relembra a socióloga, que “provoca irritação porque desarma a visão tradicional”, porque é inconcebível que “depois de estarem discriminadas e postergadas, optem voluntariamente por assumir sua doutrina islâmica e ponham e reivindiquem o véu”.(72)

Daí a observação da socióloga marroquina Fatima Mernissi no sentido de que se oculta (e, aqui, a expressão soa ainda mais paradoxal) a existência de um viés etnocêntrico inclusive no que diz respeito à visão das feministas:(73)

[...] que algumas feministas ocidentais vejam as mulheres árabes como escravas servis e obedientes, incapazes de tomar consciência ou de desenvolver idéias revolucionárias próprias que não sigam o ditado das mulheres mais libertadas do mundo (de Nova Yorque, Paris e Londres), à primeira vista parece mais difícil de entender que uma postura similar nos patriarcas árabes. Mas se alguém se pergunta seriamente (como eu já fiz muitas vezes) porque uma feminista americana ou francesa crê que não estou tão preparada como ela para reconhecer os esquemas de degradação patriarcal, se descobre que isto a coloca numa posição de poder: ela é a líder e eu a seguidora. Ela, que quer mudar o sistema para que a situação da mulher seja mais igualitária, apesar disto (no fundo, em decorrência de seu legado ideológico subliminar) retém o instinto distorcido, racista e imperialista dos homens ocidentais, inclusive ante uma mulher árabe com qualificações, conhecimentos e experiências similares à sua, ela reproduz, inconscientemente, os esquemas coloniais de supremacia.

Poder-se-ia sustentar que todos os casos narrados dizem respeito a pensadores do século XX. Saliente-se, porém, que Averróes,(74) no século XII, comentando a República de Platão, discutia se as mulheres tinham a mesma natureza dos homens e, portanto, inexistiam funções que somente a elas competiam. Reconhecia que poderiam existir diferenças entre eles: “o homem é mais eficaz que a mulher em certas atividades humanas, mas não é impossível que a mulher chegue a ser mais adequada em algumas ocupações”.

Assim, “se a natureza do homem e da mulher é a mesma e toda constituição que é do mesmo tipo deve dirigir-se a uma concreta atividade social, é evidente, por conseguinte, que, em dita sociedade, uma mulher deve realizar as mesmas funções que o homem, exceto naquilo que sejam, em geral, menos hábeis” e, que, portanto, nada impede que sejam filósofas e governantes, ainda que “algumas leis religiosas as impeçam de terem acesso ao sacerdócio”. Para o pensador cordobês, o mesmo se passaria na natureza, inexistindo comprovação de que uma fêmea não pudesse exercer, por exemplo, uma atividade combativa. E finalizava:

[...] em nossas sociedades, se desconhecem as habilidades das mulheres, porque nelas somente se vê a questão da procriação, estando, portanto, ao serviço de seus maridos e relegadas ao cuidado da procriação, educação e criança. Mas isto inutiliza as outras possíveis atividades. Como em tais sociedades as mulheres não se preparam para nenhuma das virtudes humanas, ocorre que, muitas vezes, se assemelham às plantas nestas sociedades, representando uma carga para os homens, o que é uma das razões da pobreza de ditas comunidades.

E isso muitos séculos antes de a igualdade entre homens e mulheres ser reconhecida na tradição ocidental e mais surpreendente ainda para os que acreditam que o Islã somente defende a inferioridade feminina. Por isto, Al-Jabri defende que o futuro será averroísta:

[...] a renovação proposta por Averróis no campo da relação religião-filosofia é suscetível de ser reinventada para estabelecer um diálogo entre a nossa tradição e o pensamento contemporâneo mundial, diálogo este que nos trará a autenticidade e a contemporaneidade a que aspiramos.(75)

5. A tradição tribal reconfigurada pelo Islã

Não é somente no campo dos direitos das mulheres que é possível verificar este processo de redefinição da tradição ou revigoramento de uma tradição. Abdul Ghaffar Khan (1890-1988) criou, em 1929, o exército de Khudai Khidmatgars (Servidores de Deus), inspirado no movimento gandhiano, em versão islamizada, um exército dedicado à não-violência e que chegou a reunir mais de cem mil homens e mulheres, tendo como princípio:

Eu sou Servidor de Deus

A melhor forma de Servir Deus é prestar serviço à Sua Criação

Servirei as suas criaturas sem distinção de crença ou religião

As minhas acções serão não-violentas

Farei todo o sacrifício para me manter nesta senda.

Como bem destaca Abdoolkarim Vakil,(76) Abdul Ghaffar mobiliza o vocabulário do Islã, para confrontar a tradição tribal patan e o colonialismo britânico, com o desafio de “superar o código de honra e vingança que estrutura toda a organização da sociedade tribal patan, reconvertendo o seu famoso espírito marcial para a noção de perdoar em lugar de vingar” e, simultaneamente, “criar um outro sentido de solidariedade e disciplina, através do conceito de Khidmat, Servir a Deus, servindo os outros desinteressadamente: superando o egoísmo individualista, criando laços de solidariedade, e sentido de comunidade”. Tudo isto a partir dos conceitos islâmicos de sabr (paciência e autocontrole) e de jihad, dos princípios corânicos (“perdoar é melhor que castigar” e “retribui um mal com algo de melhor, e verás que o teu pior inimigo se torna o teu melhor aliado”), bem como de Maomé, a quem descreveu como praticante pioneiro das campanhas de não-violência.

Observe-se que o exército incluía mulheres, o que foi realizado, a partir da ruptura com a prática de purdah (separação) e pelo envolvimento político e ativo das mulheres calcado na noção de que “a injustiça para com a mulher é injúria a Deus”. Daí poder afirmar que

Deus não faz distinção entre homem e mulher. A superioridade reside apenas no cumprimento do bem. [ ... ] A vossa opressão resulta de os homens ignorarem os mandamentos de Deus e do Profeta, seguindo antes os seus costumes.

Verifica-se, desta vez, uma reconversão de valores tribais a serviço de uma “proposta de emancipação e justiça”, a partir de uma visão islâmica e de seu próprio contexto social.

Todos estes intentos são exemplos de um genuíno diálogo intracultural, dando vazão ao desafio do Islã de “os muçulmanos (re)pensarem a sua relação com ‘o Islão’, e com o legado islâmico”, um desafio que envolve toda a rediscussão da tradição:(76)

É um desafio que passa pelo reconhecimento de que a Tradição se fez e se faz; que o Corão se interpreta. Que Deus é Deus, o Seu Ser é Outro, e não há, para nós, Islão sem mediação, sem muçulmanos, sem culturas, sem mundividências. Que o Islão é a acumulação das interpretações ao longo dos tempos. E não só dos textos, também das realidades históricas, da complexidade e diversidade das formas de concretização do Islão, das formas de crer e ter fé, de servir Deus – formas que não passam por, nem reflectem, os centros de poder, e cujas histórias, não menos, e aliás bem mais, testemunham a vivência do Islão pela maioria dos muçulmanos ao longo dos tempos.

Como destaca Raúl Fornet-Bettancourt, “em cada cultura há uma história de luta pela determinação de suas metas e valores”, o que gera, pelo menos como possibilidade, “não uma, mas uma pluralidade de tradições”. Desta forma, por trás de uma face que se nos oferece uma cultura como “uma tradição estabilizada em um complexo horizonte de códigos simbólicos, de formas de vida, de sistema de crenças, etc., há sempre um conflito de tradições”. Um conflito de tradições que, por sua vez, deve ser lido “como a história que evidencia que em cada cultura há possibilidades truncadas, abortadas, por ela mesma; e que, conseqüentemente, cada cultura pode também ser estabilizada de outro modo como hoje a vemos”.(78)

As estratégias culturais em que são repensados os direitos das mulheres, reconfigurados os valores das sociedades tribais, reavaliada a questão das penas cruéis, a partir de um referencial islâmico, da mesma forma que as lutas dos “intocáveis” no universo cultural hindu ou as lutas para ressignificar os direitos de as mulheres serem ordenadas monjas na tradição budista tailandesa,(79) são exemplos claros de que é possível optar por uma via alternativa à cultura estabilizada, “seja recuperando a memória das tradições truncadas ou oprimidas na história de seu universo cultural, seja recorrendo à interação com tradições de outras culturas, ou inventando perspectivas novas a partir do horizonte das anteriores”.(80) Um fenômeno que Raúl Fornet-Betancourt designa como “desobediência intercultural” e que passa pelo reconhecimento de que “identidades culturais são processos conflitivos que devem ser discernidos, e não ídolos a conservar ou monumentos de um patrimônio nacional intocável”.(81)

Tomando como metáfora a Torre de Babel, poder-se-ia dizer que, ao contrário do que usualmente se entende, esta deve ser reconfigurada, de forma que não seja visto como castigo o fato de todos os povos serem “obrigados” a falar múltiplas línguas, mas sim como uma dádiva pelo fato de, não se falando a mesma língua, os mútuos silêncios e falas terem que ser interpretados, e a própria diversidade e pluralidade serem essenciais ao processo humano, o que demanda um diálogo intercultural. É esse espírito babélico que pauta toda a hermenêutica diatópica: não a busca de uma língua ou cultura única, mas sim a expressão das mais diversas vozes no mesmo processo social.

Sem dúvida alguma, um grande desafio para os dias de hoje.

Notas de Rodapé

1. Adota-se, aqui, a sugestão de Abdoolkarim Vakil, no sentido de utilização da expressão Islã (no Brasil) e Islão (em Portugal): “o Islão é uma das poucas religiões que se auto-denominou: as outras vieram a assumir como suas designações com que foram rotuladas por opositores ou por elementos externos. O Islão tem o seu próprio nome, isto é, tem o nome que se deu a si próprio: Islam. “[...] Islamismo é uma forma de alienação porque representa uma maneira de designar esta religião com um termo que lhe é externo, que lhe é imposto por conveniência lingüística de equivalência com as outras religiões: judaísmo, cristianismo, hinduísmo, budismo, etc”. VAKIL, Abdoolkarim. O Islão em contextos minoritários: comunitarismo, cidadania e diálogo intra e inter-religioso. In: Fórum Eugênio de Almeida, 2003, Évora. Texto disponibilizado, gentilmente, pelo autor.

2. PANIKKAR, Raimundo. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental?. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.

3. EBERHARD, Christoph. Construire le dialogue interculturel: le cas des droits de l’homme. [S.l.]: L'association Droit pour Tous. Disponível em <http://sos net.eu.org/red&s/dhdi/textes/ eber15>.

4. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.) Direitos humanos na sociedade cosmopolita . Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 257.

5. HOWARD, Rhoda. Dignity, community and human rights. In: AN-NA’IM, Abdullahi (Ed.). Human rights in cross-cultural perspectives, a quest for consensus. Pennsylvania : University Press, 1992. p. 91.

6. SANTOS, op. cit, p. 259.

7. Ibidem , p. 260.

8. WEERAMANTRY, C. G. Islamic Jurisprudence: an international perspective.Kuala Lampur: Other Press, 2001. p. 125.

9. Idem nota 7.

10. Para maiores detalhes sobre a questão da diáspora e das consciências transnacionais dos islâmicos, veja-se a contribuição de TIESLER, Nina Clara. Consciências transnacionais e diaspóricas entre muçulmanos na Europa: os agentes. In: Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 8, 2004, Coimbra. Anais ... Coimbra: [s.n.], 2004.

11. SAYYID, S. Beyond Westphalia : Nations and Diasporas- the case of Muslim Umma . Bangladesh:Jamaat-e-Islami. Disponível em <http://www.jamaat-e-islami.org/rr /nationsdiasporas_sayyid .html> Acesso em 23 jul.2004.

12. NOOR, Farish A. What is the victory of Islam? Towards a different understanding of the Umma and political success in the contemporary world. In: SAFI , Omid (Ed). Progressive Muslims - on justice, gender, and pluralism. Oxford : Oneworld, 2003. p. 327-331.

13. Ibidem, p. 332.

14. FALK, Richard. On humane governance: toward a new global politics. Pennsylvania : Pennsylvania University , 1995. p. 95.

15. FALK, Richard. Uma matriz emergente de cidadania: complexa, desigual e fluida. In: BALDI, César Augusto (Org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita.Rio de Janeiro: Renovar, 2004 .p. 155.

16. Ibidem , p. 156.

17. Ibidem , p. 158.

18. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Towards a islamic reformation: Islamic law in history and society today. In: OTHMAN, Norani. Shar’a Law and the modern Nation-State. Kuala Lampur: Sisters in Islam, 1994. p. 7-8.

19. Ibidem , p. 9.

20. Ibidem, p. 11-3.

21. Ibidem, p. 14.

22. Ibidem , p. 15.

23. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Introduction. In: _____ (Ed). Human rights in cross-cultural perspectives, a quest for consensus. Pennsylvania : University Press, 1992 . p. 4.

24. Ibidem , p. 5.

25. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Towards a islamic reformation: Islamic law in history and society today. In: OTHMAN, Norani. Shar’a Law and the modern Nation-State. Kuala Lampur: Sisters in Islam, 1994. p. 5.

26. Ibidem , p. 27.

27. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed, 1992, p. 6. Este aspecto do pensamento de An-na’im é pouco destacado em seus comentadores, incluindo Boaventura de Sousa Santos, que destaca a aceitação acrítica e a-histórica dos padrões de direitos humanos. Uma exceção, contudo, deve ser mencionada: FRANCISCO, Rachel Herdy de Barros. Diálogo intercultural dos direitos humanos. [S.l: S.n.]. p. 36 e 52. Disponível em: <http://www.dhdi.free.fr/recherches/ droithomme/memoires/Rachelmemoir.htm>. Acesso em: 20 abr.2004. An-na’im, aliás, é explícito no sentido de que devem ser combinadas duas abordagens: a) extrapolar, tanto quanto seja possível, o conceito de direitos humanos universais, por meio da leitura dos padrões aceitos, com a possibilidade de revisões quando necessárias; b) trabalhar, tanto quanto seja possível, dentro da cultura, para criar pontes para reduzir a distância entre os presentes padrões internacionais, de um lado, e as normas e valores de uma cultura, de outro. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Conclusion. In: ______(Ed). Human rights in cross-cultural perspectives, a quest for consensus . Pennsylvania : University Press, 1992 . p. 432.

28. TAHA, Mahmoud Mohammed. The second message of Islam. Syracuse : Syracuse University , 1987.

29. O desenvolvimento de toda a teoria está em: AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Toward a islamic reformation . Syracuse: Syracuse University, 1996: “Os textos do Corão que enfatizam a exclusiva solidariedade islâmica foram relevados durante o período de Medina, para prover a comunidade islâmica emergente com o suporte psicológico em face da violenta adversidade de não-muçulmanos. Em contraste com tais versos, a fundamental e eterna mensagem do Islã, tal como revelada no Corão do período de Meca, pregava a solidariedade de toda a humanidade. Tendo em vista a vital necessidade de coexistência pacífica na global sociedade humana de hoje, os muçulmanos devem enfatizar a eterna mensagem da universal solidariedade do Corão do período de Meca, antes que a exclusiva solidariedade do período transitório de Medina” (p. 180). A versão de An-na’im foi amplamente divulgada em: SANTOS, op. cit ., p. 261-2. (existem inúmeras versões do mesmo texto, de diferentes épocas).

30. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Islamic fundamentalism and social change - neither the ‘end of history’ nor a ‘clash of civilizations’. In: HAAR, Gerrie ter; BUSUTTIL, James J. The freedom to do God’s evil; religious fundamentalism and social change. London / New York:Routledge,p.45.Disponível em: <http://people.law.emory.edu/~abduh46/pdfiles/pd2002b.pdf>. Acesso em: 20 set.2004.

31. AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Islamic fundamentalism and social change - neither the ‘end of history’ nor a ‘clash of civilizations’. In: HAAR, Gerrie ter; BUSUTTIL, James J. The freedom to do God’s evil; religious fundamentalism and social change. New York :Routledge, 2002. p. 25-48.

32. Ibidem .

33. AN-NA’IM, Abdullahi. Muslim must realize that there is nothing magical about the concept of human rights. In: NOOR, Farish. New voices of Islam. Netherlands : ISIM, 2002, p. 11.

34. Ibidem , p. 9

35. Ibidem , p. 11.

36 TWINING, William. Lecture IV: Generalizing about law: the case of legal transplants..[S.l:S.n.],2002.Disponível em: < http://www.ucl.ac.uk/laws/jurisprudence/docs/twi_til_4.pdf > Acesso em 12 jul.2004.

37. Ibidem , p.15-6.

38. KAMALI, Mohammad Hashim. Principles of Islamic Jurisprudence.2nd ed. Petaling Jaya: Ilmiah, 2004. p. 44.

39. Ibidem., p. 61-2.

40. Ibidem . p. 168.

41. Ibidem , p. 197.

42. Ibidem , p. 1-2.

43. Ibidem , preface XIII.

44. Originalmente, a cisão está vinculada à própria criação do califado. Não havendo nenhuma ordem sucessória estabelecida pelo Profeta, o califa deveria ser designado por eleição pela comunidade, sendo um simples mandatário da comunidade, sem poderes para legislar ou introduzir reformas religiosas. O califa não é mais que a sombra de Deus na Terra, somente ser designado pelo consenso dos crentes. Estes são os sunitas, para quem a Sunna, revelações e ditos do profeta. Para os xiitas, Maomé teria designado, já em vida, seu genro Ali como sucessor, de tal forma que o califa não deveria ser eleito: somente os descendentes de Ali tinham a revelação secreta do profeta para a forma autorizada de governo. Vide: BRIEUX, Pablo Mandirola. Introducción al derecho islámico. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 17-22.

45. A explanação aqui constante advém de: ENGINEER, Asghar Ali. Islam, women and gender justice. [S.l.]: Islamic Research Foundation International. Disponível em:< http://www.irfi.org/articles/articles_151_200/islam_women_and_gender_justice.htm > Acesso em: 12 jul.2004.De destacar, ainda, que o primeiro grande intento de sistematização do direito islâmico, em perspectiva comparada, histórica e geográfica, no que diz respeito ao direito de família, encontra-se em: AN-NA’IM, Abdullahi A. (Ed) Islamic Family Law in a changing world: a global resource book. London/New York: Zed Books, 2002. O autor destaca o desenvolvimento de formas de direito substantivo e jurisprudência que caracteriza como “Shari’a from below” (fl. 9), que responde às necessidades específicas das comunidades islâmicas e, neste período de transformação atual, um fator crítico é o papel do Estado em mediar a relevância da Shari’a como parte de um amplo sistema político e legal de governo e organização social (fl. 9), além do desafio que se põe de mantê-la intelectual e normativamente viva, após o impacto do colonialismo europeu e da influência ocidental nos sistemas normativos (fl. 15). E salienta que a chamada elite modernizante prefere sacrificar a dignidade humana e os direitos da mulher para manter o poder político, o que, paradoxalmente, acaba por reconhecer que “a secularização de todos os outros aspectos do direito tem tido o efeito de reforçar o tom religioso do direito de família como o único campo remanescente deixado para o domínio da Shari’a”, ou seja, converte o direito islâmico de família como o “bastião da religião” na administração da justiça. (fl. 18)

46. A análise desta questão, relativamente às escolas jurídicas, encontra-se no citado texto de Asghar Ali Engineer.

47. KAMALI, op. cit., p. 391.

48. IQBAL, Alamah Muhammad. La reconstrucción del pensamiento religioso en el Islam . Madrid: Trotta, 2002. p. 165.

49. Ibidem , p. 157.

50. IQBAL, Alamah Muhammad. La reconstrucción del pensamiento religioso en el Islam . Madrid: Trotta, 2002 . p. 142.

51. Ibidem , p. 142-3.

52. Ibidem , p. 143. Uma análise da atualidade do pensamento de Muhammad Iqbal é encontrada em: ENGINEER, Asghar Ali. Iqbal and reconstruction of religious though in Islam . [S.l.: S.n.], 2004. Disponível em: <http://www.csss-isla.com/IIS/archive/2004/may.htm > Acesso em: 10 jun.2004.

53. KAMALI,.op. cit., p. 366.

54. Ibidem , p. 391-2.

55. LUCAS, Javier de. Otra vez sobre el imperativo de universalidad de derechos humanos y el pluralismo cultural.Cuadernos Eletrónicos de Filosofia del Derecho, n. 5, 2002. Disponível em: <http://www.uv.es/CEFD/5/delucas.htm> Acesso em 13 nov.2003.

56. TALBI, Mohamed. Humanismo do Alcorão - Humanizar a Charia; leitura vetorial do Alcorão e da Charia. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; ORO, Ari Pedro. Islamismo e humanismo latino . Petrópolis: Vozes, 2004. p. 159-61.

57. RAJAGOPAL, Balakrishnan. International law from below: development social movements and Third World Resistance . New York : Cambridge University Press, 2003. p. 182-3.

58. RAJAGOPAL, op. cit., p. 185.

59. Ibidem , p. 186.

60. BARLAS, Asma. Towards a theory of gender equality in muslim societies. In: CSID Annual Conference, 2004, Washington . Anais... Washington : [S.n.], 2004. Disponível em: http://www.ithaca.edu/faculty/abarlas/talks/20040529_CSID.pdf ; Acesso em 05 out.2004. A autora sustenta que admitiria o rótulo de feminista se por feminismo islâmico fosse entendido “um discurso de igualdade de gênero e justiça social que deriva seu entendimento e mandato do Corão e procura a prática de direitos e justiça para todos os seres humanos na totalidade de sua existência num continuum de público-privado” ( BARLAS, Asma . Islam, feminism and living as the ‘muslim women’. [S.l.: S.n.]. Disponível em: < http://muslimwakeup.com/mainarchive/2004/03/00585print.php> Acesso em 05 out.2004 ).

61. Ibidem, p. 4.

62. Ibidem , p. 7.

63. A sua releitura do Corão está explicitada em: BARLAS. Asma. Believing women in islam: unreading patriarcal interpretations of the Qur’an. Austin : University of Texas Press , 2002, especialmente p. 129-202.

64. WADUD-MUHSIN, Amina. Qur’an and woman: rereading sacred text from a woman’s perspective. New York : Oxford University Press, 1999. p.15-29 e 62-94.

65. WADUD-MUHSIN, Amina . The Qur’an, Shari’a and the citizenship rights of muslim women in the Umma. In: OTHMAN, Norani. Shari’a Law and the Modern Nation-State.Kuala Lampur: Sisters in Islam, 1994. p. 78-9.

66. Ibidem , p. 80.

67. BARLAS, Asma. Towards a theory of gender equality in muslim societies, p. 10.

68. TOURAINE, Alain. O véu e a lei. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 jan.2004. Caderno Mais, p. 11.

69. ROY, Olivier. Genealogía del islamismo.Barcelona: Bellaterra, 1996. p. 88.

70. TOURAINE , op. cit.

71. MARTÍN-MUÑOZ, Gema. La percepción occidental de los conflictos en el mundo musulmán: cultura frente a política. Direito e Democracia , v. 5, n. 1: 2004, p. 53-54. Não é aqui o local para analisar os diferentes aspectos relativamente à questão do uso do véu, seus distintos tipos e as implicações no que diz respeito à luta das mulheres. De toda forma, a autora salienta: “entre o véu haïk (tradicional), o niqab (fundamentalista: negro e que cobre todo o rosto) e o hiyab (versão islâmica moderna que, diferentemente dos demais, cobre a cabeça, mas deixa o rosto descoberto, de forma que o véu perde sua missão tradicional de fazer invisível e anônima a mulher no espaço público), há toda uma linguagem sociológica que expressa a diferença entre a nova geração e a precedente, entre a que estuda e sai e a reclusa, entre a que se afirma e a que se submete”.

72. A bibliografia sobre a condição jurídica da mulher no Islã tem vindo a aumentar nos últimos anos, podendo ser citados alguns exemplos: MOGHISSI, Haideh. Feminism and islamic fundamentalism . London : Zed Books, 2002; e AFKHAMI, Mahnaz (Ed). Faith & Freedom. New York : Syracuse University Press, 1995. Sobre o véu, dentre inúmeros, além dos já citados: ENGINEER, Asghar Ali. Can veil be enforced? Secular Perspective, v. 4, n.18, 16-30 set. 2001. Disponível em: <http://ecumene.org/IIS/csss56.htm> Acesso em 18 mai.2004.

73. MERNISSI, Fatima. Sobre la autonomía del feminismo árabe. Web Islam , n.138, 14 set. 2001. Disponível em <http://www.webislam.com/numeros/2001/09_01? Artículos%2009_01 /Sobre_autonomí..> Acesso em 25 out.2004.

74. AVERROES. Exposición de la “República” de Platón. Madrid: Tecnos, 1996. p. 57-60.

75. AL-JABRI, Mohammed Abed. Introdução à crítica da razão árabe . São Paulo: UNESP, 1999. p.162.

76. VAKIL, Abdoolkarim. Islão, Justiça e Paz. Direito e Democracia, v. 2, n. 5, p. 479-480, 2004,. Conferência apresentada no Painel "As Religiões e a Construção da Paz" organizado e moderado pelo Jorge Wemans no “Fórum Pela Paz: Globalizar a Paz, Construir um Mundo Justo”, promovido pela Comissão Nacional Justiça e Paz (Portugal), Lisboa, realizado de 21 a 23 de novembro 2003. Todo o desenvolvimento do pensamento de Abdul Ghaffar Khan encontra-se no citado artigo.

77. VAKIL, op. cit., p. 475.

78. FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la filosofia . Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001. p. 185.

79. Neste sentido, vide: SUWANBUBBHA, Parichart. Religious Education and Gender issues: difficulties of female ordination in Thailand . In: ALATAS, Syed Farid; GHEE, Lim Teck; KURUDA, Kazuhide. Asian Interfaith Dialogue: perspectives on religion, education and social cohesion. Singapore : Centre for Research on Islamic and Malay Affairs (RIMA), 2004. p. 95-108.

80. FORNET-BETANCOURT, op. cit., p. 187.

81. Ibidem, p. 188.


 
REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS