Amicus curiae e audiência pública no processo civil brasileiro – propostas para o fortalecimento da cidadania através das ações coletivas no Brasil

Autor: Eduardo Appio
(Juiz Federal, Doutor em Direito Constitucional pela UFSC)

| Artigo publicado em
19.11.2005 |

 

1. Introdução

A história das ações coletivas está ligada à emergência de novas necessidades, decorrentes do compartilhamento de bens e interesses entre grupos não-individualizados da população. Muito embora desde a década de setenta já existissem instrumentos legais de tutela coletiva no Brasil, mormente os ligados à proteção de grupos e sindicatos(1), somente com a emergência de uma nova filosofia acerca da relação do indivíduo com os bens que compõem o patrimônio público e social foi possível uma evolução rumo às ações coletivas. A tradicional relação entre o direito de cunho patrimonial e seu correspondente titular é superada em favor de uma teoria fundada nos direitos de personalidade. Bens de interesse coletivo e social, tais como o meio ambiente e o patrimônio histórico, passam a representar uma categoria diferenciada no contexto normativo, em relação à qual a tutela jurisdicional deve ser efetiva e garantir sua integridade(2).

As transformações operadas nas sociedades industriais, ao longo do último século, demonstraram que o modelo jurídico forjado a partir do liberalismo não mais corresponde às necessidades da sociedade contemporânea. Especialmente no Brasil, país que sofre diretamente os influxos de pautas econômicas orientadas por organismos internacionais, o índice de efetiva proteção de bens sociais indisponíveis está a depender de uma maior aproximação entre o Processo Civil e o Direito Constitucional. Neste sentido, o viés privatista que permeia boa parte da legislação processual civil brasileira tem de ser questionado, a partir de uma hermenêutica fundada nos princípios e valores constitucionais.

O regime jurídico de livre disposição e uso dos bens privados correspondia, até então, a um modelo econômico que colocava o acento tônico na liberdade de contratar e na proteção irrestrita da propriedade, características plenamente compatíveis com o processo de expansão do capitalismo no início do século XX. Neste contexto, autores como Adam Smith e Jonh Locke exerceram imenso fascínio nos teóricos políticos e econômicos do início do século XX, do que resulta que boa parte da doutrina até então existente reservava um papel tímido ao Estado e suas instituições. O Direito Processual Civil era considerado mero instrumento de concretização do “direito material”, motivo pelo qual não se concebia, naquela época, uma ação de natureza coletiva que pudesse interferir na economia e na gestão dos recursos públicos. À pretendida “neutralidade” do Direito Processual Civil correspondeu uma atividade judicial estritamente vinculada ao sistema normativo, completamente separada do político, do que resultou uma clivagem metodológica entre o processo e a Constituição. Neste sentido, “reside a dificuldade com que se debate o processo civil quando tem de lidar com direitos supra-individuais, com as ações coletivas, para as quais a maioria das categorias tradicionais tornam-se imprestáveis(3)”.

A transformação de uma sociedade industrial, que tinha como pilares a liberdade irrestrita e o individualismo, em uma sociedade pós-industrial, marcada pela propriedade de bens imateriais e prestação de serviços, demanda um Direito Processual Civil que confira proteção efetiva a bens indisponíveis. Um regime jurídico que emprestava grande vigor à liberdade contratual e, por conseguinte, aos conflitos de natureza individual cede espaço, já no final do século XX, a uma legislação específica, que determina a intervenção do Poder Judiciário a partir de um paradigma constitucional. Nesta nova sociedade massificada, a “sociedade de risco(4),” na qual há produção de bens e serviços em larga escala, bem como a redução do papel do Estado na economia, surge uma nova categoria de direitos, os direitos coletivos (difusos, coletivos e individuais homogêneos). Em relação a esta nova categoria, os princípios constitucionais, tais como o da proteção da dignidade da pessoa humana, operam no nível deontológico, conduzindo a interpretação e aplicação judicial(5). O Direito Processual Civil tradicional se revela insuficiente para dar respostas adequadas a esta nova sociedade, na medida em que a lei estrita estabelece um marco teórico dificilmente transposto pela doutrina tradicional, a qual insiste na aplicação de institutos de processo civil vocacionados ao processo de natureza individual. O Direito Constitucional, por seu turno, também não realiza qualquer incursão direta sobre os mecanismos de concretização dos direitos fundamentais, tais como a própria ação civil pública, prevista, de modo expresso, no art. 24 da Carta da República.

A separação entre Direito Constitucional e Processual Civil, inicialmente concebida com uma finalidade estritamente metodológica, passou, ao longo dos anos, a representar um abismo ontológico. As razões são duas: a falta de tradição do Direito Constitucional brasileiro, à vista de inúmeros e sucessivos golpes de Estado com a fragilização da democracia, e a pretendida “neutralidade” do Direito Processual Civil. A democracia tem suas bases reconstruídas no Brasil, a partir da garantia de liberdade de expressão e das eleições diretas, com o que o Direito Constitucional passa a interferir na maneira como os juízes e advogados interpretam a legislação processual.

As ações coletivas têm surgido como um instrumento que confere efetividade aos novos direitos e interesses, e princípios como da eficiência e da moralidade da Administração Pública têm sido invocados, todos os dias, perante as Cortes brasileiras, como fundamento para propositura de ações civis públicas. Estes novos interesses e direitos estão ligados às prestações positivas do Estado, especialmente na proteção dos bens públicos e sociais, motivo pelo qual o aparato processual existente não corresponde à complexidade das sociedades pós-industriais. Estas, marcadas pela contingência de interesses e por uma vasta rede de direitos que correspondem a uma sociedade fragmentada e plural, dependem da reconstrução do diálogo entre Constituição e processo. Os programas previstos na Constituição de 1988 podem parecer vagos e ambíguos aos olhos de uma população cética em face de governos eleitos que se declaram impotentes para interferir na economia. Os institutos de Direito Processual Civil, quando interpretados à luz de uma doutrina individualista, certamente se mostrarão incompletos em face das necessidades da sociedade brasileira contemporânea. As ações coletivas são uma combinação perfeita entre uma aplicação axiológica do Direito Processual Civil, orientada pelos princípios constitucionais, e a efetividade de programas previstos na Constituição brasileira de 1988. Esta é a proposta do presente texto.

2. O acesso à Justiça

O acesso à Justiça se constitui em um direito fundamental, na medida em que o direito de petição está intimamente vinculado ao conceito de democracia e da ampliação de revisão judicial dos atos praticados pelo Estado(6).

Com a ampliação do papel do Estado Social, enquanto provedor do desenvolvimento social, através da inserção, nas Constituições escritas, de direitos subjetivos públicos oponíveis em face do Estado, o direito fundamental de acesso ao Judiciário se tornou indispensável.

Ao assumir a condição de prestador de serviços, o Estado Social amplia sua presença junto à sociedade, motivo pelo qual os direitos de natureza estritamente individual – amparados na liberdade humana – passam a um segundo plano. Os direitos coletivos passam a se constituir em instrumentos indispensáveis para a sobrevivência humana, pois tutelam a dignidade da pessoa humana nas suas relações em sociedade.

Os chamados direitos de terceira geração(7) são concebidos como importantes instrumentos de limitação da liberdade dos particulares frente ao Estado Social. O mesmo Estado de quem os particulares exigiam limites no exercício de suas atividades (abstenção) agora passa a ser demandado(8) a praticar atos que visem a garantir a igualdade material entre os cidadãos, o que inexoravelmente conduz à intervenção do Estado na propriedade privada. Esta intervenção será operada, no Estado Social, através da prestação de serviços públicos aos necessitados, bem como da participação do Estado na atividade econômica privada.

No caso brasileiro, os direitos fundamentais de terceira geração, tais como o direito a um meio ambiente saudável, passam a desempenhar um relevante papel na pauta de expectativas dos cidadãos. A tutela jurisdicional coletiva está vocacionada a discutir o tamanho do Estado e o grau de sua intervenção na economia, especialmente no tocante aos serviços públicos concedidos à iniciativa privada. Considerando-se o fato de que “o processo tradicional representa uma desvantagem dificilmente superável para a tutela dos interesses supra-individuais(9),” impõe-se um novo modelo de tutela coletiva, forjado na superação do paradigma individual-dispositivo e vocacionado à efetividade.

A cidadania se encontra atrelada à prestação de serviços públicos aos mais necessitados, bem como ao efetivo controle dos atos da Administração pública na gestão dos recursos coletivos. Em ambos os casos, o acesso à Justiça não pode ser restringido, senão por um evidente interesse público superior, na medida em que representa um espaço público e democrático para o debate acerca do modelo de Estado que a sociedade deseja.

Não se pode desconsiderar, também, a importância das ações civis coletivas de proteção dos consumidores em caso de danos coletivos, nos termos do art. 91 do CDC, uma vez que “o desequilíbrio entre as partes pode ser, também, por outro lado, um fato decisivo pra que a pessoa lesada deixe de buscar individualmente a proteção judicial(10)”. O acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV(11), da Constituição Federal de 1988, constitui-se em direito subjetivo público(12) e serve, neste contexto, como um dos mais importantes instrumentos de exercício da cidadania(13).

3. Os novos direitos

A complexidade da sociedade contemporânea demanda respostas jurisdicionais de natureza coletiva em favor de coletividades que não se encontram necessariamente agregadas por uma relação jurídica, mas sim por uma circunstância de fato. Os interesses próprios dos legitimados podem conflitar diretamente com os interesses maiores da sociedade, especialmente quando associações e entidades privadas buscam a proteção de interesses específicos em face da ação do Estado. Como conciliar os direitos e interesses coletivos, fragmentados por necessidades contingenciais, com o respeito à individualidade humana em uma sociedade cada vez mais plural?

Neste contexto, pode-se considerar, hipoteticamente, que a própria diversificação e especialização do mercado produtor, o qual possibilita ao consumidor encontrar um produto que melhor atenda a suas necessidades individuais e específicas, conduz a uma maior fragmentação das sociedades contemporâneas. Nestas, os indivíduos formam grupos de interesse a partir de sua formação cultural, religiosa e moral, do que resulta uma transformação de categorias sociológicas até então vigentes. A reunião de determinadas pessoas e grupos em torno de valores estritamente locais ou econômicos cede espaço à convergência de cidadãos de diversos países em torno de temas comuns, no que se convencionou chamar de “aldeia global”. A convergência de interesses e, por conseguinte, a formação de grupos, não obedecem a uma lógica ortodoxa, segundo a qual os indivíduos estariam ligados entre si por um liame jurídico, como, por exemplo, um contrato ou o estatuto de uma associação. Muito ao contrário, a reunião é conjuntural, episódica e pode ser desfeita rapidamente, sem qualquer formalidade jurídica, do que resultam inapropriadas ao processo civil contemporâneo.

Revela-se comum a hipótese na qual os interesses de um determinado grupo ou associação podem colidir com os interesses coletivos de um outro grupo de interesses. O exemplo de um litígio judicial envolvendo ecologistas e uma empresa pública que atue num ramo potencialmente perigoso ao meio ambiente está a demonstrar que as ações coletivas servem, em verdade, como instrumento de proteção de interesses específicos e que a concretização de um interesse público prevalente se apresenta como um complexo processo de elaboração da decisão judicial, através da ponderação de princípios(14).

Imagine-se uma ação coletiva que, proposta pelo Ministério Público, venha a contestar, em juízo, a implantação de um regime de cotas para afro-descendentes nas universidades públicas brasileiras. Os diversos grupos de interesse irão se agregar em torno de múltiplos temas sobre os quais não existe qualquer consenso. Muito pelo contrário, boa parte das políticas públicas implementadas no Brasil, nas áreas de educação e saúde, não são previamente debatidas com as comunidades afetadas, do que resulta a internalização de conflitos políticos perante o Poder Judiciário. Este, por sua vez, em sede de ações coletivas, terá de definir padrões de comportamento dos grupos afetados, estabelecendo de forma concreta e pontual de que maneira o princípio democrático deve ser interpretado e aplicado. As ações coletivas, em significativa parcela dos casos, surgem como decorrência de um litígio que se verifica entre os diversos grupos de uma sociedade cada vez mais plural, do que resulta a impossibilidade prática de definir, a priori, o conteúdo de conceitos jurídicos como “interesse público(15)”.

A definição do conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados tem sido considerada uma atividade propensa ao exercício de um poder discricionário, segundo o qual a Administração Pública estaria investida na prerrogativa de optar, validamente, pelo sentido e alcance mais adequados à expressão “interesse público”. Não raro, esta prerrogativa esteve associada ao longo dos anos com um vasto número de medidas de exceção, as quais preconizavam limitar direitos fundamentais a partir das necessidades contingentes de governos ditatoriais. Contudo, a definição judicial de “interesse público” prevalente, no caso concreto, é uma atividade compatível com o ideário democrático, quando se consideram teorias que colocam o acento tônico da atividade do juiz na fixação de uma ordem de precedência entre princípios constitucionais(16). Ao fixar a regra de precedência para o caso concreto, o juiz de uma ação coletiva aplica a lei em conformidade com a Constituição, já que os princípios constitucionais operam no nível deontológico, consistindo, por conseguinte, numa vinculação direta do julgador com os valores constitucionais.

As políticas públicas implementadas pelo Estado brasileiro podem ser consideradas setoriais, na medida em que atingem determinados segmentos da sociedade, a partir de necessidades específicas. Especialmente em áreas como educação e saúde, a Constituição Federal de 1988 estabelece programas bastante específicos que vinculam o Legislativo e o Executivo, assegurando, por exemplo, acesso ao ensino público gratuito aos portadores de deficiência. As chamadas políticas de inclusão têm por finalidade assegurar o acesso efetivo de segmentos pouco representados da população aos bens sociais fundamentais, com o que se reduz o impacto de um modelo puro de democracia representativa. Em muitos dos casos, todavia, os deveres sociais do Estado estão previstos de forma genérica e ampla no texto da Constituição Federal, como, por exemplo, no art. 6º, caput, da Carta de 1988, o qual menciona direitos sociais como saúde, educação e moradia. Nestes casos, a forma como o Estado brasileiro irá interferir na vida dos destinatários da norma constitucional está a depender de medidas de cunho legislativo e executivo. O interesse público será aferido a partir da pauta de prioridades estabelecida por governos eleitos, a partir do que se supõe seja resultado de um amplo debate eleitoral que culminou com o eleitor na sala de votações. Neste contexto, os grupos organizados da sociedade tendem a exercer uma pressão política sobre os governos e parlamentos eleitos, a qual se mostra eficiente quando uma política pública específica é incorporada à pauta de prioridades. Muito embora estes grupos possam, inicialmente, ser considerados débeis sob a óptica representativa, já que advogam interesses reputados como minoritários, seu grau de organização em torno de um tema específico se mostra decisivo para o sucesso de suas propostas. Estes grupos de pressão conseguem obter através da mobilização dos meios de comunicação social, mass media, respostas governamentais rápidas para demandas de conteúdo social, muitas das quais com elevado custo financeiro, do que irá resultar aumento de impostos para todos os demais cidadãos.

O processo de decisão política é tradicionalmente lento, pois demanda a deflagração de um longo caminho que se inicia com a mobilização popular, passando pelo Parlamento, bem como o exame prospectivo realizado pelo Poder Executivo a partir da repercussão financeira da proposta(17). A lentidão deste processo é agravada pela imensa velocidade com que se desenvolvem os mecanismos que fixam as necessidades coletivas nas sociedades pós-industriais. Estas, cada vez mais plurais, incorporam novas exigências de uma variada gama de cidadãos e consumidores, os quais compartilham expectativas específicas que vão desde a proteção da floresta amazônica até o direito de mudança de sexo e identidade.

Uma sociedade que assuma incumbência de proteger, de forma incondicional, os direitos individuais de seus cidadãos estará propensa à fragmentação social, já que a forma de divisão dos custos sociais entre os cidadãos não obedece a uma lógica racional. A captura da pauta de prioridades sociais e econômicas do Estado contemporâneo, por parte de grupos organizados da sociedade, faz com que a distância sociocultural entre ricos e pobres seja aumentada no século XXI. Neste contexto, os interesses da maioria da população tendem a ser sub-representados no Congresso e no Executivo, pois a vontade do Estado passará a ser orientada por grupos econômicos e grupos de consumidores organizados na forma associativa. A forma como o custo de programas sociais e econômicos é dividido representa um importante componente das democracias contemporâneas, uma vez que o exercício da cidadania depende cada vez mais do fiel cumprimento do dever de informação por parte do Estado.

A polarização de interesses entre grupos sociais que compõem esta comunidade plural crescerá ao longo dos próximos anos, uma vez que (i) vários dos serviços tidos como essenciais, como distribuição de água e energia elétrica, estão sendo alocados para a economia privada, sem uma intervenção direta do Estado, e (ii) os grupos de interesse tendem a se organizar na forma associativa, do que resulta uma maior capacidade de persuasão junto aos agentes estatais responsáveis pela distribuição dos recursos públicos. Neste novo modelo, no qual se admite que grupos rivais negociem entre si o conteúdo das leis e estatutos aplicáveis às suas atividades ou à sua vida privada, as ações coletivas serão propostas por grupos que não buscam proteger um interesse social, mas sim um interesse particular em face do Estado.

Os grupos de interesse agem tradicionalmente de duas formas distintas, ou seja, interferem previamente na escolha dos candidatos que melhor representem seus interesses no Congresso ou no Executivo, suportando os elevados custos de suas campanhas eleitorais; ou, ainda, buscam interferir na maneira como parlamentares e agentes do governo atuam depois de eleitos, agindo junto aos meios de comunicação social e formadores de opinião. Mais recentemente, têm atuado na forma associativa junto às entidades que possuam legitimidade ativa para a promoção de ações coletivas, com especial ênfase junto ao Ministério Público.

O risco de captura da vontade institucional do Ministério Público é grande, quando se consideram os baixos custos envolvidos e a grande velocidade que pode ser imprimida ao processo de decisão política, já que o conteúdo concreto de políticas públicas passa a ser definido através de uma regulação judicial. A proteção de interesses comuns da maioria da sociedade cede espaço à prevalência de interesses particulares, manifestados por grupos bem organizados da sociedade, como, por exemplo, entidades de defesa de um tipo específico de consumidor.

A definição do conteúdo da cláusula de “interesse público”, antes identificada com uma atividade essencialmente política e outorgada a governos eleitos, passa a ser exercida pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público. Neste quadrante, cumpre ressaltar que todo o processo de elaboração da decisão política, ou seja, aferição de uma necessidade, elaboração de projetos técnicos sobre o problema, avaliação prospectiva do projeto sugerido, debate no Parlamento e manifestação do chefe do Poder Executivo, é substituído pelo processo judicial. Neste, somente as partes têm acesso direto ao juiz da causa, através de argumentos, petições e recursos, do que resulta que parcela significativa da sociedade sequer é consultada acerca de uma nova política social e econômica que se pretende implementar através de uma ação coletiva. Opta-se por um modelo aristocrático, segundo o qual o Ministério Público realiza uma filtragem das demandas que convergem com seu programa institucional, levando ao Poder Judiciário proposições de grupos que não podem ser considerados minoritários, especialmente nas relações de consumo.

Oportuniza-se o acesso à Justiça, através das ações coletivas, àqueles grupos que sabem, de antemão, que um amplo debate no Parlamento se poderia mostrar desastroso, razão pela qual renunciam à via política, optando, desde logo, pela via judicial.

Esta postura tem sido aceita, muito recentemente, por importante parcela da doutrina e jurisprudência no Brasil, a qual não distingue entre o processo de formulação e de execução de políticas públicas. O processo de formulação de políticas públicas está diretamente relacionado com a prioridade que se deve conferir a programas sociais e econômicos, ou seja, a opção entre construir uma estrada ou um hospital, entre criar linhas de financiamento em bancos públicos ou programas de subsídio e fomento às empresas locais(18). Bem por isto, este processo tradicionalmente está relacionado à representação popular, uma vez que os custos de obras e serviços são compartilhados por toda a sociedade na forma da cobrança de impostos e não seria adequado retirar do cidadão sua capacidade de participação. Caso aceita a migração do processo de decisão política para dentro dos tribunais, sem prévia consulta às autoridades eleitas, o próprio sistema representativo previsto na Constituição perderá importância.

Já o processo de execução ou aplicação de políticas públicas se mostra absolutamente distinto, na medida em que decorrem de decisões tomadas por agentes públicos eleitos diretamente pelo voto universal e obrigatório. A intervenção judicial, através das ações coletivas, surge como um importante instrumento de preservação da supremacia do texto constitucional, especialmente no que tange à densificação de princípios constitucionais de textura aberta, como os da moralidade e eficiência administrativa. Trata-se, por conseguinte, de interferir na maneira como uma política pública prevista na lei ou na Constituição vem sendo executada, de molde a garantir a observância destes limites por parte da Administração Pública. Neste caso, a intervenção judicial pode se dar com o intuito de anular a forma como uma política pública vem sendo executada ou mesmo, através de uma aplicação construtiva, compatibilizar seu conteúdo com a Constituição. Em ambos os casos, os cidadãos diretamente afetados pela medida tiveram a oportunidade de interferir previamente no processo de decisão política, uma vez que os atos do Executivo e do Legislativo são normalmente sujeitos à publicação, assegurando-se a todos o direito de petição. Ademais, o sistema representativo está ancorado no amplo debate de propostas durante as campanhas eleitorais.

A legitimidade e eficiência do processo de decisão política dependem, por conseguinte, da ampla participação dos cidadãos diretamente afetados pelas medidas, pois o sistema democrático deve assegurar a intervenção de todos, garantindo-lhes a chance de mudar o conteúdo da decisão, a partir de seus argumentos.

A ausência de participação de todos os atingidos por uma nova política pública formulada pelo Ministério Público ou por uma associação que propõe uma ação coletiva erige-se em importante obstáculo à construção de uma sociedade democrática, desde que aceita uma concepção procedimental de democracia(19). Segundo esta concepção, um sistema poderia ser considerado democrático independente dos resultados práticos que produzisse, desde que assegurada a efetiva participação de todos os envolvidos e, com especial ênfase, das minorias.

Já a concepção substancial de democracia está assentada numa avaliação dos resultados efetivos do sistema vigente, do que decorre a possibilidade de o juiz realizar uma leitura moral da Constituição(20).

Em ambas as concepções, a participação dos cidadãos afetados pelas medidas propostas se mostra relevante, mas a concepção substancial prevê que o juiz poderá corrigir, a partir do controle de constitucionalidade das leis, os resultados de um processo de decisão política que tenha oportunizado a participação de todos, incluindo as minorias.

Minha preocupação consiste em saber se um processo coletivo, através do qual se busca formular uma nova política pública, pode ser considerado legítimo à luz de um modelo de representação popular.

4. Legitimidade do processo coletivo

O debate em torno da legitimidade de um processo coletivo que venha a resultar na formulação de uma nova política econômica ou social, decorrente da decisão de um juiz não-eleito, passa por dois temas de marcante importância, a legitimidade ativa e a intervenção de terceiros.

4.1. O regime de representação adequada

O regime adotado pelo legislador brasileiro, através da edição da Lei Federal 7.347/1985, consiste em atribuir a um número determinado de agentes políticos e entidades associativas a legitimidade para promover ações coletivas, o que veio a ser confirmado com a edição da Lei Federal 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Deste modo, incumbe ao juiz do feito verificar se o autor da ação coletiva consta do rol de legitimados ativos, ou seja, um exame acerca de sua regularidade formal, do que resulta que o exame acerca da extensão da representatividade do autor coletivo é transferida para o debate acerca do interesse de agir.

Já no sistema norte-americano das class actions, o regime adotado é o de representação adequada, segundo o qual incumbe ao juiz da causa verificar se o autor da ação coletiva tem capacidade para representar todos os atingidos pela medida judicial(21). A improcedência do pedido da ação civil pública não prejudica, no sistema brasileiro, os demais interessados, nos termos do art. 103, I, do CDC (Código de Defesa do Consumidor), com o que se previnem os efeitos que uma representação ineficiente poderia ensejar, ao contrário do que sucede, por exemplo, no ordenamento português(22). Já no sistema das class actions (sistema opt/out), busca-se preservar a figura do réu na ação coletiva em face de demandas futuras, resolvendo de forma definitiva o litígio. Neste sistema, incumbe ao autor coletivo informar (notificar) todos os atingidos pela demanda, de forma a possibilitar sua efetiva participação e nos casos de improcedência impedir que o réu seja novamente acionado. Deste sistema, resulta uma maior facilidade em compor o litígio através de um acordo envolvendo as partes no curso do processo, especialmente em relação a grandes empresas que necessitam ter sua responsabilidade financeira fixada de forma definitiva.

Note-se, contudo, que o interesse difuso de um dos membros de uma determinada coletividade não pode ser confundido com eventual interesse de natureza essencialmente individual que possa vir a incidir sobre um bem coletivo. Basta se imaginar a hipótese de dano ao meio ambiente local que venha, de forma indireta, a reduzir o patrimônio do indivíduo que seja proprietário de uma determinada gleba rural utilizada, por hipótese, com fins de locação para turistas. Neste caso, só aparentemente estaríamos a tratar de um interesse difuso, na medida em que o cidadão poderia, a título individual, propor a competente ação de indenização, no intuito de reparar o dano econômico causado. Portanto, os interesses difusos nunca terão natureza patrimonial disponível, muito embora os danos causados possam ensejar uma ação de reparação coletiva.

No sistema norte-americano das “class actions”, o indivíduo, desde que represente, de forma adequada, os interesses econômicos dos demais atingidos por uma conduta ilegal, pode solicitar ao juízo(23) que certifique a natureza transindividual de sua demanda. O instituto da representação adequada, concebido no art. 23 das Federal Rules, tem como principal finalidade a tutela dos direitos coletivos, a qual demanda uma resposta jurisdicional homogênea. Além da adequacy of representation é necessário que “a demanda ou a defesa corresponda aos interesses fundamentais de todos os membros da classe, ou seja, a pretensão ou defesa deduzida pela parte deve ser representativa da classe(24).”

As class actions podem ser classificadas em mandatory class actions – vocacionadas à tutela dos interesses difusos e coletivos – e not mandatory class actions – para a proteção dos direitos individuais homogêneos(25). Em ambos os casos, incumbe ao juiz da causa aferir se existe uma demanda de natureza coletiva (certification), bem como se o autor da ação coletiva representa a classe de modo adequado. Este último quesito é verificado com redobrada cautela nas mandatory class actions, pois não permitem o exercício do direito de exclusão (opt out) e a sentença atinge diretamente todos os interessados(26). A notificação pessoal dos interessados se configura, portanto, em um importante requisito de verificação da representação adequada do autor da class action, especialmente a partir do caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin quando a Suprema Corte dos Estados Unidos confirmou a regra de que “se o tribunal entender que um considerável número de membros da classe pode ser identificado com razoável esforço, e problemas de ordem econômica impedem o demandante de notificá-los pessoalmente, não há outra alternativa do que desistir da class action(27)”.

Já as not mandatory admitem o direito de exclusão, o qual deve ser manifestado após notificação dos interessados(28).

As class actions, neste último caso, somente do ponto de vista indireto tutelam os interesses difusos e coletivos(29), na medida em que partem de uma demanda de natureza individual, com um objetivo financeiro bem definido(30). Este mecanismo processual está em plena harmonia com uma tutela jurisdicional essencialmente indenizatória(31) existente naquele país, no qual os riscos são repartidos por toda a comunidade através de um eficiente sistema de seguros privados. Muito embora existam class actions nas quais se busca a proteção de um bem de natureza indisponível, de forma preventiva ou mesmo buscando sua reparação em espécie, a representação adequada assume importância nos casos em que a parte individualmente estará representando as demais vítimas na busca de uma reparação pecuniária.

No sistema norte-americano, a lei transferiu ao juiz o exame acerca da existência dos interesses comuns, bem como da conveniência da adoção deste procedimento (superioridade) e a prevalência dos aspectos comuns sobre os individuais(32). Analisa, ainda, a chamada adequacy of representation, ou seja, “a existência de uma efectiva homogeneidade dos interesses entre a classe tutelada e aqueles que se apresentam como seus representantes(33).”

O sistema brasileiro de tutela dos direitos individuais homogêneos não acolheu o instituto da representação adequada(34), na medida em que os legitimados para a ação estão previstos nos arts. 5º da LACP (Lei de Ação Civil Pública) e 82 do CDC (Código de Defesa do Consumidor). Ao invés de ampliar a eficácia de uma sentença prolatada numa ação individual, o indivíduo não poderá representar os demais, dentro do modelo atual, salvo nos casos de expressa substituição processual (art. 6º do CPC), na medida em que não tem interesse no objeto tutelado.

No caso dos interesses difusos e coletivos, diante da natural indivisibilidade do objeto, a eficácia da sentença opera secuntum eventum litis, de forma a beneficiar, de forma indireta, todos os demais interessados. A legitimidade ativa perde importância neste contexto, na medida em que o sistema confere prevalência ao objeto. A importância social dos bens a serem tutelados nesta via coletiva, bem como sua natureza indivisível, tornam o próprio conteúdo da demanda indisponível ao alvedrio das partes. Neste contexto, o princípio dispositivo sofre importante restrição, considerando que se encontra atrelado à tutela dos direitos de natureza patrimonial. Contrariamente, os de natureza não-patrimonial não são disponíveis, motivo pelo qual o direito de ação não se funda num direito concreto de agir, mas sim num direito público de natureza estritamente abstrata, conferido a todo aquele que demonstrar interesse processual. Não se trata de representação adequada (dos direitos patrimoniais alheios), mas sim de uma pretensão fundada em interesse próprio sobre um bem de natureza coletiva.

Considerando que o processo de decisão política demanda a participação de todos os cidadãos atingidos por uma nova política pública, não se pode reputar como legítima uma decisão judicial que não tenha considerado os argumentos de todos os afetados pela medida.

Neste contexto, sustenta-se que, num processo coletivo fundado na representação legal, o juiz da causa não pode atender a um pedido do autor que venha a afetar os interesses de terceiros que não se encontram efetivamente representados nos autos. Deste modo, a formulação de uma nova política pública no bojo de um processo judicial somente pode ser aceita caso o autor coletivo comprove ter sido garantida a participação de todos os envolvidos na formulação da proposta. Basta se imaginar o exemplo das decisões adotadas no interior dos chamados conselhos consultivos, tais como os conselhos municipais de saúde e educação, as quais poderiam ser utilizadas pelo autor coletivo sob o argumento de que surgiram da necessidade e vontade populares. Nas hipóteses em que o pedido formulado pelo autor coletivo consista na obtenção de um provimento judicial que substitua o processo de decisão política, o juiz deve investigar se a solução buscada perante o Poder Judiciário não fere o princípio democrático. Não se trata, por conseguinte, de preservar o princípio da separação entre os Poderes, pois ao Judiciário se revela lícito incursionar sobre temas políticos que tenham uma orientação fixada pelos princípios constitucionais. Trata-se, em verdade, de garantir o regular desenvolvimento do processo político e a participação efetiva dos interessados, o que somente pode ser aferido a partir das informações contidas na inicial. O sistema brasileiro de representação legal não assegura a efetiva participação de todos os interessados, já que se baseia em verdadeira ficção jurídica. Sustento, portanto, que as ações coletivas podem consistir em um importante espaço de ampliação do debate democrático, desde que o autor coletivo vá buscar na própria sociedade as respostas para os problemas sociais e econômicos do país(35). Concluo lembrando da importância de que audiências públicas sejam promovidas pelo autor coletivo como uma instância prévia ao debate judicial, de forma a definir com maior grau de proximidade uma orientação compatível com os interesses da comunidade de atingidos pela medida.

4.2. O amicus curiae e a intervenção de terceiros

A participação de terceiros no processo civil brasileiro tradicionalmente está vinculada às figuras típicas já previstas no código de processo civil, tais como a assistência simples. Neste caso, o assistente simples intervém no feito como mero “auxiliar” de uma das partes, desde que demonstre interesse na vitória do assistido, segundo a dicção do art. 50, caput, do CPC. Note-se que a figura do assistente simples se revela de difícil aplicação no âmbito das ações coletivas, quando se considera o regime de substituição processual imposto pela Lei Federal 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública). Na tutela de direitos difusos e coletivos, aquele que se sentir diretamente afetado por uma política pública que se pretende implementar na via da ação coletiva não poderá figurar na condição de assistente simples. Também não poderá figurar como assistente litisconsorcial, na medida em que a lei não lhe outorga legitimidade ativa, do que resulta a necessidade de adoção de novos institutos jurídicos que se revelem adequados a este novo modelo de sociedade.

Sustento que a figura do amicus curiae, concebida inicialmente para os processos de controle concentrado da constitucionalidade das leis perante o Supremo Tribunal Federal (art.7º, caput, da Lei Federal 9.868/99)(36), pode ser incorporada aos processos coletivos, desde que: (i) o autor coletivo pretenda a implementação judicial de uma política pública não prevista, de forma expressa, na lei ou na Constituição, (ii) o autor coletivo esteja buscando a tutela de direitos difusos e coletivos em relação aos quais exista manifesto interesse público e (iii) a medida judicial pretendida venha afetar o interesse de grupos específicos da sociedade que não estejam sendo devidamente representados nos autos.

Neste sentido, a adoção de decisões judiciais contramajoritárias em sede de políticas públicas demanda a aferição da presença de pressupostos mínimos de legitimidade, os quais se assentam no direito de efetiva participação no debate democrático.

O processo coletivo somente pode substituir validamente o processo de decisão política que se desenvolve nos Parlamentos e junto ao Poder Executivo, caso assegure a efetiva participação de todos os interessados, garantindo-lhes, inclusive, direito de manifestação através de memoriais, os quais deverão ser considerados pelo juiz na prolação de sua sentença, atendidos os pressupostos do art. 7º da Lei Federal 9.868/99.

NOTAS DE RODAPÉ

1. FERREIRA, Rony. A coisa julgada nas ações coletivas e a restrição do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p.37, recorda que “ Em matéria laboral havia a Lei 6.708, de 30.10.79, que no art. 3º, § 2º, permitia aos sindicatos apresentar reclamação trabalhista em nome do grupo, na qualidade de substituto processual.” MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: RT, 2002, p. 193, consigna que “o desenvolvimento da defesa judicial dos interesses coletivos, no Brasil, passa, numa primeira etapa, pelo surgimento de leis extravagantes e dispersas, que previam a possibilidade de certas entidades e organizações ajuizarem, em nome próprio, ações para a defesa de direitos coletivos ou individuais alheios”. LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: RT, 2003, p. 145, recorda que a origem das ações de tutela coletiva no Brasil está ligada à substituição processual prevista no art. 6º do CPC, uma vez que as leis autorizavam a defesa dos interesses dos membros de determinadas coletividades, tais como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e os sindicatos.

2. Sobre a necessidade de utilização da tutela inibitória e de remoção de ilícito no tocante aos bens indisponíveis da sociedade, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004.

3. Ainda sobre o tema, SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e Ideologia. São Paulo: Forense, 2004, p. 303, anota que “a redução do Direito ao ‘mundo jurídico’ de tal modo que o ‘jurídico’ isole-se do ‘político’ está centrada neste mesmo objetivo. O Direito, enquanto ciência, deveria ser tratado com a ‘neutralidade’ recomendada para as ciências, sem que os juristas, especialmente os processualistas se pudessem envolver com valores.”

4. SOUSA, Miguel Teixeira de. A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos. Lisboa: Editora Lex., 2003, p. 40, consigna que “Aos interesses difusos liga-se ainda uma outra característica das sociedades modernas: estas sociedades são, cada vez mais, sociedades de risco. Ao tradicional risco econômico inerente à actividade empresarial juntam-se agora os riscos sociais, que fazem perigar o bem-estar material e as condições de subsistência, e os riscos tecnológicos, que, nas mais variadas áreas, põem em perigo alguns valores fundamentais, como a vida e a saúde”.

5. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, a excelente monografia de SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

6. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1993, p. 31, recorda que “(…) quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência. Mais tarde, nas Constituições que reconheceram a proteção jurídica de alguns desses direitos, o direito natural de resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado”.

7. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 26, sustentam que “Interesses difusos são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao meio ambiente saudável, ou à proteção do consumidor. O problema básico que eles apresentam – a razão de sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação.”

8. BOBBIO, op. cit., p.72, ensina que “(...) enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder –, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.”

9. SANTOS SILVA, F. Nicolau. Os interesses supra-individuais e a legitimidade processual activa. Lisboa: Quid Juris Sociedade Editora, 2004, p. 09, recorda que “A linguagem jurídica e judicial, a burocracia, a morosidade da máquina judiciária, as dificuldades face do ónus da prova, a ignorância da lei e as custas judiciais são factores, entre outros, que condicionam, e muitas vezes impedem, a tutela jurisdicional dos interesses supra-individuais.”

10. MENDES, op. cit, p. 31. O autor menciona que as ações coletivas se constituem em medida de economia judicial e processual, bem como asseguram decisões uniformes para casos idênticos, ampliando a segurança jurídica, e, finalmente, asseguram o equilíbrio entre as partes no processo.

11. “Art. 5º, XXXV, CF de 1988 – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

12. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular: proteção do erário, do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 5. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 33. BOBBIO, op. cit., p. 61, “(...) é com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado do cidadão.”

13. FILOMENO, José Geraldo Brito. Ministério Público como Guardião da Cidadania. Revista da Faculdade de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas, São Paulo, n. 14, p. 113-133, p. 53, jan./jun. 1996, sustenta que “a cidadania é a qualidade de todo o ser humano, como destinatário final do bem comum de qualquer estado, que o habilita a ver reconhecida toda a gama de seus direitos individuais e sociais, mediante tutelas adequadas colocadas a sua disposição pelos organismos institucionalizados, bem como a prerrogativa de organizar-se para obter estes resultados ou acesso àqueles meios de proteção e defesa.”

14. MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p. 30.

15. Sobre o caráter plural das sociedades contemporâneas e o “caráter desagregador” dos direitos individuais, ver ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil: ley, derecho, justicia. 4. ed. Madrid: Trotta, 2002.

16. Assim, por exemplo, DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. No mesmo sentido, ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001.

17. Sobre o tema, o importante estudo de LINDBLOM, Charles E. O processo de decisão política. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1981.

18. Sobre o tema, o estudo de SUNSTEIN, Cass R.; HOLMES, Stephen. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York : W.W. Norton & Company, 1999.

19. Ver ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. 11nd ed. imp. Cambridge : Harvard University Press, 1995.

20. Sobre o tema, DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Massachussets: Harvard University Press, 1996.

21. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 8. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 310, recorda, sobre a legitimação, que “no direito norte-americano, superou-se esta dificuldade com a figura do adequacy of representation, onde o tradicional esquema ‘titularidade do interesse – legitimação para agir’ vem sendo substituído pela equação: ‘idoneidade do representante (parte ideológica) – reconhecimento de que ele é o real party in interest’, ou seja, presume-se que nesse representante estão aglutinados os interesses de todos os integrantes da classe ou categoria envolvidas. No caso das class actions, uma das razões pelas quais se alterou em 1966 a Rule n. 23 das Federal Rules of Civil Procedure residiu em que se pretendia evitar que o efeito preclusivo da coisa julgada atingisse os terceiros apenas quando os beneficiasse (in utilibus). Na redação atual, tal efeito opera aos terceiros ‘wheter favorable or not’. Em contraposição, esses integrantes da class, identificáveis ‘throught reasonable effort’ serão intimados mediante ‘the best notice praticable under the circunstances’, ficando-lhes assegurado o direito de aderirem ou não ao que vier a ser julgado (opt in/opt out): ‘The court will exclude him from the class if he so requests by a specified date”. Todavia, nestes casos, o objeto tutelado não será difuso ou coletivo, no sentido previsto na Lei 8.078/90, mas sim individual homogêneo, de relevância social, para o qual as entidades do art. 82 do CDC estão legitimadas para a ação. Na medida em que a natureza do bem permite uma divisibilidade do dano (e, portanto, ad reparação), a proposição de ação individual com eficácia de coletiva se dá por razões de economia processual e de conveniência para as partes atingidas. No caso brasileiro, a opção do legislador foi a fixação da competência legal (art. 2º da LACP), tornando o juiz prevento, nos casos de dano local, ou ainda a fixação de um único juízo para os danos de nível regional ou nacional (art. 93 do CDC), de modo que o art. 16 da LACP – a qual limita a eficácia da sentença aos limites territoriais do órgão decisor – se coaduna perfeitamente com esta situação, não merecendo, portanto, qualquer reparo nosso. Finalmente, há que se apontar que no sistema norte-americano das class actions é o juiz da causa quem define sua própria competência, na medida em que ele terá de certificar, a pedido da parte (Class Action Certification), se a demanda apresentada é uma class action ou se trata de uma demanda individual, o que não se coaduna com nosso sistema, em que a lei é que define o juiz competente. Ademais, os requisitos para que uma demanda seja considerada uma class action nos parecem muitos rigorosos. São os seguintes (dados fornecidos pelo site www.classactionamerica.com): Numerosity: (Numerosidade - There must be many people who can be part of the class action. (Deve existir várias pessoas que podem ser parte na ação de classe); Commonality: There must be a question of law or fact that is common to all the class action members. (Comunhão – Deve existir uma questão de Direito ou de fato em comum entre os membros das ações de classe); Typicality: The claims of the named plaintiffs who filed the class action must be typical of the class action members (Tipicidade - os pedidos em nome dos quais foi proposta a ação de classe devem ser típicos dos de classe); e Adequacy: The named plaintiffs must fairly and adequately represent the interests of the class members. The court must find that the named plaintiffs will act in the best interests of the whole class. (Adequação – os autores em nome dos quais foi proposta a ação devem ter as condições para representar a classe da melhor forma possível). Note-se, portanto, que, no tocante ao último requisito, a ação somente será certificada como de classe se a parte demonstrar que possui a condição financeira suficiente para fazer frente aos enormes custos de advogados, peritos, taxas, etc., o que de modo algum facilita a certificação. Fica patente, portanto, que as class actions são endereçadas, basicamente, à tutela dos direitos individuais homogêneos, os quais ensejam uma indenização pecuniária, na qual todos os cidadãos beneficiados poderão se habilitar, futuramente, num fundo comum. As class actions, de uma maneira geral, não têm a virtude de impedir a ocorrência do dano. Muito ao contrário, a “certificação” da existência de uma class action, por parte de uma Corte Federal, depende da ocorrência do dano e geralmente estão ligadas a ações contra monopólios comerciais e fixação abusiva de preços no mercado, litígios trabalhistas e decorrentes de acidentes de massa (incluindo os derivados da comercialização de produtos e medicamentos), bem como práticas governamentais que tenham causado danos financeiros a um grande número de indivíduos, para os quais se exige a observância da cláusula da representação adequada que nada tem a ver com a legitimação prevista no art. 5º da LACP, na medida em que aquela está atrelada às condições financeiras da firma de advogados que representa o autor individual, enquanto esta somente está conectada à representatividade, ou seja, ao interesse social.

22. SOUSA, Miguel Teixeira de. A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos. Lisboa: Editora Lex, 2003, p. 270, ao abordar a acção popular portuguesa recorda que “a vinculação dos titulares do interesse difuso e dos demais titulares da legitimidade popular à decisão proferida na acção popular é uma das consequências da representação que nela é exercida pelo autor popular.”

23. Na França a certificação é emitida pelo Ministério Público (action d’intérêt publique), a exemplo da Inglaterra (representative action) a qual deverá ser certificada pelo “Attorney General”.

24. SANTOS SILVA, op. cit., p. 88.

25. LENZA, op. cit., p. 220.

26. A lei brasileira (LACP) não prevê o direito de exclusão; todavia permite a repropositura da ação em caso de “improcedência” por insuficiência de provas (art. 16, caput, da LACP).

27. LENZA, op. cit., p. 221, recorda, todavia, que a regra foi abrandada em casos posteriores como Richland v. Cheatham, quando se permitiu a notificação pelo correio, e Booth v. General Dynamics Corp., quando o Tribunal aceitou a notificação por edital.

28. A lei brasileira (CDC, art. 94) prevê a notificação dos interessados por edital, facultada sua habilitação na ação coletiva na condição de litisconsorte do autor coletivo, sendo que o art. 103, parágrafo segundo, do CDC dispensa a faculdade de exclusão, prevendo, na via contrária, um direito de inclusão do autor individual na qualidade de litisconsorte.

29. GRINOVER, Ada Pelegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira. In: MILARÉ, Edis (Org.). Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 - 15 anos. 2. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 9-27, recorda que o sistema das class actions surgiu, em verdade, com as Federal rules of civil procedure em 1938, as quais em seu art. 23 previam as regras fundamentais das ações de classe, ou seja, que as ações de classe poderiam ser utilizadas quando fosse impossível reunir todos os integrantes da class, que caberia ao juiz o controle da representatividade adequada e que ao juiz competiria decidir acerca da existência da comunhão de interesses entre os membros da classe. A autora recorda, inclusive, que os interesses difusos e coletivos já continham previsão em 1938, através das ações de cunho obrigatório (mandatory) em razão da natureza do objeto envolvido e que somente em 1966, com a alteração das Federal Rules, é que foi ampliada a tutela dos direitos individuais homogêneos (not mandatory) – classaction for damages. Ou seja, a natureza do provimento pretendido, dada a natureza do próprio objeto, é que determinava se a ação de classe era obrigatória ou não.

30. MENDES, op. cit., p. 84, recorda a existência de class actions com objeto semelhante ao das ações civis públicas para tutela de interesses difusos e coletivos, tais como “as ações de classe para a compatibilidade (...) de conduta - Rule 23 (b) (1) (A)”, para (...) os casos em que estivesse em discussão a validade de um tributo ou a decisão acerca da validade de um empréstimo contraído por um município, bem como as ações de classe derivadas da aplicação da Rule 23 (b) (2), na qual se busca a condenação de fazer ou não fazer (injunctive relief) ou a correspondente sentença declaratória (declaratory relief). O autor também recorda (p. 82) que na aferição da representação adequada “os tribunais costumam aferir vários fatores. Mais do que a quantidade de litigantes presentes, para a certificação, importa a qualidade da defesa dos interesses da classe. Em relação às partes representativas, são considerados o comprometimento com a causa, a motivação e o vigor na condução do feito, o interesse em jogo, a disponibilidade de tempo e a capacidade financeira, o conhecimento do litígio, honestidade, qualidade de caráter, credibilidade e, com especial relevo, a ausência de conflito de interesse.”

31. Ressalte-se que o direito norte-americano prevê a existência de vários writs que tutela direitos de natureza indisponível, tais como a injuction contra ato do poluidor, a qual tem uma natureza mandamental, não admitindo descumprimento pena de configuração do contempt of court.

32. GRINOVER, op. cit., p. 24. Segundo a autora, “O espírito geral da regra está informado pelo princípio do acesso à justiça, que no sistema norte-americano se desdobra em duas vertentes: a de facilitar o tratamento processual de causas pulverizadas, que seriam individualmente, muito pequenas, e a de obter a maior eficácia possível das decisões judiciárias. E, ainda, mantém-se aderente aos objetivos de resguardar a economia de tempo, esforços e despesas e de assegurar a uniformidade das decisões”.

33. SANTOS SILVA, op. cit., p. 88.

34. AZAMBUJA, Carmem. Rumo a uma nova coisa julgada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994, p. 98, ressalta que a lei brasileira não acolheu a “representação adequada”, mas não faz distinção entre os direitos de natureza divisível e os de natureza indivisível tutelados pelas class actions, na medida em que desconsidera a importante distinção entre tutela direta e indireta do bem indivisível. LENZA, Pedro, op. cit., p. 195, sustenta, com base na leitura do art. 82, parágrafo primeiro, do CDC, através do qual o juiz pode dispensar o prazo de um ano de constituição da associação legitimada para a ação coletiva, que houve uma aproximação entre o sistema norte-americano e brasileiro, com o que o juiz pode indeferir a pretensão de uma associação legitimada para a causa desde que a repute “inidônea para o ajuizamento da ação”.

35. Sobre a necessidade de ampliação da comunicação e debate entre os cidadãos ver HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.

36. Art. 7º. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafo Segundo. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS