Seleção e recrutamento de magistrados: um convite à reflexão sobre a eliminação de candidatos pelo exame oral

Autor: Olavo Rigon Filho
(Advogado, Professor da AJUFESC)

| Artigo publicado em 18.11.2005 |

 

A Reforma do Poder Judiciário – Emenda Constitucional nº 45/2004 – foi concebida com o propósito de dar uma chacoalhada em velhos tabus e dogmas, buscando, quem sabe, uma releitura de conceitos e ações de todos os profissionais do direito.

E a seleção e o recrutamento de magistrados – temas eleitos pela Reforma
(1) – também estão na ordem do dia dos debates. Apesar do rigorismo, da transparência e do relativo sucesso na seleção dos candidatos à magistratura, o sistema não é imune a críticas. E a prova oral, como critério eliminatório, é um desses temas que está a merecer uma reflexão.

Um fato é inquestionável: a escolha dos juízes deve ser orientada com muito critério, uma vez que será um agente transformador da vida das pessoas, com um poder – para o bem como para o mal – que implicará, sempre, solução ou ampliação dos conflitos postos a julgamento. E por muitíssimos anos!

E é por isso que existe uma constante preocupação com o mecanismo de seleção e recrutamento dos juízes. Não com o modelo em si, que submete os candidatos a um rigoroso concurso público, com provas bem elaboradas, exame psicológico e análise da vida pregressa, todas permeadas de muita transparência. O modelo, apesar das críticas de alguns, que tem preferência por uma “seleção mais democrática”, pela via do voto popular, é sem dúvida o mais adequado à realidade democrática de um país marcado por contradições sociais, econômicas, políticas e regionais, notadamente culturais, que decididamente não está preparado para um passo tão audacioso e polêmico.

E, se esse modelo de seleção dos candidatos é o mais adequado à realidade brasileira, devemos, diuturnamente, buscar o seu aprimoramento. E um dos critérios dessa seleção que entendemos deva ser revisto diz respeito à natureza eliminatória do exame oral dos candidatos.

O subjetivismo do exame oral está na base dessa reflexão. Subjetivismo que carrega em seu núcleo uma carga de preconceitos, mitos e ideologias, própria de todo ser humano e que muitas vezes cega o julgamento na escolha do melhor candidato.

Explica-se melhor: existe uma comunicação não-verbal, que alguns chamam de empatia(2), que muitas vezes cria uma barreira entre o candidato e o julgador. Bastam certos gestos (pois o corpo fala), palavras mal empregadas pelo natural nervosismo do momento, postura corporal ou mesmo uma resposta que conflita com a própria ideologia do entrevistador para tudo ruir e ir por água abaixo. Ora, desde o momento em que o candidato está na sala de espera, já está se comunicando por meio de sua linguagem pré-verbal; ou seja, através de sua postura, sua vestimenta, seus tiques, sua impaciência, sua aflição, ou seja, o corpo já está falando. Aliás, como dizem os magos da propaganda, uma imagem vale mais do que mil palavras. E basta uma postura errada para se ter um preconceito com aquele candidato.

A psicologia moderna tem tratado do assunto e não nos atrevemos a sequer manifestar qualquer opinião. O que nos parece questionável, no entanto, é se permitir que todo esse subjetivismo possa se traduzir na possibilidade de eliminação de um candidato, mesmo sob o argumento de que esse exame é unicamente técnico, de aptidão dos conhecimentos teóricos sobre um determinado tema jurídico sorteado. Ora, a avaliação do conhecimento teórico do candidato é feita por critérios objetivos, mediante as provas escritas, onde o rigorismo é inquestionável. Portanto, esse exame – do conhecimento teórico – deve ser feito pelo critério objetivo, não havendo qualquer razão lógica para que esse conhecimento seja “ratificado” pela prova oral.

Alguns afirmam que é no exame oral que os candidatos se mostrarão por inteiro, se estarão aptos a resistir a pressões, inclusive psicológicas do momento, se estarão preparados para sustentar seus pontos de vista, se conhecem o sistema jurídico como um todo, enfim, se estão maduros para exercer a função de magistrado.

Pensamos de uma forma diversa. Não é nesse momento – e é apenas um momento – que se mostrarão as condições para se avaliar com objetividade e critério se esse candidato está preparado, se é vocacionado e se está maduro para iniciar tão importante função jurisdicional.

Não. Esse “escolhido”, isto é, esse vocacionado só se mostrará por inteiro quando exercer a função jurisdicional. Antes, só se terá uma vaga idéia de seus predicados. Só após o seu exercício de poder é que poderemos fazer uma avaliação criteriosa. E por isso entendemos que o modelo de seleção e recrutamento de candidatos para a magistratura não se encerra com a aprovação no concurso. Nesse modelo, a aprovação é apenas uma etapa. Uma etapa que diz respeito a uma avaliação preliminar dos conhecimentos teóricos do candidato. E uma etapa que avalia de forma objetiva o lado teórico do selecionado. Existe uma segunda etapa – que está desprestigiada – e que faz parte desse modelo de seleção e recrutamento que é a do vitaliciamento, ou seja, do “ok”, da “homologação” da transposição do estágio probatório para a titularidade do cargo de magistrado. É para aí que entendemos que devem os olhos ser voltados.

Barbosa Moreira(3), com sua lucidez implacável, embora reconheça o relevante papel prestado pelas escolas de magistratura, que foram, aliás, prestigiadas pela Reforma, afirmou que somente a experiência poderá dar a palavra definitiva sobre a capacidade do magistrado, exemplificando didaticamente que

“(...) assim como só à luz do rendimento nas pistas ou nas piscinas se pode decidir se vale a pena qualificar um atleta para as provas olímpicas, não existe meio seguro de formar convicção sobre o mérito de um magistrado a não ser a observação do modo como julga. Dispõe a Constituição (art. 95, I) que os juízes, no primeiro grau, apenas adquirem a garantia da vitaliciedade após dois anos de exercício; quer, com isso, abrir ensejo a que se evite a permanência no cargo de quem não tenha, na prática, demonstrado capacidade para bem exercê-lo. Mas a eficiência concreta de tal regra exige que os tribunais, na avaliação de cada caso, se guiem exclusivamente por critérios objetivos, com base em elementos colhidos segundo métodos rigorosos, sem qualquer influência de considerações de outra natureza. Em compensação, também exige que se assegure aos magistrados novos uma oportunidade justa de provar suas qualidades, dificilmente perceptíveis se ele se vir submetido desde o primeiro dia a condições desumanas de trabalho, soterrado em pilhas gigantescas de autos, despojado dos mínimos requisitos de comodidade, sacudido de um lado para outro pelos azares de rodízio impiedoso, privado do contacto com colegas de maior tirocínio, do acesso a bibliotecas e a outras fontes de consulta, bem como – onde existam – a cursos de aperfeiçoamento, que deveriam ser obrigatoriamente seguidos de tempos em tempos, com a imprescindível aferição do aproveitamento final”

E a eliminação prematura de um candidato pela via do exame oral pode privar o Poder Judiciário de contar com um profissional capacitado e vocacionado. Basta, como diz Barbosa Moreira, que lhes assegure “uma oportunidade justa de provar suas qualidades”, que certamente poderá ser melhor aquilatada no período de vitaliciamento.

Temos, pois, uma posição muito clara a respeito das duas etapas do processo de seleção do magistrado: ambas, uma teórica, a outra retratada pela experiência prática, devem ser avaliadas e julgadas objetivamente, mediante critérios que eliminem a possibilidade de subjetivismos aleatórios e carregados de preconceitos e ideologismos. E essa segunda etapa, que, convém repetir, está desprestigiada, sendo uma mera retórica do formalismo, onde os critérios de monitoramento(4) dessa experiência prática são relegados a um mero encaminhamento de peças processuais, cuja leitura e avaliação muitas vezes sequer são realizadas, requer uma reafirmação de sua importância, como forma efetiva de concretização justa e equilibrada desse modelo de recrutamento e seleção dos magistrados.

Só assim se terá condições, sempre sujeitos a errar, pois é da condição humana, de se selecionarem profissionais plenamente capacitados, vocacionados e com reconhecida aptidão para o exercício da árdua e responsável missão de julgar. E mais: é velha a máxima que diz que a melhor honraria é ser reconhecido pelos seus pares, seus colegas. Por que não prestigiar o estágio probatório, dando condições de aprimoramento e de um efetivo acompanhamento do exercício prático desses novos magistrados, oportunizando-lhes mostrar sua capacitação – que muitas vezes pode ser ceifada por uma decisão precipitada, preconceituosa e superficial de um exame oral – no dia-a-dia do fórum, no trato urbano com os jurisdicionados, na eficiência da prestação jurisdicional, enfim, na verdadeira vocação para ser juiz?

Como se vê, não se advoga qualquer reforma estrutural no sistema, no modelo. Apenas, como é objetivo de todos, busca-se seu constante aprimoramento, de modo a evitar injustiças ou escolhas equivocadas. E o modelo permite isso, mediante, como diz Barbosa Moreira, que os Tribunais “se guiem exclusivamente por critérios objetivos”, abdicando do perigoso e muitas vezes injusto critério de eliminação de candidatos pela prova oral.

Aliás, guiar-se por critérios exclusivamente objetivos é prestar reverência ao princípio da impessoalidade que impede a Administração de “atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento(5)”.

Em tempos de reforma, nada mais salutar do que um convite à reflexão sobre um tema tão importante e que está emoldurado na galeria das tradições do Poder Judiciário e que precisa ser mudado.

NOTAS DE RODAPÉ

1. Art. 93, I, da CF.

2. "Compreensão intelectual de uma pessoa por outra pessoa, associada à capacidade de sentir como se fosse essa outra pessoa. Característica essencial das atitudes e emoções de natureza estética, quando a pessoa se identifica com um personagem literário, por exemplo. A Psicanálise emprega freqüentemente empatia como sinônimo de introjeção e incorporação. A empatia é fenômeno muito mais complexo do que a simpatia.” (CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. 12. ed. São Paulo: Cultrix.)

3. MOREIRA, Barbosa. A justiça no limiar do novo século. In:______.Temas de Direito Processual – 5ª série. Saraiva, 1994. p. 31.

4. Não se pode confundir monitoramento para fins de avaliação com “enquadramento”, dentro de “padrões” de conduta, inclusive teórica, previamente eleitos pelos julgadores.

5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, p. 71.



REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS