Da presunção de infringência, da divergência e sua prevenção ou composição no direito tributário - Inteligência do disposto no art. 530 e § 1º do art. 555 do Código de Processo Civil

Autor: Roberto Caníbal
(Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul)

| Artigo publicado em 18.11.2005 |


Estudo em homenagem a Leandro Paulsen, Jauro Duarte von Gehlen e Marcelo André Pierdoná, juristas que muito contribuem e me incentivam a criar.

Dos embargos infringentes

A atual redação dada ao art. 530 do Código de Processo Civil, que foi introduzida pela Lei nº 10.352/01, restringiu o cabimento dos embargos infringentes aos casos em que o julgado, não unânime, houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente pedido levado a efeito em ação rescisória.

Pressupostos estes inarredáveis para um juízo de admissibilidade recursal. 

O primeiro deles, então, é que haja um julgamento não unânime.  O segundo é que haja a reforma da sentença.  Antes da modificação do dispositivo em voga, bastava o simples julgamento de apelação de modo não unânime.

Da infringência proposicional preventiva

Agora, além dessa modificação, trouxe o legislador, entre outras, uma outra modificação importantíssima na lei com a inserção e vigência do § 1º do art. 555 do Código de Processo Civil, também com a redação introduzida pela mesma Lei nº 10.352/2001.

Presentes os pressupostos elencados na lei (§1º do art. 555), e mais, em prevendo o relator a eventual divergência futura no julgamento da matéria em discussão nos autos pela Câmara/Turma, poderá ele propor ao órgão colegiado superior, que o regimento indicar, que conheça do recurso sem a sua apreciação pela Câmara e que o julgue, afastada, então, a competência originária da Câmara/Turma.

Se essa proposição será diretamente do relator ao órgão jurisdicional superior ou se será levada a efeito na Câmara é questão importante, e se me afigura que a proposição deverá ser, em um primeiro momento, submetida à apreciação da Câmara ou Turma em que se estabeleceu e fixou a competência, porque somente esta é que a tem em face do vínculo originário em termos de competência estabelecida adredemente, não a tendo isoladamente o relator, como é curial.  Não pode este, então, isolada e singularmente levar a efeito a proposição preventiva sem que a Câmara/Turma delibere a respeito.  Essa questão foi debatida com certa veemência e dúvida em algumas discussões acadêmicas a respeito do tema, parecendo importar o referir a respeito, de passagem, por isso.

A inserção desta permissão legal inovadora prevista no § 1º do art. 555 do Código de Processo Civil se justifica e explica em face de que, casos haverá, e os há em abundância, em que se poderá colocar em risco a credibilidade da prestação jurisdicional.

E, assim, objetivando evitar isso, o legislador introduziu o dispositivo na lei.  Em havendo relevante questão de direito ou conveniência para fins de prevenção ou composição de divergência entre Câmaras/Turmas ou até mesmo internamente em uma mesma Câmara ou Turma, e que se faça necessário uniformizar a jurisprudência com o fito de se evitar a perplexidade, a insegurança jurídica e, antes, chancelar a injustiça com decisões contraditórias, díspares mesmo, dentro de um mesmo órgão jurisdicional ou não e sobre o mesmo tema jurídico, poderá o relator fazer a proposição internamente.

 Inteligentemente o legislador, ao dar nova redação ao art. 530 do Código de Processo Civil com a redação que lhe deu a Lei nº 10.352, de 26.12.2001, restritivamente aos infringentes, ampliou de modo percuciente a possibilidade de a restrição insculpida nesse artigo alcançar foros de impacto jurisdicional e social negativo ao permitir que, em Câmaras/Turmas diversas ou em mesma Câmara/Turma com diferente composição, se pudesse chegar a julgados com conteúdos antagônicos ou diversos sobre a mesma matéria, motivo da edição do § 1º do art. 555 do Código de Processo Civil.  A meu sentir foi essa compreensão que animou o legislador a introduzir o § 1º no art. 555.

E aqui é que reside a inteligência, a sensibilidade e a razoabilidade que se me afigura presente e que levou o legislador, certamente, a realizar essa dicção legal e que, paulatinamente, vai seduzir e convencer os juristas de sua importância, seu desiderato, seu alcance e sua meta optata.

Da importância da proposição infringencial preventiva em questões tributárias controvertidas

Um exemplo disso é a orientação divergente adotada pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, conforme sua composição, sobre a possibilidade da progressividade/seletividade constitucional do IPTU, ora é vencedora a tese que admite a possibilidade da progressividade desse tributo, ora vencedora a tese contrária que entende impossível, por inconstitucional, progressividade que tal, abstraído o período posterior à EC nº 29.

Outro exemplo é o que ocorre diuturnamente em julgados referentes a aproveitamento de créditos, compensação, redução de base de cálculo et caetera.

Situações ocorrentes assim em nosso dia-a-dia revelam a necessidade de o legislador não descurar, mais ainda se pode dizer para o jurista.  E é o que foi levado a efeito com a dicção do § 1º do art. 555 do Código de Processo Civil.  Seu campo de atuação é vasto e encerra uma preocupação acurada com uma prestação jurisdicional livre de antagonismos e incongruências processuais/procedimentais/recursais meritórias. 

Esse dispositivo foi concebido à guisa de evitar inconvenientes dessa natureza e assim o fez o legislador de modo pragmático e com esforço afinado com uma prestação jurisdicional que pretende encharcada com os atributos referidos e na busca de um proceder qualificado. 

Estabeleceu o legislador, então, a possibilidade de o relator, quando prevendo a possível e previsível divergência num futuro julgamento que seria levado a efeito na Câmara/Turma e ocorrente com dano ao direito da parte e à prestação jurisdicional, certamente, e tendo presentes as orientações e posições a que se filiam os julgadores sobre a res in iudicio deducta este ocorrendo a relevante questão de direito que faça conveniente prevenir ou compor a divergência entre Câmaras ou Turmas do Tribunal, propor ele, então, de modo preventivo, seja o recurso – de apelação ou de agravo (a inclusão do agravo é mais uma novidade) tratados no caput do art. 555 – julgado pelo órgão colegiado que o regimento interno de cada Tribunal indicar.

Impende salientar que o cabimento da proposição com o fito de prevenir ou compor a divergência relativamente ao agravo só é cabível neste caso que se está a tratar.  Isto é, no caso do parágrafo 1º do art. 555 do Código de Processo Civil, em que há o permissivo legal que é restrito aos casos em que o relator prevê a divergência e propõe “embargabilidade por prevenção”, preventivamente, portanto. 

Tal previsão, porém – relativa ao agravo –, não é estabelecida pelo art. 530 do Código de Processo Civil para o caso de embargos voluntários.  A previsão resultou inserta tão-somente no § 1º do art. 555.

Em reconhecendo o interesse público na assunção da competência, esse órgão colegiado que o regimento interno de cada tribunal indicar, então, julgará o recurso como proposto pela Câmara ou Turma.  Caso contrário o rejeitará, não aceitando a competência para o julgamento da questão vertente.

Questões têm surgido na interpretação desse dispositivo.  A dúvida é a tônica; a certeza da melhor interpretação, o desafio.

A meu sentir, a questão da interpretação, alcance e aplicação do § 1º do art. 555 deve ser proporcional à lógica proposicional e à lógica do razoável, devendo ter o alcance que a norma nos permite e impõe a um só tempo.  Isto é, o legislador, temeroso e prevendo que questões intrincadas advindas de divergência jurisdicional como as referidas retro, introduziu o dispositivo com o fito de evitar que a jurisdição despenque em absurdo, injustiças e desprestígio para a prestação jurisdicional.  Quero dizer: ora se acolhendo os infringentes, ora não se acolhendo, conforme a composição do órgão julgador, máxime em face da novel redação restritiva do art. 530 que lhe deu a mesma lei que inseriu o §1º no art. 555. 

Mormente, destaco, quando os mesmos temas, em mesma ou diferente Câmara/Turma, são julgados, podendo ocorrer julgamentos díspares no mesmo dia de julgamento com modificação de composição em face de impedimento ou suspeição de um julgador, o que faria com que julgamento de uma mesma tese, na mesma sessão do mesmo órgão julgador com composição diversa, pudesse ter julgamentos diferenciados. 

Isto é, dá-se provimento a um dos apelos com uma composição e nega-se-o com outra quando as situações fático-jurídicas são absolutamente idênticas.  A perplexidade do advogado resta indescritível, quiçá menor do que a da parte.

É desse dano ao direito da parte e ao da prestação jurisdicional que surge, em um primeiro momento, o interesse público relevante e conseqüente à relevante questão de direito que o legislador tornou inserto na norma com a observância de um juízo de conveniência e prevenção.

Daí que se impunha abrir uma fresta jurídico-legal para evitar a injustiça, até porque o realizar o direito, rectius, a justiça, é a arte do justo e do razoável:

EM SEU CONCEITO MODERNO, O DIREITO É A ARTE DO JUSTO E DO RAZOÁVEL – REsp 98.142/Humberto Gomes de Barros. (STJ – REsp 206991 – 199900206886 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJU 08.05.2000 – p. 00062 ).

Assim, a meu ver, em face das premissas articuladas acima, o relator, de plano, propõe à Câmara ou Turma que se proponha ao órgão jurisdicional competente (de direito público ou de direito privado) o conhecimento do tema à guisa de “proposição infringencial preventiva e uniformizatória da jurisprudência” cuja competência deve vir instituída na forma regimental de cada Tribunal, com a observância das áreas de suas especializações.

Em havendo matéria que tenha sua competência vinculada às áreas diversas – de direito público e privado –, não resta outra alternativa que não a uniformização da jurisprudência, eventualmente, pelos Órgãos Especiais dos tribunais nos termos regimentais, não havendo norma específica regimental a respeito.  Mas esse tema é sujeito a orientações diversas e cada caso será objeto de exame em cada Casa.  No caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tramita uma proposição de adequação do seu Regimento Interno à lei federal proposta por mim em face de haver, na área de direito público, mais de um Grupo competente para o conhecimento e julgamento dos temas da área de abrangência.

Da natureza jurídica da instituição

Outro ponto que se nos afigura importante acentuar diz respeito à natureza jurídica dessa proposição do relator, para que o órgão colegiado que o regimento indicar conheça do recurso.  Não sem antes referir que é necessário que os regimentos internos dos Tribunais os revisem e adaptem à inovação do Código de Processo Civil.  Isso é um imperativo categórico até para evitar a timidez na utilização deste instrumental valioso na realização de uma prestação jurisdicional fecunda e infensa às perplexidades e danos jurídico-institucionais como conseqüência. 

A natureza jurídica dessa proposição do relator, indubitavelmente, assim, encerra interesse público superlativo e tem o caráter de verdadeiros embargos infringentes proposicionais preventivos, antecedentes e uniformizatórios da jurisprudência.  E de embargos é do que se trata certamente, pois com ele se assemelham em essência e natureza jurídica.  E, por estranho que possa parecer, são embargos, mesmo porque estes pressupõem opor barra, o que é o caso em exame segundo magistério de Pontes de Miranda, Comentários, Tomo XI, Forense, 1ª ed., p. 4.

 Mas o fundamento e razão última de sua concepção se nos afigura como uma instituição de preventividade cautelar interna, vinculada e institucional, inserta na prestação jurisdicional cujo objetivo último é sanear esta, distanciando-a das injustiças possíveis nos casos previsíveis em não se adotando o proceder legalmente permitido e com o intuito de se evitar a danosidade.

Só que, no caso, quem opõe barra é o relator, não a parte.  Mais: opõe barra sem que haja julgamento na Câmara/Turma.  Apenas propõe ele, na Câmara ou Turma, fundamentadamente, a remessa do recurso a julgamento ao órgão competente a tanto para seu conhecimento e julgamento se assim o entender.  E isso é o que causa, no momento, uma certa perplexidade em alguns juristas.  É o novo.  Mas a novidade deixará de o ser após as discussões, estudos e inquietações dos que examinarem e meditarem sobre o tema, que é fecundo.

Não obstante não seja o nome que designe o ser, mas sua essência, a meu ver, de verdadeiros “embargos” proposicionais e uniformizadores da jurisprudência de modo preventivo é do que se trata.  E a iniciativa é do relator do recurso em um primeiro momento.  E isso porque, em prevendo o relator a divergência que haverá no julgamento, além dos demais requisitos exigidos pela lei, poderá – é a dicção legal – propor que o recurso de apelação e/ou agravo seja apreciado pelo órgão colegiado que o regimento indicar para compor ou prevenir divergência.  E os regimentos o indicam para os casos de julgamento dos embargos infringentes.  Podendo-se aproveitá-los até que haja a mudança específica, porque se tem a competência para apreciar os embargos infringentes do julgado que seria, em termos, o mesmo órgão para a apreciação da proposição infringencial quando possível.  E quando não aplicável essa compreensão em face, e.g., de dois órgãos jurisdicionais com a mesma competência dentro da mesma  área de especialização, a solução é o adequar o regimento à lei federal, sob pena de, nos órgãos jurisdicionais em relevo, ocorrerem a mesma divergência. 

Como se observa do texto legal, resultou ampliado o campo de aplicação deste novo instituto ao incluir a possibilidade de apreciação, nesses moldes, do recurso de agravo antes não previsto na lei expressamente para os embargos infringentes voluntários.

O novel instituto exigirá pensar e criar a seu respeito, o que se pretende com estas rápidas apreciações perfunctórias.  Mas, de qualquer forma, deverá o jurista adaptar-se às novidades legais e enfrentá-las como um paradigma axiomático e um imperativo axiomático categórico em termos de ver o direito atual e suas modificações e ampliações com uma visão zetética não só do direito, mas também dos fatos da vida, e esperançosa para alcançar a confecção de uma justiça mais célere e justa, desvinculada de jurisdicização despida desta ótica jurídico-pragmática.

Dos pressupostos para a proposição

Com efeito, são requisitos para que a proposição do relator tenha sustentação e aceitabilidade pelo órgão colegiado referido no §1º do art. 555 do Código de Processo Civil:

a) evidenciação e demonstração de relevante questão de direito vinculada a res in iudicio deducta est;

b) previsão de que a questão, se levada a julgamento pela Câmara, será objeto de divergência;

c) juízo de conveniência a prevenir ou compor a divergência entre as Câmaras ou Turmas ou até mesmo internamente em uma mesma Câmara ou Turma, como é consabido, pelo só fato de mudança de sua composição;

d) reconhecimento pelo órgão colegiado que o regimento interno do Tribunal indicar de que há interesse público na assunção da competência fixada pelo dispositivo em voga, julgando, então, o recurso de modo preventivo da danosidade do direito material e institucional e compositivo da divergência.

Instituto este de plena aplicação e interesse para todos os que lidam com o direito em face da importância que encerra, não podendo passar despercebidamente, mormente quando se pretende realizar uma prestação jurisdicional indubitável.

Da legitimação da provocação da proposição pelos advogados

De tudo o que se disse é fácil concluir que resta autorizado que não só o relator, mas também é imperioso que os advogados defensores dos interesses das partes possam propor ou requerer que o relator assim proceda na Câmara/Turma, porque a relevância do tema está imbricada não só na questão jurídica subjacente, mas também em face do interesse público manifesto que a questão encerra, de modo a evitar-se o dano jurídico conseqüencial.

A meu sentir, o tema é ainda novidade, tanto que somente uma vez o utilizei no Tribunal e um ou outro caso é que tem chegado a meu conhecimento, desafiando nossa compreensão e pragmatização de modo a utilizarmos o instrumental que a lei nos oferece.


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS