A reforma do judiciário e a Emenda Constitucional nº 45/2004

Autor: Vicente de Paula Ataide Junior
(Juiz Federal Substituto)

| Artigo publicado em 18.11.2005 |


Resumo: Procede-se a um apanhado das principais mudanças operadas pela Emenda Constitucional nº 45/2004 na estrutura do Poder Judiciário brasileiro, sistematizando-as a partir dos dois blocos de problemas a serem resolvidos: a lentidão processual e a corrupção. Destacam-se as novidades processuais e a previsão do direito fundamental à rápida tutela jurisdicional, a criação do Conselho Nacional de Justiça e a adoção de justiças itinerantes e de cortes regionais. Abordam-se os meios de combate à corrupção, como as ouvidorias judiciárias e a quarentena judicial. Termina-se com o estudo das principais inovações e propostas em termos de seleção, formação e avaliação dos juízes no Brasil.

Palavras-chave: Reforma do Judiciário; Emenda Constitucional 45/2004; Rápida Tutela Jurisdicional; Conselho Nacional de Justiça; Justiça Itinerante; Cortes Regionais; Ouvidorias; Quarentena; Seleção de Juízes.

Refletir sobre a reforma do Poder Judiciário pressupõe a constatação de que essa parcela do poder estatal não anda bem na realização da sua missão constitucional.

Reformar o Judiciário brasileiro, com vistas à otimização dos serviços judiciários, significa, necessariamente, efetuar a transição do atual modelo tecno-burocrático para o modelo democrático-contemporâneo (cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995.).
As críticas comumente dirigidas à atuação do Poder Judiciário brasileiro podem ser englobadas em dois grupos genéricos: a) críticas à morosidade e à ineficiência da prestação jurisdicional; b) críticas à corrupção de juízes pela ausência de maiores formas de controle desse poder.

O combate à morosidade e à ineficiência da prestação jurisdicional depende, basicamente, de dois fatores: a) redimensionamento das regras processuais, de forma que o processo seja adaptado às peculiaridades do direito material a ser protegido, deixando de se constituir em obstáculo ao direito fundamental à tutela jurisdicional rápida e efetiva (artigo 5º, inciso LXXVIII, Constituição); b) implementação de sistemas de gerenciamento judiciário, com metas de qualidade total, estabelecendo-se níveis mínimos de qualidade para todos os órgãos que compõem o Poder Judiciário nacional.

Quanto às necessárias alterações do direito processual, como pressuposto indispensável para a construção de um processo mais célere e eficaz, a Emenda Constitucional nº 45/2004 pouco operou: algumas mudanças em regras de competência jurisdicional, no que se inclui a federalização das causas relativas a direitos humanos, mediante argüição do Procurador-Geral da República ao Superior Tribunal de Justiça (artigo 109, V-A e § 5º, da CR); a instituição da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário endereçado ao Supremo Tribunal Federal, nos termos da lei (artigo 102, § 3º, da CR), e da súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal, a qual terá por objetivo “a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” (artigo 103-A, § 1º, CR).

Também o reconhecimento explícito do direito fundamental à rápida tutela jurisdicional deve ser apontado como avanço na reforma do Judiciário, com a introdução do inciso LXXVIII no artigo 5º da Constituição: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Em primeira leitura desse novo dispositivo constitucional, pode-se perceber que foram previstos dois direitos fundamentais conexos: o direito à razoabilidade da duração do processo judicial ou administrativo e o direito aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Não existe a necessidade de complementação legislativa ordinária para conferir ampla efetividade ao novo direito fundamental, até porque o próprio inciso não faz a previsão de tal necessidade.

Apesar disso, quer parecer que o comando constitucional se dirige, em primeiro lugar, ao legislador ordinário, ao qual fica atribuído o dever de produzir leis que traduzam a observância do dispositivo, criando ritos e medidas processuais mais adequados às peculiaridades de cada direito material.

Em segundo lugar, a ordem é endereçada à administração pública, na qual se insere a judiciária, que agora tem a responsabilidade constitucional de gerir em função da duração razoável dos processos e da celeridade da tramitação processual, proporcionando, além de outras coisas, recursos humanos e materiais ao serviço prestado, regados com boas doses de iniciativa, criatividade e tecnologia.

Mas no que tange aos processos judiciais, a norma constitucional também se dirige aos juízes, os quais ficam agora autorizados a adotar as medidas processuais necessárias para garantir a razoável duração do processo, mesmo que o Código de Processo Civil ou outras leis processuais não prevejam expressamente a medida processual adotada.

Isso quer dizer que o juiz poderá flexibilizar o procedimento para atender às exigências e peculiaridades do direito material em jogo, desde que não viole diretamente o direito de defesa. Não é possível, por exemplo, conduzir um processo ambiental, envolvendo a discussão do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com a mesma postura e da mesma forma que um processo civil comum, em que se discutem direitos individuais patrimoniais. O juiz ambiental não poderá presidir o processo ambiental com os olhos fixos no formalismo do Código de Processo Civil de 1973, época em que praticamente era desconhecida a temática jurídico-ambiental.

Note-se que os meios que garantem a celeridade da tramitação processual já estão garantidos ao jurisdicionado pela Constituição: caso a lei ordinária não preveja tais meios, competirá ao juiz suprir a lacuna e adotar os meios mais adequados para conduzir o processo com a rapidez necessária que traduza a eficiência da prestação jurisdicional.

No mais, compreende-se que a reforma constitucional operada não poderia avançar muito mais em matéria processual, uma vez que, nesse particular, as reformas devem se dar nas leis processuais. Nesse sentido, o artigo 7º da Emenda Constitucional nº 45/2004 impôs que o Congresso Nacional instalará, imediatamente, após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.

Ora, em assim sendo, percebe-se que, para alcançar a almejada celeridade processual (e eliminar a “morosidade da justiça”), é indispensável que o Poder Legislativo federal cumpra a sua missão constitucional e edite as novas leis processuais necessárias à construção de um novo processo, mais ágil e eficiente, com menos recursos cabíveis e com mais concentração da causa nos juízos de primeiro grau. Sem uma completa reforma processual, não se pode esperar que o Judiciário, sozinho, proporcione a “justiça dos nossos sonhos”.

Não obstante, a responsabilidade do Poder Judiciário pela morosidade na entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de ser considerada. Nesse aspecto, torna-se relevante observar que muitos avanços não dependem de reformas legais ou constitucionais, mas da implantação de sistemas de gerenciamento judiciário, em todos os seus setores de funcionamento. Gerir o Judiciário em bases de otimização dos seus serviços é iniciativa das respectivas cúpulas, mas que deve comprometer todas as suas estruturas. Não se trata de transformar o Poder Judiciário em uma grande empresa, mas adotar as experiências positivas que a atividade empresarial pode fornecer para ampliar a qualidade dos serviços prestados pelo poder.

Esse gerenciamento merece uma atenção específica e deve resultar de um estudo das necessidades que o poder tem e das dificuldades que ele enfrenta. Significa que, em primeiro lugar, as cúpulas diretivas dos tribunais devem ter consciência dessa necessidade. Não se pode mais governar o Judiciário como se ele não envolvesse administração pública.

A criatividade do administrador judiciário é que fará a diferença. As suas iniciativas, bem analisadas e baseadas em dados da realidade, serão fundamentais para a construção de um novo Judiciário, que não dependa tanto da iniciativa dos outros poderes.

Um dos grandes problemas do Judiciário brasileiro, do ponto de vista administrativo, é que ele não é um só. O Poder Judiciário é um conjunto de Poderes Judiciários: federal, estadual, trabalhista, eleitoral, militar, divididos territorialmente no continente brasileiro.

A realidade da Justiça Federal não é a mesma da Justiça Estadual. A Justiça Estadual do Paraná é diferente da Justiça Estadual de Rondônia e da do Ceará. As peculiaridades da Justiça do Trabalho nada têm de comum com as da Justiça Eleitoral. A administração de cada Poder Judiciário é distinta, com critérios particulares, sem uniformidade. O jurisdicionado de um Poder Judiciário não recebe a mesma qualidade de prestação jurisdicional quando se dirige a outro Poder Judiciário.

Não se pode admitir que, enquanto um Poder Judiciário se encontra totalmente informatizado e avançando para a consolidação da virtualidade processual, outro Poder Judiciário ainda esteja se servindo de máquinas de escrever para datilografar ofícios e atos processuais.

Essa discrepância é produto não só das diversidades orçamentárias entre os entes federativos, mas também dos diferentes sistemas de gerenciamento, em que as prioridades administrativas nem sempre são estabelecidas de acordo com as necessidades reais do poder.

Por essa realidade é que talvez a instituição do Conselho Nacional de Justiça (artigo 103-B, Constituição) possa representar avanço na melhoria da prestação jurisdicional.

Esse avanço se dará caso o Conselho utilize suas funções constitucionais, notadamente as de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário (artigo 103-A, § 4º, da Constituição), para ditar e cobrar os níveis mínimos de qualidade que todas as parcelas do Poder Judiciário devem apresentar, uniformizando em todo o País aquelas iniciativas que já foram consagradas pela eficiente administração judiciária.

No âmbito da Justiça Federal, essas funções de supervisão administrativa e orçamentária já cabiam ao Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça. Com a Emenda, esse Conselho obteve maior relevância nessas missões, pois foi elevado a órgão central do sistema e com poderes correicionais, cujas decisões terão caráter vinculante (artigo 105, parágrafo único, inciso II, da Constituição).

Duas soluções administrativas foram impulsionadas pela reforma constitucional do Judiciário: o dever dos tribunais de instituírem a justiça itinerante e as cortes regionais descentralizadas (artigos 107, §§ 2º e 3º; 115, §§ 1º e 2º; e 125, §§ 6º e 7º).

O projeto da justiça itinerante não é mérito próprio da reforma. Trata-se da incorporação, ao texto constitucional, de iniciativas gerenciais de vários tribunais do País. O Tribunal de Justiça de Rondônia, por exemplo, há vários anos já havia constituído o projeto Justiça Rápida, em que os juízes das comarcas, acompanhados dos promotores de justiça, defensores públicos e servidores da justiça, realizavam audiências em distritos ou bairros, servindo-se da estrutura de escolas estaduais e municipais. A Justiça Rápida, amplamente divulgada à comunidade local, possibilita que diversas modalidades de ações judiciais, especialmente na área do direito de família e de registros públicos, sejam processadas e julgadas em apenas dois dias. O sucesso da operação se deve, em muito, à precisa organização destinada ao projeto e ao esforço e dedicação de todos os sujeitos processuais envolvidos. Com essas operações, percebe-se nitidamente o crédito de confiança recebido pelo Poder Judiciário da população local. Muitas pessoas que antes não resolviam seus problemas jurídicos e de cidadania devido à distância e à onerosidade da “justiça comum”, acabam por reconhecer na Justiça Rápida essa oportunidade para regularizar sua situação jurídica.

A criação de cortes regionais descentralizadas é novidade muito bem-vinda, especialmente no âmbito da Justiça Federal. Nesta, dada a organização por regiões, as sedes dos Tribunais Regionais Federais são muito distantes de várias seções judiciárias, dificultando o acesso para as partes e advogados, muito embora as diversas iniciativas gerenciais que buscaram diminuir essa distância (v.g. protocolos descentralizados, sustentações orais por videoconferência, etc.). Assim, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, poderá implantar turmas regionais em Curitiba e Florianópolis, com isso eliminando, de certa forma, as justificativas para a criação de novos Tribunais Regionais Federais.

No que tange ao combate à corrupção e à imoralidade no Judiciário, a Emenda Constitucional nº 45/2004 avançou em uma frente principal: a atuação do Conselho Nacional de Justiça, como órgão integrante do Poder Judiciário (artigo 92, I-A, da Constituição), mas de composição heterogênea, inclusive com membros pertencentes a órgãos externos (artigo 103-B, da Constituição). Esse Conselho recebeu poderes constitucionais para, dentre outras atribuições, a) receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; b) rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano.

A instituição do Conselho Nacional de Justiça, de composição heterogênea, era providência necessária para a transição rumo ao modelo democrático-contemporâneo, pois possibilita eliminar certas interferências nefastas do corporativismo judiciário, que impedem o aprofundamento da democracia judiciária. A composição heterogênea, com participantes do Judiciário, do Ministério Público, da OAB e da sociedade civil, permite um autocontrole desejável para evitar os expedientes não democráticos ou corporativos.

Abre-se a oportunidade para que o controle necessário dos deveres funcionais da magistratura estenda-se a todos os órgãos judiciários, de todas as instâncias e tribunais. Note-se que as corregedorias judiciárias se destinam, fundamentalmente, aos juízes de primeiro grau. No Brasil pré-Emenda 45, não havia mecanismo eficiente para o controle dos deveres funcionais de desembargadores e ministros. Com o Conselho Nacional de Justiça esse controle passa a ser possível.

Teme-se que essa atuação correcional do Conselho Nacional de Justiça possa interferir na atividade jurisdicional dos juízes, maculando a sua independência funcional. Essa atuação é possível, mas se constituirá em desvio de função, que poderá ser corrigida através do próprio Conselho (que, por isso, conta com composição heterogênea) e por meio de ação endereçada ao Supremo Tribunal Federal (artigo 102, I, r, da Constituição). Essa possibilidade, ainda abstrata, não constitui fundamento relevante para descartar essa importante inovação, indispensável para garantir a moralidade interna do Poder Judiciário, já presente nos principais modelos judiciários da Europa.

Ao lado do Conselho Nacional de Justiça, três outras importantes medidas foram introduzidas visando a combater a corrupção e a fortalecer a moralidade interna: a) as ouvidorias da justiça, criadas pela União, para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça (artigo 103-B, § 7º, da Constituição); b) a vulgarmente denominada quarentena judicial, que se constitui na vedação aos juízes de exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração (artigo 95, parágrafo único, inciso V, Constituição); c) as decisões administrativas dos tribunais passam a se dar em sessões públicas (artigo 93, X, Constituição).

As ouvidorias judiciárias já foram implantadas em muitos órgãos judiciários, a exemplo da Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, desde 2004.

A quarentena judicial poderia ter sido mais ousada. Parece que a vedação contida no inciso deveria ser perpétua, pois a influência que um juiz, desembargador ou ministro pode exercer sobre seu antigo local de trabalho pode ser eterna. Não haveria prejuízos à liberdade de advogar, pois o ex-juiz continuará contando com um amplo leque de possibilidades de atuação.

Para terminar esta sumaríssima análise da reforma constitucional do Judiciário, cumpre observar o que mudou quanto aos critérios de seleção, formação e avaliação dos magistrados.

O ingresso na carreira continua sendo feito através de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação. No entanto, a partir da Emenda nº 45/2004, o bacharel em direito postulante ao cargo de juiz substituto deverá contar com, no mínimo, três anos de atividade jurídica.

O que é atividade jurídica? É atividade exercida que pressupõe conhecimentos jurídicos. Em outras palavras, é atividade para a qual o conhecimento jurídico é exigência natural. Mas tal tempo de atividade deve ser exercido após a colação de grau, pois os três anos de atividade jurídica exigem-se do bacharel em direito.

O ideal é que a lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, que disporá sobre o Estatuto da Magistratura (artigo 93, caput, da Constituição), discipline o conteúdo dessa disposição. Até sua edição, o Conselho Nacional de Justiça poderá dispor sobre o assunto, de forma a uniformizar a exigência em todo o Território Nacional. No âmbito da Justiça Federal, tal providência poderá ser adotada pelo Conselho da Justiça Federal.

Enquanto essa disciplina não for uniformizada, caberá aos editais dos concursos ditar a regra. Para o XII concurso de ingresso na carreira da magistratura federal da 4ª Região (2005), o respectivo edital prevê, artigo 27, § 1º, II, que se considera “como tempo de atividade jurídica aquele prestado na militância da advocacia, inclusive a pública, bem como o prestado em cargo público cujo exercício impeça a atividade como advogado, cujas atribuições exijam conhecimento e aplicação do Direito, comprovadas documentalmente”.

Mas a Constituição, ao exigir os três anos de atividade jurídica do bacharel em direito, como condição de ingresso na carreira, aponta como termo a quo do prazo o início da atividade jurídica, computada após a colação de grau, uma vez que tal atividade deve ser desempenhada pelo bacharel em direito; silencia, no entanto, quanto ao termo ad quem do prazo.

Em outras palavras, até que momento poderá o bacharel em direito comprovar os três anos de atividade jurídica, para ingressar na Magistratura?

A tarefa de responder a essa pergunta também cabe à lei complementar, ou seja, ao Estatuto da Magistratura.

Mas como essa norma, em sentido formal, não existe, deve-se buscar uma interpretação que seja mais harmônica com o texto constitucional, guiando a construção dos editais de concurso.

Julgando questão semelhante quanto à anterior exigência contida na Lei Complementar do Ministério Público da União, o Supremo Tribunal Federal, em pronunciamento monocrático da eminente Ministra Ellen Gracie, já teve a oportunidade de decidir que a exigência do período de 02 (dois) anos contados da colação de grau, no momento da inscrição preliminar e não apenas no instante da posse no cargo, encontra aparente resistência no princípio da razoabilidade que deve nortear os atos da Administração Pública, já que o lapso temporal mencionado denota requisito necessário para o exercício do cargo (MS 23939 MC, DJU 26/04/2001).

Adotando-se a orientação da Corte Suprema, bastante próxima do enunciado contido na Súmula 266 do Superior Tribunal de Justiça (o diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público), torna-se possível concluir que a comprovação dos três anos de atividade jurídica somente poderá ser exigida do candidato no momento da posse, já que se trata de requisito para o exercício do cargo (e não para a inscrição no concurso), não podendo o regulamento ou o edital dispor de maneira diversa.

O mérito dessa nova exigência é discutível. Eliminará da disputa os recém-formados, mas não garantirá, suficientemente, qualquer experiência significativa que importe em melhor qualificação do candidato a juiz. É exigência que gerará mais frustrações e mandados de segurança do que efetiva melhoria da seleção dos juízes.

Mais eficiente será investir na construção da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, que funcionará junto ao Superior Tribunal de Justiça, a quem competirá, entre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e a promoção na carreira (artigo 105, parágrafo único, inciso I, Constituição).

Note-se que, enquanto o artigo 93, inciso I, da Constituição exige apenas o concurso público de provas e títulos para o ingresso na carreira, o mesmo artigo, em seu inciso IV, prevê cursos oficiais de preparação (que não se confunde com aperfeiçoamento) de magistrados e o artigo 105, parágrafo único, inciso I, estabelece, entre as funções da Escola Nacional, regulamentar cursos oficiais para ingresso na carreira.

Esses artigos constitucionais devem ser interpretados em conjunto para se extrair que os tribunais, a partir do Estatuto da Magistratura ou até mesmo por imposição administrativa do Conselho Nacional de Justiça, poderão estatuir a aprovação em curso oficial de preparação como requisito de ingresso à carreira. A condição será que o referido curso observe a regulamentação expedida pela Escola Nacional.

A proposta defendida neste estudo é que a aprovação no concurso público signifique ingresso na Escola da Magistratura reconhecida pela Escola Nacional, com uma estrutura curricular sistêmica e holística que propicie uma formação integral do novo magistrado. Alternativamente, a freqüência e a aprovação no curso podem se dar durante a realização do concurso, o que, no entanto, poderá alongar em demasia a conclusão do certame.

A participação da Escola Nacional, e das escolas da magistratura por ela reconhecidas, também desempenhará papel decisivo na avaliação dos juízes, posto que a nova regra constitucional faz prever os cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados (artigo 93, IV, da Constituição). Além disso, a aferição do merecimento, para fins de promoção na carreira, será feita conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento (artigo 93, II, c, da Constituição), elementos que também deverão ser considerados para o deferimento da remoção a pedido ou da permuta de magistrados de comarca de igual entrância (artigo 93, VIII-A, da Constituição).

Nessas linhas gerais, a reforma constitucional do Poder Judiciário brasileiro foi a reforma possível, encerrando um ciclo de mais de uma década de discussões. O novo ciclo que agora se inaugura é aquele em que as reformas previstas pela emenda deverão ser implementadas, em que se começa a discutir um novo Estatuto da Magistratura, em que se discutem novos e antigos projetos de leis processuais e em que se cogita em uma segunda reforma constitucional...

De qualquer forma, é preciso reconhecer que passos importantes foram dados para a construção de um modelo democrático-contemporâneo de Poder Judiciário. Mas toda a atenção deve ser dispensada à consolidação dessas reformas, com ampla fiscalização da sociedade civil e de todos aqueles que se dedicam à causa do fortalecimento e da democratização do Judiciário, pois qualquer desvirtuamento desse processo poderá significar o aniquilamento das conquistas realizadas.





REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS