Aspectos destacados acerca da comprovação de três anos de atividade jurídica como requisito para o ingresso na magistratura Autor: Joel de Menezes Niebuhr |
I - Introdução 1. A Emenda Constitucional nº 45 atribuiu nova redação ao inciso I do artigo 93 da Constituição, exigindo para o ingresso na magistratura que o bacharel em Direito comprove no mínimo três anos de atividade jurídica. O novo enunciado do referido dispositivo constitucional vem provocando aguda polêmica e desencontros pontuais, tanto na doutrina, quanto no âmbito dos tribunais pátrios, que precisam instaurar novos concursos, a fim de dar provimento aos cargos vagos. O propósito deste artigo é trazer a lume argumentos que possam ajudar os intérpretes a apreender os efeitos do novo inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. 2. Registre-se que a Emenda Constitucional nº 45 também atribuiu nova redação ao § 3º do artigo 129 da Constituição Federal, exigindo também para o ingresso no Ministério Público que o bacharel em Direito comprove no mínimo três anos de atividade jurídica, de modo análogo ao inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Assim o sendo, grande parte das considerações tecidas ao longo do presente texto serve ao ingresso na carreira do Ministério Público. II – Da não auto-aplicabilidade do inciso I do artigo 93 da constituição federal com a redação dada pela Emenda à Constituição nº 45 A Teoria Constitucional é pródiga em classificar as normas constitucionais levando em consideração a aplicabilidade das mesmas, isto é, a possibilidade de elas produzirem efeitos práticos. Sobre o assunto, REGINA MARIA MACEDO NERY com poder de síntese, observa que “ sob o ponto de vista de sua aplicabilidade, pode-se identificar as que exprimem, diretamente, uma regra obrigatória, suficiente por si mesma e, por isso, consideradas como auto-aplicáveis e as que por não serem bastantes em si mesmas ficam na dependência de outras e são chamadas não auto-aplicáveis.” (FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas Constitucionais Programáticas. São Paulo: RT, 2001. p. 100) A classificação entre normas auto-aplicáveis e normas não auto-aplicáveis remonta ao liminar do constitucionalismo, tanto na doutrina estrangeira, quanto na nacional. A título ilustrativo, THOMAS M. COOLEY já apartava as normas constitucionais self-executing provisions das not self-executing provisions. (A treatise on the constitutional limitations which rest upon the legislative power of the States of American Union. Boston: Little Brow, 1890. p. 98 -101) No Brasil, a classificação proposta por JOSÉ AFONSO DA SILVA costuma ser citada à exaustão, dentro da qual se destacam (a) as normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata; (b) as normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição; (c) e as normas constitucionais de eficácia limitada. Estas últimas, de acordo com o referido constitucionalista, “ são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não-essenciais (...)”. (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1988. p. 82 -83) Enfim, há normas constitucionais que bastam em si, são auto-aplicáveis, porquanto o enunciado delas não demanda nenhuma espécie de integração legislativa. Noutra banda, há normas constitucionais que não bastam em si, cujo enunciado franqueia espaços em aberto que reclamam integração legislativa, essencial para determinar-lhes o sentido e o alcance. 4. Essa classificação, entre normas auto-aplicáveis e normas não auto-aplicáveis, foi recebida de forma abrangente pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, onde se pode colher uma plêiade de julgados sobre assuntos de extrema relevância, todos no mesmo sentido, por efeito do que se reconhece jurisprudência que se espraia pelos demais tribunais pátrios. Entre centenas de julgados, leia-se elucidativa passagem da lavra do MINISTRO CELSO DE MELLO, cujo teor é o seguinte: “A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Nela, acha-se consubstanciada uma ordem normativa cujo grau de eficácia e aplicabilidade revela-se, no entanto, essencialmente desigual (...). É, precisamente, o que ocorre com o preceito inscrito no § 3º do art. 192 da Constituição Federal, que configura, na clássica acepção das regras constitucionais de eficácia limitada, uma estrutura jurídica sem suficiente densidade normativa. Sem a legislação integrativa da vontade do constituinte, normas constitucionais – como a de que ora se trata – ‘não produzirão efeitos positivos’ e nem mostrar-se-ão aplicáveis em plenitude, pois ‘não receberam (...) do constituinte normatividade suficiente para a sua aplicação imediata’ (Maria Helena Diniz, op. cit., p. 101). Reclamam, em caráter necessário, atos de mediação legislativa, que lhes complementem o próprio conteúdo normativo.” (grifo acrescido. ADIn nº 4/DF, Voto do Ministro Celso de Mello) 5. Bem se vê que, tanto para a mais abalizada doutrina, quanto para a jurisprudência remansosa do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, existem normas constitucionais auto-aplicáveis, cuja aplicabilidade é imediata e integral, não dependendo de qualquer complementação, e normas constitucionais não auto-aplicáveis, cuja aplicabilidade depende de complementação legislativa, quer porque o constituinte assim o determinou expressamente, quer porque o enunciado dela não é bastante em si mesmo, não agrega densidade normativa suficiente para que ela seja aplicada de forma imediata e integral. 6. Sob esse contexto, salta aos olhos que a norma preceituada no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, de acordo com a redação que lhe foi atribuída por meio da Emenda à Constituição nº 45, não é auto-aplicável. Por oportuno, transcreva-se o inteiro teor do dispositivo em apreço: “Artigo 93 – Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observando os seguintes princípios: O ponto nodal é que o caput versa sobre o Estatuto da Magistratura, que é uma Lei Complementar, dispondo sobre as normas e os pressupostos que devem ser observados por ele. Logo, todas as considerações encartadas nos incisos que seguem ao caput do artigo 93 revelam preceitos dirigidos ao legislador, que deverá elaborar novo Estatuto da Magistratura ou adequar o já existente. É de evidência solar que as prescrições dos incisos do artigo 93 da Constituição Federal não visam à aplicação imediata, mas à integração legislativa, devem ser respeitados e previstos pelo legislador. É o legislador quem deve discipliná-los, explicitando o teor deles a fim de dar a eles praticidade e, por via de conseqüência, aplicabilidade. Trata-se de interpretar de modo literal e sistêmico o que está escrito no caput do artigo 93 e no seu inciso I. É extremamente claro que o enunciado no inciso I do artigo 93 não se reveste de autonomia, depende do caput, da Lei Complementar sobre a Magistratura. O que foi prescrito no inciso I é para ser disciplinado pela Lei Complementar prevista no caput; isto está escrito com todas as letras, de forma indubitável. Daí que, enquanto não sobrevier a referida Lei Complementar, o texto do inciso I do artigo 93 não deve ser aplicado, não lhe é dado produzir efeitos práticos. Noutras palavras, mesmo que se buscasse equivocadamente apreender o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal de modo isolado, apartando-o artificiosamente do seu caput, cumpre ponderar que o enunciado dele não é o bastante em si mesmo, requer que seja integrado, complementado, para que se lhe possa esclarecer o sentido e o alcance. (A) O dispositivo em apreço condiciona o ingresso na magistratura a três anos de atividade jurídica. No entanto, falta dizer o que é atividade jurídica, que tipo de empreendimento técnico e científico se insere nessa categoria. Por exemplo, o acadêmico de Direito, desde o momento em que ingressa na faculdade, dedica-se, rigorosamente, a uma atividade jurídica, já que o mesmo estuda a ordem jurídica. Mas será que o termo atividade jurídica, tal qual empregado no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, é tão abrangente? Se não o for, é inevitável reconhecer que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, no que tange a esse aspecto, demanda integração, ele por si só não é o suficiente, ele não é auto-aplicável. (B) No mesmo passo, infere-se que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal exige do bacharel em Direito três anos de atividade jurídica. Sem embargo, pode haver dúvida se a atividade jurídica exigida do bacharel deve ser posterior ao recebimento do título ou se é permitido computar a atividade jurídica anterior ao recebimento do título, desenvolvidas durante a graduação. Portanto, em mais esse aspecto o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal precisa ser integrado e complementado, pelo que mais uma vez é forçoso reconhecer que o mesmo não é auto-aplicável. 10. Cumpre destacar que a doutrina vem qualificando o enunciado normativo estatuído no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal como não auto-aplicável. Entre outros, LUIZ FLÁVIO GOMES e OLAVO A. VIANA ALVES FERREIRA observam: Tal tese encontra respaldo, outrossim, no princípio da legalidade, segundo o qual somente a lei poderá restringir direitos, não decisão discricionária de comissão de concurso, que definirá o que entende por atividade jurídica. O emprego da expressão ‘no mínimo, três anos de atividade jurídica’ traduz a possibilidade de o legislador ampliar o prazo para interstício maior do que três anos. Mas trata-se de diretriz que só pode ser adotada pelo legislador. Conclui-se que é imprescindível a edição de Lei complementar para que tal requisito seja exigido. Ademais, a tese ora defendida é compatível com os princípios de razoabilidade e proporcionalidade que decorrem do devido processo legal substancial, já que evitará adoção de interstícios diferentes entre as carreiras do Ministério Público e Magistratura dos diversos Estados da Federação, evitando afronta ao princípio da igualdade.” (GOMES, Luiz Flávio; FERREIRA, Olavo A. Viana Alves. A atividade jurídica como requisito para ingresso nas carreiras do Ministério Público e Magistratura – Eficácia e Aplicabilidade. In. www.proomnis.com.br) A nosso ver, seria absurdo e iníquo entender assim. Deve-se esperar que a lei regulamente esta importante matéria, levando em conta situações de incompatibilidade de exercício da advocacia, prevendo, nesses casos, que cursos especiais ou profissionalizantes possam conferir a experiência prática na atividade jurídica, como desejado pela Emenda Constitucional, sob pena de inadmissivelmente inviabilizar-se o ingresso na Magistratura de diversos candidatos que estejam legalmente impedidos de exercer a advocacia. Todas essas são questões que supõem regulamentação em âmbito federal, para evitar discrepâncias regionais as quais fariam com que uma exigência nacional fosse interpretada de maneira diferente em cada Estado-Membro, quebrando-se inadmissivelmente a unidade do Direito Federal.” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A prática de “atividade jurídica” nos concursos . In. www.damasio.com.br) Ante tais reflexões, robustece-se a corrente segundo a qual a exigência de ‘atividade jurídica’, semelhantemente a outros preceitos da EC 45/04, carece de regulamentação (EC, art 7º), observada evidentemente a peculiaridade de que, no particular, há necessidade de Lei Complementar de iniciativa do STF (CF, art. 93, caput)”. (PANIAGO, Izidoro Oliveira. Ingresso na magistratura – Exigência de três anos de “atividade jurídica” – Regulamentação no âmbito trabalhista pelo TST – Inconstitucionalidade. Jornal Síntese, ano 9, n. 100, p. 10 -11, jun./2005) 11. É certo que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional nº 45, não é auto-aplicável, já que é destinado à integração legislativa por meio de Lei Complementar, bem como por si só não agrega densidade normativa suficiente, não é bastante em si, pelo que requer seja complementado e esclarecido. 13. Essa afirmativa, de que os tribunais não agregam competência para disciplinar de modo autônomo o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, decorre, de maneira incisivamente evidente, do próprio texto do aludido dispositivo constitucional. Repita-se que o artigo 93 dispõe sobre a Lei Complementar acerca da Magistratura, conhecida como Estatuto da Magistratura, impondo ao legislador o cumprimento de certos preceitos já determinados de antemão no altiplano constitucional, enumerados em seus incisos. Logo, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal dirige-se expressamente ao legislador, responsável pela confecção da Lei Complementar referida no seu caput. É o Congresso Nacional a entidade competente para disciplinar e complementar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, através de Lei Complementar, não os tribunais, ainda que superiores, por meio de mero ato administrativo. 16. O acórdão supracitado é categórico ao pontificar que ato administrativo não se presta a substituir a lei, não se presta a regulamentar autônoma e diretamente a Constituição Federal. Quem deve disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, através de Lei Complementar, como demanda o caput do referido artigo. A falta da Lei Complementar não opera transferência de competência aos tribunais pátrios. Nos termos do art 5º, II, ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Aí não se diz ‘em virtude de’ decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. Diz-se ‘em virtude de lei’. Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar (...) Nos dois versículos mencionados estampa-se, pois, e com inobjetável clareza, que administração é atividade subalterna à lei; que se subjuga inteiramente a ela; que está completamente atrelada à lei; que sua função é tão-só a de fazer cumprir a lei preexistente; e, pois, que regulamentos independentes, autônomos ou autorizados são visceralmente incompatíveis com o Direito brasileiro (...). O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina.” (grifo acrescido. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 85-87) Em atenção ao princípio analisado, não se admite que qualquer ato normativo editado pela Administração para reger o concurso traga imposições ou estabeleça distinções onde a lei não os fez. Em resumo: o edital que trouxer exigências que não estejam consagradas na lei é ilegal. Obviamente, o conteúdo da lei está sujeito a controle mediante cotejo com os princípios constitucionalmente albergados, notadamente os que regem a atividade administrativa.” (grifo acrescido. WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme Costa (org.). Direito público: estudos em homenagem ao professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 321) 1.Somente a lei em sentido estrito, ou seja, o ato normativo emanado do Poder Legislativo, tem a virtude de criar restrições de direito ou impor condições, tal como a especificidade da escolaridade de nível superior, para acesso aos cargos públicos, sendo as normas veiculadas através de provimentos subalternos desprovidas de tal potestade. 2. É incompatível com o art. 37, I, da Carta Magna a disposição contida no item 3.6 do edital nº 1/94 do Ministério do Trabalho, regente do certame público para o preenchimento de cargos de fiscal do trabalho, que exige a graduação superior em Administração, Direito, Ciências Econômicas ou Ciências Contábeis e Atuariais como requisito ao exercício do referido cargo, eis que tal norma editalícia não encontra suporte em lei e o Decreto nº 88.355/83 não lhe fornece supedâneo jurídico suficiente, por se tratar de norma meramente executiva. 3. Remessa improvida. Indexação de processo de citação”. (grifo acrescido. TRF 5ª R., Remessa Ex Officio nº 54687, Processo nº 96.05.12632-0, PB, 1ª T., Rel. Juiz Napoleão Maia Filho (substituto), Data da Decisão: 17.10.96, Documento: TRF500019782, DJ 13.12.96, p. 96963, decisão unânime) I. São ilegais as exigências contidas no edital para prestação de concurso público, no que se refere ao não reconhecimento da escola de graduação que estão cursando os impetrantes. O edital faz lei entre as partes desde que haja lei formal que lhe dê sustentação, não sendo, portanto, possível a restrição de direito, nem a criação de norma obrigatória que não esteja prescrita em lei; assim, os impetrantes possuem direito líquido e certo de participarem do concurso, sendo ilegais os cancelamentos de suas inscrições. II. Remessa necessária e recurso improvidos, para manter a sentença. Indexação concurso público, edital, escolaridade”. (grifo acrescido. TRF 2ª R., Apelação em Mandado de Segurança, Processo nº 90.02.00484-2, RJ, 1ª T., Rel. Juiz Chalu Barbosa, Data da decisão 21.03.94, Documento: TRF200020590, DJ 17.05.94, p. 23160, decisão unânime, desprovimento) O cerne da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade reside na incompetência do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho para criar restrições ao acesso a cargo público, dado que, como visto, elas somente poderiam ser criadas por lei. Registre-se que, por votação unânime, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL deferiu em parte o pedido formulado na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, suspendendo as restrições criadas pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho através de Resolução meramente administrativa. Por oportuno, leia-se excerto extraído do voto do MINISTRO MARCO AURÉLIO: “Ao primeiro exame, exsurge a relevância da matéria. Realmente requisitos concernentes ao acesso a cargos públicos hão de estar definidos em lei formal. Inexiste diploma legal emanado do Poder Legislativo que imponha, quanto ao acesso à Magistratura do Trabalho, comprovação quer de determinado tempo de prática forense ou que a ela seja equivalente, quer de tempo de graduação no curso de Direito, ou ainda de aprovação em exame psicotécnico ou entrevista. É certo que o artigo 654, §3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao dispor sobre os concursos públicos de provas e títulos destinados ao preenchimento do cargo de Juiz do Trabalho Substituto, prevê a organização ‘de acordo com as instruções expedidas pelo Tribunal Superior do Trabalho’. Todavia, a previsão legal deve ter alcance perquirido em face à ordem jurídica global. No caso vertente, tem-se que, à primeira vista, as instruções em comento não podem alcançar campo reservado à lei em sentido formal, ou seja, implicar exigências estranhas à própria ordem jurídica. O princípio da legalidade obstaculiza a abrangência emprestada à autorização do § 3º do artigo 654 referido. A assim não se entender, admitir-se-á verdadeira delegação normativa estranha aos contornos da carta política da República.” 23. Explicando melhor: o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45, criou restrições ao acesso a cargo público através de resolução meramente administrativa. A questão foi levada ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que, à unanimidade, declarou que resolução meramente administrativa, ainda que provenha do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, não agrega força para criar restrições ao acesso a cargo público. Tais restrições – isso é dito de modo retumbante – somente podem ser criadas por lei em sentido formal, isto é, pelo Poder Legislativo. Se não fosse pela dicção transparente do caput do artigo 93 da Constituição Federal, o princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º e no caput do artigo 37, ambos os dispositivos da Constituição Federal, já seria o bastante para objetar qualquer ato administrativo que se propusesse a tanto. Demais disso, convém enfatizar que o princípio da legalidade, em relação aos concursos públicos, é ainda mais rigoroso, haja vista que os incisos I e II do artigo 37 da Constituição Federal prescrevem, com todas as letras, que somente lei em sentido formal, emanada do Poder Legislativo, pode autorizar critérios, condicionantes e restrições ao acesso a cargo público. O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal estabelece duas restrições aos interessados na magistratura: a primeira é que eles sejam bacharéis em Direito; a segunda é que eles comprovem, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Uma condição não depende da outra. Não há nada no texto constitucional que autorize afirmar com objetividade que as atividades jurídicas devem ser desenvolvidas somente após a obtenção do título. O constitucionalista ANDRÉ RAMOS TAVARES já se pronunciou sobre esse tópico, tendo assinalado o seguinte: Entretanto, atente-se à circunstância de que o dispositivo está a exigir dois requisitos distintos: (i) contar com três anos de atividade reconhecida como jurídica; e (ii) possuir diploma de bacharel. Ambos os requisitos são exigíveis no momento do ingresso da carreira concomitantemente. Mas não há nada que exija a precedência do item (ii) em relação ao (i), ou a concomitância destes no tempo, ou seja, não está dito que é necessário possuir o diploma de bacharel para que se inicie a contagem do prazo mínimo de três anos de experiência. Como ficou dito, são requisitos concomitantes no ato que determine o ingresso na carreira, mas independentes entre si (qualquer deles pode realizar-se sem a realização do outro requisito, que se agregará supervenientemente).” (TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil Pós-88. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 68) Acontece que, ao exigir atividade jurídica, o Congresso Nacional não criou discrime baseado na idade dos interessados, o que seria algo aleatório. O discrime estatuído no texto constitucional adotou como referência a experiência do interessado no universo jurídico, por efeito do que requer a comprovação de atividade jurídica. Quer-se, a todas as luzes, aferir a experiência, não meramente a idade. E, há de se convir, a experiência no universo jurídico não se inicia com a obtenção do título de bacharel em Direito. Antes mesmo do título, o interessado na carreira da magistratura pode agregar experiências jurídicas, que, no final das contas, importam na atividade jurídica demandada no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. 30. De todo modo, em decorrência do preceito isonômico e da norma estatuída no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país tem o direito de acesso aos cargos públicos, tudo de acordo com os requisitos prescritos em lei. Portanto, há uma regra e uma exceção: a regra é que todos tenham acesso aos cargos públicos; a exceção diz respeito às restrições prescritas em lei. Sob essa perspectiva, deve-se trazer à colação princípio de hermenêutica segundo o qual a regra deve ser interpretada de modo ampliativo; e a exceção deve ser interpretada como tal, isto é, de modo restritivo. Nos dizeres de CARLOS MAXIMILIANO, “ quando as palavras forem suscetíveis de duas interpretações, uma estrita, outra ampla, adotar-se-á aquela que for mais consentânea com o fim transparente da norma positiva.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 314) Insista-se que a regra é que todos tenham amplo acesso aos cargos públicos, em obséquio ao preceito isonômico e ao inciso I do artigo 37 da Constituição Federal. Então, se determinado enunciado normativo admite duas interpretações, uma que restringe o acesso ao cargo, outra que não restringe, deve-se adotar a segunda interpretação, que é mais compatível com o princípio da isonomia, um dos baluartes da Carta Magna. 31. O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal exige do bacharel em Direito que pretende ingressar na magistratura, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Pode-se até admitir que há dúvida a respeito da possibilidade de computar a atividade jurídica anterior à obtenção do título de bacharel em Direito ou não. Se assim for, pode-se reconhecer que existem duas possibilidades de interpretação. Uma que amplia o acesso dos interessados à magistratura, permitindo a eles computar as suas realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica; outra que restringe o acesso dos interessados à magistratura, pois somente admite as atividades posteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica. 32. Partindo-se do postulado de hermenêutica de que a regra deve ser interpretada de modo amplo e do pressuposto de que a regra é o direito de todos à acessibilidade aos cargos públicos, é imperativo que se interprete o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal no sentido de que é permitido aos interessados na carreira da magistratura comprovarem o interregno mínimo exigido de atividade jurídica através de empreendimentos e realizações qualificadas como jurídicas que sejam anteriores à data da obtenção do título de bacharel em Direito. Trata-se de levar a cabo raciocínio lógico-dedutivo, de fundo sistêmico e tópico, tomando os princípios da isonomia e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos como referência para desnudar o sentido e o alcance da expressão atividade jurídica tal qual disposta no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Tomando na devida conta os referidos princípios, conclui-se facilmente que se deve atribuir à expressão atividade jurídica percepção ampla, permitindo, insista-se à exaustão, comprová-la através de empreendimentos e realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel em Direito. 33. A propósito, até o advento da Emenda Constitucional nº 45 os tribunais pátrios discutiram com profundidade conceito parecido, de prática forense. Ocorre que, até então, se costumava exigir dos candidatos certo período de prática forense e, por via de conseqüência, as discussões aforaram em relação ao alcance do termo, sobremodo se os interessados poderiam comprovar tempo de prática forense antes da obtenção do título de bacharel em Direito ou não. Várias decisões foram prolatadas sobre a elasticidade do termo prática forense, especialmente no âmbito do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, que, com estribo no princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, enfeixado no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, sempre admitiu a comprovação do tempo requerido através de atividades realizadas à época do curso de graduação. Confira-se elucidativa ementa de acórdão relatado pelo MINISTRO HAMILTON BUENO DE CARVALHO: “Mandado de segurança. Concurso Público. Advocacia-Geral da União. Prática Forense. LC 73/93. Não comprovação no momento da inscrição. Ordem denegada. 1. É legítima a exigência de prática forense para o ingresso nas carreiras da Advocacia-Geral da União, mas o seu conceito deve ser interpretado de forma ampla, de modo a compreender não apenas o exercício da advocacia e de cargo no Ministério Público, Magistratura ou outro qualquer privativo de bacharel de direito, como também as atividades desenvolvidas perante os Tribunais, os Juízos de primeira instância e até estágios nas faculdades de Direito, doadoras de experiência jurídica.” (grifo acrescido. STJ, MS nº 6742/DF) Em complemento, leia-se trecho de voto prolatado pelo MINISTRO VICENTE LEAL: “Tenho que o edital em apreço adotou conceito restritivo que não se compadece com o princípio maior da acessibilidade aos cargos públicos (CF, art. 37, I), nem com o conteúdo literal da norma, pois prática forense não significa exercício profissional de advocacia, nem atuação funcional como membro do Ministério Público ou da Magistratura ou em cargo privativo de Bacharel em Direito. O conceito de prática forense deve ser concebido de forma mais abrangente , compreendendo outras atividades vinculadas ao manuseio de processos no foro, seja como estudante de direito cumprindo estágio regular supervisionado, seja como funcionário prestando serviço junto às Secretarias de Varas ou Turmas ou a gabinetes de magistrados .” (grifo acrescido. STJ. MS 6.200/DF) 35. Por tudo e em tudo, colaciona-se, em síntese e de forma objetiva, as seguintes considerações finais: Em segundo lugar, os tribunais não reúnem legitimidade para, através de mero ato administrativo, regulamentar de modo autônomo e direto, sem a imprescindível intermediação legislativa, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Portanto, qualquer ato administrativo nesse sentido é inconstitucional, pois extravasa os lindes da competência regulamentar, em afronta aberta ao princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º, no caput e nos incisos I e II do artigo 37, todos dispositivos da Constituição Federal. Em terceiro lugar, admitindo-se a hipótese de prevalecer entendimento segundo o qual o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é auto-aplicável, muito embora manifestamente equivocado, é imperativo que os tribunais levem em consideração as atividades jurídicas realizadas pelos candidatos antes da obtenção do bacharelado, o que encontra respaldo no texto do inciso I do artigo 93 da Constituição Federal e nos princípios tópicos que devem iluminar a sua interpretação, mormente o da isonomia (caput do artigo 5º da Constituição Federal) e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos (inciso I do artigo 37 da Constituição Federal). |
REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |