Prescrição administrativa na Lei 9.873, de 23.11.99: entre simplicidade normativa e complexidade interpretativa(1)

Autor: Marcelo Madureira Prates
(
Procurador do Banco Central do Brasil, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas
pela Faculdade de Direito de Coimbra - Portugal)

| Artigo publicado em 19.01.200
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Sumário

1. Introdução. 2. Âmbito de Aplicação. 3. Estrutura Reguladora. 4. Regra Geral. 4.1. Exceções ao Termo Inicial. 4.2. Exceções ao Prazo Qüinqüenal. 4.2.1. Caso de Diminuição do Prazo Qüinqüenal. 4.2.2. Caso de Substituição do Prazo Qüinqüenal. 4.2.3. Casos de Aumento do Prazo Qüinqüenal. 5. Regra Excepcional. 6. “Limbo Normativo”. 7. Conclusão. 8. Bibliografia Citada.

1. Introdução

A prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública Federal somente passou a ser disciplinada de forma expressa e específica com a edição, em 30.06.98, da Medida Provisória 1.708. Tal Medida Provisória entrou em vigor no dia 1º de julho desse ano e somente foi convertida em lei em 23.11.99, data da promulgação da Lei 9.873.

Muito embora seja uma lei pequena – a Lei 9.873/99 possui oito artigos e, desses oito, apenas três (1º, 2º e 4º) constituem o seu cerne –, há várias dificuldades no momento de sua interpretação e aplicação. Procuraremos, neste estudo, salientar essas dificuldades e propor algumas soluções possíveis, sem, no entanto, ignorar que tanto os problemas interpretativos quanto as soluções viáveis são bastante diversificados, dadas a complexidade do tema e a inconsistência da legislação relacionada.

Antes, porém, de adentrarmos a Lei 9.873/99, um alerta deve ser feito. Essa lei trata especificamente da prescrição da pretensão administrativa punitiva no âmbito federal. Para nós, a avaliação da prescrição em matéria sancionadora, seja no plano criminal (caput do art. 61 do Código de Processo Penal)(2), seja no plano administrativo, é de ordem pública, devendo ser declarada não apenas por expresso requerimento das partes interessadas, mas também de ofício, independentemente da fase em que esteja o respectivo processo punitivo, de natureza judicial ou administrativa.

Se o próprio Estado limita temporalmente o seu poder de punir, incluído aí o poder administrativo, por meio de uma lei, lei essa que vem concretizar um princípio fundamental de qualquer Estado de Direito, o da segurança jurídica, impõe-se que tanto as autoridades judiciais como as autoridades administrativas existentes nesse Estado reconheçam a perda de toda e qualquer pretensão punitiva pelo decurso do tempo, ainda que tal reconhecimento não seja expressamente pleiteado pela parte a quem ele mais interesse. Nesse caso, o interesse público, por isso mesmo maior, em ver as relações jurídicas estabilizadas deve prevalecer.

2. Âmbito de aplicação

“Art. 1 o  Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor (...).

Art. 5 o  O disposto nesta Lei não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária.”

Logo de pronto, há de se definir que atividades administrativas estão sujeitas às regras trazidas pela Lei 9.873/99, algo que certamente constitui o ponto menos polêmico da análise ora desenvolvida.

De forma simples e direta, pode-se afirmar que somente as ações administrativas punitivas desenvolvidas no plano da Administração federal, seja direta, seja indireta, recebem a incidência do disposto na lei sob crivo, como exsurge da parte inicial do seu art. 1º. Conjugam-se, pois, dois elementos na determinação do âmbito de aplicação da Lei 9.873/99, os quais serão úteis para se fixar, a contrario sensu, as atividades dele excluídas: (1) a natureza punitiva da ação administrativa; e (2) o caráter federal da autoridade responsável por essa ação.

Note-se, a propósito, que a referência legal aí contida restringindo a incidência do prazo prescricional à ação punitiva da Administração desenvolvida no exercício do poder de polícia para mais de ser despicienda é inadequada. O poder punitivo exercido pela Administração nas suas relações de natureza geral(3) é, antes de tudo, uma expressão do poder punitivo estatal, cujo aparecimento, alcance e duração dependem sobretudo da discricionariedade do legislador. Isso implica que o poder administrativo sancionador não deva ser visto como um acessório ou como um subpoder derivado de outros poderes administrativos, nomeadamente do poder de polícia. Ao contrário. Uma vez criado pelo legislador, o poder sancionador surge como poder administrativo autônomo que não deve ser confundido nem identificado com o poder administrativo de polícia, o qual não pode mais ser visto como fundamento de toda a atividade administrativa restritiva, como ainda sustenta significativa parcela da doutrina(4).

Em vista da dispersão e da complexidade experimentadas atualmente pelas sanções administrativas, a atividade administrativa sancionadora não encontra abrigo na idéia de poder de polícia, a qual deve, igualmente, ser definida de maneira própria e restrita. Assim, é de se diferençar as limitações e os gravames impostos com base no exercício do poder administrativo de polícia, que têm caráter preventivo-estratégico, visando primordialmente a conservar, a manter a ordem público-administrativa, das limitações e dos gravames produzidos pelo poder administrativo sancionador, de cunho reativo e com o desígnio primacial de reafirmar os valores da ordem público-administrativa já irremediavelmente atingidos. A separar essas duas espécies de poder administrativo está a infração administrativa: enquanto o poder de polícia é utilizado para evitá-la, aparecendo sempre e unicamente em momento anterior à sua concretização plena, o poder sancionador é exercido para reprová-la, somente surgindo em instante posterior à sua esgotadura(5).

De volta ao âmbito de aplicação da Lei 9.873/99, agora sob o prisma negativo, de se ressaltar as ações administrativas que não estão sujeitas às disposições dessa Lei, não se submetendo, ao menos por esse fundamento, ao prazo prescricional qüinqüenal.

Em primeiro lugar, excluídas estão as ações administrativas punitivas desenvolvidas por estados e municípios, vez que a Lei 9.873/99 só tem aplicabilidade no plano federal.

Em segundo lugar, ficam excluídas as ações administrativas que, apesar de poderem ser desfavoráveis aos interesses dos administrados por elas atingidos, não possuem natureza punitiva, como, v. g., as medidas administrativas revogatórias(6), as cautelares(7) ou as reparatórias(8). A dúvida que aqui surge, por conseguinte, diz respeito ao prazo prescricional aplicável a essas medidas, mormente no que toca às medidas reparatórias, já que também elas são precedidas pela prática de um ato ilícito. De um lado, pode-se advogar que, na ausência de lei especial que trate da matéria, torna-se imperioso recorrer à disciplina geral sobre prescrição, disciplina essa que no ordenamento jurídico brasileiro é oferecida pelo Código Civil. De outro lado, porém, há doutrina, capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello(9), que não admite o recurso às normas civis por serem elas de natureza privada, defendendo, então, que, à falta de regra específica, o prazo prescricional incidente sobre as pretensões da Administração contra os administrados seja de cinco anos, em paralelo com outros prazos prescricionais vigentes no Direito Público(10). Diante desse impasse, julgamos ser proveitoso que a Administração procure desenvolver toda a sua atuação desfavorável, punitiva ou não, dentro desse prazo menor de cinco anos, especialmente para evitar futuros questionamentos judiciais de resultado nem sempre uniforme ou previsível.

Em terceiro e último lugar, aqui por expressa disposição do art. 5º da Lei 9.873/99 e não por ausência de um dos dois elementos determinadores do seu âmbito de aplicação, excluem-se da incidência dessa lei tanto a ação punitiva disciplinar como a ação punitiva tributária, ambas sujeitas a prazos prescricionais próprios, a primeira com base na Lei 8.112, de 11.12.90, e a segunda com fundamento no Código Tributário Nacional.

3. Estrutura Reguladora

Demarcado assim o âmbito de aplicação da Lei 9.873/99, é hora de avaliar a sua estrutura reguladora, de primeiro em plano mais aberto. A citada lei traz duas regras principais sobre a incidência e o cômputo do prazo prescricional administrativo uma geral, formada, a bem da verdade, pelos seus três primeiros artigos e aplicável a partir da entrada em vigor da primeira Medida Provisória que tratou do tema – MP 1.708, em vigor desde 01.07.98 –, e outra excepcional, presente no seu art. 4º e destinada a cuidar dos casos anteriores a 01.07.95. O problema é que o normativo nada dispõe sobre as infrações acontecidas entre 01.07.95 e 30.06.98, deixando esse período de três anos em verdadeiro “limbo normativo” no que toca ao prazo prescricional.

O cenário é, pois, o seguinte:

a) regra geral: para as infrações administrativas posteriores a 01.07.98, a ação administrativa punitiva prescreve em cinco anos contados da prática do ilícito (caput do art. 1º da Lei 9.873/99), salvo (1) a paralisação do processo administrativo por mais de três anos (§ 1º do art. 1º da Lei 9.873/99), (2) a incidência do prazo prescricional da lei penal quando o ilícito administrativo também constituir crime (§ 2º do art. 1º da Lei 9.873/99) ou (3) a existência de ato interruptivo (art. 2º da Lei 9.873/99) ou suspensivo (art. 3º da Lei 9.873/99);

b) regra excepcional: para todas as infrações cometidas antes de 01.07.95, a pretensão punitiva da Administração prescreveu em 01.07.2000, salvo existência de ato interruptivo (art. 4º da Lei 9.873/99);

c) “limbo normativo”: as normas nada dizem sobre o prazo prescricional aplicável às infrações praticadas entre 01.07.95 e 30.06.98.

Vejamos, então, uma a uma e com detença as situações acabadas de identificar, sendo de se atentar para o fato de que logo na estrutura da norma já se encontra um problema de regulação, dada a omissão de tratamento sobre determinado período.

4. Regra geral

“Art. 1 o  Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.”

Em toda análise a respeito de prescrição dois são os elementos fundamentais a serem considerados pelo intérprete, os quais, conjugados, constituem o ponto de partida avaliatório: (1) o prazo prescricional e (2) o termo inicial da contagem desse prazo.

À face desse quadro e sabendo que a essência da por nós denominada regra geral (arts. 1º a 3º da Lei 9.873/99) está inserta no caput do referido art. 1º, extrai-se que para as infrações administrativas posteriores a 01.07.98, a ação administrativa punitiva prescreve em cinco anos contados da data da prática do ilícito.

Mas por que 0 1.07.98 é fixado como o divisor de águas em se tratando de prescrição administrativa? Porque essa, como dito, é a data de entrada em vigor da primeira Medida Provisória que cuidou expressamente do tema, qual seja, a MP 1.708, de 30.06.98. Antes disso, defendia-se desde a imprescritibilidade da ação administrativa punitiva até a utilização analógica do prazo qüinqüenal aplicado em outras esferas da atuação pública(11).

Definida a regra geral, examinemos as exceções que sobre ela incidem, tanto no que toca ao prazo, quanto no que diz respeito ao termo inicial. Comecemos pelo termo inicial.

4.1. Exceções ao Termo Inicial

Em dois casos o termo inicial da regra geral deixa de ser a data da prática do ato ilícito para ser o dia da cessação da infração (parte final do caput do art. 1º da Lei 9.873/99 ). Isso ocorre no caso de o ilícito ser permanente ou continuado. Note-se que não há aí sinonímia, mas sim distinção.

Infração permanente existe quando há um único ato ilícito cuja conduta perdura no tempo(12). Já infração continuada surge quando dois ou mais ilícitos da mesma espécie são realizados de modo similar. Em ambos os casos, o prazo prescricional apenas começa a correr quando cessa a infração, isto é, quando a conduta da infração permanente é interrompida ou quando, no caso da infração continuada, o último ilícito é praticado. A simplicidade da exposição esconde algumas particularidades que precisam ser elucidadas.

Quanto à infração permanente, ela há de ser diferenciada da infração imediata de efeitos negativos permanentes, especialmente para avaliação do termo inicial do prazo prescricional. Permanente é somente a infração administrativa cuja conduta que a define denota repetição ou habitualidade, normalmente representada por verbos como manter, conservar e quejandos. Infração imediata, porém de efeitos negativos permanentes, doutro modo, indica as infrações cuja conduta, note-se bem, é instantânea, mas cujos efeitos, esses sim, são duradouros. É o que se dá, em regra, com o descumprimento de deveres administrativos que demandam ação ou omissão única e específica do administrado, como contratar câmbio até a data x ou não estacionar em local proibido.

Já em relação à infração continuada, é de se precisar o que significa ilícitos da mesma espécie e realizados de modo similar para o domínio administrativo sancionador, vez que para o domínio penal o art. 71 do Código Penal traz solução bastante, a qual, apesar de servir aqui de forma analógica, não pode ser transposta pura e simplesmente. Para que dois ou mais ilícitos administrativos possam ser considerados da mesma espécie acreditamos ser necessário que as diversas condutas irregulares sejam idênticas ou, quando menos, que elas apareçam em relação seqüencial de dependência dado o fim único visado pelos infratores. Ademais, a autoridade administrativa responsável pela sua punição deve ser a mesma. Indo além, para se saber se alguns ilícitos administrativos são realizados de modo similar, deve-se atentar especialmente para o elemento temporal que lhes é peculiar, buscando verificar se há proximidade temporal na sua prática(13).

O problema a ser enfrentado diz respeito ao prazo razoável a ser levado em conta para se determinar a continuidade delitiva. A t endência no direito penal é fixar em um mês o prazo dentro do qual se admite a continuidade delitiva(14), mas lá, no âmbito jurídico-penal, os deveres são estáveis e visam à proteção de bens jurídicos concretos de maior relevância (não matar, não roubar, etc.). Porém, no domínio administrativo, os deveres são bem mais diversificados e volúveis, o que torna a análise do prazo razoável para a admissão de continuidade delitiva dependente do âmbito administrativo envolvido. No plano da regulação administrativa do trânsito, por exemplo, em que grande parte dos deveres a serem observados é de natureza diária e constante, é difícil falar em continuidade delitiva mesmo no caso de descumprimentos idênticos ocorridos no mesmo dia, como uma multa por excesso de velocidade na manhã e outra multa por idêntica razão no período da noite. Já no plano da regulação administrativa do mercado financeiro, em que existem vários deveres de cunho mensal ou semestral – como a prestação de informações –, é possível falar-se em continuidade delitiva até no curso de meses.

Vistas as exceções ao termo inicial do prazo prescricional administrativo, passemos ao exame das exceções que atingem o próprio prazo qüinqüenal, seja para diminuí-lo, seja para estendê-lo, seja ainda para substituí-lo.

4.2. Exceções ao Prazo Qüinqüenal

4.2.1. Caso de Diminuição do Prazo Qüinqüenal

“§ 1º  Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.”

A parte inicial do § 1º do art. 1º da Lei 9.873/99 diz expressamente que “incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho”. Note-se que o dispositivo não fala especificamente em processo, ou melhor, em procedimento punitivo, mas simples e unicamente em procedimento administrativo, procedimento esse, julgamos nós, necessariamente relacionado a uma pretensão punitiva da Administração federal. E um procedimento administrativo está ligado à ação administrativa punitiva e, por decorrência, às regras constantes na Lei 9.873/99, desde o momento em que uma determinada conduta passa a ter a sua licitude questionada pela competente autoridade administrativa fiscalizadora, desencadeando a apuração dos fatos supostamente ilícitos – fase investigativa –, até o momento em que a decisão torna-se definitiva no plano administrativo.

Para nós, o processo administrativo punitivo, entendido aqui como o processo administrativo que envolve uma pretensão administrativa punitiva, começa não com a citação do administrado infrator, mas sim com o aparecimento da dúvida sobre a licitude de certo ato, que leva aos procedimentos iniciais para a sua apuração. A citação do suposto infrator apenas aperfeiçoa, completa a relação processual – administrativa, esteja claro – já iniciada na fase investigativa, ao trazer formalmente o interessado para dentro do processo administrativo, de forma a que ele possa exercer os seus direitos constitucionais de contraditório e de ampla defesa, participando da construção de uma decisão administrativa que poderá afetar seriamente os seus direitos e interesses.

Portanto, defendemos que o processo administrativo sujeito à paralisação fatal prevista no § 1º do art. 1º da Lei 9.873/99 começa já na fase investigativa, não podendo a Administração deixar de movimentá-lo desde então, o que, para mais, está em consonância com o princípio da eficiência que deve reger toda a atuação administrativa (caput do art. 37 da Constituição da República).

Demais, ainda segundo a referida regra, a movimentação processual impeditiva da paralisação trienal fatal pode ser representada tanto pelo julgamento da causa processual administrativa, como por um simples despacho. Importa, pois, definir o que caracteriza esse despacho, dada a fluidez inerente ao termo.

Despacho, no caso, deve ser entendido como qualquer ato da Administração praticado no processo administrativo que traga efetiva inovação aos autos, como se dá com as manifestações técnicas produzidas pela Administração a respeito de elementos trazidos aos autos processuais (análise de fatos, de provas, de defesa), com os pareceres ou ainda com a adoção de providências internas ou externas que importem impulso processual (p. ex.: expedição de intimações). Doutro modo, não podem ser tidos por despacho a mera circulação dos autos pelas diversas áreas técnicas da Administração envolvidas no processo sem a produção de nenhuma manifestação, ou a mera repetição de manifestações ou de providências já presentes nos autos processuais.

Observe-se, desde logo, que esse despacho previsto no § 1º do art. 1º da Lei 9.873/99 não pode ser confundido com o ato inequívoco de apuração que constitui um dos atos interruptivos da prescrição (inciso II do art. 2º da Lei 9.873/99), o qual possui caracterização bem mais específica e, por isso mesmo, restrita, como logo veremos.

4.2.2. Caso de Substituição do Prazo Qüinqüenal

“§ 2º  Quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.”

No que toca à utilização dos prazos prescricionais consignados na lei penal em substituição ao prazo prescricional administrativo, de se notar que o § 2º do art. 1º da Lei 9.873/99 exige que “o fato objeto da ação punitiva da Administração também [constitua] crime”. Isso implica que somente quando o fato, o mesmo e único fato, for punível simultaneamente nos planos administrativo e criminal será possível aplicar o referido § 2º. Portanto, se há mera conexão de ilícitos administrativo e penal imputados ao mesmo administrado sem, no entanto, haver identidade fática, não incide o prazo prescricional da lei penal, ainda que as infrações tenham origem em fatos praticados sob a mesma circunstância espaço-temporal.

Esse é o caso, por exemplo, da infração administrativa conhecida por “sonegação de cobertura cambial” (art. 3º do Decreto 23.258, de 19.10.33), a qual tem sido relacionada ao crime de “manutenção no exterior de depósitos não declarados à repartição federal competente” (parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492, de 16.06.86). Não há dúvida de que essas infrações administrativa e penal estão relacionadas e são praticadas pelo mesmo administrado em semelhantes circunstâncias espaço-temporais. Contudo, os fatos que motivam cada um dos ilícitos são bem distintos: o fato objeto da ação administrativa punitiva é a não-celebração de um contrato de câmbio exigido no caso; modo outro, o fato objeto da persecução penal é a manutenção no estrangeiro de valores sem a exigida declaração ao órgão administrativo competente. Assim, fácil é de perceber que, embora relacionados, o fato objeto da pretensão punitiva administrativa difere do fato objeto da ação penal, impedindo, pois, que se aplique o § 2º do art. 1º da Lei 9.873/99 na hipótese.

Vale citar, para bem marcar esse ponto, um exemplo oposto, que deixe clara a identidade fática entre ilícitos administrativo e penal a autorizar a incidência do mencionado § 2º. É o caso da “prestação de informação falsa em operação de câmbio”, já que esse único fato representa não apenas o ilícito administrativo previsto no § 3º do art. 23 da Lei 4.131, de 03.09.62, mas igualmente o crime enunciado na parte final do parágrafo único do art. 21 da Lei 7.492/86.

Ainda nesse tocante, outra precisão é de ser feita. O multicitado § 2º diz tão-somente que “a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal” (grifei), e não que a prescrição administrativa será regida pelas regras previstas na lei penal quando o ilícito administrativo também constituir crime. Ou seja, quando o fato punível no plano administrativo também o for, em tese, no plano criminal, afastado ficará apenas o prazo prescricional geral de cinco anos previsto no caput do art. 1º da Lei 9.873/99, vez que deverá incidir um dos incisos do art. 109 do Código Penal, ainda que o prazo resultante seja menor, dado que o prazo prescricional penal em abstrato varia entre 2 e 20 anos. Porém, nenhuma outra regra da lei penal haverá de ser trazida para o âmbito administrativo, valendo sem ressalvas e quando for o caso a forma de contagem do prazo prescricional ditada pelo caput do art. 1º, o § 1º do art. 1º(15), bem como os arts. 2º e 3º, todos eles da Lei 9.873/99.

Esmiuçada a regra, ainda restam, se não mais, dois pontos polêmicos.

Primeiro, a possibilidade de a Administração utilizar autonomamente o § 2º do art. 1º da Lei 9.873/99 não está livre de dúvida. Se somente o Ministério Público, na condição de dominus litis, é que tem competência, em primeiro momento, para avaliar se certo fato é ou não criminoso e se somente o Judiciário pode dar a palavra final nesse tocante, como uma autoridade administrativa poder-se-ia valer da disposição contida no referido § 2º?

Ora, deve-se utilizar aí a interpretação lógico-sistemática. Várias autoridades administrativas detêm o poder-dever de comunicar ao Ministério Público fatos a que tenham acesso mediante o exercício do seu poder fiscalizador e que lhe pareçam configuradores de ilícitos criminais(16). Certo é que as autoridades administrativas verificam, nesse caso, a presença de indícios criminais e comunicam ao Ministério Público, por conseqüência, a existência de crimes em tese. Julgamos que também assim deva ser feita a aplicação do muito mencionado § 2º. Sempre que a Administração puder verificar, por meio de indícios, que o fato objeto da sua pretensão punitiva também constitui, em tese, crime, legítimo será o recurso ao § 2º do art. 1º da Lei 9.873/99. Para maior segurança da Administração, é de todo conveniente que essa análise seja feita posteriormente à comunicação dos indícios criminais ao Ministério Público, o que virá em reforço da legitimidade da aplicação do referido § 2º.

De se salientar que a avaliação feita pela autoridade administrativa, eminentemente perfunctória e preliminar, já que fundamentada em indícios, não vincula nem poderia vincular o juízo, quer do Ministério Público, quer da autoridade judicial julgadora, os quais dispõem de maior número de elementos para embasar o seu exame. Por isso, se em momento posterior o Ministério Público deixar de promover a ação penal respectiva ou o Judiciário absolver o suposto réu, não poderá a Administração ser responsabilizada no plano civil pela sua apreciação inicial em favor da criminosidade dos fatos, a não ser que se comprove a existência de má-fé na hipótese.

Passando, então, ao segundo ponto polêmico, temos para nós que o § 2º do art. 1º da Lei 9.873/99 apenas pode ser aplicado pela Administração aos casos em que o ilícito administrativo tenha sido praticado por pessoas físicas, uma vez que as pessoas jurídicas não podem ser sujeitos ativos de crime(17). Se assim é, será impossível afirmar, no caso de pessoas jurídicas infratoras, que o fato a elas imputado e que é objeto da ação administrativa punitiva também constitua, em tese, crime, o que afasta, nesse caso, a utilização do mencionado § 2º.

4.2.3. Casos de Aumento do Prazo Qüinqüenal

“Art. 2º  Interrompe-se a prescrição:

I - pela citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital;

II - por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato;

III - pela decisão condenatória recorrível.

Art. 3º  Suspende-se a prescrição durante a vigência:

I - dos compromissos de cessação ou de desempenho, respectivamente, previstos nos arts. 53 e 58 da Lei n o 8.884, de 11 de junho de 1994;

II - do termo de compromisso de que trata o § 5 o do art. 11 da Lei n o 6.385, de 7 de dezembro de 1976, com a redação dada pela Lei n o 9.457, de 5 de maio de 1997.”

Vistos os casos de diminuição e de substituição do prazo prescricional qüinqüenal, passamos agora ao exame dos casos de aumento desse prazo, representados seja pela existência de atos interruptivos (art. 2º da Lei 9.873/99), seja pela incidência de atos suspensivos (art. 3º da Lei 9.873/99) sobre o prazo prescricional.

A diferença essencial entre uma e outra espécie de atos dilatadores do prazo prescricional administrativo está em que, na interrupção, sempre que ocorra um ato previsto no art. 2º o prazo prescricional qüinqüenal recomeçará a correr na sua integralidade, independentemente do prazo já transcorrido, enquanto na suspensão a incidência de um dos atos constantes no art. 3º apenas impedirá que o prazo prescricional continue a fluir, fazendo com que o fim da suspensão implique a retomada do prazo prescricional pelo exato tempo que sobejava no momento da sua suspensão.

Feita essa precisão, comecemos pelos atos suspensivos, pois o seu âmbito de aplicação é restrito ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade, no caso do inciso I do art. 3º Lei 9.873/99, ou à Comissão de Valores Mobiliários - CVM, no caso do inciso II desse artigo(18).

Em ambos os casos, a suspensão da prescrição está ligada ao compromisso do administrado infrator em cessar a prática da irregularidade que poderia ser punida pela respectiva autoridade administrativa caso perdurasse. Certo é que a suspensão somente vigora enquanto o administrado cumprir, no modo e no prazo, os compromissos aos quais se vinculou, encerrando-se no exato momento em que se verificar qualquer descumprimento do acordado.

Agora, no que toca aos atos que interrompem a prescrição administrativa, acreditamos que os atos interruptivos previstos no art. 2º da Lei 9.873/99 constituem sucessão cronológica de atos não-repetíveis nem substituíveis, o que implica que cada ato aí previsto somente possa ocorrer uma única vez e em momento determinado, já que, praticado o ato posterior, extingue-se a possibilidade de se praticar o ato logicamente anterior. Essa visão coaduna-se com aquela e, mais ainda, dela decorre, de que o processo administrativo punitivo há de ser visto como uma sucessão cronológica de quatro fases fundamentais, quais sejam:

1) investigativa, destinada à apuração dos fatos suspeitos, é dizer, à coleta de elementos indiciários sobre a materialidade do fato e a autoria;

2) contraditória, a qual se inicia com a citação do suposto infrator, visando a lhe garantir contraditório e ampla defesa;

3) decisória, referente à decisão inicial recorrível; e

4) recursal, em que há a decisão final no plano administrativo.

Assim sendo, se o ato inequívoco que importe apuração do fato (inciso II do art. 2º) diz respeito exatamente à reunião de elementos mínimos de convicção para a caracterização de um ilícito (materialidade do fato + autoria), ele está vinculado à fase investigativa, somente nela podendo ocorrer. Da mesma forma, se a citação do infrator (inciso I do art. 2º) representa o chamamento do administrado para apresentar defesa e para debater o fato investigado, i. e., apurado, ele só pode acontecer na abertura da fase contraditória. Por fim, a decisão condenatória recorrível (inciso III do art. 2º), que constitui verdadeira, ainda que provisória, confirmação da irregularidade do fato inicialmente apurado, é o cerne da fase decisória e, por óbvio, somente nela tem lugar.

Certo é que o art. 2º da Lei 9.873/99 não adota essa ordem na organização dos seus incisos. Contudo, eventual atecnia legislativa não nos parece argumento suficiente para, sozinho, infirmar a sucessão ora sugerida.

Pois bem. Com base nessa interpretação por nós defendida, é imperioso considerar que somente é apto para interromper o prazo prescricional o primeiro ato inequívoco de apuração, independentemente da existência de outros atos de apuração posteriores. Ou seja, realizado o primeiro ato (interruptivo) de apuração do fato supostamente irregular, abre-se novo prazo qüinqüenal, desta feita para que a autoridade administrativa promova a citação do administrado sob suspeita, que é o ato interruptivo cronologicamente posterior, não mais podendo ser levados em conta eventuais atos de apuração posteriores.

Esse entendimento busca preservar ainda um dos princípios norteadores da atuação administrativa, qual seja, o da eficiência, além de proporcionar maior segurança jurídica aos administrados sujeitos ao poder administrativo sancionador. Até porque, de forma similar ao que ocorre no direito penal, cometido o ilícito surge a pretensão punitiva e, por conseqüência, surge a possibilidade de sobre ela incidir a prescrição, principalmente para que o infrator não fique indefinidamente sob a ameaça da imposição de uma medida que irá em desfavor dos seus interesses. Um exemplo demonstrará que mesmo com a adoção dessa interpretação restritiva um processo administrativo punitivo poderá durar até 20 anos.

Figure-se um ilícito praticado ou consumado em junho de 2010. Nessa data, surge inexoravelmente a pretensão administrativa punitiva e, por decorrência, fixa-se o termo inicial original do prazo prescricional. Pela nossa interpretação, a autoridade administrativa responsável pela apuração e punição desse ilícito terá cinco anos para iniciar a investigação, é dizer, para praticar algum ato inequívoco que importe apuração do fato ilícito. Digamos que o primeiro, lembre-se, ato inequívoco ocorra em maio de 2015, data, então, do segundo termo inicial do prazo qüinqüenal e a partir da qual abrir-se-ão mais cinco anos para que se promova a citação do infrator. Considerando que a citação seja realizada em abril de 2020, a autoridade administrativa terá outros cinco anos para emitir decisão condenatória recorrível, que, se ocorrer em março de 2025, ainda dará margem para que eventual decisão final seja proferida pelo órgão recursal até fevereiro de 2030. Ou seja, mesmo tendo em consideração que apenas o primeiro ato inequívoco de apuração seja apto a interromper o prazo prescricional e que o processo administrativo nunca tenha ficado paralisado por mais de 3 anos (§ 1º do art. 1º da Lei 9.873/99), a imaginada pretensão administrativa punitiva poderia pender legitimamente sobre os interesses do administrado infrator desde junho de 2010 até fevereiro de 2030.

Ainda sobre os atos interruptivos, há de se atentar para o fator temporal ligado a esse tema. Isso porque, antes de 01.07.98, data da entrada em vigor da MP 1.708, não existia nenhum normativo que dispusesse sobre o assunto, não podendo agora o intérprete pretender fazer retroagir qualquer inciso do art. 2º da Lei 9.873/99, ainda mais para prejudicar os interesses dos administrados. Isso quer dizer que, no âmbito da regra geral, apenas podem ser levadas em consideração hipóteses de interrupção que tenham ocorrido depois de 01.07.98. Antes dessa data não há como se buscar atos que, apesar de até poderem hoje ser tidos como materialmente interruptivos, não poderiam ser formalmente qualificados como tais à época.

Adianto que essa interpretação vale igualmente para o disposto na parte inicial do art. 4º da Lei 9.873/99 (Ressalvadas as hipóteses de interrupção previstas no art. 2º,...). Apenas em relação aos fatos ocorridos no período do “limbo normativo” (entre 01.07.95 e 30.06.98) a solução há de ser diferente, uma vez que aí devem ser utilizadas retroativamente todas as normas que compõem a regra geral (arts. 1º a 3º da Lei 9.873/99), incluída a norma sobre atos interruptivos, como veremos logo na seqüência.

Passando do gênero à espécie, releva determinar, ainda que de forma meramente exemplificativa, o que pode e o que não pode ser considerado ato inequívoco de apuração (inciso II do art. 2º da Lei 9.873/99), diante da equivocidade da expressão(19). No plano abstrato, ficou definido que ato inequívoco que importe apuração do fato diz respeito à reunião de elementos mínimos de convicção para a caracterização de um ilícito (materialidade do fato + autoria). É dizer, são atos de apuração do fato ilícito todos os atos que a autoridade administrativa pratique visando à coleta de elementos indiciários sobre a materialidade do fato e a sua autoria, ou ainda, todos os atos investigativos.

Com base nesse quadro abstrato, julgamos que não são atos inequívocos de apuração, exatamente por não envolveram investigação alguma de fatos, os atos de impulso processual, como a circulação dos autos pelas diversas áreas técnicas da Administração envolvidas no processo, ainda que sejam emitidas manifestações ou despachos, nem tampouco os pareceres, meros atos opinativos que analisam fatos e sugerem providências, nem ainda a abertura do processo administrativo punitivo, pois ele só é aberto depois que se sabe, geralmente por indícios, qual é o fato ilícito praticado e quem é o responsável pela sua prática, isto é, o ato de apuração é antecedente necessário do ato de abertura do processo administrativo.

Entre parênteses, note-se outra vez mais que os atos inequívocos de apuração não podem ser confundidos com o despacho previsto no § 1º do art. 1º da Lei 9.873/99, pois e xistirão atos que não servirão para interromper o prazo prescricional qüinqüenal por não envolverem apuração do fato, mas que serão aptos a interromper o prazo trienal conducente à paralisação fatal do processo administrativo por configurarem despacho.

De outro modo, são, sim, atos inequívocos de apuração a investigação de irregularidades realizada pela autoridade administrativa no exercício do seu poder fiscalizador ainda que de forma indireta (p. ex., por meio de verificação remota de dados regularmente enviados pelo administrado), a remessa de correspondências ao suposto infrator pedindo esclarecimentos sobre fatos – desde que comprovadamente recebidas por ele e ainda que sem resposta – e as correspondências dirigidas a terceiros e por eles recebidas visando a confirmar a existência ou a natureza de fatos supostamente irregulares praticados por outra pessoa.

Importante, mormente no que toca à fiscalização indireta exercida por muitas autoridades administrativas, é que os atos de apuração praticados estejam materializados em algum documento que seja apto a comprovar a data em que foram realizados, pois sem uma data precisa não se pode fixar quando a prescrição foi interrompida. Aliás, é esse o único sentido que conseguimos retirar do qualificador inequívoco presente no inciso II do art. 2º da Lei 9.873/99.

Finalmente, de se atentar que, para que se configure ato inequívoco de apuração, não é essencial o conhecimento do suposto infrator sobre a finalidade específica da investigação, aqui em paralelo com o que se passa no inquérito penal(20). Se o objetivo da fase investigatória é formar a convicção da Administração sobre a materialidade do fato e a sua autoria e se os atos inequívocos apenas podem ocorrer aí, como defendemos, o contraditório não é imprescindível para a legitimidade de tais atos. Para nós, o conhecimento pleno do administrado a respeito da suspeita que sobre ele recai apenas tem que ocorrer no instante da citação. Aí sim, com a formalização da acusação, deve ser aberta a fase contraditória. Antes disso, o contraditório e a ampla defesa não nos parecem ser indispensáveis, até porque nem toda investigação conduzirá necessariamente a uma acusação, pois a própria Administração poderá concluir pela inexistência de irregularidade com base nas apurações realizadas.

5. Regra Excepcional

“Art. 4º  Ressalvadas as hipóteses de interrupção previstas no art. 2 o, para as infrações ocorridas há mais de três anos, contados do dia 1 o de julho de 1998, a prescrição operará em dois anos, a partir dessa data.”

A regra excepcional sobre prescrição administrativa inserta no art. 4º da Lei 9.873/99 dispõe que para todas as infrações cometidas antes de 01.07.95, a pretensão punitiva da Administração prescreveu em 01.07.2000, a não ser que tenha ocorrido, depois de 01.07.98 – data de vigência da MP 1.708 – relembre-se, algum ato interruptivo. (art. 2º da Lei 9.873/99)

Antes do mais, é de se ter em conta que todo o artigo 4º deve ser interpretado de forma restritiva dada a sua excepcionalidade. Isso implica que as normas componentes da regra geral não podem ser trazidas para incidência sobre os casos inseridos no art. 4º, salvo o art. 2º, em face da expressa menção à sua aplicabilidade na parte inicial da regra excepcional.

De modo diverso, sempre que verificada a ressalva presente no art. 4º, isto é, ocorrendo algum ato interruptivo do prazo prescricional para as infrações praticadas antes de 01.07.95, passa a valer a regra geral em sua inteireza, até mesmo quanto aos novos prazos prescricionais que porventura venham a se abrir depois de verificada alguma causa interruptiva, os quais deverão obedecer ao disposto no caput do art. 1º da Lei 9.873/99 – cinco anos –, e não mais ao prazo bienal inicialmente fixado no corpo do art. 4º. Tal fato deve-se à quebra da excepcionalidade da regra pela ocorrência da ressalva explicitamente prevista nela própria, devolvendo a disciplina das situações fático-jurídicas à regra geral.

Porém, a dúvida mais séria levantada em relação à regra excepcional dizia respeito à constitucionalidade de suas normas, uma vez que por elas se igualavam situações essencialmente desiguais, em claro desrespeito ao princípio da igualdade. O dispositivo, além de presumir que vigorava aimprescritibilidadedas infrações administrativas antes da edição da Lei 9.873/99, fazia com que essas infrações passassem a ter prazo prescricional diferenciado e, em muitos casos, exagerado, pois se a infração tivesse sido praticada em 1960, p. ex., o seu prazo prescricional acabava por ser fixado em absurdos 40 anos, enquanto uma infração cometida antes de julho de 1995 teria prazo prescricional de pouco mais de 5 anos, já que todas as pretensões punitivas anteriores a 01.07.95 prescreveriam em 01.07.2000, como firmado(21).

Em verdade, a regra excepcional implicava, na maioria dos casos, a reabertura de prazos prescricionais que já deveriam estar completamente transcorridos. Mais razoável teria sido a disposição de que todas as infrações anteriores a determinada data, 01.07.95 por exemplo, estariam definitivamente prescritas.

Diante dessa flagrante inconstitucionalidade, o que deve fazer a autoridade administrativa responsável pela avaliação da incidência da prescrição com base no art. 4º? Na ausência de declaração judicial da inconstitucionalidade da regra legal, seja em abstrato, seja em concreto, deve a Administração continuar a aplicá-la, uma vez que toda lei promulgada goza de presunção de constitucionalidade e, do princípio da legalidade, decorre a subordinação da Administração à lei(22). Demais, acreditamos que as autoridades administrativas não detenham competência para deixar de aplicar normas vigentes sob o fundamento de sua inconstitucionalidade, já que o controle de constitucionalidade é missão atribuída às autoridades jurisdicionais(23).

Certo é que toda essa discussão perde importância com a aproximação de julho de 2005. Se, como visto, a ressalva contida no início do mencionado art. 4º leva a análise da prescrição para a regra geral, fazendo incidir, por conseqüência, o prazo qüinqüenal após a verificação de eventual interrupção, e se 30.06.2000 era a data-limite para a ocorrência de algum ato interruptivo – já que em 01.07.2000 as pretensões punitivas antigas estariam prescritas –, depois de 30.06.2005 nada mais poderá fazer a Administração em relação aos fatos ilícitos ocorridos antes de 01.07.95 e só agora trazidos à baila.

6. “Limbo Normativo”

Visitadas a regra geral e a regra excepcional, falta tratar da omissão legislativa no que toca às infrações acontecidas entre 01.07.95 e 30.06.98. Como analisar o prazo prescricional aplicável aos casos ocorridos no chamado “limbo normativo”?

Em primeiro lugar, há de se afastar qualquer tese que porventura defenda a imprescritibilidade da ação punitiva quanto a essas infrações. Se até para as infrações praticadas antes de 01.07.95 estabeleceu-se prazo prescricional, agrediria a interpretação lógico-sistemática e também os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica a defesa da imprescritibilidade da ação administrativa punitiva em relação às infrações com prática situada entre 01.07.95 e 30.06.98.

Em segundo lugar, não entendemos que a regra contida no multicitado art. 4º possa ser estendida para o triênio ora problematizado, exatamente por se tratar de regra excepcional que, por conseqüência, deve ser interpretada sempre restritivamente, e não extensivamente(24).

Resta, pois, o recurso à regra geral estatuída pela Lei 9.873/99(25),a qual, no caso, deverá ser aplicada retroativamente de forma excepcional, por força dos princípios da segurança jurídica, da igualdade e da razoabilidade. Por um lado, a segurança jurídica, princípio diretamente decorrente do Estado de Direito, impõe, no que aqui interessa, que a imprescritibilidade seja a exceção e nunca a regra, ao pretender evitar que as relações jurídicas, mormente as punitivas, possam perdurar indefinidamente, deixando os direitos e os interesses permanentemente sob a expectativa de um ataque no mais das vezes incerto. Por outro lado, sabendo-se que a incidência de prescrição é a regra e que há lei fixando a disciplina geral da prescrição relativamente à ação administrativa punitiva, o princípio da igualdade conjugado com aquele da razoabilidade autoriza que o conjunto de normas constante nesse diploma legal e formador da regra geral possa ser estendido para todos os casos omissos envolvendo prescrição de pretensão punitiva da Administração Pública Federal, ainda que essa extensão tenha que se dar de maneira retroativa.

Em suma: vale para as infrações praticadas entre 01.07.95 e 30.06.98 a mesma regra geral que disciplina as infrações administrativas cometidas a partir de 01.07.98, isto é, a ação administrativa punitiva prescreve em cinco anos contados da prática do ilícito (caput do art. 1º da Lei 9.873/99), salvo (1) a paralisação do processo administrativo por mais de três anos (§ 1º do art. 1º da Lei 9.873/99), (2) a incidência do prazo prescricional da lei penal quando o ilícito administrativo também constituir crime (§ 2º do art. 1º da Lei 9.873/99) ou (3) a existência de ato interruptivo (art. 2º da Lei 9.873/99) ou suspensivo. (art. 3º da Lei 9.873/99)

7. Conclusão

Percorridas as regras legais, fica claro, de uma face, que a edição da Lei 9.873/99 não apenas era necessária, como também era impreterível. Em face da insegurança jurídica vigente no que tange à incidência de prescrição sobre a pretensão administrativa punitiva, examinada, no mais das vezes, em artigos doutrinários esparsos, em pareceres interessados e em decisões judiciais desencontradas, era fundamental que a lei viesse dar uniformidade e imparcialidade no tratamento da matéria.

De outra face, porém, percebe-se igualmente com facilidade que a Lei 9.873/99 esconde, sob o manto da simplicidade normativa, extrema complexidade interpretativa, exigindo dos seus aplicadores apreciação cuidada e atenta na resolução de cada caso fático que se lhes apresenta. Nenhuma solução é retirada da lei de forma direta e incontestável. Ao contrário. Para cada problema concreto surgem variadas soluções possíveis, muitas delas, aliás, coerentes e defensáveis apesar de flagrantemente contrapostas.

Cabe às autoridades administrativas e, em última análise, às autoridades judiciais dar efetividade a esse normativo, sem esquecer de que, embora a Lei 9.873/99 seja também relevante para a ordem pública, para a ordem jurídico-administrativa, ela tem como principais destinatários os cidadãos de alguma forma sujeitos à regulação e ao controle administrativo. Por isso, em caso de dúvida motivada e havendo mais de uma interpretação aceitável, cremos que a prevalência deverá ser dada àquela solução que maior benefício traga aos interesses dos administrados, até porque toda sanção, como medida invasiva e desfavorável que é, somente deve ser aplicada em casos extremos e não vulgarizada.

8. Bibliografia Citada

AMADO, Frederico Augusto di Trindade. A Prescrição da Pretensão Sancionadora da Administração Pública Federal diante da Consumação de Ilícito Administrativo-Ambiental, 2004. Disponível em http://www.juspodivm.com.br/novo/artigos_diradminist.asp. Acesso em fev. 2005.

BARROSO, Luís Roberto. A Prescrição Administrativa no Direito Brasileiro antes e depois da Lei nº 9.873/99. Revista Diálogo Jurídico, ano 1, v. 1, n. 4, Salvador: Centro de Atualização Jurídica, 2001. Disponível em www.direitopublico.com.br. Acesso em fev. 2005.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002.

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19. ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. t. 4.

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

TESSLER, Marga Inge Barth. O Exercício do Poder de Polícia e o Prazo Prescritivo para a Aplicação da Sanção Administrativa depois da Lei nº 9.873/99, texto-base de palestra proferida em 24.05.2004 na Jornada de Estudos Jurídicos do Banco Central do Brasil, Brasília, 2004. Disponível em http://www.trf4.gov.br/trf4/institucional/institucional.php?id=CVMargaBarthTessler. Acesso em fev. 2005.

Notas de Rodapé

1. Texto originalmente publicado no Boletim de Direito Administrativo, ano XXI, nº 8, agosto de 2005, p. 898-910.
2. “Art. 61. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício”.
3. Distingo aqui o poder sancionador exercido pela Administração contra as pessoas que a ela ficam vinculadas não por opção sua, mas porque, ao adotarem certa conduta ou ao desempenharem certa atividade, passam a ser alcançadas por alguma norma administrativa (relação administrativa geral), daquele poder sancionador especial que a Administração possui contra as pessoas que com ela celebraram algum ato bilateral específico, como os contratados ou os servidores públicos (relação administrativa especial).
4. Assim, DI PIETRO, 2001, p. 90, que julga que as sanções administrativas não-disciplinares encontram seu fundamento no poder de polícia do Estado, e HELY LOPES,1994, p. 123-24.
5. Com a mesma opinião, CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 1993, p. 956; MEDINA OSÓRIO, 2000, p. 84-87.
6. Pense-se, por exemplo, na retirada de autorização administrativa para atuar no mercado de câmbio por razões de conveniência e oportunidade.
7. Cautelares são as medidas administrativas repressivas utilizadas, de forma essencialmente temporária e reversível, para suster os efeitos nocentes de uma ação infratora já iniciada, como a determinação de suspensão de certa atividade ou de fechamento provisório de certo local.
8. Medidas administrativas reparatórias são as ordens dirigidas pela Administração para que o administrado corrija uma irregularidade cometida, como a ordem para derrubada de muro construído ilegalmente.
9. BANDEIRA DE MELLO, 2000, p. 123-24.
10. No mesmo sentido, cfr. BARROSO, 2001, pp. 8-11.
11. Para um resumo sobre as posições jurídicas relativas à prescrição administrativa antes da edição da Lei 9.873/99, cfe. TESSLER, 2004, p. 4-13.
12. AMADO, 2004, p. 3 prefere dizer que infrações permanentes são aquelas “cuja consumação se protrai no tempo”.
13. O Superior Tribunal de Justiça - STJ já disse o que caracteriza as infrações administrativas continuadas, muito embora em contexto algo diverso. No REsp 131.644-SE (Primeira Turma – Relator Milton Luiz Pereira – Julgado em 21.03.2000 e publicado no DJ de 22.05.2000), fixou-se que “as infrações seqüenciais, violando o mesmo objeto da tutela jurídica, guardando afinidade pelo mesmo fundamento fático, constituindo comportamento de feição continuada, estão sujeitas a uma única sanção, aplicada e graduada conforme a sua intensidade, reiteração e conseqüências danosas à economia popular. Tipificação que deve ser demonstrada em um só auto de infração”. Da mesma forma, no REsp 616.412-MA (Segunda Turma – Relatora Eliana Calmon – Julgado em 28.09.2004 e publicado no DJ de 29.11.2004), diz-se em reforço que “a jurisprudência desta Corte, em reiterados precedentes, tem entendido que há infração continuada, quando a Administração Pública, exercendo o poder de polícia, constata, em uma mesma oportunidade, a ocorrência de infrações múltiplas da mesma espécie. A caracterização da continuidade delitiva administrativa se dá em uma única autuação”.
14. Cfe. DAMÁSIO DE JESUS, 1991, p. 528; DELMANTO, 2000, p. 136.
15. De modo diverso, AMADO, 2004, p. 5, entende que “a prescrição intercorrente de três anos pontificada no § 1º apenas se aplica ao caput, não incidindo sobre a regra excepcional que preenche o parágrafo segundo”.
16. Cfe., p. ex., o art. 28 da Lei 7.492, de 16.06.86.
17. Certo é que a evolução do direito penal tem implicado a introdução de novas espécies de sanção para defrontar novos tipos de ilícitos, possibilitando a flexibilização do antigo princípio penal societas delinquere non potest mediante a paulatina inclusão das pessoas jurídicas no pólo passivo das sanções penais. No Brasil, essa inovação aparece na legislação ambiental, a qual, com base no § 3º do art. 225 da Constituição da República, introduz a possibilidade de as pessoas jurídicas serem responsabilizadas penalmente. (arts. 3º e 21 da Lei 9.605, de 12.02.98)
18. Buscando contornar o teor eminentemente casuísta do citado art. 3º, AMADO, 2004, p. 6) defende que “deve se lançar mão de uma exegese ampla do dispositivo, tendo o legislador dito menos do que quis dizer, pois também deve ser suspenso o curso da prescrição quando da celebração do Termo de Compromisso previsto no art. 60 do Decreto nº 3.179/99, que tem por objeto a adoção de medidas específicas para fazer cessar ou corrigir a degradação ambiental”. De nosso lado, acreditamos que difícil será, todavia, justificar uma suspensão do prazo prescricional administrativo sem autorização expressa de norma legal.
19. Trabalho que também foi realizado por TESSLER, 2004, p. 13-17.
20. Em sentido oposto, cfe. TESSLER, 2004, p. 14-15.
21. Para mais argumentos em favor da inconstitucionalidade do art. 4º da Lei 9.873/99, cfe. BARROSO, 2001, p. 19-25. AMADO, 2004, p. 6-8, por seu turno, não enxerga inconstitucionalidade no caso.
22. Cfe. CANOTILHO, 2002, pp. 441-43 e 931-32.
23. Cfe., p. ex., o art. 97 da Constituição da República. Para mais razões contra a possibilidade de se reconhecer aos órgãos administrativos um poder geral de controle da constitucionalidade, necessariamente concreto, cfr. MIRANDA, 2001, p. 177-83. Segundo esse Autor, a “razão básica deste entendimento repousa na diferença de natureza das duas funções, a jurisdicional e a administrativa, e na diversa estrutura dos respectivos órgãos”. Ademais, ainda citando MIRANDA, 2001, p. 178, “aos agentes administrativos é sempre possível a representação às entidades hierarquicamente superiores das conseqüências de aplicação das leis”, até porque, em último caso, há a legitimidade do Presidente da República ou dos Governadores de estado para propor ações de inconstitucionalidade (art. 103, I e V, da Constituição da República). Nada obstante, o próprio JORGE MIRANDA, 2001, p. 181-82 admite que há “hipóteses – extremas ou muito especiais – em que os órgãos administrativos hão de gozar de um poder de recusa de aplicação”, como no caso de leis juridicamente inexistentes, isto é, “leis violadoras do núcleo essencial dos direitos fundamentais, e, inquestionavelmente, as leis aniquiladoras do direito à vida e da integridade pessoal”, segundo CANOTILHO, 2002, p. 442. De outro lado, admitindo o poder de rejeição de normas inconstitucionais pela Administração, cfe. HELY LOPES, 1994, p. 617. Ainda nessa linha, posto que de forma mais atenuada, o STF, no julgamento da medida cautelar na ADI 221-MC por seu Tribunal Pleno, decidiu que “o controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade –, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais”. (Relator Moreira Alves – julgado em 29.03.90 – DJ de 22.10.93, p. 22251; EMENT VOL-01722-01 p. 00028)
24. Como diz MAXIMILIANO,1996, p. 205, “em regra, é estrita a interpretação das leis excepcionais, das fiscais e das punitivas”.
25. Interpretação semelhante é advogada por AMADO, 2004, p. 8.

 


 
REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS