A união homoafetiva em perspectiva

Autores: Atila Nedi Leães Sonego
(Advogado e Juiz Leigo)

Magna Virgínia Silveira de Souza
(Bacharel em Direito)

| Artigo publicado em
21..03.2006|


SUMÁRIO: Introdução. 1. A família contemporânea: 1.1. Introdução; 1.2. Mutação do modelo familiar; 1.2.1. Fatores evolutivos; 1.2.2. Da família como instituição à família como instrumento para o desenvolvimento dos seus membros; 1.3. Evolução da família no Brasil; 1.3.1. Noção histórica; 1.3.2. A despatrimonialização e a repersonalização da família: a pluralidade constitucional de entidades familiares; 1.3.2.1. Casamento e família: conceitos afins, mas realidades distintas; 1.3.3. Características atuais da família brasileira: o afeto como elemento primordial das entidades familiares. 2. Uniões homoafetivas: 2.1. Homossexualidade e opção sexual: linhas gerais; 2.2. Natureza jurídica das relações homoafetivas; 2.2.1. Colocação do problema; 2.2.2. A união homoafetiva enquanto entidade familiar pela perspectiva constitucional; 2.2.2.1. Dos óbices postos; 2.2.2.2. Da resposta aos óbices; 2.2.3. Natureza jurídica das relações homoafetivas: conclusão. 3. Análise tópica das uniões homoafetivas: 3.1. Breves considerações; 3.2. Julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; 3.2.1. Competência para julgamento envolvendo uniões homoafetivas; 3.2.2. Possibilidade jurídica dos pedidos envolvendo uniões homoafetivas; 3.2.3. Analogia das uniões homoafetivas com as uniões estáveis; 3.2.4. Separação e partilha dos bens entre casais homossexuais; 3.3. As uniões homoafetivas no âmbito do regime geral da previdência social. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Idenfica-se atualmente, cada vez mais, a necessidade uma visão verdadeiramente afetiva das relações familiares. O aspecto jurídico, centrado principalmente no patrimônio, tem se mostrado insuficiente para a caracterização da família. Uma família surge de um lindo sentimento chamado afeto.

Deveras, é o afeto que hordienamente norteia qualquer relação entre pessoas que se unem e somado a muitos outros atributos como o respeito, a fidelidade e assistência recíproca é que irá fazer surgir a família

Ora, se é mesmo assim, como de fato parece ser, então, se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável, caracterizado pelo amor e respeito mútuo e com o objetivo de construir um lar, tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem do Direito. Aliás, mais precisamente, não podem ficar à margem do Direito de Família.

Afinal, como aduz Maria Berenice DIAS (2004), se a realidade social impôs o enlaçamento das relações afetivas, a partir de uma definição de família pela só presença de um vínculo afetivo, mister reconhecer a existência de duas espécies de relacionamento interpessoal: as relações heteroafetivas (entre pessoas do sexo oposto) e as relações homoafetivas (entre pessoas do mesmo sexo), pois, ambas, sem distinção, constituem-se por comprometimento afetivo.

Destarte, esta a tônica deste trabalho: descer o véu do silêncio que ainda insiste em envolver o tema das uniões homossexuais, no intuito de demonstrar que também sob o enfoque jurídico as uniões homoafetivas são verdadeiras entidades familiares e que, por isso, não há nenhuma razão plausível para tratá-las de forma diferente, sendo que qualquer argumento fora disso é oriundo do mais puro preconceito.

Para tanto, o trabalho foi dividido em três partes com o seguinte sentido: na primeira, procurar-se-á delinear a família, pelo seu ângulo atual, destacando aquele que vem sendo apontado pela moderna doutrina e pela mais vanguardista jurisprudência como seu componente essencial, qual seja o affectio, mormente sob o prisma da realidade social e jurídica brasileira. Depois, passando-se à segunda parte do estudo, dedicar-se-á, basicamente, a situar a união homoafetiva no contexto do Direito de Família. Isso, a partir de uma interpretação sistêmica e aberta da Constituição Federal, de modo a espancar qualquer dúvida (jurídica) que se possa ter acerca da natureza familiar das uniões entre pessoas do mesmo sexo. E finalmente, feito isso, com o desiderato de colorir as ilações das duas primeiras partes, buscar-se-á trazer à colação algumas jurisprudências pioneiras nesse campo ainda tão mistificado, com destaque às decisões envolvendo as relações homossexuais e o INSS, dado o caráter emblemático delas.

Aliás, em tempos modernos, entende-se seja mesmo indispensável entrelaçar a teoria com a tópica, porquanto, hoje, a jurisprudência alcançou, indubitavelmente, a condição de fonte primária do Direito, pois, diante da dinâmica da nossa era, é cada vez mais freqüente a necessidade do Poder Judiciário colmatar as lacunas da Lei.

Outrossim, para além disso, a referência à jurisprudência in casu é mesmo indispensável por conta de uma triste realidade: a escassez de Leis que versem sobre o tema. Nesse sentido, importante avisar, desde logo, que não se fará nenhum registro, ao longo do trabalho, acerca do novo Código Civil. É que, por mais paradoxal que possa parecer, embora tenha sido publicado e entrado em vigor recentemente, trata-se de legislação que já nasceu obsoleta. Pelo menos no que diz respeito ao tema em comento, o que talvez se explique pelo fato de que foi elaborado antes mesmo da aprovação da Lei do Divórcio (que é do ano de 1977) e da Constituição Federal (promulgada em 1988), dois grandes marcos que produziram verdadeira revolução no Direito de Família, sem ter sido atualizado posteriormente, como deveria ter sido. Então, fica já consignado o aviso e, porque não dizer, o protesto.

Enfim, essa é a feição do trabalho que se apresenta.

1. A família contemporânea

1.1. Introdução

Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade.

No que diz de perto à entidade familiar, acentuada é, sem dúvida, a sua influência nos desmoldes e reestruturações humanas de toda a sorte, especialmente quando se leva em conta a diversidade de sistemas que, ao longo da história da civilização, registraram e esculpiram os diferentes modelos de família. Sempre importa, por isso, reconhecer o perfil evolutivo da família, ao longo da história, adequá-lo com o incidente social, econômico, artístico, religioso ou político de cada época, para o efeito final de se buscar extrair os porquês das transmudações, os acertos e os desacertos de cada percurso, a influência na consciência dos povos, sempre a partir do modus familiar e da relação efetivamente havida entre os seus membros, mormente entre o homem e a mulher. Muitos – e muito diferentes – foram, portanto, os grupos familiares e os valores que os nortearam, sendo verdade que alguns destes valores talvez ainda se encontrem em voga nos dias atuais, quer pela sua normal eternização, quer por terem sido ressuscitados após lapsos temporais mais ou menos longos.

De resto, importa ressaltar que há mesmo uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história, só parece não mudar esta verdade. Vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, isto é, o seio de sua família, este locus que se renova sempre como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social.

Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago. O que importa, de verdade, é estar naquele idealizado lugar, onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal (HIRONAKA, 2001).

1.2. Mutação do modelo familiar

1.2.1. Fatores evolutivos

Conforme alerta o Desembargador gaúcho Sérgio Gischkow PEREIRA (1988), como fato histórico e fenômeno humano que é, a realidade familiar só admite enfoque dialético em sua compreensão, com o que suas alterações estruturais e funcionais são perceptíveis, no que diz com a causa, em todo um complexo de motivações de diferentes naturezas, todas interagindo entre si e todas sobre a família, sem que esta, por sua vez, deixe de, igualmente, sobre elas influenciar. Desse modo, como substrato desse processo evolutivo da família, há uma gama infindável de variáveis. Tantas, que seria mesmo impossível alinhar todas.

Contudo, a título ilustrativo, é possível destacar algumas, o que se faz aproveitando a sensibilidade do recém referido autor (PEREIRA, 1988, p. 35/36), que a respeito do tema refere que:

São ambos os pais forçados a trabalhar fora do lar, da mesma forma que os filhos, visando a aumentar a renda familiar, em função das crises econômico-financeiras do capitalismo e da absoluta miséria que assola grandes massas populacionais; é a pobreza produzindo a tensão no ambiente familiar, a violência, o alcoolismo, a saída para as ruas dos menores, desde a mais tenra idade, a vida sem perspectivas de realização, o esmagamento de todas as potencialidades humanas; é necessidade de crescimento do grupo familiar, quando abalado pela carência material, como forma de reforço dos ingressos monetários e de diversas outras maneiras de sustentação; é o fragmentação da solidez moral vitoriana, em um mundo no qual as estruturas de referência desabam, sob uma crítica científica e filosófica implacáveis no desmascaramento dos mitos, das superstições, das ilusões e das certezas, buscando a construção de um mundo novo, alicerçado no conhecimento não deturpado das qualidades e limitações do homem; é a velocidade fantástica das mudanças em todos os setores da vida, terminando com a placidez das convicções não erigidas sobre o aprofundamento analítico; é, no campo da Ciência, em especial, o desvelamento psicanalítico das opressões e pressões familiares; é a tendência de todos os seres humanos a, pelo caminho da liberdade, atingirem o bem-estar, a igualdade, o respeito incondicional à dignidade, a realização de seus potenciais, alertados que forma, pela Ciência, pela Filosofia e pela Arte, dos mecanismos destinados a deixá-los em um plano de inferioridade; é o choque das lutas políticas, voltadas à organização de uma sociedade justa, igualitária e democrática, mas, concomitantemente, perturbada pela erupção de fanatismos regressivos e ditatoriais; é o desenvolvimento notável dos meios de comunicação, com divulgação mundial imediata de qualquer acontecimento de alguma importância e trazendo para dentro dos lares as idéias e atitudes; é a assunção de novos valores pela juventude; é a revolução no campo da Arte, abrindo uma infinita liberdade criativa, não mais contida sob a tirania de cânones uniformizadores; é a transformação do sexo em discurso permanente e detalhado; é a ânsia de saber e descobrir mais, aberto que está o ser humano ao universo; são as minorias, éticas ou sexuais, não mais aceitando uma posição de párias na coletividade, além de assumirem suas condições humanas; [...].

Enfim. Pelo que se vê, e conforme já se disse, muitos são os agentes atuantes no processo evolutivo da instituição familiar. Aliás, as experiências históricas demonstram ser impossível traçar uma visão unidimensional de família. E não poderia ser mesmo diferente, porquanto “família” é termo pouco específico, cobrindo uma variedade de experiências e relações, bem como um indicador da multiplicidade de discursos (religioso, moral, legal, econômico, cultural, político, etc.) que a compõe. Destarte, após referir as causas antes citadas, bem faz Sérgio Gischkow PEREIRA (1988, p. 36) quando aduz que “[...] assim, por diante, todos os leitores estão aptos a enumerar causas e causas da revolução familiar, desde as mais singelas e superficiais até as mais profundas e obscuras”.

1.2.2. Da família como instituição à família como instrumento para o desenvolvimento da personalidade dos seus membros

De acordo com o que se disse a pouco, todo esse quadro de intensas modificações experimentados pela humanidade nas últimas décadas (sociais, econômicas, políticas e culturais) tem repercutido diretamente no âmbito do direito de família. Nesse sentido, sociólogos, historiadores, antropólogos e juristas têm revelado a existência de um processo de passagem da “família patriarcal” à “família nuclear”. Isto é, dito de forma diversa, atualmente, alterado restou o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos, baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial entre pessoas – cuja origem não decorre apenas do casamento – e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros. (1)
Com efeito, conforme assevera Sérgio Gischkow PEREIRA (1988, págs. 19/20):

O Direito de Família evolui para um estágio em que as relações familiares se impregnam de autenticidade, sinceridade, amor, compreensão, diálogo, paridade, realidade. Trata-se de afastar a hipocrisia, a falsidade institucionalizada, o fingimento, o obscurecer dos fatos sociais, fazendo emergir as verdadeiras valorações que orientam as convivências grupais. O regramento jurídico da família não pode insistir, em perniciosa teimosia, no obsessivo ignorar das profundas modificações consuetudinárias, culturais e científicas; [...].

De fato, a “cara” da família moderna mudou. O seu principal papel hoje, ao que tudo indica, é o de dar suporte emocional ao indivíduo, não mais se justificando o paradigma patriarcal, o qual designava escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família em detrimento da realização pessoal dos seus integrantes.

E nessa esteira, vale conferir ainda o escólio de Guilherme Calmon Nogueira da GAMA (2001, p. 184/185):

Nos ordenamentos jurídicos que seguem a tradição romano-germânica, a par da influência da Igreja Católica, são apontados acontecimentos históricos das Reformas Religiosas, – principalmente a Luterana –, e da Revolução Francesa que apresentaram as linhas mestras da família matrimonial como sendo a única digna de tutela. O Code civil francês de 1804 deu os contornos da estrutura jurídica da família, com forte conotação hierarquizada, patriarcal, centralizadora na pessoa do chefe, excluindo de legitimidade qualquer outra união afetiva entre não-parentes. Consolidou-se, pois, o que Orlando GOMES denominou de ‘Direito de Família aristocrático’, ou seja, aquele dirigido a tutelar a família ‘legítima’, detentora de patrimônio e defensora da paz doméstica, como valores absolutos, desprovidos de qualquer conteúdo ético e humanista entre os familiares.

Com a evolução dos costumes e da própria sociedade, o enfoque jurídico-legal enclausurado e hermético da família aristocrática mostrou-se completamente insuficiente e frágil, daí a necessidade de rever posições, reestudar conceitos e regras, sob pena de degradação da própria sociedade. [...].
O conceito de família para o Direito é relativo, alterando-se continuamente, como reflexo da própria evolução histórica da sociedade e dos seus costumes. O certo é que uma das notas peculiares do final do século XX consiste na verificação de que as famílias devem se fundar, cada vez mais, em valores existenciais e psíquicos, próprios do convívio próximo, afastando as uniões de valores autoritários, materialistas, patrimonialistas e individualistas que notabilizaram o modelo de família oitocentista do Código de Napoleão.

Assim, os reflexos dessas mudanças da textura familiar certificam a conscientização, já transferida em leis recentes, de que é uma instituição muito diferente da imagem que os Códigos do século XIX e da primeira metade do século XX recolheram e estamparam. Aliás, no âmbito do direito pátrio, significativas foram essas mudanças, operadas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.

De fato, diante dessa nova realidade mundial, como se verá adiante, no tópico próprio, a Constituição Federal de 1988 parece consagrar uma nova tábua de valores, pois, como anota Gustavo TEPEDINO (2001), do exame dos artigos 226 a 230 do Texto constitucional e, principalmente, porquanto o constituinte consagrou expressamente entre os princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), tem-se que impediu assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da propriedade e da família. Dessa forma, a família, embora tenha ampliado, com a Carta de 1988, seu prestígio constitucional, deixa de Ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que – e somente nessa exata medida – se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade e da promoção da dignidade dos seus integrantes.
Destarte, como conseqüência disso, reconheceu formas de vida familiar à margem do casamento, evidenciando não ser essencial o nexo família-matrimônio. Com isso, o constituinte apreendeu a família sob o ponto de vista sociológico que não admite esse conceito unitário e sim reconhece que casamento e família são realidades distintas e que a tônica desta segue o “imperativo categórico” de KANT, segundo o qual o homem existe como um fim em si mesmo e não como mero meio.

1.3. Evolução da família no Brasil

1.3.1. Noção histórica

Em uma visão bastante sintética da noção histórica de família ou da entidade familiar, sob o prisma legislativo nacional, poder-se-ia pensar em duas fases: (I) a do Código Civil de 1916 e (II) a da Constituição Federal de 1988.

Nosso Código Civil de 1916, seguindo modelo do Código Civil de Napoleão Bonaparte de 1804, adotou o casamento civil como sendo a única forma de constituição da família legítima. Só a família constituída a partir do casamento gozou da tutela do Estado, sendo que as demais formas de convivência afetiva foram taxadas como ilegais. Nesse sentido, por conseguinte, o Código Civil de 1916 previa uma série de disposições que imprimiam um viés ilegal ao concubinato, com a finalidade de superproteger a instituição jurídica casamento.

A família do legislador de 1916 foi estruturada sob o modelo autoritário, hierárquico e transpessoal do poder marital e do pátrio poder. A legislação liberal, dentro desse sentido patriarcal, calcou o eixo do direito civil, inclusive do direito de família, na proteção econômica da propriedade e dos interesses patrimoniais. Sob o viés religioso, a família do Código Civil tinha função procriativa, a qual coaduna-se com o modelo de família rural, onde os filhos deveriam auxiliar na produção(2). Em suma, como aduz TEPEDINO (2001, pág. 352):

A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, inda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes – particularmente no que se refere à figura da mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão – justificava-se em benefício da paz doméstica. Por maioria de razão, a proteção dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensível, em tal perspectiva, aversão do Código Civil à concubina. O sacrifício individual, em todas essas hipóteses, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célula mater da sociedade, a instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.

Contudo, transcorrido quase um século, o constituinte procurou modificar o panorama da família traçado pelo legislador de 1916. Influenciado por significativas revolução no mercado e nos costumes, ocorridas no século XIX, passa a reconhecer a pluralidade das relações familiares quando abriga no bojo do texto constitucional entidades familiares diversas da formada pelo casamento. Quer dizer, reconheceu que o casamento civil não é a única fonte de constituição da família legítima; podendo esta ser oriunda ainda de outras entidades.

E conseqüência disso, é a de que a família, hoje, deve ser vista pelo legislador e pelo operador jurídico como fato social, eminentemente plural e flexível, que não está necessariamente ligado à noção de casamento, que, sendo uma instituição jurídica, é apenas uma das formas de constituição e proteção jurídica da família.

1.3.2. A despatrimonialização e a repersonalização da família: a pluralidade constitucional de entidades familiares

Pelo que se viu até agora, a noção moderna de família deve ter como norte o direito à felicidade, que é marcado não pelos aspectos patrimoniais, mas pelo convívio e afeto da vida em comum. Dessa forma, o que marca o fenômeno da repersonalização (ou personificação) do direito de família é a valorização dos interesses da pessoa humana (o ser), não aquilo que ela possui (o ter), que, embora seja um componente importante a ser considerado, não deve ser colocado como elemento central, mesmo porque, em sociedade como a brasileira, a maioria das pessoas que se unem não possuem patrimônio. Com efeito, a propriedade não é valor absolutamente necessário para a realização das pessoas; os interesses privados, juridicamente tuteláveis, não devem girar em torno dos aspecto patrimoniais, mas, antes, dos aspectos afetivos. O afeto, enfim, deve ser colocado como elemento nuclear das relações familiares(3).

Nesse contexto é que se fala em “despatrimonialização” da família, ou seja, em abandono da estreita e unilateral visão do legislador de 1916, para dar guarida à “repersonalização” da família, vale dizer, ao resgate de todos os valores imateriais que devem existir no seio familiar e que são os efetivos responsáveis por sua manutenção. Entre eles: afetividade, liberdade, diálogo, compreensão, carinho e toda característica que prestigie o mútuo respeito.(4)

E nesse sentido, sem dúvida, caminhou a Constituição Federal de 1988, pois, como se pode observar da leitura do artigo 226(5) do texto constitucional vigente, o centro da tutela constitucional deslocou-se do casamento para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes. Afinal, de outra forma, não se consegue explicar a proteção constitucional às entidades familiares não fundadas no casamento (art. 226, § 3º) e às famílias monoparentais (art. 226, § 4º); a igualdade de direitos entre homens e mulheres na sociedade conjugal (art. 226, § 5º); a garantia da possibilidade de dissolução da sociedade conjugal independentemente da culpa (art. 226, § 6º); o planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade humana e da paternidade responsável (art. 226; § 7º); e a previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar(6) no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica (art. 226, § 8º).

Aliás, como corolário disso, no caput do art. 226 do Texto constitucional, operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu(7). E esse reconhecimento do pluralismo das entidades familiares, sem dúvida nenhuma, foi uma das mais importantes inovações da Constituição Brasileira de 1988, relativamente ao direito de família.

Destarte, de acordo com o art. 226 da Constituição existem pelo menos três tipos de entidades familiares explicitamente previstos nela. São elas: o casamento; a união estável e as famílias monoparentais(8). Todavia, consoantes se discutirá no capítulo seguinte, em realidade, além desses três espécies, acredita-se que a Constituição deixou aberta a porta para que outras se formem.

Por ora, diante desse contexto, interessa referir que, desde o advento da Constituição Federal de 1988, houve verdadeira inversão de valores, uma vez que o casamento e a família não mais existem para a satisfação econômica do grupo familiar, que era a noção em que se baseou o legislador de 1916, que tinha em mente a realidade agrícola e patriarcal existente à época. Hoje, as famílias, constituídas ou não pelo casamento, são calcadas, substancialmente, por laços de afeto, solidariedade e compreensão. Não é mais o indivíduo que existe para a família, mas a família e suas forma de constituição que existem para o desenvolvimento pessoal do indivíduo, em busca de sua aspiração de felicidade(9). Daí por que imprescindível para esse processo foi o reconhecimento das famílias extramatrimoniais, na medida que também desse modo se estará assegurando a liberdade das pessoas para optar por este ou aquele modelo de família que melhor atenda às suas necessidades, o que, em verdade, significa assegurar o desenvolvimento e a satisfação dos indivíduos componentes da entidade familiar, exatamente de acordo com o papel que se reservou à família contemporânea.

1.3.2.1. Casamento e a Família: conceitos afins, mas realidades distintas

Portanto, agora, diante do Texto constitucional, não se pode mais ter dúvida de que casamento e família são realidades distintas. Quer dizer, aquele é espécie deste e não sinônimo.

Assim, parece não restar dúvida de que o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, mostra-se desintoxicado do rigor – quase obrigatório – da legitimidade. O modelo do legislador já não se oferta como “único” ou “melhor”, mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na “vida como ela é”, de tão enorme, já não admitia a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador pátrio, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas, e principalmente, a desmistificação de que a família só se constituísse a partir do casamento civilmente celebrado; a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; a conseqüência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família hoje.

Eis o que houve. A lei se viu afrontada pelos fatos e não se atreveu ignorá-los por mais tempo. Vale dizer, a verdade jurídica cedeu vez à imperiosa passagem e instalação da verdade da vida. E a verdade da vida está a desnudar aos olhos de todos, homens ou mulheres, jovens ou velhos, conservadores ou arrojados, a mais esplêndida de todas as verdades: neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, muda o seu cerne fundamental, muda a razão de sua constituição, existência e sobrevida, mudam as pessoas que a compõem, pessoas estas que passam a ter a coragem de admitir que se casam principalmente por amor, pelo amor e enquanto houver amor. Porque só a família assim constituída – independentemente da diversidade de sua gênese – pode ser mesmo aquele remanso de paz, ternura e respeito, lugar em que haverá, mais que em qualquer outro, para todos e para cada um de seus componentes, a enorme chance da realização de seus projetos de felicidade(10).

Dessa maneira, em resumo, pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio(11).

1.3.3. Características atuais da família brasileira: o afeto como elemento primordial das entidades familiares

Conforme anota o professor Cáio Mário da SILVA PEREIRA (2000, p. 19), “[...] o centro da constituição da entidade familiar deslocou-se do princípio da autoridade para o da compreensão e do amor. Essa a nova concepção de família, que se constrói em nossos dias”.

De fato. Hodiernamente, o afeto vem a ser a causa primeira da união entre os seres humanos enquanto entidades familiares. Representa o fim último das uniões livres, sem o qual elas não podem sobreviver. Como ensina CAMBI (1999, p. 133/134): “A affectio(12) deve ser a única ratio das uniões matrimonializadas ou não, sendo papel da família a promoção do bem-estar de seus membros, com respeito à esfera individual de cada um”.

A respeito disso, calha trazer à colação lúcida reflexão da Desembargadora do Tribunal de Justiça gaúcho Maria Berenice DIAS (2004, p. 70/71):

É cada vez maior a necessidade de se buscar um conceito de família que compreenda o que todos os povos, em todos os tempos e lugares, reconhecem ser a estrutura originária da sociedade. A família serve de base e referência para o futuro de todos os indivíduos. É no seio da família que o ser humano nasce e inicia seu desenvolvimento, a salvo das hostilidades externas.

Mas é necessário repensar o conceito de família desvinculando-o de seus paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. A evolução dos costumes, o movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e a evolução da engenharia genética evidenciam que ditos balizamentos hoje não mais servem para delimitar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade, e, agora, sexo – até pelas mulheres – é praticado fora e antes do casamento. A concepção não decorre exclusivamente do contato sexual. O casamento não é mais o único reduto da conjugalidade, mesmo porque as relações extramatrimoniais já dispõe de reconhecimento no âmbito do Direito de Família.

O desafio do novo milênio é buscar o elemento identificador das estruturas interpessoais que autorize inseri-las em um ramo jurídico específico: o Direito de Família. Imperativo, portanto, que se encontre um conceito de entidade familiar que sinalize a natureza do relacionamento entre as pessoas. E esse ponto diferenciador só pode ser encontrado a partir do reconhecimento da existência de um vínculo afetivo (grifei). É o desenvolvimento emocional que cada vez mais serve de parâmetro para subtrair relacionamento do âmbito do Direito Obrigacional – cujo núcleo é a vontade – e instalá-lo no Direito de Família, cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, elo afetivo que funde as almas e confunde patrimônios, fazendo gerar responsabilidades recíprocas e comprometimentos mútuos.

E tanto isso é verdade que, segundo informa OLIVEIRA (2002, pág. 248), com base em dados do Relatório e anteprojeto de norma constitucional fornecido pela Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso da Assembléia Nacional Constituinte de 1988:

Das 5.517 sugestões advindas da população e encaminhadas à Assembléia Constituinte, pouquíssimas tinham conteúdo econômico, destacando-se: fortalecimento da família; igualdade entre o homem e a mulher; guarda dos filhos; proteção da privacidade da família diante da mídia e da informática; proteção estatal das famílias dos carentes e dos presidiários; aborto; paternidade responsável; liberdade quanto ao controle da natalidade; integridade física, mental e moral dos membros da família; vida comunitária; amparo legal às uniões estáveis; igualdade dos filhos de qualquer condição; responsabilidade social e estatal pelos menores abandonados.

Aliás, nesse sentido ainda se pode destacar que até o casamento passou a ter a affectio como ratio nesses novos tempos. Tanto, que a dissolução do vínculo matrimonial passou a ser admitida.

Realmente, não obstante a intensa liberdade com que mantém seus relacionamentos, os integrantes das famílias buscam, cada dia mais, o fortalecimento da reciprocidade dos seus sentimentos. Isso porque, há, indubitavelmente, uma função primordial e permanente da nova família: a de viabilizar a constituição e o desenvolvimento das melhores potencialidades humanas, fechando seu integrantes contra fatores externos que por ventura poderiam prejudicar esse desiderato. Nesse diapasão, os membros da “família nuclear”(13) têm um aguçado sentimento de viver num clima afetivo privilegiado que os protege contra qualquer intrusão, isolando-os atrás do muro da privacidade. Noutras palavras, tornou-se a família um refúgio para seus membros, que exerce a função de proteção contra toda a sorte de intromissão alheia, ao mesmo tempo em que é espaço propício para o desenvolvimento pessoal de cada membro familiar, de seus interesses afetivos e existenciais(14).

Destarte, a affectio é hoje o elemento nuclear de qualquer entidade que pretenda ser família, embora não seja o único, pois, são ainda elementos indispensáveis à caracterização da instituição a estabilidade e a ostensividade. E não poderia mesmo ser diferente. Afinal, quando se fala em afeto como elemento constitutivo básico da família, está-se referindo não a qualquer manifestação mais ou menos intensa de carinho, mas sim, precisamente, ao affectio familae, que se configura exatamente quando o afeto entre as pessoas se protrai no tempo (estabilidade) e se impõe como tal diante de todos (ostensividade).

De resto, finalmente, não se poderia deixar de reproduzir as palavras de Sérgio Gischkow PEREIRA (1988, p. 19 e 36) a respeito dos benefícios sociais dessa nova concepção de família, fundada no afeto dos seus membros. In verbis:

Uma família que experimente a convivência do afeto, da liberdade, da veracidade, da responsabilidade mútua, haverá de gerar um grupo não fechado egoisticamente em si mesmo, mas sim voltado para as angústias e problemas de toda a coletividade, passo relevante à correção das injustiças sociais.

A renovação saudável dos vínculos familiares, estruturados na afeição concreta e na comunicação não opressiva, produzirá número menor de situações psicopatológicas, originadas de ligações inadequadas, quer pela dominação prepotente quer pela permissividade irresponsável.
[...]
Os vetores da justiça, do amor, da igualdade, do respeito à dignidade humana, da liberdade e do atendimento das necessidades humanas a nível de possibilidade de desenvolvimento de todas as potencialidades do homem, são imprescindíveis a uma sociedade melhor e à mais perfeita organização familiar. Uma má sociedade apenas por exceção produz boas famílias, mas a recíproca é verdadeira. Se a família estiver estruturada e funcionalizada para transmitir aos seus componentes os valores superiores de convivência, um passo formidável terá sido dado no escopo de reconstruir uma sociedade mais justa, fraterna e solidária.

2. Uniões Homoafetivas(15)

2.1. Homossexualidade e opção sexual: linhas gerais

A questão da homossexualidade tem suscitado os mais variados debates. Não só no campo jurídico. De fato, a própria natureza da homossexualidade ainda é um mistério para a ciência. Etimologicamente, a palavra Homossexual (de origem grega) é formada pela junção dos vocábulos homo ou homoe e sexu, significando a idéia de semelhança, igual, análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa almeja ter. Daí, o termo conota a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo.

A prática homossexual acompanha a história da humanidade e sempre foi aceita, havendo somente restrições à sua externalidade, ao comportamento homossexual. Na Grécia antiga, fazia parte das obrigações do preceptado "servir de mulher" ao seu preceptor, e isso sob a justificativa de treiná-lo para as guerras, onde inexistia a presença de mulheres. Nas Olimpíadas gregas, os atletas competiam nus, exibindo a beleza física, sendo vedada a presença das mulheres na arena, pois não tinham capacidade para apreciar o belo. Também nas manifestações teatrais os papéis femininos eram desempenhados por homens transvestidos ou com o uso de máscaras. Por evidente que essas eram manifestações homossexuais.

O maior preconceito contra o homossexualismo provém das religiões. A concepção bíblica vem do preceito judaico, na busca de preservação do grupo étnico. Toda relação sexual deveria dirigir-se à procriação. Daí a condenação do homossexualismo masculino por haver perda de sêmen, enquanto que o feminino era considerado mera lascívia. A Igreja Católica considera uma aberração da natureza, transgressão à ordem natural, uma verdadeira perversão, baseada na filosofia natural de São Tomás de Aquino no sentido de que sexo se destina fundamentalmente à procriação. Daí serem antinaturais a masturbação, a homossexualidade e o sexo sem procriação.(16)

Acerca das causas(17) das suas causas, na área da Psicologia, a homossexualidade é encarada como um distúrbio de identidade e não como uma doença. Também não é hereditária nem é uma opção consciente ou deliberada. Para o psicólogo Roberto GRAÑA,(18) é fruto de um determinismo psíquico primitivo, que tem origem nas relações parentais desde a concepção até os 3 ou 4 anos de idade, quando se constitui o núcleo da identidade sexual na personalidade do indivíduo, que irá determinar sua orientação sexual.
No campo científico, também mudou o conceito. No ano de 1985, deixou de constar do art. 302 do Código Internacional das Doenças - CID - como uma doença mental, passando ao capítulo “Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais”. Na última revisão, de 1995, o sufixo "ismo", que significa doença, foi substituído pelo sufixo "dade", que significa modo de ser.
Recente pesquisa realizada nos EUA mostra a existência de causas genéticas no desenvolvimento do homossexualismo. Pesquisando gêmeos univitelinos, bivitelinos e adotados, mostra que 30 a 70% dos casos decorrem de fatores genéticos, e não somente do ambiente social e afetivo em que são criados. Buscam agora identificar o gem que age no desenvolvimento do homossexualismo. Também restou identificado que o tamanho do hipotálamo, região do cérebro que parece controlar certos impulsos sexuais, dos homossexuais é metade do dos heterossexuais, sendo do mesmo tamanho do das mulheres.

Assim, não se pode taxar o homossexualismo como um desvio de conduta ou uma escolha pessoal. Pois, não sendo uma opção livre, mas fruto de um determinismo genético e/ou psicológico, não pode ser objeto de reprovação ou marginalização social. O legislador não pode ficar insensível à necessidade de regulamentação dessas relações(19).

De efeito, a orientação sexual não é uma aberração senão uma definição individual vinculada a apelos próprios, físicos ou emocionais. Há que se respeitar o sentimento de cada um, a busca da realização de cada pessoa, que deve encontrar espaço para integração a que pertence, sem discriminações.

Na verdade, digna de nota mesmo é a opinião do psicólogo Colin SPENCER(20), que após relatar que as discussões sobre a homossexualidade não progridem há pelo menos um século, conclui acerca do tema apenas que “[...] a homossexualidade não deveria ser explicada, ela apenas existe".

Por conta de tudo isso, correta mesmo parece ser a afirmação de Caio Fernando ABREU (1996, p. 49), ao dizer que “[...] a homossexualidade não existe, nunca existiu, e sim a sexualidade, voltada para um objeto qualquer de desejo, que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe, mas não determina maior ou menor grau de moral e integridade”. Logo, não há também que se falar em opção sexual. Afinal, como se viu, cada qual exercita a sexualidade da forma como natureza lhe oferece. A orientação a ser seguida decorre de um impulso natural, sendo este o momento de se perceber que a dignidade da pessoa humana não está atrelada à sua orientação sexual. O que importa mesmo, é que cada qual possa livremente externar sua sexualidade, de acordo com a sua maneira de ser, respeitando apenas e obviamente os limites de privacidade dos outros.

A homossexualidade sempre existiu desde os primórdios e, depois de um longo período de perseguição e brutal restrição, hoje a sociedade já convive bem com esse fato social que não é novo, sendo sua aceitação progressiva. Contudo, por certo, muito há ainda para que o preconceito fique para trás e que a sociedade, enfim, possa olhar os fatos com o colorido e contorno que eles efetivamente apresentam, sem máscara hipócrita que ainda veste.

Em síntese, de acordo com Maria Berenice DIAS (2004, p. 97/98):

Independentemente de a orientação sexual se basear em fatores biológicos ou fisiológicos, inquestionavelmente é uma característica pessoal e se insere em uma aura de privacidade cercada de garantias constitucionais.
A valorização da dignidade da pessoa humana, elemento fundamental do estado democrático de direito, não pode chancelar qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais. Repelindo-se qualquer restrição à liberdade sexual, não se pode admitir desrespeito ou prejuízo a alguém em função da sua orientação sexual.
Como a homossexualidade é uma característica inata, integrando a própria estrutura biológica da pessoa, o seu não-reconhecimento e a falta de atribuição de direitos constituem cerceamento da liberdade e uma verdadeira forma de opressão.

2.2. Natureza jurídica das relações homoafetivas

2.2.1. Colocação do problema

Pois bem. Uma vez constatado que a homossexualidade é fenômeno absolutamente natural e que as Uniões Homoafetivas são verdadeira realidade social, por conseguinte é óbvio que, de um modo ou outro, interessam ao Direito. Portanto, cabe agora então buscar a natureza jurídica das relações homoafetivas. Quer dizer, trata-se de averiguar qual seria sua relevância e abrangência dentro do Direito.

Aliás, mais especificamente, importa estabelecer se elas, a partir da nova dimensão do conceito constitucional de família, agora marcado eminentemente pela affectio, seriam também entidade familiar.

Se no campo sociológico a resposta positiva seria praticamente inconteste, na seara jurídica a questão é polêmica. Todavia, nada obstante, pensa-se que a resposta é plenamente afirmativa sim, conforme razões adiante lançadas.

2.2.2. A União Homoafetiva enquanto entidade familiar pela perspectiva constitucional

2.2.2.1. Dos óbices postos

De acordo com Guilherme Calmon Nogueira da GAMA (2001), é absolutamente inegável a realidade fática das uniões entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, para ele, embora se reconheça tais uniões como famílias no sentido sociológico, o mesmo não ocorre no âmbito jurídico. Nessa esteira, refere o ilustre juiz federal que (GAMA, 2001, p. 41/42):
Não há sombra de dúvida que o afeto, a solidariedade e o projeto de vida em comum são elementos que se inserem no contexto das uniões de pessoas do mesmo sexo, sem possibilidade de adoção de qualquer medida discriminatória por parte do Estado ou de qualquer outro cidadão no contexto da liberdade no contexto da constituição e manutenção de tais uniões. Contudo, no estágio atual do ordenamento jurídico brasileiro, alguns valores e princípios tradicionais ainda prevalecem em matéria de conjugalidade, mormente no contexto do Direito de Família. A sexualidade, tal como encarada pelo Direito – não diretamente relacionada à procriação nos dias atuais – , tende a ser aquela tida como natural ou normal, impedindo que outros modelos – ainda que presentes, na realidade fática – , possam ser considerados juridicamente. Daí a inexistência do casamento e, conseqüentemente, a inexistência do companheirismo entre pessoas do mesmo sexo.

E adiante completa (GAMA, 2001, p. 185 e 188):
A Constituição Federal de 1988 deixa expresso que outras realidades sociológicas, além das uniões matrimonias, também constituem autênticas famílias, na acepção jurídica [...]. Mas, mesmo com o texto constitucional de 1988, certas realidades sociológicas de natureza familiar ainda foram mantidas afastadas do Direito de Família, tais como o concubinato (na estria acepção do termo), as uniões entre pessoas do mesmo sexo e a conivência afetiva assexuada entre amigos ou parentes. [...] Certo ou não, fato é que a Constituição Federal encampou certos modelos de família sociológicas e, propositadamente, deixou de fora outros. Há valores e princípios jurídicos que fundamentam o ordenamento jurídico brasileiro, implicando a adoção de regras de conduta nas relações familiares, como a proibição jurídica do incesto, e da diversidade de sexos, que não foram modificadas pela Constituição Federal, mantendo tais uniões fora do Direito de Família.

Isso porque, tecnicamente, explica GAMA (2001, p. 186) , “[...] à luz da normativa constitucional, somente aqueles que, potencialmente, podem viver unidos formalmente (ou em casamento), merecem o status familiae”. Isto é:

Deve-se sublinhar a importância da noção de casamento mesmo quanto às uniões informais: os contornos do casamento se mostram fundamentais, no mundo jurídico, par ao reconhecimento das famílias jurídicas fundadas na conjugalidade, por força do sistema existente, tal como previsto na Constituição Federal. Em matérias de família conjugais, somente poderá ser reconhecida como família a união informal que, abstratamente, possa ser convertida em casamento, ainda que, eventualmente, os partícipes da união sejam casados com outras pessoas, mas que já estejam separados de fato pelo tempo mínimo para se desvincularem, formalmente, de seus ex-consortes e possam requerer a conversão da ‘união estável’ em casamento. [...] imperioso se faz alertar que o texto constitucional implicitamente adotou como paradigma o casamento para o reconhecimento das uniões livres como sendo espécie de família, daí conseqüência inarredável de que outras uniões que não preencham os requisitos do companheirismo devem ser consideradas alijadas do contexto constitucional.
Assim, pode ser estatuído o seguinte: não há união estável, e nunca haverá, naquelas uniões que, por força do tratamento no Direito matrimonial, nunca poderão ser convertidas em casamento.(21)

E a respeito dos fundamentos dessa ilação, aduz que:

Dois, basicamente, são os fundamentos de tal afirmação: a) a Constituição Federal estimula a constituição, ab initio ou por conversão, de famílias matrimoniais; quanto às outras famílias (informais e monoparentais), as reconhece, sem pretender sua proliferação. A regra constante da parte final do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, ao prever que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, é elucidativa a esse respeito; b) não houve equiparação entre família matrimonial e as outras famílias sociológicas (ora reconhecidas constitucionalmente), daí porque há a prevalência do casamento sobre outras formas de constituição (e, manutenção) de família.(22)

Ainda em defesa dessa tese, costuma-se invocar a referência expressa contida no § 3º do art. 226 à diversidade de sexos como razão suficiente para negar a possibilidade a existência (jurídica) de uma família composta por pessoas do mesmo sexo. A título ilustrativo, pode-se citar José Sebastião de OLIVEIRA, Eduardo CAMBI, Rainer CZAJAKOWSKI e Álvaro VILLAÇA,(23) bem como trazer à colação a ementa do seguinte julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL.
O relacionamento homossexual entre duas mulheres não se constitui em união estável, de modo a merecer a proteção do Estado como entidade familiar, pois é claro o § 3º do art. 226 da Constituição Federal o sentido da diversidade de sexos, homem e mulher [...]. Apelo parcialmente provido.
(Apelação Cível nº 70007911001. Oitava Câmara Cível do TJRS. Rel. Des. Antônio Carlos Stangler Pereira. J. em 01/06/2004)

2.2.2.2. Da resposta aos óbices postos

Pois bem. Contudo, apesar de respeitável o ponto de vista, partindo de outras premissas, estabelecidas a partir de um olhar mais atento ao texto constitucional e condizente com a realidade social, entende-se que a tese não se sustenta juridicamente.

De fato, o equívoco da proposição que nega às uniões homoafetivas o status familiar está nas premissas invocadas para sustentá-la, pois responde afirmativamente a duas indagações centrais acerca do pluralismo da entidades familiares previsto na Constituição Federal, quais sejam, se há hierarquização axiológica entre elas e se constituem numerus clausus, enquanto, na verdade, seria o caso de objetar ambas as hipóteses suscitadas. Além do que, por outro lado, é censurável também porquanto desconsidera processo de hermenêutica constitucional elementar, no sentido de que a Constituição deve ser interpretada de forma coesa, pelo que não se pode jamais tomar determinada regra isoladamente, sem esquecer que ela está condicionada pela realidade histórica, razão pela qual não se pode separar da verdade concreta de seu tempo, uma vez que só assim terá máxima eficácia para prática e acatamento social (princípio da máxima efetividade).

Com efeito, a Lei Maior, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento e, nessa senda, alargou o conceito de família, que antes, de forma completamente divorciada da realidade social, estava jungido apenas ao do matrimônio. Nesse sentido, a constituição de 1988 reconheceu formas de vida familiar à margem do casamento, evidenciando não ser essencial o nexo família-matrimônio, ou seja, o constituinte apreendeu a família sob o ponto de vista sociológico que não admite esse conceito unitário, mas reconhece que casamento e família são realidades distintas.

Mas não só isso. Como se tem ressaltado ao longo deste trabalho, projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas.(24)

E isso porque, para a Constituição, a proteção à família dá-se “nas pessoas de cada um dos que a integram” (art. 226, § 8º), tendo estes direitos oponíveis a ela e a todos (erga omnes). Quer dizer, sob a nova ótica constitucional, quer-se privilegiar a concepção eudemonista de entidade familiar a fim de que a família seja um instrumento para realização do ser humano. Tutelar juridicamente a família é, antes, tutelar juridicamente o ser humano, pois é através da proteção à família, enquanto organismo social, que o Estado deve proteger a pessoa humana, dando-lhe dignidade e possibilitando o pleno desenvolvimento de suas virtudes.(25)

Então, nesse passo, se as pessoas vivem em comunidades afetivas diversas da do casamento, por livre escolha ou em virtude de circunstâncias existenciais, sua dignidade humana restará garantida apenas com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem restrições ou discriminações e sem qualquer submissão de um modelo de família ao outro. Do mesmo modo, sobrepor uma entidade familiar à outra, privilegiando àquela em detrimento desta, significa, em última instância, desequiparar as próprias pessoas que as compõem, umas das outras, o que se revela uma verdadeira afronta também ao preceito igualitário. Logo, a se insistir nisso, haverá odiosa distinção e desrespeito a postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Nesse diapasão, acerca da prescrição contida na norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, no sentido de que deve a lei facilitar a conversão da união estável em casamento, ensina o professor Paulo Luiz Neto LÔBO (2004) que:

[...] a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição não contém determinação de qualquer espécie. Não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra.

E a propósito, outro não é o entendimento esposado pelo Desembargador do TJRS, José Carlos Teixeira Giorgis, conforme trecho do voto que proferiu nos autos dos Embargos Infringentes nº 70003967676, in verbis:

Por outro lado, não há supremacia do casamento sobre a união estável, como poderia induzir o parágrafo 3º do art. 226 da Carta Federal, eis que tal relação não é uma “menos valia”, apenas por almejar transformar-se em casamento, mas um incentivo ao conviventes que desejam casar-se, sem maiores formalidades [...].
Tampouco há, nem deve haver, qualquer hierarquia entre as entidades familiares, nem qualquer tipo de preferência por alguma delas, sob pena de se criar odiosa distinção, em nenhum momento autorizada pelo constituinte. O fato do dispositivo relacionado com a união estável orientar o legislador no sentido de facilitar a conversão do companheirismo em casamento, não tem o condão, por alguns buscado, de revelar a primazia do casamento. Ao contrário, indica que cuida de regime diferenciado, facultando-se aos que vivem em união estável passar ao sistema matrimonial.
A isonomia entre as entidades deriva, precipuamente, do reflexo do princípio da isonomia prescrito na Constituição.(26)

Por conta disso, irretorquível parece ser mesmo a conclusão do professor Paulo Luiz Neto LÔBO (2004), no sentido de que:

Não se pode enxergar na Constituição o que ela expressamente repeliu, isto é, a proteção de tipo ou tipos exclusivos de família ou da família como valor em si, com desconsideração das pessoas que a integram. Não há, pois, na Constituição, modelo preferencial de entidade familiar, do mesmo modo que não há família de fato, pois contempla o direito à diferença. [...] Se há família, há tutela constitucional, com idêntica atribuição de dignidade.

Outrossim, uma vez estabelecida a premissa de que a Constituição Federal de 1988 visou precipuamente à realização da pessoa humana(27) (daí a alcunha “Constituição Cidadã) e que para tanto fez da família um instrumento a serviço desse desiderato, não se concebe tenha o constituinte optado pelo modelo fechado de entidades familiares, as quais seriam apenas aquelas previstas expressamente no Texto constitucional. Na verdade, a exclusão que se pretende fazer não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que se faz dela.(28) De fato, quando a Constituição trata de família, está a referir-se a qualquer das entidades possíveis no mundo fenomenológico.

Isso porque o constituinte de 1998, ao tratar de família, propositadamente, omitiu a locução “constituída pelo casamento”, então presente nas cartas que a precederam, sem fazer qualquer substituição. A respeito, vale conferir o texto legal do art. 226 da Constituição Federal de 1988, especialmente do seu caput, ipsis litteris:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direito e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações. (grifei)

Desse modo, toda e qualquer família, assim entendida a relação entre seres humanos impregnada de afeto (affectio familae) e que se afigure estável (duradoura no tempo) e ostensiva (de caráter público e notório), foi posta sob tutela constitucional, desaparecendo a cláusula de exclusão, pois a interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. Até mesmo porque não se pode perder de vista que o objeto da norma hoje não é a família, como valor autônomo, mas sim as pessoas que a compõem, e não como acontecia outrora em que a proteção se voltava apenas para a proteção da paz doméstica e da família fundada no casamento como um bem em si mesma, até mesmo em detrimento das pessoas.

Destarte, o caput do art. 226 da Constituição Federal é norma de inclusão, pelo que, volta-se a repetir, não é lícito excluir qualquer entidade que preencha os requisitos da afetividade, estabilidade e notoriedade, sendo as famílias arroladas nos seus parágrafos 3º e 4º (união estável e monoparentais) meramente exemplificativas, embora as mais comuns.

A respeito, a fim de corroborar a proposição, pela sua magnificência, merece transcrição a lição do professor Paulo Luiz Neto LÔBO (2004):

No caput do art. 226, operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.

O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias “ilícitas”, desse modo consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único (casamento), em torno do qual o direito de família se organizou. “A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial” . O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.

A regra do § 4º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto.

Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.

Do mesmo modo, salienta Maria Berenice DIAS (2004) que:

A constituição Federal, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. No entanto, é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa somente à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com a prole.

Portanto, em síntese: os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerusclausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios e sem a primazia de umas sobre as outros, uma vez que, se não fosse assim, degradada restaria sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão.(29)

Por outro lado, é absolutamente equivocada a noção daqueles que costumam invocar a referência expressa contida no § 3º do art. 226 da Constituição Federal à diversidade de sexos como razão suficiente para negar a possibilidade a existência (jurídica) de uma família composta por pessoas do mesmo sexo. Efetivamente, trata-se, sem dúvida nenhuma, de postura tendente a desconsiderar processo de hermenêutica constitucional elementar, no sentido de que a Constituição deve ser interpretada de forma coesa e condicionada pela realidade histórica.

Aliás, fazendo-se um breve parêntese, também equivocada parece ser a idéia de alguns voltada à inconstitucionalidade do preceito em comento, por violar os princípios da dignidade humana e da igualdade ao discriminar o conceito de homossexualidade. Isso porque a tese da inconstitucionalidade das normas constitucionais originárias já foi expressamente afastada pelo STF, quando do julgamento da ADIn nº 815-3, colhendo-se do voto do eminente relator, Ministro Moreira Alves, que “a tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompatível o sistema da Constituição rígida”.(30) Logo, venia concessa, a solução para a celeuma que mais se coaduna com nosso sistema está mesmo no campo da hermenêutica constitucional.

Feito o aparte, de volta, há que se esclarecer que a interpretação constitucional deve garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica. O Direito Constitucional deve ser interpretado evitando-se contradições entre suas normas, sendo insustentável uma dualidade de constituições, cabendo ao intérprete procurar recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da Lei Maior. Como conseqüência deste princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente imbricadas, não se podendo jamais tomar determinada regra isoladamente. A Constituição é o documento supremo de uma nação, estando as normas em igualdade de condições. Nenhuma pode se sobrepor à outra, para afastar seu cumprimento. Cada norma subsume-se e complementa-se com princípios constitucionais, neles procurando encontrar seu perfil último. O princípio da unidade da ordem jurídica considera a Constituição como o contexto superior das demais normas, devendo as leis e normas secundárias serem interpretadas em consonância com ela, configurando a perspectiva uma subdivisão da chamada interpretação sistemática.

Como corolários desta unidade interna, mas também axiológica, a Constituição é uma integração dos diversos valores aspirados pelos diferentes segmentos da sociedade, através de uma fórmula político-ideológica de caráter democrático, devendo a interpretação ser aquela que mais contribua para a integração social (princípio do efeito integrador), como ainda que lhe confira maior eficácia, para prática e acatamento social (princípio da máxima efetividade). Ou seja, a interpretação da Constituição deve atualizá-la com a vivência dos valores de parte da comunidade, de modo que os preceitos constitucionais obriguem as consciências (princípio da força normativa da Constituição). Em síntese, pode-se afirmar que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica, não podendo separar-se da verdade concreta de seu tempo, operando sua eficácia somente tendo em conta dita realidade.

As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. É incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo (rectius do não-agir) é a perpetração de grandes injustiças. Alinhadas as premissas de que as relações homoeróticas constituem realidade notória – a que o Direito deve atenção – e de que a interpretação da Constituição deva ser ativa (relevando a vida concreta e atual, sem perder de vista a unidade e eficácia das normas constitucionais), é que se pode reler a regra constitucional que trata da família, do casamento, da união estável e das uniões monoparentais, cuidando de sua vinculação com as uniões homossexuais.(31)

Nesse sentido, é inquestionável que, à luz arcabouço normativo inserto no texto constitucional de 1988, a orientação sexual da pessoa é atributo inerente de sua personalidade, merecendo respeito e acatamento por toda a sociedade, que deve ser livre, justa e solidária, preservando a dignidade da pessoa humana, independentemente de suas preferências ou opções sexuais.(32)

Pois, de fato, constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa, livre e igualitária, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, I e IV). Daí, só por conta disso, impossível já seria querer interpretar isoladamente a disposição do art. 226, § 3º, da Constituição, de modo a chegar a enfoque que contrarie esses fundamentos constitucionais.

Nada obstante, para além disso, a Constituição alberga a igualdade sexual em seu texto em vários dispositivos. Genericamente, quando determina que todos são iguais perante a lei e em seus objetivos fundamentais de promoção de bem comum; especificamente, quando diz que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (CF, art. 5º, I) e proíbe a diferenciação salarial, funcional ou de critérios de admissão por motivo de sexo (CF, art. 7ª, XXX). Logo, assim, vê-se que o sexo é uma característica pessoal protegida constitucionalmente e que sua utilização como critério de discrímem deve ser muito bem sopesada face ao preceito igualitário, principalmente quando se trata de questões de família em que o fundamento da discussão deve estar no afeto e nas condições de se estabelecer um convívio harmônico, mas jamais na orientação sexual dos parceiros. De vereda, tem-se que a regra do art. 226, § 3º, da Carta Magna, se interpretada de forma isolada e literalmente, não configura uma diferenciação racional fundada na efetivação do bem comum. Ao contrário, estaria estabelecendo uma discriminação sexual, entendida em seu sentido mais intolerável de preconceito.(33)

Outrossim, não se pode esquecer que a Constituição Federal assegura a todos, indistintamente, direito à intimidade (CF, art. 5º, X), inclusive sexual por óbvio. Ademais, se na união entre pessoas do mesmo sexo o afeto existente tem o mesmo elemento psíquico e volitivo das uniões heterossexuais, qualquer distinção que se estabeleça entre elas atenta diretamente contra o princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III) dos integrantes das uniões homoafetivas. Afinal, como aduz GIORGIS (2002), “[...] ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui”.

Portanto, a partir de uma visão sistêmica e concatenada com a realidade social do texto constitucional, vê-se claramente que a referência expressa contida no § 3º do art. 226 à diversidade de sexos não se constitui em razão suficiente para negar a possibilidade a existência (jurídica) de uma família composta por pessoas do mesmo sexo. Afinal, por tudo que se viu, à luz do arcabouço normativo inserto no texto constitucional de 1988, a orientação sexual da pessoa é atributo inerente de sua personalidade, merecendo respeito e acatamento por toda a sociedade.

2.2.3. Natureza jurídica das relações homoafetivas: conclusão

Tanto estabelecido, chegou o momento de questionar: as uniões homossexuais seriam então entidades familiares constitucionalmente protegidas? De pronto, a resposta só poderia ser uma: sim, sempre e quando preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, eis que a norma de inclusão do art. 226 da Constituição apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões.

De outra banda, a ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque as normas do referido art. 226 são auto-aplicáveis, independentemente de regulamentação. Todavia, não se vê necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem e mulher (§ 3º do art. 226). Pois, os argumentos que têm sido utilizados no sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria, o que, por óbvio, não impede que se faça, enquanto não se venha regulamentá-las, o uso da analogia com as uniões estáveis, já que realmente guardam grande verosimilhança, para solucionar os casos que perventura tenham os tribunais que enfrentar envolvendo uniões homoafetivas nesse momento.(34)

Por esse ângulo, perfeita a decisão do 4º Grupo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul exarada nos autos dos Embargos Infringentes nº 70003967676, in verbis:

UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos Infringentes acolhidos, por maioria. (Relatora p/ o acórdão: Des. Maria Berenice Dias. J. em 09/05/2003)(35)

Por fim, fica o registro da importância de se estabelecer a natureza jurídica das uniões homoafetivas como verdadeiras entidades familiares constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria, em virtude das conseqüências que isso acarreta.

É que, assim sendo, os conflitos decorrentes de tais entidades familiares devem ser resolvidos à luz do direito de família e não do direito das obrigações, tanto os direitos pessoais, quanto os direitos patrimoniais e quanto os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato,(36) como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo e não de uma sociedade afetiva.

E como conseqüência, não se pode admitir qualquer interpretação legal que privilegie uma espécie de entidade familiar em detrimento de outra, ou que vise tutelar o vínculo conjugal em sacrifício de algum dos cônjuges ou dos filhos. Ao reverso, as normas que têm a sua ratio vinculada às relações familiares deve ser entendidas a toda e qualquer entidade familiar, nos termos constitucionais, independentemente da origem da família.(37)

3. Análise tópica das uniões homoafetivas

3.1. Breves considerações

A jurisprudência tem servido atualmente como instrumento de modernização e aproximação do direito escrito à realidade social vivida pelos países de influência marcadamente positivista, como é o nosso. Nesse sentido, parece absolutamente apropriado trazer à baila alguns julgados que, de maneira irretocável, versaram sobre as uniões afetivas a partir do que elas realmente são: entidades familiares, constitucionalmente tuteladas.

Nessa senda, merecem registro pelo menos quatro decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), não só pelo pioneirismo quanto ao trato do assunto, mas principalmente pela lucidez dessas suas decisões. Aliás, a partir disso, vê-se que, realmente, é merecida a alusão que se faz Brasil afora ao vanguardismo do Tribunal de Justiça gaúcho, pelo que fica aqui consignada uma singela homenagem a esse Pretório.

Do mesmo modo, pelo significado histórico e pela sua repercussão no meio social, não se poderia deixar de retratar aqui a decisão judicial da lavra da eminente Juíza Federal Simone Fortes Barbisan Fortes, que levou o INSS a aditar a Instrução Normativa nº 25/2000, através da qual passou a Autarquia Federal a reconhecer a possibilidade de processamento e deferimento de benefícios previdenciários aos companheiros ou companheiras homossexuais, mormente porque recentemente avalizada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

3.2. Julgaos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul(38)

3.2.1. Competência para julgamentos envolvendo uniões homoafetivas

As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes apenas seqüelas de ordem patrimonial. E assim sendo, reconhecidas como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas pelas Varas Cíveis e os recursos por ventura interpostos, igualmente, desaguavam numa das Câmaras Cíveis que não as especializadas no Direito de Família.(39)

Ocorre que perante uma vara de família da Capital (POA) foi intentada uma ação buscando reconhecimento de direitos decorrentes da separação de duas mulheres. Em face disso, considerando como matéria referente às sociedades de fato, o magistrado a quo determinou a redistribuição do processo a uma vara cível. Tal decisão deu ensejo à interposição de agravo de instrumento (nº 5990755496) que foi distribuído à 8ª Câmara Cível. O Relator, Desembargador Breno Moreira Mussi, ao apreciar o pedido liminar, manteve a ação no juízo de família, sendo que o colegiado confirmou posteriormente essa decisão por unanimidade.

Quer dizer, a partir desse precedente, houve o reconhecimento expresso, pelo menos no que tange à justiça estadual gaúcha,(40) de que as uniões homoafetivas são verdadeiras entidades familiares e que, assim sendo, todas as questões a elas referentes devem ser solvidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais responsáveis pelo processo e julgamento das ações que versem sobre o direito de família.

Eis a ementa do julgado:

RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 599075496, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Breno Moreira Mussi, Julgado em 17/06/1999)

3.2.2. Possibilidade jurídica dos pedidos envolvendo uniões homoafetivas

A omissão do legislador em regulamentar as uniões homossexuais muitas vezes foi vista como deliberada intenção de excluir a possibilidade de se extrair dessas relações qualquer efeito jurídico. Nesse sentido, a tendência inicial foi a de indeferir a petição inicial, por impossibilidade jurídica do pedido, das ações que versassem sobre direitos e obrigações decorrentes das uniões homoafetivas.

Essa foi a postura adotada num caso em que o autor alegou ter vivido em união afetiva homossexual com o de cujus por quase 15 anos, postulando pelo reconhecimento de direitos sucessórios seus. Pois, o magistrado, sem instruir o processo, julgou improcedente a ação.

Houve apelação da decisão, sendo que o recurso foi distribuído ao Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade. A 8ª Câmara Cível, então, deu provimento por unanimidade ao recurso, reconhecendo que a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar e que, por conseguinte, não haveria que se falar em impossibilidade jurídica do pedido in casu, pelo que foi determinado o prosseguimento da ação para que as partes produzissem provas de suas alegações.

Por outras palavras, essa decisão, de forma clara, sinalizou o caminho para a inserção, no âmbito do Direito de Família, das uniões homoafetivas como uma entidade familiar, bem como ressaltou a vedação constitucional de discriminação em razão do sexo.

Vale conferir o resumo do julgado:

HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso pais, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade cientifica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividade, possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida. (Apelação Cível nº 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 01/03/2000)

3.2.3. Analogia das uniões homoafetivas com a união estável

A competência já estava fixada. A possibilidade jurídica do pedido já havia sido firmada. Mas a concessão de direito sucessórios a uma união homoafetiva só ocorreu nos autos da Apelação Cível nº 70001388982. Essa foi a primeira decisão da Justiça Brasileira que deferiu herança ao parceiro do mesmo sexo, já que a jurisprudência até então limitava-se a determinar a divisão de bens de uma sociedade de fato.

A ação que deu ensejo a essa mudança de rumos foi proposta pelo companheiro sobrevivente contra o espólio do parceiro falecido, com o qual conviveu por mais de 20 anos. Da instrução, restou incontrovertida a convivência do par, de forma pública e notória. Igualmente, ficou comprovado que o autor era quem exercia atividade lucrativa. Mas como era analfabeto, os bens eram administrados pelo companheiro falecido, que se limitava a esse mister, não possuindo renda própria. A confiança mútua do par deu ensejo a que este transformasse os ganhos do autor em bens, os quais foram colocados em nome apenas do de cujus.

Na sentença, o Juiz, reconhecendo a sociedade de fato, deferiu o percentual de 75% ao autor e de 25% ao espólio dos bens amealhados. A sucessão recorreu da decisão, alegando que não havia restado comprovada a sociedade de fato e que o julgador concedeu ao requerente percentual maior do que o requerido. Disse ainda que nas sociedades homossexuais a partilha do patrimônio comum deveria ser igualitária.

A apelação foi julgada pela 7ª Câmara Cível, tendo como relator o Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, que num voto de fôlego e erudição foi as origens históricas do homossexualismo e trouxe preciosas considerações sobre a condição dos homossexuais sob o ponto de vista médico e psíquico. Ainda, invocou os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, para justificar o respeito que se deve ter com a orientação sexual de cada um. Usando como paradigma a união estável, o relator admitiu os efeitos patrimoniais da relação tal qual uma comunidade familiar, afastando assim a sociedade de fato como parâmetro. Dessa forma, entendeu o relator fosse o caso de partilhar igualitariamente o patrimônio, presumindo-se a colaboração mútua dos companheiros, como ocorre com a união estável. O julgamento não foi unânime. Todavia, a ausência da interposição de embargos infringentes cristalizou o julgado.

Segue a síntese da decisão:

UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes as que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (Apelação Cível n.º 70001388982, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel. José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 14/03/2001)

3.2.4. Separação e partilha de bens entre casais homossexuais

Finalmente, merece distinção a decisão exarada nos autos da Apelação Cível nº 70005488812, porquanto foi através desse julgado que pela primeira vez reconheceu-se judicialmente a dissolução de uma união entre pessoas do mesmo sexo pela separação das partes com a determinação da partilha de bens.

O aresto tem enorme significado, na medida em que a 7ª Câmara, de forma unânime, acompanhou o relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis no entendimento de que se constitui união estável a relação fática entre duas pessoas, baseada na convivência afetiva, pública, contínua e duradoura, ainda que do mesmo sexo, razão pela qual segue transcrita abaixo sua ementa, in verbis:

RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas. (Segredo de Justiça) (Apelação Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 25/06/2003)

3.3. AS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO ÂMBITO DO REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

Por tudo que já se viu até, não há dúvida de que tal qual a relação heterossexual, a união homossexual também estabelece vínculos em que há comprometimento afetivo. Daí, embora o direito não regule sentimentos, pode e deve regular as conseqüências que advém das relações sentimentais havidas entre as pessoas, independentemente do sexo das pessoas envolvidas. E isso vale inclusive para o âmbito do Direito Previdenciário.

Pois bem. Todavia, sob a alegação de que as uniões entre homossexuais não estavam amparadas pelo regime jurídico pátrio, o INSS sequer vinha processando os pedidos administrativos que lhe eram feitos pelos companheiros homossexuais.

Em função disso, como relataram os Procuradores da República Paulo Gilberto Cogo Leivas e Marcelo Veiga Beckhausen(41), em 24 de setembro de 1999, a organização não-governamental “Nuances”, que tem por objetivo a defesa dos direitos humanos de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais, promoveu denúncia perante o Ministério Público Federal contra o INSS, por violação de direitos humanos. Ainda conforme os Procuradores, sustentou o representante daquela entidade que a Autarquia Federal viola os princípios constitucionais da igualdade e da livre expressão sexual ao indeferir, administrativamente, pedidos de pensão previdenciárias para companheiros do mesmo sexo.

Acerca disso, foi instaurado procedimento administrativo pelo Ministério Público Federal, para investigar a procedência da denúncia. Como primeira medida foi oficiado ao Superintendente do INSS no Rio Grande do Sul, que, em resposta, confirmou a veracidade da denúncia, sustentando que "não é devida a concessão destes benefícios em casos de relação homossexual, face o contido no parágrafo 3º do artigo 16 da Lei nº 8.213/91 e no artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição Federal".

Considerando a confirmação, em seus aspectos fáticos e jurídicos, o Ministério Público Federal propôs a Ação Civil Pública 2000.71.00.009347-0 contra o INSS, para que este órgão cessasse sua conduta violadora do princípio da igualdade e passasse a processar administrativamente os requerimentos de pensão previdenciária e auxílio-reclusão que tivessem como causa relação de companheirismo vivida entre pessoas do mesmo sexo.

Assim, após o trâmite regular do processo, a excelentíssima Juíza Federal julgou procedente o pedido, confirmando assim a medida liminar que já havia deferido no curso da ação. Aliás, a partir da decisão liminar, para dar cumprimento à ordem judicial, o INSS editou a Instrução Normativa nº 25, estabelecendo procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.

E ao que parece, dificilmente essa nova realidade irá mudar. É que, recentemente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pela sua 6ª Turma, em decisão da lavra do Desembargador Federal João Batista Pinto Oliveira, após afastar os óbices processuais suscitados pela Autarquia Federal, confirmou no mérito a decisão da Juíza a quo, em voto muito bem lançado, basicamente na mesma linha das razões aqui defendidas.

Veja-se:

CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO. HOMOSSEXUAIS. INSCRIÇÃO DE COMPANHEIROS COMO DEPENDENTES NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL.

1. Possui legitimidade ativa o Ministério Público Federal em se tratando de ação civil pública que objetiva a proteção de interesses difusos e a defesa de direitos individuais homogêneos. 2. Às ações coletivas não se nega a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local. 3. A regra do art. 16 da Lei nº 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia com os preceitos contidos na Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), entendendo-se que os limites da competência territorial do órgão prolator, de que fala o referido dispositivo, não são aqueles fixados na regra de organização judiciária, mas sim, aqueles previstos no art. 93 do CDC. 4. Tratando-se de dano de âmbito nacional, a competência será do foro de qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentença produzirá os seus efeitos sobre toda a área prejudicada. 5. O princípio da dignidade humana veicula parâmetros essenciais que devem ser necessariamente observados por todos os órgãos estatais em suas respectivas esferas de atuação, atuando como elemento estrutural dos próprios direitos fundamentais assegurados na Constituição. 6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. 7. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana. 8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. 9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial - em alguns países de forma mais implícita - com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. 10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. 11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (art. 16, I, da Lei n.º 8.213/91), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão. (Apelação Cível n.º 2000.71.00.009347-0/RS. 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. J. em 27/06/2005, à unanimidade).

De mais a mais, importantíssimo dizer que o próprio Supremo Tribunal Federal já teve o ensejo de manifestar-se acerca da questão. Foi nos autos da PET. 1984/RS, recurso interposto pelo INSS em face da liminar deferida pela Juíza Federal Simone Barbisan Fortes, onde o Ministro Marco Aurélio manteve a decisão da Juíza. A propósito, ressaltou o Ministro na decisão que:

[...] Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do art. 3º da Carta Federal). Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado. O tema foi bem explorado na sentença (folhas 351 à 423), ressaltando o Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação isolada em relação ao artigo 226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da união estável entre homem e mulher com entidade familiar. Considerou-se, mais, a impossibilidade de, à luz do artigo 5º da Lei Máxima, distinguir-se ante a opção sexual. Levou-se em conta o fato de o sistema da Previdência Social ser contributivo, prevendo a Constituição o direito à pensão por morte do segurado, homem ou mulher, não só ao cônjuge, com também ao companheiro, sem distinção quanto ao sexo, e dependentes – inciso V do art. 201 [...].

Portanto, significativa são mesmos tais decisões, na medida que delas decorreram a referida Instrução Normativa nº 25, posto que se trate de norma de caráter administrativo, ainda sim não deixa de ser a primeira no Direito Positivo a legitimar as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo.

Destarte, espera-se que a partir disso abram-se as demais portas da legislação nacional para que se acolha uma realidade que salta aos olhos todos os dias, pelo que só aqueles que, cobertos pelo véu do preconceito, não a vêm exatamente porque não querem ver, qual seja a união homoafetiva.

CONCLUSÃO

Diante das inúmeras mudanças ocorridas no mundo nos últimos tempos, não há mais espaço para a vetusta visão da família patriarcal, nitidamente hierarquizada, com papéis bem definidos, constituída pelo casamento. Com efeito, hoje, se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.

A isso conduz a correta interpretação da Constituição Federal, isto é, aquela feita de forma sistêmica e imbricada com a realidade social, a qual leva indubitavelmente à conclusão de que as relações homoafetivas são sim uma espécie de entidade familiar implicitamente consagrada pelo Texto Constitucional, com contornos próprios e que, desse modo, como tal deve ser tratada.

Assim, quando se diz que não podem ficar à margem do Direito, é do Direito de Família que se está referindo, porquanto somente este ramo do Direito pode dar adequadas respostas às questões envolvendo as relações afetivas envolvendo pessoas do mesmo sexo.

Nesse sentido a jurisprudência tem trabalhado. Ainda timidamente é verdade, destacando-se a respeito as decisões de vanguarda da justiça (estadual e federal) gaúcha, contudo de forma humana e corajosa, como se espera que faça um Poder que, aliás, confunde-se com a própria Justiça.

Enfim, de todo esse amálgama, a mensagem que deve ficar, sem dúvida, é a de que todos têm direito à felicidade; assim, não há nenhum motivo justo, seja moral ou legal, para negar ou desconhecer que muitas e muitas pessoas só serão felizes relacionando-se afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo. Portanto, está na hora do Estado, que se diz democrático e que consagra expressamente na sua Carta Política, como princípio maior, o da dignidade da pessoa humana, respeitar isso, o que só fará quando reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade!

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VILLAÇA, Álvaro. União entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em <http://www.gontijo-familia.adv.br/>. Acesso em 24 out. 2005.

Notas

1. TEPEDINO, 2001, p. 352.

2. CAMBI, 1999, p. 127. Aliás, ainda segundo CAMBI (1999), dentre os pressupostos ideológicos, com destaque aos condicionantes religiosos e econômicos, que culminaram com a consagração desse modelo único de família, não se pode perder de vista que: no plano religioso, apesar da secularização do casamento, na Constituição Republicana de 1981, a Igreja, ainda mais no início do século, exercia uma forte influência nas decisões políticas. Deste modo, o casamento formal era a melhor maneira de conter as relações afetivas, dentro da função procriativa da família, pregada até hoje pela Igreja. Quanto aos aspectos econômicos, a legislação liberal estruturou a família na visão homem-propriedade. E assim sendo, o casamento (por conta das suas formalidades) servia como adequado instrumento de preservação do patrimônio. Além do que, a maior parte das pessoas vivia na zona rural, o que propiciava que os membros da família devessem estar engajados no auxílio da produção familiar.

3. CAMBI, 1999, p. 132.

4. OLIVEIRA, 2002, p. 248.

5. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

.§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direito e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações.

6. A respeito da intervenção do Estado na estrutura da família, está-se acorde com CAMBI (1999, p. 137/139), quando ele refere que: “Em princípio, o Estado não deve regular as uniões extramatrimoniais, por se tratar de esfera eminentemente privada, que não lhe diz respeito. Afinal, a família é a célula da sociedade civil, não da sociedade política, pelo que a bulimia normativa nesse campo mostra-se como uma tendência autoritária, que restringe o poder de autodeterminação das pessoas e alimenta a castração da sociedade civil, sujeitando as pessoas à permanente tutela da superorganização estatal. No entanto, deve haver uma ponderação entre os interesses familiares privados e os interesses familiares sociais, no intuito de evitar injustiças. Nesse sentido, o pronunciamento legislativo constitui instrumento de indiscutível valia na medida que fornece à sociedade como um todo elementos à compreensão da realidade social. Ademais, a liberdade sem limites é perigosa, pois serve para escravizar o mais fraco. Assim, pode-se afirmar que o direito de família é um direito social que, embora constituído por relações privadas, é permeado por normas de ordem pública que determinam condições de interesse supraindividual. O âmbito da autonomia privada deve ser, mediante a previsão de normas cogentes que determinam direitos e deveres, exercido para o desempenho de uma função social. Como a liberdade sem limites pode escravizar e o amor pode acabar, virando ódio e rancor, o Estado deve intervir, ao menos, para tutelar a dignidade do ser humano com a finalidade de que não seja vítima da submissão do poder do mais forte da relação afetiva.”

7. LÔBO, 2004.

8. Família monoparental é aquela em que a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças.

9. CAMBI, 1999, p. 133.

10. HIRONAKA, 2004.

11. DIAS, 2004, p. 50.

12. Sintetiza o Ministro do STJ Carlos Alberto Menezes DIREITO (1991) que affectio significa a amizade autêntica, o afeto recíproco entre companheiros, a origem espontânea da solidariedade e da responsabilidade dos conviventes.

13. A respeito das subcaracterísticas da família afetiva, a primeira delas é exatamente à nuclearidade. Com efeito, a família atual não é mais composta de grandes grupos e centralizada na figura de um pater. Já se foi esse tempo. Pois, além do excessivo ônus econômico (não é preciso muito esforço para se ter uma razoável noção do alto custo que se teria para abastecer condignamente uma grande família ), a família de hoje prima pela flexibilidade e eventual intercambialidade de papéis, e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços afetivos, pelo que, paulatinamente, os liames formais da família patriarcal foram sendo substituídos por laços predominantemente afetivos e a família foi tornando-se menor, centrada no casal e nos filhos. Outrossim, importante referir, como segunda subcaracterística, como ensina CAMBI (1999, p. 146), que “[...] a família moderna não tem como função essencial a procriação biológica”. Noutros termos, o sexo na família hoje tem muito mais a função recreativa do que procriativa.

14. OLIVEIRA, 2002, p. 234.

15. Expressão cunhada pela ilustre Desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para identificar as uniões homossexuais e que, segundo ela, buscou subtrair o teor sexual dos vínculos interpessoais e realçar que o aspecto mais relevante é o da afetividade e que esta independe do sexo do par. E sem embargos da preferência por este termo, por outro lado, impende registrar que homoerótica e parceria civil são também designações de uso corriqueiro que procuram registrar a união homossexual.

16. DIAS, 2004, p. 86/87.

17. Embora não haja consenso, a literatura especializada tem registrado que o homossexualismo tem origem psicogênica e é essencialmente multifatorial, isto é, decorre de causas orgânicas (ou endócrinas), psíquicas, ambientais e sociais. Aliás, isso parece absolutamente lógico, quando se tem em mente o fato de que até mesmo a caracterização do sexo é multifatorial. A propósito, vale referir a lição de SZANIAWSKI (1999): “Habitualmente, a identificação sexual resulta do simples exame da genitália externa do recém-nascido. De acordo com o tipo genital revelado aos olhos, será a criança identificada com menino ou menina e assim será designada, no momento de ser efetuado o registro de nascimento. A problemática da identidade sexual de alguém é, porém, muito mais ampla do que seu simples sexo morfológico. Deve-se, pois, considerar o comportamento psíquico que o indivíduo tem diante do seu próprio sexo. Daí resulta que o sexo compõe-se da conjunção dos aspectos físicos, psíquicos e comportamentais da pessoa, caracterizando-se, conseqüentemente, seu estado sexual.

18. in Além do desvio sexual. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

19. DIAS, 2004, p. 88/89

20. In: Homossexualidade: uma história. Trad. Rubem Mauro Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 11/13.

21. GAMA, 2001, p. 187.

22. GAMA, 2001, p. 189.

23. Por todos, vale trazer à colação o entendimento do professor Álvaro VILLAÇA (2000): “Do mesmo modo, ainda que se cogite de mera convivência, no plano fático, entre pessoas do mesmo sexo, não se configura a união estável. Realmente, desde que foram considerados efeitos ao concubinato, até o advento da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, sempre a jurisprudência brasileira teve em mira o par andrógino, o homem e a mulher. Com a Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, ficou bem claro esse posicionamento de só reconhecer, como entidade familiar, a união estável entre o homem e a mulher, conforme o claríssimo enunciado do parágrafo 3° do seu artigo 226”.

24. LÔBO, 2004.

25. CAMBI, 1999, p. 132.

26. DIAS, 2003, p. 137.

27. Prova disso, a título ilustrativo, pode-se referir as disposições constitucionais dispostas nos artigos: 1º, III; 3º IV; 5º caput e I; art. 7º XXX; e 226, parágrafos 3º e 4º.

28. LÔBO, 2004.

29. A propósito do conceito aberto de família inserto na Constituição, interessantíssimas são as considerações do professor Paulo Luiz Neto LÔBO (2004) acerca da jurisprudência do STJ, exatamente porque ela guarda estrita consonância com a tese inclusiva que se vem defendendo. Então, vale trazer à baila o seguinte trecho de tais considerações, in verbis: “ Na apreciação dos casos concretos, com a força dos conflitos humanos que não podem ser desmerecidos por convicções ou teses jurídicas inadequadas, o Superior Tribunal de Justiça tem sucessivamente afirmado o conceito ampliado e inclusivo de entidade familiar, notadamente no que concerne à aplicação de determinadas leis que tutelam interesses pessoais decorrentes de relações familiares. Na consideração do que se compreende como ‘entidade familiar’ prevista na Lei nº 8.009/1990, sobre impenhorabilidade do bem de família, o Tribunal, para atender aos fins sociais da lei, chegou a incluir os celibatários (singles), até mesmo os solteiros, entre as entidades familiares. Nessas decisões tem prevalecido a tutela das pessoas, cuja moradia é imprescindível para realização da dignidade humana, sobre qualquer consideração restritiva de entidade familiar.” O Tribunal, na aplicação da lei, tem procurado conformá-la às normas constitucionais, como se observa no seguinte julgado (Recurso Especial nº 205.170-SP, DJ de 07.02.2000):

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º, da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. 2. Recurso especial conhecido e provido.

Dir-se-á que a inclusão da pessoa solitária no conceito de entidade familiar é relativa, ou seja, para os fins da lei de impenhorabilidade do bem de família, no que concordo, na medida em que tenho o princípio da afetividade como fundamental para essa qualificação; afetividade somente pode ser concebida em relação com outro. A situação do que vive só é de entidade familiar equiparada, para os fins legais, o que não transforma sua natureza. O maior número de decisões do STJ volta-se à situação de solitários que são remanescentes de famílias, especialmente os viúvos, separados e divorciados. Seja como for (entidade familiar completa ou equiparada), interessa ressaltar o fundamento constitucional do julgado, ou seja, o § 4º do art. 226, que, ao tratar da comunidade monoparental, enuncia: “Entende-se, também, como entidade familiar...”. Como acima demonstrado, o significado de também é inclusivo, e não exclusivo, sendo certa a fundamentação do Tribunal, ainda que para incluir entidade familiar equiparada.

Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo art. 226 da Constituição, é a comunidade constituída por parentes, especialmente irmãos. Veja-se o seguinte julgado (Recurso Especial nº 159.851-SP, DJ de 22.06.98):

EXECUÇÃO. Embargos de terceiro. Lei nº 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles.

Sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, a decisão cuida de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de família do art. 226, pois dotada dos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Não há, nesse caso, “sociedade de fato” mercantil ou civil, e não se poderá considerar como tal a comunidade familiar de irmãos solteiros.

O STJ também enfrentou a controvertida situação da família decorrente de união concubinária, em caso de seguro de vida realizado em favor de concubina, por homem casado (Recurso Especial n.º 100.888-BA, DJ de 12.03.2001). O caso está bem retratado nos seguintes trechos da ementa:

HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. (...) II - Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1177 e 248,IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de “bigamia”, em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do direito. III – Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária.

A decisão, por outros fundamentos, chega à conclusão que seria idêntica à que tivesse utilizado a interpretação constitucional sustentada nesta exposição, sem os equívocos que podem ser assim identificados: a) a decisão entende que se trata de entidades familiares simultâneas (refere a “duas famílias”), não podendo ter havido a fundamentação infraconstitucional referida (Código Civil), como “regra protetora da família”, o que supõe a exclusão de uma das duas; b) se são duas famílias, não pode uma ser legítima e outra “concubinária”, pois ambas estariam sob proteção constitucional, sobretudo pelo fato de haver afetividade, estabilidade (“coexistência duradoura”) e ostensibilidade (“prole”); c) as normas infraconstitucionais, que vedam o adultério - com tendência ao desaparecimento, conforme a evolução do direito - devem ser interpretadas em conformidade com as normas constitucionais, ou seja, não excluem essas uniões como entidades familiares e têm finalidade distinta, no plano civil (causa de separação judicial) e criminal (em forte desuso).

30. In: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2005, p. 659.

31. GIORGIS, 2002.

32. GAMA, 2001, p. 191.

33. BRUNET, 2002.

34. A propósito, vale salientar a existência do Projeto de Lei nº 1.151/1995, de autoria da ex-deputada federal Marta Suplicy, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas que, lamentavelmente, mesmo já tendo entrado inúmeras vezes na pauta, ainda não foi votado.

35. DIAS, 2003, págs. 127/187.

36. Quer dizer, não há razão plausível para fazer com que as uniões homoafetivas sofram o mesmo calvário que o concubinato (sentido estrito) passou até ser reconhecido enquanto entidade familiar. Por outras palavras, está-se aqui bradando pela superação da Súmula 380 do STF (teoria da sociedade de fato), também no que diz respeito às uniões homossexuais. Pois, a tutela do direito obrigacional deve servir apenas, por ser mais restrita, só àqueles vínculos que, de fato, não possam ser enquadrados na noção de entidade familiar. Isto é, as diretrizes das “sociedades de fato” não podem ser empregadas quando o assunto for “sociedade de afeto”. Afinal, os deveres de caráter pessoal, que são exclusivos da entidade familiar (relações pessoais entre os conviventes), não podem ser objeto de relações obrigacionais integradas por pessoas que não estão ligadas pelo vínculo familiar. Os deveres pessoais familiares não são, como o dever de prestar, próprio das obrigações, prescritos o exclusivo interesse da outra parte, mas são deveres morais impostos no interesse da própria pessoa vinculada e, também, no interesse coletivo da entidade familiar. Além disso, há diferença entre a natureza jurídica dos deveres pessoais familiares e os deveres de prestar, característicos das obrigações, pois, na violação daqueles, não basta a simples obrigação de indenizar a outra parte, podendo ocasionar, por exemplo, a dissolução do vínculo conjugal, a suspensão ou perda do pátrio poder, a prisão civil por dívida de alimentos etc. Nas relações familiares, estão em jogo, além dos aspectos materiais, as exigências morais. Os deveres familiares envolvem parte importante da personalidade dos respectivos sujeitos e têm caráter duradouro (como os deveres de assistência imaterial e os de sustento, guarda e educação dos filhos), ao contrário das obrigações que além de deixar incólume a personalidade do devedor, têm por objeto uma ação ou omissão de natureza particular e, geralmente, transitória.

37. TEPEDINO, 2001, p. 359.

38. Os julgados aqui citados, bem como resumo que se faz deles, foram colhidos da obra da ilustre Desembargadora Maria Berenice Dias, intitulada “Homoafetividade, o que diz a Justiça! As pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais”.

39. Para situar, vale lembrar que no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul além de haver varas especializadas em direito de família nas comarcas maiores, também no Tribunal de Justiça ocorre essa divisão. No caso, segunda norma regulamentar, compete às 7ª e 8ª Câmaras Cíveis (4º Grupo Cível) o julgamento das questões atinentes ao direito de família.

40. A ressalva do “pelo menos” é necessária porque a questão, como todas que dizem respeito às uniões homoafetivas, não é pacífica. A propósito, como contraponto e a título ilustrativo, embora não se esteja acorde com o teor da decisão, ainda sim de bom alvitre é destacar o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça, conforme ementa que segue transcrita:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA. 1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações. 2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares. 3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados - arts. 1º e 9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família. 4. Recurso especial não conhecido.(REsp. 502995/RN. 4ª Turma do STJ. Relator Ministro Fernando Gonçalves. J. em 26/04/2005)

41. Informações constantes na peça inicial da Ação Civil Pública de nº 2000.71.00.009347-0, interposta pelos referidos Procuradores junto à 3ª Vara Previdenciária da Justiça Federal de Porto Alegre.

 

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , maio 2006. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS