Anotações sobre a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas. Resgate da distinção entre causalidade e imputação no direito administrativo

Autor: Flavio Antônio da Cruz
(Juiz Federal Substituto, Especialista em Direito Tributário pelas Faculdades Curitiba)

| Artigo publicado em 25.05.2006|

1. Introdução

Segundo Marçal JUSTEN FILHO, a responsabilidade civil estatal pode ser compreendida como “o dever jurídico de vinculação aos efeitos da conduta própria ou alheia e traduz, no tocante à estrutura administrativa estatal, uma característica da democracia republicana. A responsabilidade do Estado, numa acepção ampla, significa o dever de reconhecer a supremacia da sociedade e a natureza instrumental do aparato estatal”.(1) Hely Lopes MEIRELLES enfatiza, por seu turno, que a “responsabilidade civil é a que se traduz na obrigação de reparar danos patrimoniais e se exaure na indenização (...) Responsabilidade civil da Administração é, pois, a que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho das suas atribuições ou a pretexto de exercê-las”.(2) Já Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO sintetiza que a “responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado [corresponde] à obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.(3)

Anote-se também, com o clássico DE PLÁCIDO E SILVA, que a expressão responsabilidade “forma-se com o vocábulo de responsável, de responder, do latim respondere, tomado na significação de responsabilizar-se, vir garantido, assegurar, assumir o pagamento do que se obrigou ou do ato que praticou. Em sentido geral, pois, responsabilidade exprime a obrigação de responder por alguma coisa. Quer significar, assim, a obrigação de satisfazer ou executar o ato jurídico que se tenha convencionado, ou a obrigação de satisfazer a prestação ou cumprir o fato atribuído ou imputado à pessoa por determinação geral. A responsabilidade civil, portanto, tem ampla significação, revela o dever jurídico em que se coloca a pessoa, seja em virtude do contrato, seja em face de fato ou omissão que lhe seja imputado, para satisfazer pretensão convencionada ou para suportar as sanções legais que lhe sejam impostas”.(4)

Anote-se, contudo, que – ao contrário do conceito formulado por DE PLÁCIDO E SILVA, acima transcrito – não se pode confundir o adimplemento regular de um contrato(5) (i.e., a satisfação voluntária e no átimo devido de uma prestação avençada bilateralmente) com o instituto da responsabilidade civil (decorrente da imputação da obrigação de recompor um dano, advindo por comissão ou abstenção, por parte do agente).

A responsabilidade civil pressupõe necessariamente um dano alheio, tenha ou não conteúdo patrimonial(6). O “dano alheio” corresponde ao menoscabo a um interesse juridicamente protegido de outrem, tal como ocorre com a agressão à propriedade individual; com a liberdade; com a imagem; com a honra; com o descumprimento de um contrato; etc. Por óbvio que seja, enfatize-se que não é cabível a indenização para danos provocados a si mesmo.

Portanto, a origem da responsabilidade civil é a constatação de um dano(7) alheio cuja ocorrência possa ser juridicamente imputada ao agente, por tê-lo causado, ou por não tê-lo evitado (quando estivesse a tanto obrigado pela Lei ou por contrato).

Ora, o adimplemento regular do contrato tem natureza substancialmente diversa. Não é um caso de verdadeira responsabilidade civil. O cumprimento regular de uma determinada prestação por ter sido contratualmente avençada é tema inerente à própria exigibilidade das obrigações contratuais,(8) com o que não se confunde a questão em tela. Situação distinta é aquela relativa ao pagamento de uma indenização, pelos prejuízos relacionados ao descumprimento do contrato. Portanto, pagar a indenização de um sinistro por força de um contrato de seguro não é tema compreendido pela responsabilização civil.

O pagamento regular da prestação de um mútuo pelo devedor também não pode ser confundido com a responsabilidade civil, já que a sua razão de ser é outra. A exigibilidade da prestação, nesse caso, decorre justamente da autonomia da vontade, exercida com a celebração do contrato, hábil a adstringir ambos os pactuantes a um determinado comportamento futuro. No caso da responsabilidade civil, contrariamente, o fundamento da exigibilidade da prestação é a própria Lei, de forma imediata, ao impor o dever de recomposição: a) a todos quantos causem dano por condutas ilícitas (art. 159, CC/16 e art. 927, CC/02) ou b) a determinados sujeitos, situados em posição especial de garantidor da “não-superveniência” do dano, como se verá adiante.

No momento, o interesse maior é justamente por esse último tópico. Pretende-se examinar os requisitos para a responsabilização do Estado pelos danos não evitados, quando estivesse a tanto obrigado pela Lei. Cuida-se, enfim, do estudo da responsabilidade estatal por conduta omissiva, objeto de infindáveis controvérsias na doutrina e na jurisprudência.

Para tanto, porém, soam imprescindíveis algumas considerações prévias, a respeito da imputação do dever de indenizar, da forma como sumariamente segue adiante.

 

2. Descrição e valoração

Grosseiramente, pode-se sustentar que o fenômeno jurídico, por se dar mediante signos lingüísticos, i.e., mediante a comunicação humana, requer mecanismos de descrição e de valoração de fatos. Este é, enfim, um embate bastante constante, inclusive em termos teóricos.

Há epistemologias (sobretudo aquelas de cariz positivista)(9) que pregam que o cientista social deveria ter como meta apenas descrever e explicar a realidade social, sem qualquer pretensão de formular seus juízos valorativos, morais ou ideológicos, a respeito da realidade interpretada. O cientista social, inclusive o jurista, deveria se abster de defender determinadas opções políticas ou ideológicas, sob pena de comprometer a “verdade” das suas conclusões. Para estes, escudados sobretudo em MAX WEBER,(10) o cientista social ideal seria neutro, afastado da realidade estudada. Deveria evitar, repita-se, qualquer interferência sobre o objeto do estudo, tal como um físico deve se abster de alterar, com a sua participação, a base de teste do experimento.

Para outros, todavia, essa pretensão seria totalmente vã. Em primeiro, porquanto não há como, a rigor, fazer verdadeiras descrições, despidas de carga valorativa. A própria seleção do objeto do estudo já requer uma primeira valoração, uma primeira atribuição de importância ao que será analisado (assim, é evidente que há uma diferença valorativa prévia entre o sociólogo que irá estudar as práticas sociais dos executivos financeiros e aqueles que irão estudar a origem da miséria nas favelas. A própria escolha do objeto de estudo retrata, portanto, uma atribuição de valor). Em segundo, dado que a abstenção também não deixa de ser uma participação. A mera descrição da realidade social, ainda que pretensamente neutra (como se isso fosse possível), não deixa de revelar uma certa complacência com eventuais injustiças. A alegação de que não interferirá ou julgará a realidade traduz a rigor, uma ciência descomprometida com a prática e, nessa via, totalmente fadada à manutenção do status quo.

Anote-se, outrossim, que é realmente impossível ao ser humano apenas descrever fatos. A própria linguagem é valorativa, na exata medida em que os signos lingüísticos carregam consigo uma elevada carga de ponderações, de sentimentos e outras realidades insuscetíveis de descrição. O limite da linguagem é, certamente, a sensação, intraduzível em palavras. Tanto assim que, como sabido, parte significativa da comunicação se dá de modo não verbalizado nas palavras, i.e., mediante o tom de voz, gestos corporais ou expressões faciais que traduzem realmente o que se está pensando naquele exato momento.

Como poderia um ser humano explicar, p.ex., a um ente alienígena (supondo que pudesse entender nosso idioma) o que seria o gosto azedo, amargo, doce? Como traduzir em palavras, e sem tautologia, sentimentos como o amor, o ódio, a raiva, etc? Ou o indivíduo sentiu o sabor azedo e, como tal, já possui a percepção a ser rememorada pelas palavras, ou simplesmente jamais o sentiu e, nessa via, tampouco poderá compreender o seu conteúdo, mediante a singela tradução da palavra. Ou seja, certas coisas não podem ser explicadas por palavras. Quando muito podem ser evocadas.

Esse limite da linguagem – que representa também, com certas cautelas, o limite do meu mundo, como dizia WITTGENSTEIN(11)– deve ser aceito por todos quantos buscam traduzir o mundo em palavras. E, diante dessa natural restrição, é certo que mesmo o cientista social não poderá escapar dos limites valorativos que a sua própria linguagem impõe. Ao verbalizar que determinadas pessoas são honestas ou que determinada sociedade protege o patrimônio individual, o pretenso cientista neutro já está promovendo valorações, na exata medida em que utiliza conceitos minimamente precisos, a demandar uma complementação semântica e moral do intérprete.

Conclui-se, enfim, que a pretensão de neutralidade, ainda presente em muitos estudiosos, é fadada ao insucesso. Pode revelar também um certo conformismo com certas práticas e, como tal, uma ideologia de manutenção da realidade. Doutro tanto, sobremodo na área jurídica, eminentemente valorativa, não há como separar o Direito das opções políticas reconhecidas ou pretendidas em determinada época. Por sinal, o intérprete antes de mais nada interpreta-se a si mesmo (sobretudo o Juiz) e, nessa via, a sua função e a do próprio Direito, em um contexto social determinado. Alguns supõem que o fenômeno jurídico é apenas um mecanismo de manutenção da sociedade e, como tal, privilegiam mais a nota da segurança jurídica. Outros, porém, enfatizam mais o caráter transformador do Direito, com a missão de alteração da realidade social, privilegiando aspectos inerentes à Justiça Distributiva.

Já não convencem, desse modo, as teorias jurídicas que defendiam a plena autonomia do Direito perante a Moral.(12) Aliás, com uma freqüência cada vez maior, o Legislador tem transferido ao intérprete (sobretudo ao Juiz) a função de complementar, com a valoração pessoal do exegeta, os conceitos utilizados no texto de lei. Tenha-se em conta, p.ex., diplomas normativos que utilizam conceitos como onerosidade excessiva (art. 480, novo Código Civil), moralidade pública, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, função social da propriedade, função social do contrato, etc. Inúmeras são as expressões, veiculadas em Lei, dotadas de um conteúdo semântico impreciso, carente de uma complementação valorativa daquele que aplicará a regra.

A importância desse constante embate entre “descrição” e “valoração” é fundamental para o tema vertente, como se busca demonstrar adiante.

Por ora, registre-se que no mais das vezes o legislador pretende “narrar” determinados fatos, de forma genérica (i.e., enunciando seus elementos principais), para, na seqüência, prescrever determinadas conseqüências, impondo um dever ser(13) (que pode implicar proibir determinada conduta, facultando as demais; impor determinada conduta, vedando as demais; etc.).(14) Por exemplo: o legislador descreve a conduta “auferir renda”, ao que se segue a prescrição “deve recolher o imposto de renda, sobre a base de cálculo ‘x’ e alíquota ‘y’, etc”. Enfim: em que pese o mencionado limite da linguagem – naturalmente valorativa e, como tal, insuscetível de uso eminentemente técnico e neutro –, é fato que o legislador constantemente impõe obrigações jurídicas com base em descrições genéricas e abstratas da realidade.

Para que referidas normas sejam válidas, tanto o fato gerador (i.e., o evento narrado no “descritor”) quanto a conduta a ser adotada (i.e., a prescrição) devem ser controláveis pela vontade humana. Não se pode, p.ex., proibir o indivíduo de morrer, em que pese ser possível proibi-lo de se suicidar (apesar de politicamente não-recomendável). Pode-se proibir o indivíduo de expor o filho menor à chuva, mas não obrigá-lo a fazer parar a tempestade, etc.

Recai-se aqui no interessante tema da dirigibilidade normativa. Somente são válidas normas possíveis de serem cumpridas, razão pela qual não se pode admitir constitucionalidade a leis desprovidas de um mínimo de coerência com o contexto social em que são produzidas.

A responsabilidade civil decorre, portanto, de uma prescrição jurídica inerente à imputação de um dano a alguém, como produto da sua conduta, seja ou não um resultado causado pelo agente.

 

3. Causalidade e imputação

Ora, diante de um acidente de trânsito costuma-se dizer que um determinado motorista causou a colisão. Normalmente não se cogita, contudo, que a fábrica do automóvel, ou Henry Ford, também tenham provocado o sinistro, em que pese, sem um ou outro, igualmente o evento não se sucederia. Situação diversa ocorre quando, em relação ao acidente, ficar evidenciado que houve uma falha nos freios, ocasião em que se cogitará também da responsabilização do projetista ou construtor do veículo.

Portanto, o tema da causalidade é deveras relevante. Como bem enfatizou o Ministro MOREIRA ALVES, no bojo do Recurso Extraordinário nº 130.764-1, com a citação de CUNHA GONÇALVES: “para se exigir a alguém a responsabilidade civil, não basta alegar e provar que ele praticou um fato ilícito e que outra pessoa sofreu um dano. É indispensável demonstrar que este dano foi efeito daquele fato ilícito, i.e., estabelecer entre os dois fatos a relação de causa e efeito (Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, em comentário ao código civil português, vol. XII, T. II, Max Limonad, p. 560)”.

No âmbito do Direito Penal, – o que pode ser adotado como um conceito de teoria geral do Direito (tanto quanto, por anos a fio, o Código Civil vem definindo institutos de teoria geral do Direito), vigora o art. 13, CP, em que consta: “(....) Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.

Atente-se, porém, para duas constatações breves: a) a própria relação de causa e efeito, por também ser valorativa (produto de percepções sensoriais, reiteradamente atinadas pelo cérebro humano), não é tão simplesmente demonstrável; b) a imputação jurídica não se confunde com a causalidade. Em muitos casos dependerá dela (sem causalidade, não haverá imputação). Em outros, porém, o Direito poderá atribuir o resultado a alguém e o correspondente dever de indenizar, em que pese não se possa, de modo algum, sustentar que tenha sido o efetivo produtor do dano (como ocorre, p.ex., na responsabilidade por conduta omissiva).

De fato, quanto ao primeiro tópico (verdadeira relação de causa e efeito), muito se pode questionar.(15) Ao que interessa, no momento, é fato que a causalidade nem sempre é evidente. Saber se o açúcar causou a morte de determinado indivíduo pressupõe que se saiba que, naquele caso, cuidava-se de um sujeito diabético, para o qual a glicose é o mesmo que cianureto. Melhor dizendo: no mais das vezes, o exame da causalidade nada mais faz do que confirmar suposições já formuladas na nossa mente, diante do reconhecimento da potencialidade de que determinado evento seja causa daquele resultado. Não havendo um “pré-conhecimento”, uma prévia conjetura, sequer será examinado se um específico acontecimento é origem do outro.

Por outro lado, levado a extremos, é fato que a causa final de tudo seria Deus (motor não movido).(16) Quando menos, Adão. Isso porque a cadeia de causalidade, enquanto motivo para existência do outro, é infinita, seja do passado para o presente, seja do presente para o futuro. Sob esse prisma, não é incorreto sustentar que a mãe do homicida é causa da morte. Também não é errado supor que Pedro Álvares Cabral, por ter descoberto o Brasil, também é causa de um evento de corrupção, praticado por um servidor público “gatuno”.

Dessa forma, conclui-se que o Direito – enquanto liame entre os interesses individuais e a necessidade de convivência em grupo – não pode se contentar com essa noção materialista, física, da causalidade. Não basta o raciocínio hipotético de Thyren(17) (“se excluir a premissa, o resultado não advém? Então é causa”). Exige-se uma imputação valorativa, i.e., a atribuição do resultado como obra de determinado ser humano ou agremiação jurídica (pessoa jurídica, tal como o Estado).

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal, em questão criminal (mas em tudo interessante ao exame da responsabilidade civil), decidiu:

“EMENTA: Habeas Corpus. 2. Responsabilidade penal objetiva. 3. Crime ambiental previsto no art. 2º da Lei nº 9.605/98. 4. Evento danoso: vazamento em um oleoduto da Petrobras 5. Ausência de nexo causal. 6. Responsabilidade pelo dano ao meio ambiente não-atribuível diretamente ao dirigente da Petrobras. 7. Existência de instâncias gerenciais e de operação para fiscalizar o estado de conservação dos 14 mil quilômetros de oleodutos. 8. Não-configuração de relação de causalidade entre o fato imputado e o suposto agente criminoso. 8. Diferenças entre conduta dos dirigentes da empresa e atividades da própria empresa. 9. Problema da assinalagmaticidade em uma sociedade de risco. 10. Impossibilidade de se atribuir ao indivíduo e à pessoa jurídica os mesmos riscos. 11. Habeas Corpus concedido.”

(STF, HC 83.554-6, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16.08.2005)

Aliás, naquela ocasião houve transcrição de parte do lapidar voto do Min. Moreira Alves, por época do julgamento do Recurso Extraordinário 130.764-1 (DJU de 07.08.92), como segue:

“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANO DECORRENTE DE ASSALTO POR QUADRILHA DE QUE FAZIA PARTE PRESO FORAGIDO VÁRIOS MESES ANTES.

- A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no parágrafo 6º do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros.

- Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada.

- No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, é inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69, a que corresponde o parágrafo 6º do artigo 37 da atual Constituição. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido.”

Repita-se: a imputação é algo distinto da causalidade. Aqui se percebe que, seja por algum equívoco lingüístico, seja por imprecisão dos conceitos, comumente se faz uma verdadeira confusão entre uma coisa e outra, o que realmente tem complicado a compreensão da responsabilização, seja cível ou seja penal. A imputatio é muito mais a valoração jurídica de determinados eventos, ao atribuir, sob o enfoque jurídico, determinado resultado como manifestação da conduta alheia.

Tenha-se em conta, aliás, que o Supremo Tribunal Federal, por época do julgamento do Recurso Extraordinário 382.054-1, relatado pelo Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, verberou que “se tratando de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, sem sentido estrito, essa numa de suas três vertentes – a negligência, a imperícia e a imprudência –, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, de forma genérica, a falta de serviço. II. A falta do serviço – faute du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro” (grifou-se).

Como sabido, o nada absolutamente nada causa. Portanto, em tema de conduta omissiva, a imputação jurídica se dá pelo reconhecimento do dever de evitar o resultado, e não pela causalidade real, sob pena de que nunca se faça cabível a recomposição do dano. A imputação é jurídica, apesar de não haver nexo causal físico.

Essa pequena confusão foi reiterada pelo Supremo por época do julgamento do Recurso Extraordinário 369.820-6/RS, também da relatoria do insigne Min. Carlos Velloso, bem como na ementa do RE 130.764-1, acima referido. Aliás, confira-se ainda a seguinte ementa: “crime de estupro praticado por apenado fugitivo do sistema penitenciário do Estado: nesse caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o crime de estupro, observada a teoria, quanto ao nexo de causalidade, do dano direto e imediato. Precedentes STF: RE 369.820/RS; DJU 27.02.2004; RE 172.025/RJ, DJU de 19.12.96; e RE 130764/PR, RTJ 143/270)” – RE 409.203/RS.

Pode parecer uma discussão meramente terminológica e, como tal, algo de somenos importância. O fato, contudo, é que a diferenciação entre a imputação e o nexo causal revela-se imprescindível para a compreensão dos exatos limites da responsabilização, razão mesma pela qual o estudo tem campeado no âmbito do Direito Criminal, cujas conseqüências são comumente mais severas que as dos outros ramos do direito. Aliás, essa conexão entre os estudos da imputação penal e a responsabilidade civil não passou desapercebida a Marçal JUSTEN FILHO, conforme se infere da nota de rodapé lançada em fl. 799 do seu recente curso de direito administrativo.

Ora, como elucida DE PLÁCIDO E SILVA, a imputação “é a declaração ou atribuição que se faz de que a ação pertence a uma pessoa ou foi praticada pela mesma. Neste sentido, quer significar o ato pelo qual se declara que alguém, como autor ou causador de uma ação, como efeito, de que é causa, deve responder pelas conseqüências da mesma ação. Mas a imputação, em tal circunstância, indica simplesmente a relação do ato (efeito) com a pessoa ou agente como causa”.(18) Segue-se, com Juarez TAVARES, que “o processo de imputação deve ter como ponto de gravidade a consideração de que só será possível atribuir-se o injusto a alguém, quando sua realização possa ser firmada como obra sua e não de terceiros”. Acrescento: quando o resultado não decorra também de um fato da natureza, imprevisível e incontrolável, tal como o fato fortuito.

Dessa forma, a imputação corresponderá a um juízo de atribuição, de qualificação jurídica de um determinado evento, como sendo relacionável a alguém, seja uma pessoa física, seja jurídica. Aliás, mesmo quanto a temas outros, inclusive atos lícitos e normais, a imputação já é feita constantemente, ao se presumir como sendo da agremiação jurídica (uma empresa, p.ex.) aquela vontade manifestada pelo seu presidente. Também aqui há uma imputação, em que pese ser de natureza pouco diversa.

Em termos de responsabilidade civil, a imputação corresponderá à relação estabelecida juridicamente entre um determinado evento e uma conduta específica. Em determinados casos, será imprescindível a existência de um nexo de causalidade física, i.e., a demonstração de que aquela específica conduta foi a causa efetiva do resultado. É o que ocorre, como regra geral, em termos de responsabilidade civil por condutas comissivas. Em tais casos, como se percebe, o nexo causal é um elemento necessário, em que pese não suficiente (já que, em muitas hipóteses, exige-se também elementos valorativos, tais como dolo, culpa ou, quando menos, assunção jurídica do risco da atividade).

Ao que interessa, nos quadrantes do presente trabalho, a imputação em termos de conduta omissiva prescinde totalmente do nexo causal “físico”. Como já referido, do nada, nada surge. Portanto, quando se trata da responsabilidade por conduta omissiva, certamente não se pode sequer cogitar de nexo causal, exceto se o sentido do termo for outro, distinto daquele em que comumente tem sido empregado (relação “causa-efeito”).

 

4. Imputação do dever de indenizar e condutas omissivas – a posição de garantidor

O convívio em sociedade impõe, como sabido, o respeito à esfera jurídica alheia. Portanto, quando determinados interesses ganham a nota da exigibilidade, por estarem acobertados por prescrições jurídicas (de direito positivo ou consuetudinário), cabe ao Estado, enquanto vértice da Comunidade Política organizada, protegê-los genericamente contra as agressões.(19) Assim, eventual achaque à honra de um determinado indivíduo, por se cuidar de uma violência a um interesse juridicamente tutelado (i.e., ao direito à honra), demandará o correspondente ressarcimento por parte do agressor.

Contudo, como regra geral – cada vez mais atenuada, como se verá adiante –, os indivíduos não estão obrigados a adotar medidas comissivas de proteção de bens jurídicos de terceiros. Portanto, como regra geral, o indivíduo não está obrigado, pelo Direito, a utilizar o seu salário para comprar vestimentas para outras pessoas, que não ele próprio e sua família. Também não pode ser constrangido a fazer doações ou a ajudar na pintura da casa alheia, etc. Como mencionado, e o tema é deveras complexo, diante da chamada “funcionalização do privado” e do correspondente “postulado da solidariedade social”, cada vez se torna mais freqüente – o que é justo e necessário – uma função de garantia pró-ativa, por parte da comunidade, frente a minorias sociais. Em determinados momentos isso se dá com o papel redistributivista do Estado (tributa mais fortemente os mais ricos para repassar aos mais pobres, tal como um Robin Hood moderno). Em outros, se dá com o princípio de repartição, que vigora na Previdência Social, etc.

Desse modo, cada vez se torna mais freqüente essa “funcionalização” do privado, tornando mais ambíguas as fronteiras entre o público e o individual. É o que ALEXY denomina de “relação horizontal” dos direitos fundamentais.

Ainda assim, contudo, é fato que – como regra geral – os indivíduos não estão obrigados a agir como promotores, de forma comissiva, de bens jurídicos alheios. Devem evitar lesioná-los (neminen laedere), o que não se confunde com o esforço pró-ativo para implementá-los.

Há casos, todavia, em que determinados indivíduos, diante de uma posição especial em que se encontram, devem salvaguardar a esfera jurídica alheia, IMPEDINDO a superveniência de resultados lesivos, ainda que estes decorram de terceiros, ou de fatos da vida ou natureza. Os pais devem, p.ex., zelar pela saúde do filho, mesmo que eventual síndrome de modo algum tenha sido provocada pelos mesmos. Aliás, devem proteger o filho mesmo contra as suas (dele) próprias opções, sob pena de incorrerem em uma omissão geradora de responsabilidade civil ou criminal.

Aqui se revela interessante, neste diálogo entre o Direito Penal e a responsabilidade civil/administrativa, o exame do art. 13, CP, ao dispor sobre a figura do “garantidor” da não- superveniência do resultado lesivo. Sobre tema semelhante, no âmbito do Direito Espanhol, calha a lição do insigne MIR PUIG:

“O tipo de comissão por omissão mostra em suma parte objetiva a mesma estrutura que o de omissão pura: a) situação típica; b) ausência da ação determinada; c) capacidade de realizá-la, mas é completada com a presença de 03 elementos particulares, necessários para a imputação objetiva do fato: a posição de garante, a produção do resultado e a possibilidade de evitá-lo. A posição de garante integra necessariamente a situação típica (a) dos delitos de comissão por omissão não expressamente tipificados. A ausência da ação determinada (b) deve seguir neles a produção de um resultado. E a capacidade de ação (c) deve compreender a capacidade de evitar dito resultado”.(20)

Ora, MIR PUIG prossegue, esclarecendo os casos em que se poderá ter essa função de garantidor. Destaca: a) quando exista a obrigação legal ou contratual de proteger determinado bem jurídico contra lesões de terceiros ou até mesmo do próprio interessado (ex.: clínica médica psiquiátrica em que está sendo tratado um potencial suicida); b) quando, por uma situação concreta, o agente haja criado ou incrementado o risco de lesão para o bem jurídico alheio (ex.: ter atropelado um ciclista. Em casos tais, a eventual omissão de socorro poderá implicar a tipificação de homicídio, por omissão imprópria, em vez de omissão de socorro, do art. 135, CP). Nessa linha, também seguem renomados penalistas nacionais e estrangeiros.(21)

Como não é o caso de promover uma maior incursão na doutrina penal, fica apenas a remissão ao art. 13, CP,(22) com a redação veiculada pela Lei 7.209/84, que versa sobre assunto assimilável ao conceito de função, muito útil para o Direito Administrativo, i.e., a realização de ação própria sempre no interesse alheio, tal como o dever de guarda do pai em relação ao filho, muito bem elucidada por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO.(23)

Como se verá adiante, defende-se neste texto que ambas as figuras são bastante próximas e, justamente por isto, revelam-se suscetíveis de um tratamento semelhante, observadas algumas cautelas específicas.

Portanto, a responsabilidade civil por conduta omissiva demanda um dever de atuar. Deve haver um juízo de probabilidade, bastante considerável,(24) de que – caso a conduta mandada houvesse sido empreendida – o dano não teria sido produzido.

Como mencionado alhures, quando se cuida de conduta omissiva, a rigor não há nexo causal físico. Há apenas um exame hipotético, de imputação exclusivamente jurídica, diante da suposição de que, caso a conduta houvesse sido praticada, o dano não teria ocorrido. Exige-se um dever especial de tutela, de interesses alheios por conduta própria – dever de garantir a ausência de dano, ainda que a conduta mandada tivesse sido empreendida, e ainda assim o dano tivesse ocorrido, não haveria razão para imputar ao agente omisso o resultado danoso.

 

5. Fundamento da responsabilidade estatal – igual distribuição do ônus

O convívio em sociedade impõe, como sabido, o respeito à esfera jurídica alheia. Portanto, o respeito à alteridade, i.e., à esfera jurídica do próximo, impõe o dever ético de recompor os prejuízos causados. Evidentemente, um exame filosófico da questão demandaria reflexões maiores do que aquelas formuladas até o momento, inclusive no que toca à legitimidade da apropriação privada de bens e, noutra via, nas desiguais condições sob as quais os indivíduos nascem, sobremodo em sociedades em que é garantido o direito de herança. O fato, porém, é que a nossa sociedade não é verdadeiramente meritocrática,(25) e, como tal, o dever de recomposição do dano não deixa de ser, em certa medida, um instrumento de manutenção da mesma distribuição de riqueza, tal como existente. Anote-se, porém, que a Constituição brasileira também garante a dignidade do causador do dano, ao prever mecanismos de preservação do patrimônio jurídico mínimo (mínimo vital, art. 7º, IV, CF/88, p.ex.), razão pela qual a Lei declara intangíveis determinados objetos (art. 649, CPC e Lei 8.009/90, p.ex.).

De qualquer sorte, essa proteção ao mínimo vital, inclusive do causador de danos, não pode redundar em um estímulo para a vontade deliberada ou condutas imprudentes, lesivas a bens jurídicos alheios.

Voltando ao tema em discussão, é certo que a responsabilidade civil possui este contorno ético decorrente do reconhecimento, no próximo, de um igual – em deveres e direitos –, cujos interesses devem ser protegidos pelo Direito. E, no que tange ao Estado, constructo moral por excelência, é evidente que o agir da Administração Pública também deve ser balizado por este norte: deve dar o exemplo. Não pode desrespeitar as prerrogativas dos particulares, por menores que pareçam.

Foi-se o tempo, aliás, em que se podia admitir o brocardo de que o interesse público sempre predominaria sobre o particular. Há muito não se consegue mais separar, em compartimentos estanques, o que é verdadeiramente privado do que é público. Melhor dizendo: violar um interesse tido como meramente privado, mas juridicamente protegido, em muitos casos é como uma onda que se propaga, fazendo fenecer o direito de todos os demais. Nessa medida, a proteção do interesse de um único indivíduo soa indispensável para a preservação dos direitos de todos.

Não se pode aceitar, enfim, a contraposição – que alguns taxam de absoluta – entre o que é coletivo e o individual, sob o signo de que o particular sempre deve ceder em favor da grei.

E, nessa via, em passos largos, pode-se concluir que ao Estado também não se pode reconhecer a prerrogativa de gerar danos impagos aos particulares. Superado encontra-se, enfim, a premissa de que o Rei não erra (king do not wrong). Atos ilícitos do Estado devem ser imputados ao ente público, tal como ocorre com as demais pessoas físicas ou jurídicas. Reconhecer ao Estado a prerrogativa de causar danos, insuscetíveis de ressarcimento, seria uma verdadeira indução para que fosse descumprido o Direito, por cuja efetividade cabe à Administração Pública zelar.

Ao mesmo tempo, contudo, também é relevante ter em conta que o Estado deve indenizar inclusive os danos decorrentes de atos lícitos, desde que impliquem uma distribuição desequilibrada dos encargos públicos. Olvidando, por ora, o regramento positivado da matéria, é fato que – caso se estivesse, neste momento, concebendo um Estado ideal, com pessoas reconhecidas como iguais entre si – todos deveriam contribuir na mesma medida para a manutenção da estrutura administrativa. Portanto, é a igualdade entre os indivíduos que impõe que o Estado indenize por danos provocados por condutas lícitas.

À margem da evolução histórica do tema, i.e., das teorias da irresponsabilidade, do risco integral, do risco administrativo, etc., de suma importância (mas desnecessárias para a compreensão das argumentações presentes), convém atentar para a lição de Jean RIVERO: “a atividade administrativa exerce-se no interesse de todos; se os danos que daí resultam para alguns não fossem reparados, eles seriam sacrificados à coletividade, sem que nada pudesse justificar semelhante discriminação. A indenização restabelece o equilíbrio afetado em seu detrimento”.(26)

Caio TÁCITO elucida, outrossim, que “este princípio de repartições das cargas públicas, ou da igualdade dos indivíduos diante das cargas públicas é usualmente indicado, no direito francês, como fundamento da responsabilidade sem falta, ou seja, da responsabilidade por risco. Tem sua origem no art. 13 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1.789. Não é, porém, absoluto nem geral. A compensação é limitada ao dano especial e anormal gerado pela atividade administrativa. Generalizar a noção a todo e qualquer prejuízo, decorrente do funcionamento do serviço público, seria a própria denegação da supremacia do interesse público e da destinação social da propriedade”.(27)

Vê-se, por sinal, que a ressalva empreendida ao fim do texto de Caio TÁCITO ainda está embebida da presunção de que o interesse coletivo deva sempre prevalecer sobre o particular, o que não se pode aceitar sem reservas. Levado a extremo o postulado, a própria indenização seria incabível, dado que seria exigível do indivíduo suportar sozinho um prejuízo em favor do grupo a que pertence. Porém, reitere-se: a igualdade na distribuição do custo da Administração Pública entre todos os administrados (tirante hipóteses tributárias de redistribuição/progressão de gravames) também é interesse público, razão pela qual as exceções ao dever de indenizar devam ser examinadas com muita cautela.

Porém, sem que isto implique em contradição com a premissa anterior, é fato que a responsabilidade estatal por atos lícitos apenas se justifica na exata medida em que corresponda a essa natural equivalência da distribuição do prejuízo,(28) entre todos aqueles beneficiados com a medida. Não se pode, outrossim, deturpar a razão de ser do instituto, o que, com todo o respeito às opiniões contrárias, parece ser a nota constante no enfrentamento do tema.

O que justifica, portanto, que o Estado deva indenizar o indivíduo vitimado em um acidente de trânsito pelo fato de ter que destruir o seu veículo para salvá-lo? Esse prejuízo individual deve ser suportado pelo sujeito, não podendo ser repassado ao Estado, sob pena de convertê-lo em segurador universal.(29) Cuida-se de um serviço prestado ao indivíduo, salvando-o de um sinistro, não havendo qualquer lógica que autorize que o custo do dano (causado pelo Estado: destruir veículo) seja suportado por toda a coletividade.

De modo semelhante, arrisca-se dizer que prejuízos suportados individualmente, por força de um risco da atividade inerente à atuação empresarial do sujeito (i.e., do administrado), também não devam ser repassados a todos os contribuintes, por força de um alegado dever de indenizar estatal. Assim, se o Estado, no exercício do poder de polícia,(30) cria obstáculo para que, por um único dia, uma determinada farmácia exerça suas atividades regulares, isso deverá ser suportado pelo empresário, sem repasse à coletividade, sob pena de carrear a todos os indivíduos o custo e risco da atividade exclusiva do farmacêutico, p.ex.

A Constituição de 1988 vaticina esse entendimento em uma leitura conjugada de todos os seus preceitos. Aliás, o art. 37, § 6º, não pode ser compreendido sem uma atribuição de propósito, em conformidade com a integralidade da Lei Maior. O tema tanto não é pacífico, que Marçal JUSTEN FILHO tem formulado novas proposições para o exame da responsabilidade estatal,(31) cujo enfrentamento, porém, ficará para uma outra ocasião.

Como quer Dworkin, “uma interpretação é, por natureza, o relato de um propósito; ela propõe uma forma de ver o que é interpretado – uma prática social ou uma tradição, tanto quanto um texto ou uma pintura – como se este fosse o produto de uma decisão de perseguir um conjunto de temas, visões ou objetivos, uma direção em vez de outra. Essa estrutura é necessária a uma interpretação mesmo quando o material a ser interpretado é uma prática social, mesmo quando não existe nenhum autor real cuja mente possa ser investigada”.(32)

Não se pode, enfim, perder de vista as razões pelas quais se atribuiu ao Estado o dever de indenizar danos carreados aos particulares, mesmo quando tenham sido provocados por condutas conformes à Lei. A razão é simples: distribuir entre todos os contribuintes o custo de atividades realizadas em benefício de todos.

Sempre que faltar este referencial – atividade praticada em favor de todos – não soará coerente, com o próprio postulado da igualdade (art. 5º, CF), que atribui colorido ao art. 37, § 6º, CF, que haja o repasse do custo a toda a coletividade. Entendimento contrário estaria, concessa venia, verdadeiramente deturpando a razão de ser da responsabilidade por atos lícitos. Estar-se-ia, em hipótese diversa, a atribuir ao prejudicado (por ato que não beneficiou toda a coletividade) uma situação jurídica muito melhor do que a de todos os outros administrados.

 

6. Requisitos para a responsabilidade estatal, em resumo

Em que pese a falta de clareza de algumas premissas evocadas acima, o fato é que a responsabilidade estatal pode ser submetida a uma taxionomia diversa daquela normalmente em voga (objetiva versus subjetiva). A questão fica mais clara quanto se tem em mente que a divisão é entre responsabilidade por condutas lícitas e ilícitas, o que nem sempre coincide com objetividade ou subjetividade (até mesmo porque, em qualquer conduta, haverá sempre elementos tanto objetivos quanto subjetivos(33) a serem considerados).

a) responsabilidade estatal por condutas ilícitas

Conduta comissiva ilícita:

Demanda a constatação dos seguintes elementos:

a) conduta “ativa” de um agente público, enquanto tal (i.e., com aptidão para presentar a Administração Pública, na dicção pontiana);

b) exame da inadequação da conduta frente ao disposto na Lei;

c) constatação de um dano imputado ao administrado, seja pessoa física, seja jurídica (inclusive de direito público, tal como quando a União, violando a Lei, acarreta um prejuízo a um Estado membro, cabendo ao Supremo Tribunal dirimir o conflito); e, por fim,

d) nexo causal “físico” entre a conduta e o dano.

Conduta omissiva ilícita:

a) conduta omissiva de um agente público, enquanto tal (art. 37, § 6º, CF);

b) violação à imposição legal de que, naquela específica situação, fosse realizada uma conduta ativa, de proteção de bem jurídico. Isto é, que na situação concreta a Administração Pública se encontrasse na posição de garantidora da não-superveniência do resultado;(34)

c) dano ao particular;

d) imputação do resultado lesivo como obra da Administração, por não tê-lo evitado (em que pese, repita-se, não se poder falar em causalidade física, em casos tais);

e) juízo de probabilidade(35) quanto à potencialidade de que, caso a Administração Pública houvesse atuado, o dano não teria ocorrido.(36)

 

b) responsabilidade estatal por condutas lícitas

Conduta comissiva lícita:

Defende-se, como visto, que a responsabilização estatal dependerá dos seguintes requisitos:

a) conduta “ativa” de um agente público, enquanto tal (i.e., com aptidão para presentar a Administração Pública, na dicção pontiana);

b) constatação de um dano imputado ao administrado;

c) nexo causal “físico” entre a conduta e o dano;

d) constatação de que o dano em exame, em que pese ter decorrido de uma conduta lícita (i.e., em conformidade com todo o Ordenamento Jurídico), foi empreendido em favor de toda a coletividade;

Conduta omissiva lícita:

Frente aos postulados anteriores, portanto, vê-se que não haverá como impor à Administração Pública o dever de recompor o dano suportado pelo particular (causado pelo próprio sujeito, ou por terceiros), desde que esta omissão do Estado seja lícita (i.e., esteja em conformidade com todo o Ordenamento Jurídico).

Em casos tais, não se pode argumentar que o dano teria sido causado pela Administração Pública (já que a omissão nada causa). Também não se pode sustentar que o dano deva ser repassado a toda a coletividade, desde que esteja correta a premissa de que se cuida de uma omissão lícita.

Explico: os casos em que o Estado deve atuar com condutas pró-ativas (comissivas) estão veiculados, de forma explícita ou implícita, na Constituição. Em casos tais, ao deixar de intervir em busca da efetiva proteção do bem jurídico, por estar na posição de garantidor, o Estado estará agindo ilicitamente e, como tal, o caso será suscetível de indenização, nos termos acima (omissão ilícita).

Agora, o que não se pode admitir é a imposição ao Estado do dever de indenizar danos suportados pelo particular em virtude de condutas omissivas LÍCITAS. Portanto, em que pese o Estado ter a obrigação constitucional de buscar, a todo custo, efetivar o direito fundamental à moradia (art. 6º, CF), isso deve se dar de forma gradual e no limite dos recursos existentes.(37) Desse modo, a omissão do Estado em impedir que indivíduos morem em favelas – conquanto não fosse desejável – não pode ser considerada como uma omissão ilícita. E, nessa via, não pode o particular, prejudicado, inclusive em sua honra, por residir em situações tais, processar o Estado, alegando pretensa responsabilidade objetiva por conduta omissiva.

Reitere-se: a omissão nada causa. E, portanto, o art. 37, § 6º, CF, não autoriza a conclusão que muitos extraem, ao sustentarem que mesmo por condutas omissivas a responsabilidade seria objetiva.

Esse confronto entre objetividade e subjetividade, tão cara aos positivistas (por decorrer de pressupostos da ciência da natureza), não é, concessa venia, a mais adequada para o tema. É imprescindível enfatizar que a discussão é entre a indenização por condutas ilícitas (em que não há maiores discussões) e aquelas por condutas lícitas (em que se impõe apenas uma razão: o Estado, enquanto construto social, deve ser suportado por todos, na mesma medida).

Ademais, nem mesmo a teoria da assunção do risco da atividade convergiria para solução diversa, no que atina à imputação de danos não impedidos por condutas lícitas (omissão legítima, frente a todo o Ordenamento). Isso porque, como soa evidente, a omissão não incrementa riscos. Apenas não os reduz, coisa bastante diversa.

Enfim: deve-se deslocar o exame para a aferição de quais omissões do Estado são lícitas, em cada caso concreto.(38) Sendo legítima, frente a todo o Ordenamento, não haverá por que indenizar. Sendo ilegítima,(39) a indenização se impõe (por responsabilidade por conduta ilícita, observada a regra geral veiculada na codificação civil).

Afasta-se, enfim, da discussão entre “objetivistas” e “subjetivistas” no exame da omissão estatal, questão que há muito aflige tanto a doutrina quanto a jurisprudência e que está longe de se encerrar. Confira-se, aliás, com recente voto do Min. Carlos Velloso (RE 382.054/RJ, j. 03.08.2004), em que restou assinalado que “Maria Helena Diniz também sustenta que a responsabilidade por ato omissivo é subjetiva (...) De outro lado, há juristas que entendem que a responsabilidade estatal por ato (sic) omissivo é objetiva. Assim, por exemplo, YUSSEF SAID CAHALI (Responsabilidade Civil do Estado, Malheiros, 2. ed. 1995, p. 40); ODETE MEDAUAR (Direito Administrativo em evolução, ed. RT, 4. ed., 2000, p. 430); e CELSO RIBEIRO BASTOS (Curso de Direito Administrativo, Saraiva, 3. ed., 1999, p. 190, entre outros...) (...) O STF, pela 1ª Turma, no RE 109.615/RJ, relator o Ministro CELSO DE MELLO, decidiu no sentido de que é objetiva a responsabilidade do Estado pelos danos que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou omissão” (grifou-se).

Como sustentado acima, o debate deveria ganhar outros foros. Urge que seja melhor enfrentada a efetiva distinção entre causação e imputação, bem como, aferir em que medida as condutas omissivas lícitas do Estado dariam margem ao dever de indenizar. Fica a sugestão.

 

7. Conclusões

O tema é deveras instigante. A responsabilidade é instituto inerente ao reconhecimento, no próximo, de um igual, de um indivíduo merecedor de respeito e proteção. Ao se tratar do Estado, o instituto ganha contornos mais destacados, na exata medida em que este, enquanto um constructo social, existe em favor de todos os indivíduos, garantindo-lhes condição de vida melhor do que a que existiria sem a Administração Pública. Tanto por isto é que o ente público deve dar o exemplo, abstendo-se de violar as prerrogativas individuais.

Ao mesmo tempo, o Estado deve indenizar os particulares sempre que, por conta de uma intervenção em benefício de toda a coletividade, causar prejuízos a grupos determinados de indivíduos, mesmo que a referida conduta seja lícita. Este dever de indenizar decorre justamente do reconhecimento de que, sendo todos iguais, caberá a todos os contribuintes o custo do prejuízo oriundo de uma atividade que beneficia a todos. Aqui, em paralelo ao que ocorre com a desapropriação (e, de forma enantiomorfa, ao instituto da contribuição de melhoria(40)), o Estado deve diluir o encargo entre todos os contribuintes, mediante o recolhimento de impostos. Nada justifica que apenas o particular suporte um dano específico em favor de toda a coletividade.

No viés oposto, contudo, quando se cuidar de um dano causado pelo Estado (conduta comissiva), mas que beneficia apenas o próprio indivíduo, não haverá qualquer razão para a indenização. Essa é a razão pela qual não se concebe que deva o Estado indenizar o indivíduo cujo carro foi destruído pelo Corpo de Bombeiros para justamente salvar a vida do administrado (sem que o Estado tenha causado o acidente, destaque-se). A vingar uma leitura exacerbada do art. 37, § 6º, CF – sem ter em conta a razão republicana a que se presta – inclusive em casos tais, por haver dano (destruição do veículo) e nexo causal (o agente público o destruiu), poder-se-ia cogitar do dever de indenizar, tornando o Estado um segurador universal de danos particulares, o que não soa nem um pouco razoável.

Quando se cuidar de condutas omissivas, somente aquelas reputadas ilícitas (violadoras do Ordenamento Jurídico, como um todo), naquele determinado contexto, é que demandarão o dever de indenizar. Portanto, o fato de o Estado não impedir alguém de se suicidar dentro do seu apartamento – em que pese o Estado dever tutelar a vida e, como tal, sempre zelar para a sua conservação – não poderia de modo algum implicar responsabilização da Administração Pública, até mesmo porque o Estado não pode obrigar alguém a viver, ou adotar mecanismos constrangedores que impeçam o suicídio. Contudo, em hipótese diversa, caso um potencial suicida esteja em uma clínica pública, o Estado estará em uma posição de garantidor da não-superveniência do resultado, devendo responder por eventuais danos não evitados, desde que, naquele caso específico, pudesse ser evitado.

Enfim, sustenta-se que deve haver um deslocamento do debate para a aferição dos casos em que a omissão estatal é lícita e daqueles em que não é. Isso porque, como sabido, a Administração Pública ainda é messiânica. Vivemos no Estado Promessa, em que muitos deveres são carreados para o futuro. Não se defende aqui, de modo algum, alguma complacência com a omissão estatal. Exige-se, justamente por isso, a delimitação dos casos em que se cuidará de uma omissão legítima daqueles outros casos – talvez a considerável maioria – em que a abstenção fora indevida. Apenas nesses últimos casos, segundo aqui se defende, é que a Administração poderá repassar os custos aos contribuintes de danos que não impediu, em que pese estivesse a tanto obrigada.

Conclui-se, por ora, que é desnecessário enfrentar distinções entre responsabilidades objetivas e subjetivas. A intenção do agente público ou sua negligência interessará apenas para a aferição da legitimidade do ato (tanto quanto interessa, p. ex., para saber se houve desvio de finalidade). Porém, no tema da responsabilidade civil, o mais importante será aferir se a conduta fora lícita ou ilícita e, por fim, se o prejuízo pode ser racionalmente imputado a todos os contribuintes, já que o Estado apenas é um instrumento de verbalização do interesse coletivo.

Novamente com Dworkin, pode-se sustentar que o Direito “é uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no sentido mais amplo possível. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. (...) A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que queremos ter”.(41)

É o que se defende aqui: uma maior discussão por todos quanto sonham com uma sociedade mais justa e, nessa via, também com um Estado mais eficiente, responsável e respeitador dos seus cidadãos. Não se pode olvidar, contudo, que o custo do Estado é suportado pela coletividade e, como tal, deve ser justificado diante dos primados da igualdade de todos perante os encargos públicos.

 

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Notas:

1. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, p. 791.

2. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 624.

3. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 876.

4. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, p. 1.222.

5. RIVERO, Jean. Direito administrativo, p. 305.

6. RSTJ, 63:251.

7. Giorgio Giorgi, referido por Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, 7 v. p. 64, pontifica que “nessun dubbio sulla verità di questo principio: sai pura violata l’aobrigazione, ma se il danno manca, manca la matéria del risarcimento”.

8. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Lei 10.406, de 10.01.2002. Atualizado de acordo com o novo Código Civil, p. 201.

9. Cujo principal expoente, ainda hoje, é o grande jurista Hans Kelsen. Kelsen pretendia garantir ao Direito uma racionalidade mínima, protegendo-o contra opções ideológicas conjunturais. Para tanto, defendeu a premissa de que todo o Ordenamento Jurídico, enquanto um verdadeiro sistema, está submetido a uma norma hipotética fundamental, que é a vontade constitucional. Portanto, muitas injustiças são ainda hoje cometidas contra a memória de Kelsen, olvidando-se da sua grande preocupação democrática. Contudo, por infelicidade do grande austríaco, muitos dos seus pressupostos foram utilizados justamente para despir o Direito de um conteúdo minimamente ético, ao desvencilhá-lo de um exame de conteúdo (como queriam os jusnaturalistas, p.ex.) e submetê-lo a um exame mais formalista, de procedimento.

10. Confira-se em ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 727-744.

11. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico, p. 39.

12. ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho, p. 14. Enfatiza Alexy que a diferença entre os positivistas e os não-positivistas é justamente a forma como uns e outros equacionam a relação entre o Direito e a moral. Os estudiosos de verve positivista, como regra, sustentam que o Direito é apenas uma “roupagem”, suscetível de receber qualquer conteúdo. Já os não-positivistas – comumente atrelados a uma noção de direito natural – vinculam o fenômeno jurídico a um mínimo ético, ou seja, não reconhecem o regramento nazista como sendo Direito, p.ex.

13. Confira-se com VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 88, em que são utilizados conceitos como descritor; prescrição e modais deônticos (permitido; obrigatório; proibido). Também nessa linha, leia-se Arnaldo Vasconcelos. A teoria da norma jurídica, p. 24-26.

14. Fórmulas de supressão de lacunas (tais como: o que não estiver proibido deve ser tido como lícito – art. 5º, II, CF) tornam o Direito, enquanto conjunto de regras positivadas ou consuetudinárias, um sistema omnicompreensivo. Discute-se na doutrina especializada, contudo, se realmente esta presunção de esgotamento, de total regulação da vida, corresponde efetivamente à realidade cultural. Institutos como o “estado de necessidade”, do Direito Penal, suscitam dúvidas quanto à neutralidade valorativa de uma conduta.

15. É por todos conhecida a crítica formulada pelo empirismo de David Hume, ao sustentar que “todos os conteúdos da mente humana outra coisa não são senão percepções, dividindo-se em duas grandes classes, que chama de impressões e idéias. Hume só põe duas diferenças entre as primeiras e as segundas: a) a primeira classe diz respeito à força ou vivacidade com que as percepções se apresentam à nossa mente; b) a segunda diz respeito à ordem e à sucessão com que elas se apresentam” (Antiseri e Reale, História da filosofia, v. 2, p. 557). Aliás, para Hume, “causa e efeito são duas idéias bem distintas entre si, no sentido de que nenhuma análise da idéia de causa, por mais acurada que seja, pode nos fazer descobrir a priori o efeito que dela deriva (...) Não é possível à mente encontrar nunca o efeito da pretensa causa, nem mesmo com a investigação e o exame mais acurados, dado que o efeito é totalmente diverso da causa e, conseqüentemente, não pode nunca ser descoberto nela.l se eu atinjo uma bola de bilhar com outra bola, digo que a primeira causou o movimento da segunda; entretanto, o movimento da segunda bola de bilhar é fato completamente diferente do movimento da primeira e não está incluído nela a priori. Suponhamos, com efeito, que viemos ao mundo de imprevisto; nesse caso, vendo uma bola de bilhar, não poderemos de modo algum saber a priori que ela, impelida por outra, produzirá como efeito o movimento dessa outra. O mesmo deve-se dizer de todos os outros casos desse gênero. Hume exemplifica dizendo que o próprio Adão, ao ver a água pela primeira vez, não tinha condições de inferir a priori que ela tinha o poder de afogar por sufocamento. Sendo assim, então, deve-se dizer que o fundamento de todas as nossas conclusões sobre a causa e o efeito é a experiência. Mas essa resposta propõe imediatamente outra questão, bem mais difícil: qual é o fundamento das próprias conclusões que eu extraio da experiência?Eu experienciei, p.ex., que o pão que comi sempre alimentou; mas com base em que fundamento extraio a conclusão de que deverá me nutrir também no futuro: do fato de que experienciei que certa coisa sempre se acompanhou de outra ao modo de efeito, posso inferir que também outras coisas como aquela deverão se acompanhar de efeitos análogos? (...) Qual é então, a conclusão da questão toda? É uma conclusão simples, embora se deva admitir que bastante distante das teorias filosóficas comuns. Toda crença em dado de fato ou em existência real deriva simplesmente de algum objeto, presente na memória ou nos sentidos, e de conexão habitual desse objeto com algum outro. Em outras palavras, havendo constatado, em muitos casos, que duas espécies determinadas de objetos – chama e calor, neve e frio –- sempre estiveram ligadas entre si, a mente é levada pelo costume a esperar frio ou calor e a crer que exista qualidade semelhante, que se revelará a aproximação maior de nossa parte (...) Todas essas operações são outras espécies de institutos naturais, que nenhum raciocínio ou procedimento do pensamento e do intelecto está em condições de produzir ou obstaculizar”. (obra citada, pp. 564-565). É fato que as dúvidas suscitadas por David Hume foram magistralmente enfrentadas por Emmanuel Kant, o filósofo de Konigsberg, que, por isto mesmo, salvou a possibilidade de uma ciência causal.

16. Tese sustentada por Aristóteles, na sua Metaphísica. Para o estagirita, a causa final de tudo é o princípio, o motor imóvel, o ato puro, desprovido de potência. A causa final de tudo deve: a) ser eterna, já que o movimento é eterno, já que não se pode admitir um “antes do tempo”; b) o princípio deve ser imóvel, já que somente o imóvel pode ser origem sem ser originado. Confira-se com Giovanni Reale e Dario Antiseri. História da filosofia, v. 1, pp. 186-187.

17. É o conhecido procedimento hipotético de eliminação de Thyren. Ao se constatar que, suprimindo determinado evento, o resultado ainda persiste, ficará excluído o referido acontecimento como causa do segundo. Juarez Tavares formula algumas críticas ao mencionado método. Confira-se em Teoria do injusto penal, p. 107 e 207-209. Ainda nesse sentido, vide Cláudio Brandão, Teoria jurídica do crime, p. 39; Claus Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. 1, p. 352 e ss.; Juares Tavares, Direito Penal da negligência, p. 224; Hans Welzel, O novo sistema jurídico penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista, p. 83 e ss., Juarez Cirino dos Santos, A moderna teoria do fato impunível, p. 49-59.

18. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, p. 717.

19. Sem que se possa, no momento, avançar mais a fundo no tema, é fato que – conquanto o Estado tenha por meta garantir situação otimizada de bem estar para todos e, como tal, deva proteger todos os bens jurídicos reconhecidos politicamente como dignos de tutela – é fato que, em contextos especiais, há um regime próprio de proteção. Portanto, há uma nítida diferença entre a proteção da saúde de uma pessoa submetida a um tratamento perante um Hospital Público, com proteção específica, concreta, da sua saúde, e aquele tratamento dispensado a todos os indivíduos, mediante políticas públicas de profilaxia.

20. PUIG, Santiago Mir. Derecho penal. Parte general, p. 317, tradução livre.

21. JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal, parte general. Tradução do Lehrbuch des Strafrechts, Algemeine Teil, p. 655.

22. § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

23. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 62; 88-89 e 858.

24. Novamente, aqui, a insuficiência da linguagem para enquadrar a realidade social ou mesmo jurídica. O que seria uma probabilidade considerável? Certamente, não é qualquer probabilidade, mas sim, aquela hábil a surtir o efeito com um grau razoável de chance, em que pese ainda assim, poderia não gerar o dano, naquele caso específico.

25. Como aduz Seabra de Godoi, com fulcro em Dworkin: “no plano da distribuição, entre os indivíduos, da riqueza, das oportunidades e das posições de comando e controle, não há que se desejar o nivelamento total dos ativos possuídos (igualdade de resultados) ou do nível de bem estar dos cidadãos (igualdade de bem estar), mesmo porque tal desejo restaria eternamente insatisfeito. Neste plano, a igualdade é concebida como igualdade eqüitativa de oportunidades, pela qual o poder público deve criar condições para que as desigualdades contingentes quanto a dotes naturais e posições sociais influam no menor grau possível na distribuição dos bens e recursos. Conforme observa Dworkin, a sociedade será tanto mais justa quanto as diferenças de riqueza forem decorrentes de diferenças nas ambições e escolhas das pessoas, e tanto mais injusta quanto as diferenças de riqueza forem decorrentes de circunstâncias não escolhidas pelos indivíduos, como uma condição social adversa implicando a negativa de recursos básicos como educação e saúde, uma ausência de dotes naturais, etc”. Marciano Seabra de Godoi, Justiça, igualdade e direito tributário, p. 107.

26. RIVERO, Jean. Direito administrativo, p. 308.

27. TÁCITO, Caio. Direito administrativo, p. 362, referenciado no voto do Min. Moreira Alves, RE 130.764-1/PR.

28. Determinado dano individual (exclusivo a um único indivíduo ou a um grupo determinado de indivíduos), acarretado em favor de toda a Comunidade ou de parcela significativa dela, não deverá ser suportado exclusivamente pelo prejudicado. Violaria o postulado da igualdade, como visto (art. 5º, CF), postulado básico da República (como elucida Geraldo Ataliba, em “Constituição e República”). Portanto, com a indenização sendo suportada pelo Estado, em nome de toda a sociedade, o indivíduo prejudicado apenas arcará com a parcela do custo administrativo que lhe cabe, mediante o recolhimento dos impostos, i.e., tributos genéricos destinados ao provimento da estrutura administrativa, considerada globalmente.

29. A respeito desta expressão (segurador universal), veiculada na obra do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, confira-se também o voto proferido pelo Min. Otávio Gallotti, no RE 111.715-0/SC.

30. Art. 78, CTN - Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos

31. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 799.

32. DWORKIN, Império do Direito. Martins Fontes, p. 71.

33. Diante da consagração da moralidade administrativa e, por conseqüência, a proibição do abuso de direito; abuso de formas e do desvio de finalidades, não há como examinar qualquer ato administrativo sem ter em conta a adequação entre os motivos constante na psique do agente (tanto quanto é possível aferi-la) e aquele motivo que a Lei prevê como legitimador para a realização do ato. Enfim: não há como examinar uma dada conduta estatal escudado apenas em uma aferição de dados objetivos.

34. Tal como ocorre em relação à vida do detento, em uma carceragem, ou da criança mantida na creche ou escola públicas. Aqui há um dever especial de cuidado, não existente em hipóteses outras, nas quais, aliás, como regra, sequer poderia o Estado intervir para evitar resultados lesivos (não poderia um agente público, p.ex., ingressar no interior da residência e proteger a criança contra riscos domésticos, p.ex.).

35. Aqui, novamente, a insuficiência da linguagem para traduzir um requisito como este. Certamente, esta conjectura (teria havido o dano setal conduta houvesse sido adotada) é sempre um jogo de probabilidades, dado que o “se” não existe no mundo real. É apenas um jogo de suposições, que ocorre na mente humana. Portanto, é fato que se exige um confronto com a realidade circundante, com o que normalmente ocorre. É razoável supor que, quando o indivíduo está sendo submetido a uma cirurgia cardíaca, a intervenção do médico, com um determinado procedimento, impede a morte por falta de oxigênio, p.ex. Enfim: exige-se um exame técnico, fundado na experiência do que normalmente ocorre.

36. Conquanto com lastro em outros argumentos e com uma pequena confusão entre imputação e nexo causal, este foi certamente o exame empreendido pelo Supremo Tribunal Federal por época do julgamento do Recurso Extraordinário 130.764-1/PR, relado pelo Min. Moreira Alves. Tratava-se de um pedido de responsabilização estatal por conduta omissiva. Afirmava o requerente que fora assaltado por uma quadrilha da qual participava um indivíduo evadido do sistema penitenciário, anos antes, por negligência estatal. Concluiu-se que, ainda que eventualmente não houvesse existido a mencionada falha no serviço (i.e., manutenção do sentenciado sob a custódia estatal), não se poderia sustentar, com um grau mínimo de probabilidade, de que o dano não teria ocorrido, até mesmo porque o evadido não fora o mentor do assalto/seqüestro, repita-se.

37. “Art. 26 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – Desenvolvimento progressivo: Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes na Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou outros meios apropriados”.

38. “... se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos. Reversamente, descabe responsabilizá-lo se, inobstante atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia. (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 897).

39. Para os que sustentam que há responsabilidade objetiva também para condutas omissivas, fica a pergunta: Qual a conduta omissiva lícita que dá origem ao dever de indenizar?Aqui, repita-se, pode-se estabelecer novamente a comparação entre a omissão do Estado em impedir um suicídio que ocorre no interior de uma casa, e aquele que ocorre no interior de uma clínica psiquiátrica pública. Em ambos os casos há omissão, já que é dever do Estado garantir o direito à vida. Contudo, apenas na segunda hipótese é devida a reparação do dano aos familiares, já que apenas aí se terá uma omissão ilícita, diante do regime especial de tutela a que estava submetido o indivíduo lesionado.

40. O confronto entre os dois institutos (responsabilização por conduta lícita e a contribuição de melhoria) foi, por sinal, muito bem estabelecida pelo Min. Marco Aurélio de Mello no bojo do RE 113.587/SP, julgado em 18/02/92.

41. DWORKIN, Obra, p.492, grifou-se.

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., maio 2006. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS