Crimes fiscais – Conseqüências da dificuldade financeira absoluta e relativa Autor: Jorge Vicente Silva | Artigo publicado em 25.05.2006| |
Tanto a nossa doutrina quanto a jurisprudência têm admitido a dificuldade financeira vivida pelas empresas como causa para absolvição dos empresários nos delitos fiscais. Para alguns, cuida-se de causa de exclusão da ilicitude, enquanto para outros seria da culpabilidade, estando neste caso embutido o princípio da inexigibilidade de conduta diversa. Tal debate fica centrado especialmente nos delitos de omissão no recolhimento de tributários descontados, ou dos empregados (art. 168A do Código Penal), ou outros arrecadados pela empresa, na qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária e que deveria recolher aos cofres públicos (art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/91). As principais situações que são aceitas como fator capaz de demonstrar dificuldade financeira podemos citar: a) atraso no pagamento dos salários dos empregados; b) existência de protestos, execuções, reclamatórias trabalhistas, penhora de maquinário da empresa, etc.; c) diminuição do patrimônio pessoal dos sócios; d) insolvência tácita; e) insolvência de direito, com a decretação da falência; etc. Encontramos corrente defendendo que essa modalidade de situação cuida-se de estado de necessidade, havendo, portanto, exclusão da ilicitude. Outra afirmando que se trata de exclusão da culpabilidade, nesse caso ficando excluído o dolo, enquadrando-se nessa hipótese o princípio da inexigibilidade de conduta diversa. Essas conclusões encontramos tanto na nossa doutrina quanto na jurisprudência. Considerando que o presente trabalho não tem cunho eminentemente acadêmico, mas sim prático, não iremos nos aprofundar nesse debate, ressaltando apenas que ao nosso ver se cuida de exclusão da culpabilidade, afetando ou não o dolo, haja vista o teor do artigo 24, § 2º, do Código Penal, o qual certamente não regula matéria relacionada com a exclusão da ilicitude, mas sim da culpabilidade, conforme adiante cuidaremos dessa matéria ao enfrentarmos a questão de a dificuldade financeira poder ensejar também a diminuição da pena nos termos do referido artigo. De qualquer sorte, para quem entende que a dificuldade financeira configura estado de necessidade, estamos diante de causa de exclusão de ilicitude. Já na conclusão de que se trata de inexigibilidade de conduta diversa, tem-se como causa a exclusão da culpabilidade, e em qualquer hipótese é o caso de absolvição do acusado com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Cabe agora, e esta é a finalidade principal do presente trabalho, aferir a aplicabilidade, ou não, do disposto no artigo 24, § 2º, do Código Penal, cuja disposição legal, apesar de tratar da excludente de ilicitude pelo estado de necessidade, em verdade cuida de matéria relacionada com exclusão da culpabilidade. Da sua incidência no caso de conceituarmos a dificuldade financeira como causa de exclusão da ilicitude pelo estado de necessidade Para melhor compreensão, transcrevemos o inteiro teor do citado artigo 24, caput, do Código Penal, o qual conceitua tecnicamente o estado de necessidade. Verbis: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. ” Pelo conceito técnico de estado de necessidade, o agente sacrifica bem de menor valor para salvar bem de maior, o que no caso ora em estudo, da dificuldade financeira, poderíamos dizer, v.g., que o não-recolhimento da contribuição previdenciária descontada do empregado é considerado menor que a eliminação do próprio emprego ou o não-pagamento dos salários dos empregados, caso o empresário opte por pagar a Previdência Social. Portanto, pelas circunstâncias não era razoável exigir-se que o empresário, nos exemplos citados, sacrificasse o emprego e/ou o salário dos empregados em benefício do recolhimento das contribuições sociais descontadas dos empregados, o que podemos chamar de estado de necessidade absoluto. Já o atrás citado artigo, no seu parágrafo segundo, preceitua que, “embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser diminuída de um a dois terços”. Podemos denominar essa circunstância de estado de necessidade relativo. De pronto devemos considerar que esse dispositivo trata de causa de exclusão de culpabilidade e não de ilicitude, porquanto não é possível se falar em ilicitude mitigada, mas tão-somente de culpabilidade diminuída, tendo como corolário a diminuição da reprimenda. Nessas circunstâncias, embora seja razoável exigir-se do agente sacrifício do direito ameaçado, incide a regra mitigadora da pena. Observa-se que, se enquadrando no que ora denominamos estado de necessidade absoluto, não é razoável exigir-se do agente o sacrifício do direito ameaçado. Já no estado de necessidade relativo, mesmo que se pudesse exigir que fosse sacrificado dito direito, restaria configurada a hipótese legal de mitigação da pena. Para melhor compreensão, citaremos algumas hipóteses utilizando como exemplo os dois atrás indicados. Suponhamos que a omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados seja de monta elevada e incidam sobre salários e outras verbas trabalhistas de altos empresários, os quais, na eventualidade de não recebê-los na data legal, não sofrerão maiores conseqüências. Nessa hipótese o bem jurídico tutelado (pagamento das contribuições sociais), em tese, cuida-se de direito ameaçado de maior valor que os salários dos empregados. Nesse caso, comprovada a dificuldade financeira da empresa para pagamento das duas verbas, não incide o estado de necessidade absoluto, mas sim o relativo, porquanto era razoável que se exigisse o sacrifício relativamente ao pagamento dos salários dos altos executivos, ainda que parcial. Nesse mesmo exemplo, em se tratando de empregados assalariados, os quais, como se diz na gíria popular, “recebem hoje para pagar o que comeram ontem”, cujos valores de contribuição previdenciária certamente serão pequenos, configuraria, em tese, o estado de necessidade absoluto. Ainda nos exemplos atrás citados, suponhamos que a empresa possua pequeno número de empregados altamente qualificados e que, no caso de sua falência, não teriam menor dificuldade em retornarem ao mercado de trabalho. A opção de não recolher as contribuições sociais, preferindo o pagamento de outros credores que fornecem, por exemplo, matéria-prima, para não afetar a vida da empresa, em tese pode ser considerado apenas estado de necessidade relativo. Já no mesmo exemplo, na hipótese de a empresa possuir um número razoável de empregados de pouca ou nenhuma qualificação, e, no caso de fechamento da empresa, terem eles enorme dificuldade para retornarem ao mercado de trabalho, estaremos diante do que se pode chamar de estado de necessidade absoluto. Diante desse quadro, pensamos que alguns pontos devem ser considerados para os fins de aferir a ocorrência de estado de necessidade, especialmente aquele que aqui denominamos de relativo e absoluto. Quando o julgador entender que o direito da Previdência Social, sacrificado com o não-recolhimento das contribuições descontadas dos empregados, é maior em relação ao direito de outros credores em receberem seus créditos da empresa, deve aplicar a regra do que ora denominamos de estado de necessidade relativo. Do contrário, quando o entendimento for no sentido de que o sacrifício do direito preferido é maior que o direito do agente arrecadador em receber o tributo, estamos diante de estado de necessidade absoluto. Conforme atrás já deixamos consignado, a comprovação de dificuldade financeira da empresa é ônus do acusado. Por isso pensamos que também nas hipóteses de a prova desse fato não estar cabalmente firme, havendo alguma dúvida, sendo rejeitado o estado de necessidade absoluto em razão disso, deve ser aplicado o estado de necessidade relativo. Nesse caso, a valoração quanto a ser o estado de necessidade absoluto ou relativo centra-se unicamente na qualidade da prova. Quanto mais robusta a prova a indicar que a empresa passava por dificuldades financeiras, mais próximo fica do estado de necessidade absoluto. Em contrapartida, quanto mais frágil for a prova deste fato, mais fica próximo do estado de necessidade relativo. Da sua incidência no caso de conceituarmos a dificuldade financeira como causa de inexigibilidade de conduta diversa Pelas mesmas razões antes postas, no caso de conceituarmos que a dificuldade financeira configura causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, ainda assim incide a regra do artigo 24, § 2º, atrás citado. Na hipótese ora em estudo, também podemos conceituar de inexigibilidade de conduta diversa absoluta e relativa, tal qual fizemos quando enfrentamos esta questão considerando a possibilidade de ser conceituada na condição de estado de necessidade. Tomando os mesmos exemplos atrás postos, quando consideramos que não era razoável exigir que o empresário tivesse conduta diversa da que teve, não recolhendo as contribuições sociais descontadas dos empregados, estaremos diante de inexigibilidade de conduta diversa absoluta. Já no caso de se concluir que era razoável que o empresário sacrificasse os outros credores, tendo ele feito, em tese, a opção menos correta, ao juízo do intérprete, estaremos diante da inexigibilidade de conduta diversa relativa. O que não pode, e isso é o que verificamos ocorrer no dia-a-dia, são julgados reconhecendo que a empresa passou por dificuldade financeira, mas que, simplesmente porque a opção do empresário ao escolher o credor que deveria pagar, e que ao juízo do intérprete não foi a melhor, apenas por isso não faça jus a qualquer benefício contemplado pelo direito penal. Pensamos que a melhor interpretação do artigo 24, § 2º, do Código Penal, seja de que se cuida não de exclusão de ilicitude, mas sim de exclusão de culpabilidade, até porque excluída a ilicitude não existe crime a ter a reprimenda mitigada. Assim, para os casos de crimes fiscais perpetrados sob o manto da dificuldade financeira da empresa, estamos diante de causa de inexigibilidade de conduta diversa. Sendo ela absoluta, importa em absolvição do agente. No caso em que seja apenas razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, que no caso em estudo seria o não-recolhimento do tributo ao agente arrecadador, preferindo outros credores, em tese, menos necessitados, estaremos diante da inexigibilidade relativa de conduta. Da atual conjuntura Temos observado que na prática, quando a empresa passa por dificuldades financeiras, para as modalidades de ilícitos fiscais ora em estudo, são conferidos apenas dois tratamentos. Ou se absolve o acusado sempre, porque se conclui que restou provado por ele que a empresa passava por dificuldade financeira, ou o condena sem qualquer benefício, ainda que existam provas razoáveis a indicar que a empresa passava por entraves financeiros. Não encontramos a aplicação da regra de mitigação da pena ora em comento, nem nos julgados, nem defesas desta tese por aqueles que escrevem sobre crimes fiscais. Apesar da omissão quanto à aplicação e ao estudo desta matéria por quem de dever (doutrina e jurisprudência), pensamos que a incidência de dita causa de diminuição de pena para os crimes fiscais em estudo não se cuida de algo exagerado, porquanto, uma vez verificado que a empresa passava por dificuldades financeiras no período em que deixou de recolher os valores retidos ou descontados a título de tributo, esta circunstância deve merecer valoração do direito penal. O que não se pode é conferir o mesmo tratamento ao empresário que deixa de repassar ditos tributos com a finalidade, v.g., de garantir a retirada de seu pro labore, aumentar o capital social da empresa, renovar a frota de carros ou equipamentos, etc., em relação àquele que, bem ou mal, fez uma opção entre quem dentre os credores receberia seus créditos. A questão de preferir este ou aquele em detrimento de outros é matéria subjetiva, a qual somente quem vive a realidade do momento dos fatos poderá efetivamente mensurar o porquê da opção, daí ser muito particular aferir o acerto ou erro na escolha. Por isso pensamos que a atual sistemática adotada sobre esta questão, com a devida vênia, não é a mais justa. É necessário que seja dado tratamento diferenciado aos desiguais, não sendo razoável que o empresário que optou por este ou aquele pagamento em detrimento do fisco, mas que não tinha capital para saldar todas as dívidas, não receba qualquer beneplácito do direito penal. Justamente aí, ao nosso ver, há necessidade de conferir tratamento diferenciado aos empresários, em razão da culpabilidade da conduta de cada um. Tomemos novamente os exemplos atrás citados dos empresários, em que um deixa de recolher o tributo descontado para garantir o seu pro labore ou renovar a frota de veículos e outro porque preferiu o pagamento dos salários dos empregados ou de fornecedores de matéria-prima, em detrimento do fisco. Não é razoável, lógico, justo ou racional conferir o mesmo tratamento aos dois hipotéticos empresários. É óbvio que a culpabilidade de cada um dos empresários postos nesses exemplos não é a mesma, não sendo por isso razoável que mereçam o mesmo tratamento no momento da aplicação da pena. De outra feita, também é inquestionável que a mitigação da reprimenda prevista no artigo 24, § 2º, do Código Penal está relacionada diretamente com a culpabilidade do agente. Também é certo que o citado dispositivo prevê a incidência dessa causa de diminuição da pena, quando seja razoável exigir do agente conduta diversa. Por isso, quando não reconhecida a inexigibilidade de conduta diversa plena, ou estado de necessidade completo, havendo comprovação de qualquer circunstância a indicar que não era razoável exigir-se do empresário outra conduta, quando ele agiu, v.g., bem-intencionado, visando proteger outro direito ameaçado, efetuando pagamento de outros credores, etc., sem sombra de dúvidas que sua culpabilidade deve ser considerada em grau menor em relação à normal, merecendo ser valorada no momento da fixação da reprimenda penal. Ao nosso ver, não há como dissociar a previsão do dispositivo em estudo com as dificuldades financeiras da empresa, quando não reconhecida a sua insolvência completa, para fins dos delitos ora em estudo, porquanto trata-se de causa relevante para o direito penal e como tal não pode ficar a margem dos fundamentos de uma sentença condenatória em casos tais. Desta feita, somente restará respeitado o princípio da isonomia nos casos de delitos fiscais em que se debate e se comprova de alguma forma a dificuldade financeira da empresa, caso sejam aferidos os vetores que norteiam a causa mitigadora da pena prevista no artigo 24, § 2 º, do Código Penal, quando não for o caso de absolvição. Do quantum de mitigação da pena O dispositivo legal em estudo prevê a aplicação de diminuição da pena, de um terço a dois terços, havendo necessidade de ser aferido um critério para ser aplicado o benefício, devendo ficar fundamentadamente consignada a razão desta maior ou menor mitigação da reprimenda, em atendimento à previsão constitucional no sentido de que toda decisão judicial ou administrativa deve ser motivada. Para os delitos em questão, pensamos que o critério mais justo seja, no caso de se tratar de reconhecimento de dificuldade financeira, quanto maior for ela, mais deve se aproximar do máximo de diminuição, quanto menor, mais do mínimo de diminuição. Já no caso de se reconhecer essa circunstância em razão da fragilidade da prova produzida pelo acusado, quanto maior for a prova da dificuldade financeira da empresa, maior deve ser a fração de mitigação da pena, quanto menor, menor a diminuição da reprimenda. Por óbvio que esta não é uma proposição absoluta, porquanto certamente surgirão outras, possivelmente até mesmo com consistência maior que a ora posta, servindo esta sugestão apenas para facilitar a compreensão do tema e conclamar os estudiosos para a necessidade de reflexão e debate sobre esta matéria. É importante observar que essa causa de diminuição de pena, por cuidar-se de matéria de ordem pública, incide em todos os delitos em questão, ainda que com decisão condenatória já transitada em julgado, cujo instrumento legal para vê-la reconhecida pode ser o habeas corpus ou a revisão criminal. Conclusão Desta superficial abordagem fica demonstrado que a dificuldade financeira da empresa deve ser aplicada, tanto para absolver quanto para diminuir a pena aplicada aos empresários acusados de delitos fiscais, seja reconhecendo estado de necessidade absoluto ou inexigibilidade de conduta diversa absoluta, seja aplicando a causa de diminuição da reprimenda, nos termos do artigo 24, § 2º, do Código Penal, cujo instituto pode ser denominado de estado de necessidade relativo ou inexigibilidade de conduta diversa também relativa, mitigando-se, sempre, a pena, quando não restar comprovado que a dificuldade financeira da empresa era absoluta, ou a prova desse fato é frágil para demonstrar a dificuldade absoluta.
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Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |
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