A (i)licitude penal e os direitos fundamentais
Autor: Rui Magalhães Piscitelli | Artigo publicado em 25.05.2006| Resumo No presente artigo, pretendemos abordar a questão da ilicitude penal de forma dinâmica, isto é, faremos uma breve abordagem da posição clássica sobre o tema e, após, traremos à colação questões atuais sobre o discutido, com arrimo em posição doutrinária e também jurisprudencial, extrapolando tão-somente o âmbito penal, com incursões pela seara civil. Nesse escopo, como não poderia deixar de ser, senão pelo fato de sermos Mestrandos na área, o respeito aos direitos fundamentais não será olvidado. Mas, para contextualizar o objeto do presente trabalho, iniciaremos por abordar o conceito analítico de crime, com seus elementos, quais sejam, a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade. 1 – Conceito analítico de crime Como sabido, o Direito conferiu ao Direito Penal o monopólio da aplicação das penas. Essas, por sua vez, advêm por retribuição à infringência aos valores mais caros à coletividade. Assim sendo, à violação desses valores atribui-se o nome de crime. Crime, pela contextualização analítica, a qual remonta ao ano de 1906, oriunda da doutrina alemã de Beling, através de sua obra "Die Lehre vom Verbrechen" ("A Teoria do Crime"), que culminou em 1930 com sua segunda obra, "Die Lehre vom Tatbestand” (“A Teoria do Tipo”), é ação humana comissiva ou omissiva típica, ilícita e culpável. Veja-se que essa é uma construção doutrinária, visto que o nosso atual Código Penal não adota um conceito de crime. Sobre os Códigos anteriores, interessante a evolução, mostrada por Fernando Eleutério, Advogado e Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa:. “Pois o próprio Código Penal vigente, com suas alterações oriundas da Lei nº 7.209/84, que reformulou toda a Parte Geral do Código de 1940, não define o que é ‘crime’, embora algumas de nossas legislações penais antigas o faziam. O Código Criminal do Império de 1830 determinava em seu artigo 2º, parágrafo 1º: ‘Julgar-se-á crime ou delito toda ação ou omissão contrária às leis penais’. E o Código Penal Republicano de 1890 assim se manifestava em seu artigo 7º: ‘Crime é a violação imputável e culposa da lei penal’.” Ser típico, justamente, significa que o fato cometido está descrito em uma norma penal estrita (em obediência ao princípio da legalidade), na qual lhe é imputada uma pena. Mas uma conduta humana ser típica não necessariamente leva à aplicação da sanção penal, senão inicia o processo de análise criminal. Tratemos, pois, a tipicidade como um indício da ilicitude. Após, então, há que se perquirir da ilicitude da atitude, e este o objetivo maior do nosso trabalho. Superficialmente, há situações que excluem a ilicitude da conduta, as quais analisaremos em momento oportuno. E, por fim, antes de chegarmos à aplicação da pena, passada a análise da ilicitude, há de o agente ser culpável. Sem confundirmos com os conceitos de dolo e culpa (os quais, segundo a teoria vigente em nosso ordenamento penal – teoria finalista de Welzel –, são estudados dentro da análise quanto ao tipo penal), a culpabilidade atestará se o autor do fato delituoso tem condições de responder pelo que fez. Como exemplos, a menoridade penal, a doença mental e a coação moral irresistível excluem a culpabilidade. Concluindo, para se ter a perfectibilização do crime, há de o ato delituoso ser típico, ilícito e culpável, gerando, então, a pena a ser aplicada pelo Magistrado. 2 – Antijuridicidade e ilicitude Na maioria das vezes, esses dois termos são utilizados como sinônimos; contudo, pelo que abaixo exporemos, indevidamente. O Professor Francisco de Assis Toledo, Ministro do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em seus “Princípios básicos do Direito Penal”, muito bem esclarece a questão. Os penalistas pátrios, tendo influência muito forte dos autores de língua espanhola e italiana, incorreram em erro na tradução do termo rechtswidrigkeit. Procedeu-se à leitura de que a expressão significaria contrariedade ao jurídico, daí, antijuridicidade. Contudo, alerta-nos o Professor Toledo de que a tradução literal é contrariedade ao Direito. E, assim sendo, conclui pela impropriedade de atribuirmos ao delito, fato jurídico que é, a qualidade de ser antijurídico, melhor dizendo, como algo antijurídico pode ser jurídico? Logo, para o Ministro, devemos usar a palavra ilicitude para designarmos, parafraseando Welzel, a contrariedade entre a realização do tipo de uma norma proibitiva e o ordenamento jurídico como um todo. 3 – Ilicitude formal e material A ilicitude formal não nos oferece maior dificuldade, senão ser o conceito já apresentado acima. O que nos faz refletir um pouco mais é o conceito de ilicitude material. Ainda que da corrente que adota o termo antijuridicidade, o Professor Piedade Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutor em Direito Penal pela mesma Casa, assim conceitua a visão material: “É toda e qualquer conduta que viola o interesse social protegido pela norma de Direito... O núcleo da antijuridicidade material ou substancial não reside na contradição entre o fato e a norma, mas ele se instala, exatamente, na contradição entre o fato e as condições existenciais do grupo social juridicamente tutelado.” Ainda, o Professor Fernando Capez assim diferencia a ilicitude formal e material: “Ilicitude formal é a mera contrariedade do fato ao ordenamento legal (ilícito), sem qualquer preocupação quanto à efetiva perniciosidade social da conduta. O fato é considerado ilícito porque não estão presentes as causas de justificação, pouco importando se a coletividade reputa-o reprovável. Ilicitude material é a contrariedade do fato em relação ao sentimento comum de justiça (injusto). O comportamento afronta o que o homem médio tem por justo, correto. Há uma lesividade social ínsita na conduta, a qual não se limita a afrontar o texto legal, provocando um efetivo dano à coletividade. Por exemplo, um deficiente físico que explora um comércio exíguo no meio da rua e não emite notas fiscais, por sua ignorância, pode estar realizando um fato formalmente ilícito, mas materialmente sua conduta não se reveste de ilicitude. Ilícito material e injusto são, portanto, expressões equivalentes.” (grifo nosso) Veja-se que, realmente, tal abordagem é muito polêmica, pois a ilicitude material está ligada à idéia de injustiça do fato em relação ao ilícito formal. E justamente o conceito de ilicitude material, parafraseando o Professor Toledo, com base no escólio de Von Liszt, conduz a novas possibilidades de admissão de causas supralegais de justificação, com base no princípio da ponderação dos bens. 4 – Hipóteses legais e supralegais de exclusão da ilicitude penal As causas legais de exclusão da ilicitude penal se encontram arroladas do art. 23 a 25 do Código Penal Brasileiro, abaixo: “Exclusão de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II - em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Excesso punível (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Estado de necessidade Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Legítima defesa Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)” (grifos nossos) Veja-se que o Código é muito lacônico na caracterização dos institutos acima. E é por isso que temos de recorrer à doutrina. Quanto à exclusão da ilicitude pelo estado de necessidade, uma consideração que se faz é quanto à ponderação de valores, entre o bem violado e o bem a que se protege, isto é, há de este superar aquele. Fato curioso é que, diferentemente do que ocorre em outras legislações, no ordenamento brasileiro o direito a que se visa proteger, nessa excludente, abrange qualquer bem jurídico, tais como a vida, a honra, o patrimônio, etc. Dentro do escopo do presente trabalho, trazemos à colação jurisprudência do Egrégio TRF da 4ª Região, sobre a aplicação da excludente de ilicitude por estado de necessidade à matéria tributária, ainda que, para isso, tenha de haver prova bastante nos autos: “Origem: TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO Ponto que também pensamos ser interessante gizar é a diferenciação entre o instituto da legítima defesa e o do estado de necessidade, o que fazemos nas palavras do Professor Piedade Júnior, abaixo: “a) na legítima defesa, há agressão injusta, atual ou iminente; no estado de necessidade, simplesmente, não há agressão; b) na legítima defesa, há ataque ou ameaça de lesão a um bem jurídico; no estado de necessidade, há conflito entre bens jurídicos; c) na legítima defesa, o agredido só pode dirigir sua reação contra o agressor; no estado de necessidade, a conduta pode dirigir-se a terceiro; d) a legítima defesa pressupõe agressão exclusivamente humana; no estado de necessidade, o perigo pode advir de conduta humana, através de animal irracional, força da natureza.” Ponto curioso trazido pela doutrina são os casos das competições esportivas e as cirurgias médicas. Nesse ponto, colhemos que a violência esportiva é, para a doutrina, uma excludente de ilicitude por exercício regular de direito, ressalvada a punibilidade pelo excesso. Já quanto às cirurgias médicas, as que não revelam perigo de vida, também nelas incide a excludente por exercício regular de direito, a doutrina aconselhando, nesses casos, o consentimento do ofendido; por outro lado, nas em que ocorre o perigo de vida, a excludente se dá pelo estado de necessidade. O castigo moderado aos filhos, aplicado pelos pais, também é tratado como exercício regular de direito; já o aplicado pelos Professores não tem a exclusão da ilicitude em nossa doutrina e jurisprudência pátrias. Outra questão que não nos poderia fugir é a implicação da excludente da ilicitude no âmbito civil, com a conseqüência da verba indenizatória. Anotamos que a matéria está disciplinada nos arts. 186, 188, 929 e 930 do NCC: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram. Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado. Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I).” Já as causas supralegais de exclusão da ilicitude podem ser colhidas da doutrina e da jurisprudência. Uma delas é o consentimento do titular; mas, para isso, o bem agredido há de representar um direito disponível, a exemplo do crime de dano, previsto no art. 163 do CP. Quanto à extensão do instituto da exclusão da ilicitude por exercício regular de direito, abarcando as causas supralegais, o Professor Piedade Júnior nos sinaliza que a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito estão legitimados, visto que não se trata de norma incriminadora, e sim justamente é o contrário. E, assim, a jurisprudência pátria tem tratado modernamente o tema: “Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA “Origem: TRF - PRIMEIRA REGIÃO 5 – Descriminantes putativas Chamam-se de descriminantes putativas quando o agente, julgando estar albergado por uma excludente de ilicitude, comete o ilícito. Nesses casos, em não havendo a real existência do perigo, o tratamento que se dá é o previsto no parágrafo 1º do art. 20 do CP, qual seja, via excludente de culpabilidade, como se vê abaixo: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)” 6 – Conclusão Trazemos, como palavras finais, uma visão mais ampla de encararmos o fenômeno jurídico, senão com prevalência dos direitos fundamentais à aplicação da lei penal. Primeiramente, trazemos a doutrina de François Ost, que nos leva à consideração de três tipos de Juiz, ou seja, de três modos como um Magistrado pode usar sua Autoridade para o julgamento das lides. Um primeiro modelo é o “Juiz Júpiter”. Este, segundo o Autor, tem sua base científica em Hans Kelsen e sua referência político-econômica liberal. Kelsen, autor da obra Teoria Pura do Direito, no início do século XX, é associado à escola normativista do Direito. Em toda sua obra, Kelsen procurou imunizar o Direito de outras ciências, fazendo, pois, sua purificação. Para isso, utilizou a figura da norma fundamental, da qual todas as outras retirariam sua legitimidade. O Direito para Kelsen era, assim, descomprometido de outras visões, como a filosófica ou a moral. O segundo modelo, o “Juiz Hércules”, prioriza a resolução dos problemas. É um juiz proativo, um juiz do seu tempo, o qual não se contenta com o modo positivista de ser. Pensando sobre o Direito, a lei é apenas um dos meios para a sua missão, que é a acificação social. A jurisprudência é muito enriquecida com tal tipo de magistratura. Nesse ponto, aproxima-se do modelo da common law. Por fim, o modelo do “Juiz Hermes” seria aquele que busca o entendimento de todos envolvidos no problema para resolvê-lo. É o Magistrado que entende que um pior acordo é melhor do que uma ótima decisão judicial, visto que o acordo compromete as partes verdadeiramente, não há uma imposição externa. Por exemplo, o instituto do “amicus curiae”, previsto nas leis regedoras do controle concentrado de constitucionalidade, evidencia bem o modo de atuação do “juiz Hermes”. Constitucionalmente falando, Haberle, no texto, apresenta importantes reflexões sobre a questão de como interpretar a Carta Maior, tentando quebrar paradigmas estabelecidos, como a autoridade única do Estado em proceder à tal hermenêutica. Uma leitura conjunta da Constituição com as ciências sociais é imperiosa, na medida em que o contexto da sociedade deve influenciar no tratamento para aplicação da norma maior. O interesse público, ressalta o autor, deve ser levado em consideração para a concreção dos preceitos constitucionais. E isso somente é possível de ocorrer se a sociedade é capaz de compreender o alcance das normas lá contidas. A própria eficácia das normas constitucionais está a isso submetida. E, ao final, não sem antes desejar a opinião da comunidade sobre o exposto, com críticas e sugestões, deixamos à reflexão os quatro modos de desarranjo temporal apresentados na obra de François Ost, quais sejam, eternidade, entropia, determinismo e discronia que, contudo, têm na memória, no perdão, na promessa e no requestionamento seus quatro antídotos de retemporalização, de forma que a justa medida temporal que se procura resguardar, tanto de um tempo fixo, que não deixa margem à mudança, como de um tempo exageradamente móvel, que não deixa margem à continuidade, deve sempre ser levada em consideração pelos Juristas. Referências bibliográficas -Bruno, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1967; -Capez, Fernando. Curso de Direito Penal, vol 1., 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003; -Eleutério, Fernando. www.uepg.br . Disponível em: http://www.uepg.br/rj/a1v1at09.htm . Acesso em 01.04.2006; -Haberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre. Safe, 1997; -Ost, François. O tempo do Direito. Lisboa Piaget, 1999; -Piedade Júnior, Heitor. Direito penal parte geral – perguntas e respostas. 2ª edição. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1995; -Piscitelli, Rui Magalhães. A expressão do Direito. www.agu.gov.br . Disponível em https://redeagu.agu.gov.br/UnidadesAGU/CEAGU/revista/Ano_VI_marco_2006/ -Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos do Direito Penal, 5ª edição. São Paulo: saraiva, 1994. '
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Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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