Direito Constitucional
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Resumo A doutrina pátria apenas recentemente começa a atribuir tratamento sistemático ao tema, tanto que os tribunais, embora procedam à aplicação da cláusula, não lhe fazem referência. A utilidade do preceito é de vivificar o sistema de direitos fundamentais, permitindo o reconhecimento de outros, que as necessidades da vida social venham a exigir. A identificação de tais direitos requer uma compreensão sistemática da Constituição e o exame do conteúdo significativo do regime democrático e dos princípios constitucionais, nestes incluídos os direitos enumerados. Com esse procedimento interpretativo, poder-se-á construir novos direitos que correspondam a um sistema político fundado nos princípios da liberdade e da igualdade. O direito de abortamento do feto anencefálico, a invasão de propriedades rurais como direito de manifestação política e o direito de homossexuais de serem considerados como em união estável para reconhecimento de benefícios previdenciários são estudados a partir de decisões judiciais, bem como são indicados outros admitidos pelos tribunais e pela doutrina, tudo no sentido de demonstrar a importância do preceito em questão para a concretização do regime democrático. Abstract The present study aims to examine the meaning and the procedure to materialize the forecast of not enumerated basic rights in the Brazilian constitutional system, from the disposal of the article fifth, paragraph second, of the Constitution, that admits them as arisen from the regimen and the constitutional principles or of the international treatises signed by the Federative Republic of Brazil. The native doctrine only recently starts to confer systematic treatment to the subject, as much that the courts, even applying the clause, do not mention it. The utility of the rule is to vivify the system of basic rights, permitting the recognition of others that the necessities of the social life demand. The identification of such rights requires a systematic understanding of the Constitution and the examination of the significant content of democratic system and constitutional principles, in these enclosed the enumerated rights. With this interpretative procedure it will be possible to construct new rights that correspond to a political system established upon the principles of freedom and equality. The right of abortion of non viable fetus, the invasion of rural properties as right of political manifestation and the right of homosexuals to be considered as in steady union for social welfare benefits are studied from judicial decisions, as well as are indicated others admitted by the courts and the doctrine, everything in the direction to demonstrate the importance of the rule for the concretion of democratic regimen. KEYWORDS: Democratic system - Basic rights non enumerated: identification and importance. Sumário: 1. Direitos Fundamentais – notas caracterizadoras e evolução histórica; 2. Positivação dos direitos; 3. Os direitos fundamentais na Constituição de 1988; 4. A identificação dos direitos não enumerados; 5. Direitos decorrentes: 5.1 Direitos individuais: 5.1.1 Direito ao abortamento de feto anencefálico; 5.1.2 Direito ao sigilo bancário. 5.2 Direitos políticos: 5.2.1 Direito à iniciativa popular para emenda constitucional; 5.2.2 Invasões de propriedades rurais como direito de manifestação política. 5.3 Direitos sociais: 5.3.1 Direito à união de família; 5.3.2 Direito de homossexuais de serem tratados como em união estável para benefícios previdenciários. 6. Um preceito constitucional e uma Constituição para serem levados a sério. 7. Referências bibliográficas.
Para tanto, tratar-se-á de compendiar metodologia que permita a identificação desses direitos não enumerados. A partir disso, deixando de fora os direitos decorrentes de tratados internacionais, que merecem atenção separada, serão consideradas algumas hipóteses de importância, nas quais a cláusula de expansão foi utilizada em decisões judiciais e legislativas e na doutrina pátria. Com esses elementos práticos e teóricos, alcançar-se-á o objetivo delineado de início. Nas democráticas sociedades pluralistas contemporâneas, a Constituição pode ser visualizada como o consenso compartilhado entre as diferentes forças e segmentos sociais, quanto ao sistema de bens e valores considerado essencial para cimentar a convivência da comunidade. Ao formular o texto constitucional, o povo decide conscientemente sobre o modo de vida que deseja assumir e sobre as tradições que pretende continuar ou romper (HABERMAS, J. 1997, 131). Nele se registram as bases éticas de uma conduta de vida auto-responsável, projetada conscientemente, tanto de indivíduos como de coletividades (HABERMAS, J. 1997, 133). Entre tais princípios, sobrelevam os direitos fundamentais, como elementos indispensáveis para a autonomia moral dos seres humanos e sua participação política. Constituem-se em limites para os diversos poderes existentes no meio social, estabelecendo vedações à atuação deles, inclusive do Estado. Traçam os contornos dos espaços pertencentes aos indivíduos, imunes à intervenção do poder e dos demais cidadãos. Por outro lado, indicam iniciativas e ações a serem desenvolvidas pela entidade estatal e pelos grupos e forças sociais, com a finalidade de criar um ambiente propício à fruição dos bens neles atribuídos e para atender às necessidades concretas das pessoas, permitindo a estas condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente. Os cidadãos só se podem reconhecer como tais e, por isso, integrados em uma comunidade (SMEND, R. 1985, 231 ) ao terem proclamadas essas posições jurídicas e, em seqüência, pela concreta realização das mesmas. O substrato antropológico de tais direitos é a dignidade da pessoa humana, a fim de que cada um tenha a possibilidade de agir como sujeito, sem poder ser transformado em mero objeto para servir à consecução dos interesses dos outros. Nesse rumo, devem ser fixados, na Constituição, os elementos capazes de permitir a cada um o próprio senhorio, com o que resultará atendida a fundamental necessidade dos homens e mulheres contemporâneos de poderem desenvolver sua personalidade pelo exercício da autonomia individual (HELLER, A. 1996, 109), com a possibilidade de viverem livres, dentro de um sistema de convivência em condições de igualdade. Para o exercício de uma vida digna, além das franquias individuais – impedindo a intromissão das outras pessoas e dos poderes sociais e do Estado, na esfera própria – os indivíduos necessitam tomar parte nas decisões coletivas e na escolha dos ocupantes dos lugares previstos na direção das comunidades, seja o Estado ou os grupos pluralistas dispersos no que se convencionou chamar sociedade civil (HELLER, A. 1996, 101; GALTUNG, J. 1998, 221). Para que resulte conformada uma cidadania inclusiva, única aceitável em termos da atualidade, essas liberdades políticas e as de autonomia hão de ser distribuídas na medida da maior igualdade possível entre as pessoas, configurando cidadãos livremente iguais e igualmente livres. Com as primeiras, se assegura a participação igualitária nos processos de formação da opinião e da vontade, enquanto pelas outras é conferido o direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. (HABERMAS, J. 1997, 159-60) Na evolução histórica dos direitos fundamentais, diversos passos foram sendo preenchidos de acordo com reivindicações prevalecentes em cada período. O primeiro conjunto, o dos direitos civis, elaborado ao tempo das Revoluções Americana e Francesa, serviu como bandeira na luta contra o Absolutismo e para afastar as restrições feudais que dificultavam a atividade econômica da burguesia em ascensão (GALTUNG, J. 1998, 170). O segundo grupo enfeixa os direitos sociais, econômicos e culturais, liga-se à luta do proletariado para arredar a marginalização e a exclusão a que foi submetida a classe trabalhadora, em vista dos excessos da livre iniciativa capitalista. Os da primeira dimensão postulam uma atitude de abstenção do Estado, deixando um espaço individual imune à intervenção do Poder Público. Os da seguinte, compendiados, de início, nas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), requerem uma presença ativa na esfera social de parte do Estado, que deve assumir em vários setores a atividade econômica, no sentido de oferecer prestações materiais para suprir carências básicas dos cidadãos. Enquanto aqueles direitos miram a garantia da liberdade e da igualdade formais, os direitos sociais buscam permitir o exercício da liberdade real, assegurando, pelo menos, um patamar mínimo de igualdade de condições materiais. Na segunda metade do século XX, surge a terceira dimensão, que compreende os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente equilibrado e ao patrimônio comum da humanidade. Com estes, são ultrapassadas as fronteiras estatais, pois o seu primeiro destinatário é o próprio gênero humano, sua titularidade é difusa e postulam uma atitude solidária, a fraternidade entre os povos. Perante as pungentes diferenças materiais entre os países e a degradação ambiental causadas pela desapiedada exploração econômica dos seres humanos e da natureza (FARIÑAS DULCE, M.J. 1997, 10), intenta-se criar “um novo pólo jurídico de alforria do homem”, a ser realizado universalmente (BONAVIDES, P. 1997, 523). É suposta, ainda, a garantia dos direitos das futuras gerações de seres humanos, com a idéia de lhes transmitir um espaço físico em condições de servir efetivamente para manutenção e desenvolvimento da vida humana. Essas vagas de direitos confluem para compor um sistema de suprimento das carências básicas das pessoas, dentro de critérios de harmonia e justiça. Desde a primeira dimensão, atribuem-se também os direitos de participação política, de início restritos aos indivíduos masculinos aquinhoados com riqueza, estendendo-se depois, na maior medida possível, para facultar ao povo uma condição de soberano, ao menos no momento da escolha dos governantes. No atual milênio, pode-se falar de uma globalização política, distinta da postulada pelo pensamento neoliberal, com o trânsito para uma outra dimensão de direitos, que enfeixa aqueles relativos ao pluralismo, à informação e à democracia direta. Os direitos expressos nas dimensões anteriores formam, na imagem de Paulo Bonavides, uma pirâmide cujo ápice é a democracia direta, “materialmente possível graças aos avanços da tecnologia da comunicação” e legitimamente sustentável pela informação correta e a máxima abertura pluralista. (BONAVIDES, P. 1997, 525) Sobreleva desse caminho que os direitos são o resultado de processos e de lutas sociais, em que, em face do surgimento de novas necessidades ou da reinterpretação de outras, se postulam posições jurídicas de vantagem, cujo critério comum é identificável na “defesa da dignidade e autonomia do ser humano e [n]a luta contra qualquer tipo de dominação ou de opressão” (FARIÑAS DULCE, M.J. 1997, 6). Cabe ressaltar-lhes a historicidade, bem patenteada nas três vagas antes referidas, pelas quais, eles se põem em consonância com as realidades sociais e econômicas de cada momento histórico. (SILVA, J. A. 1999, 183) Uma Constituição democrática se assenta sobre o compromisso político e social de cumprir ideais de vida em comum voltados a realizar a dignidade dos membros da sociedade, na qualidade de pessoas humanas. Ela se apresenta como um projeto aberto a ser realizado coletivamente, e não como algo definido e acabado. Em uma coletividade pluralista e multicultural, consiste em “uma forma aberta através da qual passa a vida” (HELLER, H. 1968, 296) e que, vivendo, se desenvolve. A atual Constituição brasileira indica, desde o seu Preâmbulo, os pilares desse compromisso, formado com valores que exprimem os componentes espirituais de uma realidade pluricultural, cujo significado é, via de regra, muito abstrato, passível de ser preenchido com diversos conteúdos, em situações concretas diferentes e cuja tradução semântica é extremamente aberta, capaz de receber influxos variados, conforme as compreensões de cada corrente política e social participante do “contrato constitucional” e a evolução das idéias e da realidade. Lê-se no Preâmbulo elaborado pelos constituintes de 1988 que seu objetivo foi o de instituir um Estado Democrático, com a missão de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Esse intento de criar uma sociedade de homens livres e iguais, sob critérios de justiça, determina que os direitos necessários para cumprir essa finalidade, como exigências éticas voltadas à proteção do ser humano, sejam enumerados na Constituição. Essa positivação, com a nota de fundamentais, visa a lhes emprestar a garantia da ordem jurídica e da própria instituição estatal, as quais, ao prover meios para a concreta realização daqueles, se configuram como instrumentos a serviço dos cidadãos. Desde os alvores do constitucionalismo moderno, a idéia constitucional vem ligada à proteção dos direitos, como lapidarmente expresso no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789: “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição.” (MIRANDA, J. 1980, 59) Por isso é que, “na democracia constitucional, [os direitos] são a cristalização dos valores supremos do desenvolvimento da personalidade humana e de sua dignidade” (LOEWENSTEIN, K. 1979, 392). Pela perspectiva subjetiva, facultam aos respectivos titulares usufruir das posições jurídicas atribuídas, “quanto à própria vida, à liberdade e à igualdade, à participação política e social e a qualquer outro aspecto básico que tenha a ver com o desenvolvimento integral de sua personalidade, em uma comunidade de homens livres, podendo exigir o respeito dos demais, dos grupos sociais e do Estado, e com a possibilidade de pôr em marcha o aparelho repressivo estatal, em caso de violação do seu direito”. (PECES-BARBA, G. M. 1980, 66) Cumpre destacar que até a primeira metade do século XX, no entanto, as normas de direitos fundamentais, principalmente as referentes aos direitos sociais, eram consideradas como possuindo menor força jurídica do que as demais normas constitucionais, por dependerem da interposição do Legislador, para vincular os Poderes Executivo e Judiciário. Valorizava-se a lei, em desfavor dos preceitos constitucionais, nessa parte tidos como não exeqüíveis por si mesmos. Vale reproduzir o registro de Kelsen de que “os direitos em si podem ser apenas os que estiverem fundamentados em Direito positivo” (KELSEN, H. 1995, 259). Essa compreensão modificou-se após o término da Segunda Guerra Mundial, em resposta aos pesadelos dos regimes totalitários e autoritários. A partir da Constituição italiana de 1947, é pressuposta a eficácia jurídica de todas as normas constitucionais e a vinculação imediata, por elas, de todos os poderes do Estado e da Sociedade. Consta, por isso, no parágrafo 1º do artigo 5º da Carta de 1988, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Agora não mais se diz que esses direitos têm eficácia em função das leis, mas são estas que devem mover-se no âmbito dos direitos fundamentais. (HÄBERLE, P. 1991, 264) Por isso, atualmente, a par do prisma subjetivo, ressalta, nessa viragem de compreensão, o aspecto objetivo dos direitos fundamentais, considerados com a qualidade de princípios básicos de todo o sistema jurídico, uma vez que “são parte do sistema axiológico positivado pela Constituição” e, por isso mesmo, constituem os fundamentos materiais da ordem jurídica. (FERNANDEZ SEGADO, F. 1991, 201) Com a sua inserção no texto constitucional, esses objetos éticos desvestem-se do caráter axiológico, assumem a condição normativa, com qualidade deontológica, saem do mundo ideal para o do dever ser e ocupam a posição de princípios da ordem jurídica pretendida pela Constituição. Via de regra, os princípios constitucionais, e também entre eles os direitos fundamentais, são positivados em enunciados abstratos, vagos e indeterminados quanto às condições de sua aplicação, exigindo concretização por parte do Legislador ou do Juiz. Por motivo de sua proximidade com os ideais antes referidos, servem como fundamentos para outras normas, isto é, “são normas que estão na base ou constituem a razão de outras normas jurídicas”, desempenhando uma função jus geradora. (CANOTILHO, J.J.G. 1998, 1043-5) 3. Os direitos fundamentais na Constituição de 1988 A Constituição de 1988 possui um amplo catálogo de direitos fundamentais, constante do seu Título II, denominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, sendo ali mencionados, sucessivamente, os Direitos Individuais e Coletivos (Capítulo I), os Direitos Sociais (Capítulo II), os Direitos de Nacionalidade (Capítulo III) e os Direitos Políticos (Capítulo IV). Além destes, outros são arrolados no restante do texto constitucional. Para exemplificar, pode-se apontar o direito de acesso aos cargos públicos (artigo 37, incisos I a V) e o direito ao meio ambiente equilibrado (artigo 225). De referir, ainda, disposições constantes do Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) e, especialmente, do “Título VIII – Da Ordem Social, onde se localizam conteúdos dos direitos sociais referidos no Capítulo II do Título II (art. 6º).” (SILVA, J. A. 1999, 175) O Constituinte não procedeu a uma separação entre os direitos e as garantias deles, “ocorrendo não raro juntar-se na mesma disposição constitucional (...) a fixação da garantia, com a declaração do direito” (BARBOSA, R. 1978, 124). Algumas vezes, o enunciado constitucional menciona a garantia, tão-somente, como no inciso II do artigo 5º, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, permanecendo subentendido o direito, no caso, o da “liberdade de ação geral” (SILVA, J.A. 1999, 415). No mesmo rumo, as vedações ao poder de tributar, expressas no artigo 150, sob a roupagem de “garantias asseguradas ao contribuinte”. Entre elas, v.g., a proibição de instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão, que se traduz no direito dos cidadãos em não pagarem impostos sobre esses bens. Nesses casos, o direito não é explicitamente enunciado, mas, da referência constitucional à garantia, se infere, imediatamente, o conteúdo daquele, sem a necessidade de qualquer esforço interpretativo. A Constituição enuncia, portanto, direitos fundamentais – de forma direta e, além disso, de modo implícito, como José Afonso da Silva designa essa última hipótese, por virem subentendidos nas normas de garantia (SILVA, J. A. 1999, 197). Estes, como os outros referidos no Título II e os restantes dispersos no texto, são todos formalmente constitucionais, cabendo, em relação aos últimos, a observação de constarem fora do respectivo catálogo, por isso, no dizer de Canotilho, “vulgarmente chamados direitos fundamentais formalmente constitucionais mas fora do catálogo”. (CANOTILHO, J.J.G. 1998, 370) Para além desses direitos expressos, o artigo 5º, parágrafo 2º, da Carta de 1988 admite a existência de outros, não enumerados, como consignado nesse dispositivo: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Desde a Constituição de 1891, consta a possibilidade de expansão dos direitos fundamentais. Naquela e na de 1934 é feita menção a “direitos resultantes”, expressão que, a partir de 1934, é substituída por “direitos decorrentes”. A abertura para os tratados e convenções internacionais surge em 1988, e agora, após a Emenda nº 45, de oito de dezembro de 2004, aqueles “aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. O tratamento dessa cláusula de abertura, por parte dos autores pátrios, não é, em regra, aprofundado. Há quem estime inútil a autorização, em face da amplitude dos direitos formalmente enumerados (FERREIRA FILHO, M.G. 2002, 100). Desde os comentários de Pontes de Miranda à Constituição de 1946 (MIRANDA, F.C.P. 1963, 415), é tida como problemática a identificação de tais direitos decorrentes do regime e dos princípios constitucionais. Ingo Wolfgang Sarlet produziu alentado estudo teórico acerca do assunto, em que cuidou construir um conceito material de direitos fundamentais, mas também não procedeu a uma pesquisa de hipóteses da aplicação da cláusula aberta sob exame (SARLET, I.W. 1998, 81-137). David Wilson de Abreu Pardo, em trabalho ainda não publicado, elaborou sofisticada argumentação sobre a justificação e aplicação dos direitos não enumerados, a partir da teoria do discurso, e identificou algumas hipóteses na jurisprudência. (PARDO, D. W. A. 2005) Os tribunais, embora façam, por vezes, aplicação do preceito, a ele não se referem nessas oportunidades. A demonstrar o desinteresse de elaboração sistemática da matéria, vale observar que julgado do Supremo Tribunal Federal confundiu a autorização para ampliar o rol com a localização fora do catálogo dos direitos fundamentais. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939 – DF, a propósito da cobrança do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, no mesmo exercício da instituição pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993, o Relator considerou estar incluída entre as cláusulas pétreas, “pela extensão contida no parágrafo 2º do art. 5º e pela especificação feita no art. 150, III, b, a garantia ao contribuinte de que a União não criará nem cobrará tributos, “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. (Revista Trimestral de Jurisprudência, 151, 811) De qualquer sorte, é possível oferecer, desde logo, uma classificação dos direitos fundamentais, sob o ponto de vista de sua pertença ou não à Constituição formal. Tem-se então, no direito brasileiro: 1. Direitos enumerados (ou expressos) diretamente; 2. Direitos implícitos ou enumerados indiretamente (ou implicitamente expressos) nas formulações de garantias. Cada uma dessas espécies se subdivide, conforme a localização, em [a] constantes do catálogo, por figurarem no rol do título II (catálogo de direitos), e [b] de fora do catálogo, por estarem esparsos pelo restante do texto constitucional. A terceira categoria, dos direitos não enumerados, permitidos pela cláusula de abertura do parágrafo 2º, compõe-se dos grupos seguintes: 3.1. Direitos não enumerados decorrentes do regime e dos princípios adotados na Constituição, considerados aí também incluídos, na categoria de princípios, os direitos expressos, pois positivados em normas de princípios, consoante antes explicitado. 3.2. Direitos não enumerados decorrentes dos tratados e convenções internacionais, subdivididos em: 3.2.1. Direitos decorrentes de tratados e convenções internacionais aprovados como emendas constitucionais; 3.2.2. Direitos decorrentes de tratados e convenções internacionais não aprovados como emendas constitucionais. É possível adiantar que o mandamento sob análise tem a importante finalidade de servir para vivificar o sistema constitucional de direitos fundamentais, tornando-o efetivamente aberto. A cláusula, “evidentemente, quis ensejar o reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir” (JACQUES, P. 1958, 387). Pontes de Miranda apontou, ainda, como conseqüência, a “de refugar-se, a respeito de direitos e garantias, o princípio da interpretação das leis Inclusio unius alterius est exclusio”. (MIRANDA, F.C.P. 1963, 412) A localização do parágrafo, no artigo 5º, que lista direitos e garantias individuais, não restringe a abertura permitida somente para as normas dessa categoria. O enunciado do texto, “direitos e garantias expressos nesta Constituição”, espanca quaisquer dúvidas sobre a abrangência da autorização, estendendo-se a direitos sociais, coletivos, difusos, políticos e de nacionalidade. Essa opinião exsurge como entendimento pacificado na doutrina pátria, conforme observação de I.W. Sarlet (SARLET, I.W. 1998, 86-87). A menção no artigo 7º, caput, de que, além dos direitos sociais dos trabalhadores, “outros que visem à melhoria de sua condição social” lhes poderão ser atribuídos reforça a conclusão de que as listas de direitos constantes da Constituição formal são exemplificativas e sua expansão, por se referir a Carta a um sistema de vida, é disto conseqüência inexorável. Em Portugal, cuja Constituição adotou preceito semelhante, parte importante dos autores acolheu a compreensão de que a abertura vale não só para os direitos individuais, mas igualmente em relação aos demais. Nesse sentido se pronunciou Canotilho (CANOTILHO, J.J.G. 1998, 370) e também Jorge Miranda assim: “Em nosso entender, porque vivemos não em Estado liberal, mas sim em Estado social de Direito, os direitos econômicos, sociais e culturais (ou os direitos que neles se compreendam) podem e devem ser crescentemente dilatados ou acrescentados para além dos que se encontrem declarados em certo momento histórico – precisamente à medida que a solidariedade, a promoção das pessoas, a consciência da necessidade de correção de desigualdades vão crescendo e penetrando na vida jurídica.” (MIRANDA, J. 1993, 154-155) Por outra parte, identificados direitos fundamentais não enumerados, o seu regime jurídico será o mesmo dos direitos expressos. Sua aplicabilidade, portanto, será imediata, com vinculação a todos os Poderes do Estado e da Sociedade, assegurando-se sua permanência, protegidos de abolição por emenda constitucional, nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Lei Magna. O problema mais difícil, no entanto, cujo equacionamento se passa a esboçar, é o de “saber como distinguir, dentre os direitos sem assento constitucional, aqueles com dignidade suficiente para serem considerados fundamentais” (MIRANDA, J. 1993, 369), ou seja, de que modo poderão ser identificados os direitos não enumerados, aqueles de fora da Constituição formal e com a exclusiva qualificação de materialmente fundamentais. 4. A identificação dos direitos não enumerados A menção a direitos não enumerados surgiu, por primeira vez, na América do Norte, por ocasião da Nona Emenda, na qual se lê que “a enumeração, na Constituição, de certos direitos, não deve ser utilizada para destruir ou amesquinhar outros direitos pertencentes ao povo”. Esse preceito foi introduzido por sugestão de James Madison, em resposta aos argumentos de Hamilton e outros, de que os direitos não especificados teriam sido deixados ao alvedrio do governo central e, por esse motivo, estariam inseguros. (TRIBE, L. H. 1988, 774) Para Kelsen, “do ponto de vista do Direito positivo, o efeito dessa cláusula é autorizar os órgãos do Estado que têm de executar a constituição, especialmente os tribunais, a estipular outros direitos que não os estabelecidos pelo texto da constituição” (KELSEN, H. 1995, 260). A afirmação permite resolver o questionamento acerca da competência para desenvolver os direitos não enumerados, cabível, pois, para todos os poderes estatais e, especialmente, para o Judiciário. A dificuldade, como já assinalado, está na maneira de proceder a essa identificação. Na Corte Suprema dos Estados Unidos, o Juiz Douglas, expondo a opinião majoritária no Tribunal, por ocasião do julgamento do processo Griswold vs. Connecticut, declarou que “as garantias especificadas na Declaração de Direitos possuem penumbras formadas por emanações dessas garantias que ajudam a lhes dar vida e substância” (Griswold vs. Connecticut 381 U.S. 479). A lição a ser retirada desse pronunciamento é de que os direitos enumerados possuem zonas cinzentas de significação, a partir das quais será possível avançar na busca de outras aplicações, formulando outros direitos. Ora, a fim de alcançar êxito nessa tarefa é necessário partir de uma compreensão daquilo a que se referiu a cláusula de abertura do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição. Princípios (neles compreendidos os direitos enumerados) e regime adotados consubstanciam o projeto político pensado para o País e a idéia de Direito a ser nele desenvolvida. É a Constituição material que exige a prossecução e concretização dessas opções fundamentais, “algumas vezes para além da própria Constituição escrita”. (CANOTILHO, J.J.G. 1998, 1014). A remissão aos princípios adotados indica as matrizes normativas do sistema jurídico e político da Constituição, com o significado e as virtualidades próprias dessa espécie de norma, anteriormente explicitadas. Há de se compreender, dentro dessa categoria, todos os direitos e as garantias enumerados e os demais princípios constitucionais. De afastar, nesse ponto, entendimento restritivo (SARLET 1998, 96), de caber a referência, tão-somente aos princípios fundamentais do Título I e aos direitos enunciados no catálogo. Todos os princípios e direitos consignados na Carta de 1988 podem ser utilizados para vivificá-la, descabendo restringir o que o Constituinte expressou em termos amplos e compreensivos da materialidade mencionada. A circunstância de que em outros passos do texto magno existem muitos princípios, por vezes setoriais (p.e., da Administração Pública, da Tributação, do Poder Judiciário, da Ordem Econômica e Financeira e da Ordem Social), não os inferioriza frente aos denominados de fundamentais, até porque, em alguns casos, são desenvolvimento e especificação destes. Por outra parte, a Constituição é uma unidade lógica e axiológica, sendo incongruente desestimar normas dela constantes, perante outras que também lhe pertencem. Discorrendo sobre o problema da constatação de direitos não enumerados, Ronald Dworkin referiu-se a três precedentes da Corte Suprema Norte-Americana. O primeiro foi o que considerou a queima da bandeira do País, em protesto político, como direito não enumerado existente na penumbra da liberdade de expressão. O outro foi o relativo à permissão para a mulher abortar, até o final do segundo trimestre da gravidez, tido como decorrente das cláusulas da liberdade ordenada e da privacidade. Por fim, o direito da mulher em não ser discriminada por motivo de gênero, estabelecido a partir do princípio da igual proteção dos cidadãos. Para esse autor, o reconhecimento desses direitos resulta da interpretação dos princípios que conformam o ideal político da Constituição americana. Embora os direitos reconhecidos nesses casos aparentem distâncias diferentes com aquilo que está consignado no texto constitucional, nenhum deles decorre imediatamente do significado das palavras da Constituição, mas são interpretativamente construídos e correspondem a um sistema político fundado em princípios de liberdade e igualdade, e a sua acolhida “é a que melhor conta para estrutura geral e a história do direito constitucional”. (DWORKIN, R. 1998, 79) A fim de ilustrar sua argumentação, esse autor comparou a questão da maior ou menor proximidade dos direitos não enumerados no texto constitucional com norma proibitiva do embarque em aviões de pessoas portadoras de armas. Nesta expressão, pode-se concluir, sem maior esforço, estarem incluídas as pistolas. Já o mesmo parece não caber para tubos de lança-perfumes ou de gás lacrimogêneo. No entanto, ao considerar que tais instrumentos poderiam servir com eficiência para um terrorista, torna-se certo tê-los como abrangidos na proibição, porque sua inclusão resulta da correta interpretação do enunciado normativo. O tema dos direitos, assinalou o jurista, é idêntico ao das armas não enumeradas, ou seja, a chave para a aplicação dos princípios constitucionais não é a da referência e, sim, a da interpretação, compreendida a Constituição como um ideal de convivência a partir dos direitos de liberdade e de igualdade. Portanto, perante uma situação em que se discuta a existência de um direito fundamental não enumerado, é preciso interpretar as normas de princípios a serem consideradas e, se for o caso, as relativas ao regime, a fim de constatar a dimensão da zona cinzenta nelas presente e elaborar o preceito capaz de suprir a lacuna. A natureza fundamental desse direito assim revelado há de ser argumentativamente demonstrada, pela sua compatibilidade ao sistema de direitos existente e à própria Constituição material, cujo pressuposto antropológico é a dignidade da pessoa humana, a ser realizada em uma sociedade de pessoas livres e iguais, em um Estado de Direito, organizado sob regime de Democracia Social. O resultado deve ser compatível com o texto constitucional como um todo, pois qualquer interpretação deve ser sistemática. Ademais, as tradições do país e a jurisprudência dos tribunais, em especial do guardião da Constituição, hão de ser observadas, para não produzir espécie anômala ao sistema constitucional e de direitos. No trabalho interpretativo, mister examinar não apenas o texto, mas também o contexto, a realidade social em que aquele se insere. As expressões semânticas lançadas na Constituição, já foi consignado, são vagas e abertas, sendo possível adequá-las à evolução do sistema cultural, dos conhecimentos técnicos e científicos e às diferentes compreensões dos cidadãos. Os argumentos decisivos e as normas elaboradas devem poder ser aceitos, em princípio, por todos os membros da sociedade. Na lição de Habermas, “[a]ntagonismos de interesses necessitam de um ajuste racional entre interesses e enfoques axiológicos concorrentes” (HABERMAS, J. 1997, 143). Para tanto, é necessário efetuar a apreciação imparcial de todos os pontos de vista oferecidos sobre a questão controvertida, promovendo correto balanceamento entre as concepções e as necessidades presentes na situação de fato. Os direitos construídos têm de possuir a característica da generalização, permitindo sua aplicação em hipóteses similares, que venham a ocorrer no futuro. Cumpre não esquecer que os direitos fundamentais visam à proteção do ser humano e ao atendimento às suas necessidades básicas, integrando-se nessa categoria aquelas situações cuja não satisfação pode ocasionar, segundo Johan Galtung (apud LUCAS, J. e AÑON, M. J. 1990, 57), “a destruição, a desintegração ou a não existência do ser humano”. Em conseqüência, ao construir direitos, será indispensável examinar qual a exigência humana subjacente e verificar se pode ser juridicamente satisfeita. Desde logo, os meros desejos, pela sua subjetividade, devem ser descartados. Para considerar uma necessidade humana como básica, é preciso evidenciar que seu desatendimento provocaria um dano ou prejuízo ao desenvolvimento ou à sobrevivência do ser humano. Há que produzir, então, “boas razões” capazes de sustentar objetivamente o novo direito e permitir sua aceitação universal. (LUCAS, J., AÑON, M. J. 1990, 78-81) Tendo em conta que os direitos fundamentais assentam no desenvolvimento multilateral e consciente das necessidades humanas que emergem da experiência concreta da vida prática, é preciso realizar uma verificação da práxis social, na qual os valores éticos e jurídicos surgem e se desenvolvem como respostas àquelas necessidades. Estas, vinculadas à experiência histórica e social dos homens, apresentam, por isso mesmo, uma objetividade e uma universalidade que possibilitam a generalização das soluções jurídicas, através do debate racional capaz de sustentar um consenso lastreado em postulados axiológicos e materiais. (PÉREZ LUÑO, A. E. 1999, 182) Depois de identificarem um direito não enumerado, os órgãos judiciais encarregados de aplicá-lo devem fazê-lo diretamente, sempre que possível, de acordo com o determinado pelo parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição. Se for imprescindível, terão de utilizar preceitos já constantes do ordenamento jurídico, mediante aplicação analógica ou interpretação extensiva. De recordar as hipóteses do mandado de injunção e do habeas data, para os quais o Supremo Tribunal Federal entendeu aplicáveis, sob o aspecto processual, as normas relativas ao mandado de segurança. (Revista Trimestral de Jurisprudência 133, 11) Do ponto de vista da prática jurisdicional, cabe ressaltar a importância da correta identificação da efetiva natureza fundamental desses direitos assim revelados, para permitir o endereçamento de ações ou de recursos ao Supremo Tribunal Federal, ao qual incumbe, precipuamente, a guarda da Constituição e, conseqüentemente, dos direitos decorrentes. Aplicando a metodologia exposta, embora de forma simplificada, passa-se a apontar hipóteses de tais direitos no sistema brasileiro, algumas já consagradas em normas legais, outras admitidas pelo Poder Judiciário e outras sugeridas a partir de considerações e propostas oferecidas pela doutrina pátria. Cuidar-se-á de hipóteses de direitos individuais, de direitos políticos e de direitos sociais. 5. Direitos decorrentes 5.1 Direitos individuais 5.1.1 Direito ao abortamento de feto anencefálico Perante o Supremo Tribunal Federal, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde intentou a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, postulando interpretação conforme a Constituição de dispositivos do Código Penal que tipificam o crime de aborto, para reconhecer o direito subjetivo de gestante a submeter-se a intervenção médica para antecipação do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, para o qual é absolutamente inviável a vida extra-uterina. Segundo a promovente, as mencionadas regras penais ofenderiam os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, inciso II) e o direito à saúde (artigos 6º e 126). A matéria foi objeto de decisão cautelar autorizando a interrupção da gravidez, ao depois cassada pelo Colegiado, que, no entanto, admitiu deva o Tribunal manifestar-se sobre o mérito. Por ocasião do pronunciamento cautelar, foi destacado o seguinte: “Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar –, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social.” (Supremo Tribunal Federal, ADPF 54) A questão suscita apaixonada discussão no País, mormente pela defesa intransigente dos que, a partir de posições de crenças religiosas, afirmam a intangibilidade da vida humana, considerando-a sagrada. Em sentido contrário é assinalado que, ao tempo da elaboração do Código Penal, a ciência médica não dispunha de recursos técnicos para um diagnóstico seguro da inviabilidade fetal em casos que tais. Atualmente, dizem estes, constatada a ocorrência, apresenta-se desumano obrigar a mulher grávida a cumprir todo o período gestacional, sabedora da inutilidade absoluta dessa carga, ainda mais pela possibilidade de complicações resultantes dessa gravidez. A dignidade da pessoa humana, argumenta-se, implica possa a gestante, de acordo com a sua responsabilidade moral, tomar decisões sobre seu próprio corpo, porque a tanto convém o princípio da liberdade individual, na sua versão de autonomia da vontade. Sob o ponto de vista do Estado laico, como é o brasileiro, é certo que não compete a qualquer pessoa ou grupo impor, aos demais, as suas convicções religiosas. O princípio do pluralismo exige a tolerância com as concepções divergentes. Restaria legítima a tipificação do abortamento como crime apenas se houvesse direito de outrem a ser protegido ou se fosse caso de proteger a vida humana como valor intrínseco. O feto anencéfalo, porém, é inviável e só possui existência enquanto ligado à mãe, sendo absolutamente insensível, por ausência do cérebro. Descabe considerá-lo como dotado de interesses próprios, pois não tem consciência e nunca assumirá a condição de pessoa. De afastar, por essa mesma razão, se esteja na presença de situação fática em que se deva preservar a vida em si mesma. Quanto a esse aspecto, a permissão legal para a interrupção de gravidez resultante de estupro significa que o ordenamento pátrio não adotou a idéia de que toda possibilidade vital merece ser assegurada. É possível argumentar que, como sucede a propósito de obras de arte e de espécies animais em extinção, o Estado pode limitar direitos de cidadãos, embora aquelas e estes não possuam interesses próprios. Por extensão, seria correto entender possível de resguardar a existência do feto anencéfalo. A objeção, no entanto, é descartada, ao se observar que as limitações em prol do patrimônio artístico e natural são muito menos sérias do que as sofridas pela mulher que tenha de levar a cabo uma gestação indesejada. Na lição de Dworkin, “[u]ma mulher que é forçada por sua comunidade a levar a termo uma gravidez que ela não deseja não está mais no governo do seu próprio corpo, mas sofre de parcial escravização, de uma privação de liberdade muito mais séria do que algum prejuízo que os cidadãos precisem suportar para proteger tesouros culturais e salvar espécies ameaçadas” (DWORKIN, R. 1998, 98). O feto anencéfalo, outrossim, em nada se compara aos bens protegidos como patrimônio artístico ou ambiental, porque, enquanto estes são dotados de importância própria, aquele não possui nenhuma virtualidade, é-lhe impossível alcançar a vida como ser humano, sendo absolutamente inservível. É preciso reconhecer que a imposição da gravidez, nas condições descritas na lide constitucional mencionada, contraria os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, a ela umbilicalmente ligada. O direito à saúde – física e psíquica – e ainda o direito à vida privada – artigo 5º, inciso X, da Constituição – postulam em favor da pretensão formulada na ADPF. Os resultados da gestação em pauta são certamente aptos a causar danos de monta para a integridade da mulher grávida. No processo perante o Supremo Tribunal, serão ouvidas pessoas e entidades capazes de trazer importantes considerações, para sustentar uma e outra posição. Os julgadores terão panorama completo de todos os pontos de vista importantes a respeito. No presente estudo, embora a discussão tenha sido feita com base nos dados até agora existentes, parece estar convenientemente justificada a elaboração de uma norma de direito fundamental não enumerado, baseada nos princípios já indicados, autorizando a mulher grávida de feto anencéfalo a decidir, por sua resolução pessoal, se prossegue com a gravidez ou se a interrompe antecipadamente. 5.1.2 Direito ao sigilo bancário A Lei nº 4.595, de 1964, instituiu, em seu artigo 38, o sigilo relativamente aos registros bancários dos clientes das instituições financeiras. A Constituição omitiu-se em reconhecê-lo expressamente, referindo-se, no artigo 5º, inciso XII, aos sigilos de correspondência, de comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas e, no inciso XIV, ao da fonte dos profissionais de informação. Aquelas hipóteses do inciso XII apresentam-se como especificações do direito à inviolabilidade da vida privada, estipulado no inciso X daquele artigo: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, [...]”. Esse preceito consagra em prol das pessoas a pertinência de um espaço indevassável destinado a protegê-las contra não desejadas intromissões de terceiros, inclusive do Poder Público, nesse âmbito de suas vidas. A relevância dessa proteção exsurge bem visível porque, desde os romanos, “não possuir um lugar próprio e privado (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano” (ARENDT, H. 1981, 74). Ninguém pode ser considerado realmente livre se não dispuser desse espaço inviolável de sua privacidade. Hannah Arendt, em seu estudo sobre o fenômeno totalitário, mostra que este exige, dada a ubiqüidade do seu processo de dominação, o desenraizamento dos homens, com a desagregação da sua vida privada e a conseqüente destruição das suas ramificações sociais e a frustração de suas capacidades políticas de ação e de poder. “Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros”. Os indivíduos desarraigados, pela lógica da dominação total, se tornam supérfluos, ou seja, “não pertence[m] ao mundo de forma alguma”. (ARENDT, H. 1978, 588-589) A preservação da intimidade e da vida privada revela-se como necessidade essencial para o homem. As normas que oferecem essa proteção no texto constitucional, complementadas pela inviolabilidade da casa do indivíduo (inciso XI), implicam assegurar o direito de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que diz com o modo de vida privada. Nessa compreensão, o sigilo bancário é decorrência, faz parte dessa estrutura de proteção, que ficaria incompleta se não o alcançasse. A sua inclusão nessa esfera personalíssima é projeção dessa garantia que se completa ao abranger a intimidade financeira das pessoas, uma das importantes dimensões da vida privada. A conclusão é majoritariamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal, com a nota de não se tratar de direito absoluto, podendo ocorrer a quebra do segredo, na presença de fundadas razões para autorizá-la. No julgamento do Mandado de Segurança nº 21.279 – DF, entre outras manifestações dos juízes daquela Corte, nesse sentido, colhe-se do voto do Ministro Celso de Mello o seguinte (Revista Trimestral de Jurisprudência, 179, 242-243): “Tenho insistentemente salientado [...] que a tutela jurídica da intimidade constitui – qualquer que seja a dimensão em que se projete – uma das expressões mais significativas em que se pluralizam os direitos da personalidade. Trata-se de um valor constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, X), cuja proteção normativa busca erigir e reservar, sempre em favor do indivíduo – e contra a ação expansiva do arbítrio do Poder Público –, uma esfera de autonomia intangível e indevassável pela atividade desenvolvida pelo aparelho de Estado. O magistério doutrinário, bem por isso, tem acentuado que o sigilo bancário – que possui extração constitucional – reflete, na concreção do seu alcance, um direito fundamental da personalidade, expondo-se, em conseqüência, à proteção jurídica a ele dispensada pelo ordenamento positivo do Estado.” Com o reconhecimento da natureza fundamental do direito ao sigilo bancário, resta preenchida, nessa parte, a zona cinzenta da proteção constitucional à vida privada. A massa de precedentes jurisdicionais e as manifestações da doutrina reforçam a justificativa da natureza fundamental desse direito não enumerado. 5.2 Direitos políticos 5.2.1 Direito à iniciativa popular para emenda constitucional O regime adotado na Constituição de 1988 é o da democracia, assentada, segundo o artigo 1º, inciso I e parágrafo único, na soberania popular, segundo a qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente. Cuida-se, pois, de democracia representativa, mas a Lei Magna prevê, por outro lado, a participação popular direta na formação de atos de governo e de controle da Administração. Coexistem, assim, o princípio representativo, consubstanciado nas eleições, e o participativo, ligado aos mecanismos de manifestação direta da vontade do povo, especialmente, a iniciativa popular, o plebiscito, o referendo e a ação popular. Comparada com as Constituições anteriores, a de 1988 ampliou o conceito de povo, ao estender o direito de voto aos analfabetos e a menores entre 16 e 18 anos, e, por igual, instituiu outras modalidades além das já apontadas para a participação popular direta. Vale indicar a permissão do artigo 10 para que trabalhadores e empregadores tomem parte em colegiados de órgãos públicos, em que sejam discutidos interesses profissionais ou previdenciários. Ainda, a gestão da Seguridade Social partilhada entre aposentados, trabalhadores, empregadores e Governo, instituída no inciso VII do parágrafo único do artigo 194. De listar, ademais, os dispositivos dos artigos 31, § 3º, 37, § 3º , 74, § 2º, e 206, VI, este último determinando a gestão democrática do ensino público. De tudo isso, se pode inferir que a Constituição pretendeu efetivamente ampliar o exercício da soberania pelo povo, pelo que a excogitação de outras formas de participação direta não pode ser excluída, lembrando-se, a propósito, os orçamentos participativos, adotados, com excelentes resultados, em vários municípios do país, e, em matéria ambiental, a publicidade dos relatórios de impacto ambiental, prevista no artigo 225, inciso IV. É razoável defender a compreensão de que o aumento das formas de participação popular convém ao Estado criado pela Constituição de 1988. Em atendimento ao preceituado no parágrafo 2º do artigo 5º, pode se proceder ao estabelecimento de novos direitos políticos, como reforço ao princípio fundamental do artigo 1º, inciso I. A idéia contemporânea de democracia participativa, defendida por autores do porte de Paulo Bonavides, propõe apartar-se da democracia representativa e, com a adoção daquela, fazer “do cidadão-povo a medula da legitimidade de todo o sistema” (BONAVIDES, P. 2001, 35). A partir desse enfoque, o ilustre constitucionalista pátrio propugnou pela constitucionalidade de lei municipal de Fortaleza – Ceará, que, na falta de legislação federal exigida pelo artigo 14 da Constituição do Brasil, regulou os institutos de democracia semidireta no âmbito daquela Capital. A seu ver, ocorria, naquela situação, inconstitucionalidade material pela omissão legislativa então existente. Assinalou que entendimento contrário ao por ele propugnado seria contrário a todo o avanço da soberania popular, de modo especial para com os arts. 1º e 14 da Lei Maior, “cujo objetivo – sublinhou – é, sem dúvida, implantar em nosso sistema constitucional uma nova dimensão de legitimidade: aquela em que o povo assume a regência direta do poder num determinado espaço de soberania”. (BONAVIDES, P. 2001, 137) Por outro lado, a crise da democracia representativa faz parte da crise dos Estados nacionais, em face de fenômenos como a globalização e o pluralismo. A fórmula da representação resulta insuficiente para dar resposta aos problemas político-sociais surgidos na atualidade. A capacidade operativa dos parlamentos não atende convenientemente às exigências da comunidade. É que eles não refletem realmente as múltiplas correntes pluralistas inseridas no meio social e não representam efetivamente a totalidade da soberania (FARIÑAS DULCE, M.J. 1997, 46-47). Assinale-se, ainda, em nosso país, a ineficiência funcional do Congresso, a permitir ao Presidente da República a multiplicação das medidas provisórias com força de lei, bem ainda a ocorrência comum de trocas de partidos pelos representantes e a suspeita de haver pagamentos a parlamentares para apoiar o Governo em votações legislativas. A legitimidade da instituição parlamentar se afigura bastante reduzida no Brasil. Se a quarta geração de direitos indica como seu alvo a democracia direta, a ser alcançada neste terceiro milênio, é indispensável que se usem as aberturas do sistema constitucional para acelerar essa transição. Para isso, cumpre criar novos direitos de participação democrática, dentro dos espaços estruturalmente abertos naqueles expressos. O artigo 61, § 2º, da Constituição regula a iniciativa popular, em virtude da qual é possível “a apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Como se vê, o instituto não foi estendido, sem haver justificativa plausível, ao campo constitucional. Por que motivo o povo tem o direito de propor a elaboração de leis e não pode fazer o mesmo acerca de emendas constitucionais? A lacuna merece preenchimento pela elaboração de direito não enumerado, nesse ponto, o que é coerente com o reforço constitucionalmente autorizado da participação direta dos cidadãos. Como expõe José Afonso da Silva, essa atribuição aos eleitores resulta da interpretação sistemática do texto constitucional, podendo esse tipo de iniciativa popular “vir a ser aplicado com base em normas gerais e princípios fundamentais da Constituição” (SILVA, J. A. 1999, 66), embora saliente que “ele não está especificamente estabelecido para emendas constitucionais como o está para as leis (art. 61, § 2º)”. A essa observação, calha recordar a resposta de Dworkin: a questão dos direitos não enumerados não é de referência, mas de interpretação. A melhor hermenêutica do texto da lei magna autoriza ampliar a iniciativa popular, em reforço da participação do povo, postulada nos princípios já citados. O desencanto com as Casas de Representantes modula necessidade básica dos cidadãos em oferecer suplementos às deficiências de atuação daqueles órgãos representativos. Fica justificada a elaboração de direito político de iniciativa popular de emenda constitucional, como sugerido por José Afonso da Silva. Na atual conjuntura, em que vários congressistas são suspeitos de corrupção e existe desconfiança, fundada em ocorrências anteriores, de que as comissões parlamentares que investigam essas denúncias talvez venham a abafar o escândalo ou, pelo menos, a reduzir as punições a um pequeno grupo, deixando outros culpados indenes, oferece-se como necessidade importante, a impetrar um novo direito, a de assegurar a punição aos corruptos e corruptores, desvestindo-os de seus mandatos pela conduta incompatível com o decoro parlamentar – artigo 55, inciso II. Seria o recall, revogação de mandato conhecida no direito norte-americano, a suprir o espaço cinzento deixado pelos princípios constitucionais. Se, em face desse último dispositivo mencionado, o povo tem o direito de ser representado por congressistas decentes, afigura-se uma boa conclusão a de que, falhando os órgãos congressuais, cumpre ouvir o eleitorado, para que, em eleição negativa, decida acerca da continuidade do mandato de parlamentares sobre os quais existam fundados indícios de corrupção. O movimento social denominado Movimento dos Sem Terra (MST) vem, há algum tempo, realizando invasões em propriedades rurais e prédios públicos, como instrumento para pressionar o Governo a apressar a Reforma Agrária prometida nos artigos 184 e seguintes da Carta de 1988. Em algumas ocasiões, os seus membros foram presos, acusados de, assim procedendo, praticarem infrações penais. Um desses processos resultou em habeas corpus julgado em 1996, pelo Superior Tribunal de Justiça, cujo acórdão traz, na ementa, a seguinte afirmação: “[...] Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático.” (Superior Tribunal de Justiça, Habeas corpus nº 5.574/SP) Na explicitação de suas razões o ilustre Relator, Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, ressaltou: “A Constituição da República dedica o Capítulo III, do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público subjetivo de exigência de sua concretização. Na ampla arca dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais. [...] A postulação da reforma agrária [...] não pode ser confundida com o esbulho possessório ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. [...] As evidências estão a mostrar que não se trata de movimento para tomar propriedade alheia, mas de movimento para pressionar [...] a reforma agrária [e, portanto, expressão do direito de cidadania].” A decisão em tela considerou que, a partir do princípio da cidadania, expresso no artigo 1º, inciso II, da Carta de 1988, decorre o direito de pressionar o governo a cumprir com mais celeridade as promessas constitucionais. A suposta violação da lei penal, na ótica do acórdão, inexistiu, por se tratar de atividade em consonância com o Direito. Em data posterior, o Presidente da República editou a medida provisória de número 2.183-56/01, na qual determinou que imóveis rurais invadidos por movimentos sociais envolvidos em conflitos agrários e fundiários só poderão ser vistoriados para fins de reforma agrária após dois anos da desocupação da propriedade. Contra essa norma, o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) ajuizaram perante o Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade, de número 2.213. Em acórdão publicado em 23 de abril de 2004, denegando medida cautelar requerida pelos promoventes, o Relator, Ministro Celso de Mello, após destacar a ilicitude das invasões, acentuou: “A necessidade de respeito ao império da lei e a possibilidade de invocação da tutela jurisdicional do Estado – que constituem valores essenciais em uma sociedade democrática, estruturada sob a égide do princípio da liberdade – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, além de significar o veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação derive do intuito deliberado de praticar gestos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão de propriedade alheia e de desrespeito à autoridade das leis da República.” Mais adiante, afirmou o magistrado: “Não é lícito ao Estado aceitar, passivamente, a imposição, por qualquer entidade ou movimento social organizado, de uma agenda político-social, quando caracterizada por práticas ilegítimas de invasão de propriedades rurais, em desafio inaceitável à integridade e à autoridade da ordem jurídica.” (Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.213-0 – Distrito Federal). À primeira vista, transparece existir aguda contrariedade entre os dois julgados em referência. No entanto, é possível superá-la, a partir da identificação da desobediência civil como direito decorrente do regime de Estado Social Democrático de Direito previsto na Constituição. Nesse tipo de Estado, convivem, necessariamente, os direitos da liberdade, os direitos políticos e os direitos sociais. Aqueles se implicam, mutuamente, porque só é livre quem pode participar das decisões políticas e só toma parte, efetivamente, quem goza de liberdade. Porém, para que todos os cidadãos possam concretamente utilizar daqueles direitos, precisam de um mínimo existencial assegurado pelo sistema dos direitos sociais, entre os quais se insere o de receber títulos de domínio ou concessão de uso de imóveis rurais desapropriados para reforma agrária (art. 189). A obediência à lei é, no Estado de Direito, dever de todos os cidadãos, como a ela também fica vinculado o Governo, a quem cabe, por esse ângulo, dar efetividade aos programas constitucionais, inclusive o da reforma agrária. Por via de conseqüência, quando essas promessas da Lei Magna são descumpridas ou sua implementação se faz com extrema demora, os cidadãos podem protestar e, se houver instrumentos processuais apropriados, reclamar ao Judiciário a proteção desses interesses. É conhecida, no entanto, a lentidão dos processos judiciais no País (por exemplo, o início do julgamento da medida cautelar na ADI 2.213 ocorreu no dia 6 de setembro de 2001; sua conclusão aconteceu no ano seguinte, no dia 4 de abril; a publicação do julgado foi feita mais de dois anos depois, em 23 de abril de 2004). Demais disso, concluído o suposto processo com sentença favorável aos postulantes da repartição das propriedades rurais, ainda seria necessário que o Poder Público viesse a cumprir o decidido, o que demandaria outras providências, inclusive a liberação de verbas orçamentárias. A demora indispensável para isso se apresenta como interminável aos olhos de quem espera conseguir o seu pedaço de terra para nela trabalhar e viver. É lícito, em face desse quadro, concluir que outros caminhos, como a prática de pressões políticas, sejam mais eficazes, para se obter a implementação da Reforma Agrária. A ocupação de imóveis rurais e de repartições públicas pelos movimentos sociais ligados à reforma agrária se apresenta, em conseqüência, como fórmula mais eficiente para obter uma resposta favorável dos órgãos governamentais, pouco diligentes no cumprimento do programa constitucional. Com base neste e no direito expresso pelo artigo 5º, inciso IV, de ser livre a manifestação do pensamento, e mais os princípios da soberania popular e da cidadania, o que tudo se compreende dentro do regime adotado na Carta Magna, impende concluir seja permitido aos brasileiros manifestar-se publicamente contra a mora governamental. A forma de fazê-lo inclui as ações coletivas como as mencionadas, capazes de gerar impacto na comunidade, propulsando os órgãos públicos a tornar real o programa de reforma no campo, há décadas considerado indispensável para sanar injustiças no sistema fundiário e para cumprir o princípio do artigo 3º, inciso III, da Constituição, de erradicar a pobreza e a marginalização e de reduzir as desigualdades. Se não se quadra ao sistema legal a invasão de terras e de repartições públicas, também não se lhe ajusta a falta de diligência na realização de programas constitucionais. De qualquer sorte, a criminalidade daquela ação deixa de se configurar, à míngua da intenção dolosa de se apoderar de bens públicos ou fundiários, conforme a decisão do Superior Tribunal de Justiça, no habeas corpus acima indicado. É de recordar, a propósito, a decisão da Suprema Corte norte-americana referida por Dworkin, sobre a legitimidade da queima do pavilhão nacional, para efeito de protesto político. É plausível, outrossim, discordar da afirmativa de que os cidadãos, em Estado Democrático de Direito, devam cumprir a lei, em todas as circunstâncias, só lhes sendo lícito recorrer ao Poder Judiciário para a defesa do que entendam lhes ser devido. Perante determinadas situações de flagrante injustiça por parte da lei ou das autoridades, é lícito praticar o que se convencionou chamar de desobediência civil e que pode ser identificada, como diz Peces-Barba, quando se convertem em ilusões os mecanismos de institucionalização da resistência, ou se violam os valores, princípios ou direitos fundamentais. Em tais circunstâncias, os indivíduos ou as minorias afetadas por essa discriminação estão legitimadas para a desobediência (PECES-BARBA MARTINEZ, G. 1993, 381). A doutrina considera tratar-se de uma forma extraordinária de proteção contra atos do poder que desvirtuem ou descumpram as determinações democráticas e o direito. A permissão para desobedecer existe, sob o ponto de vista moral, quando os órgãos governativos praticam injustiça, seja pela aplicação de leis que afetam indevidamente os direitos dos cidadãos, seja pelo descumprimento de programas governamentais democraticamente determinados. Sob o aspecto jurídico, é válido identificar, na desobediência civil, um direito fundamental não enumerado, decorrente do regime do Estado Social Democrático, que inclui os princípios da soberania popular (art. 1º, inc. I), da cidadania, que compreende o respeito aos direitos dos indivíduos (art. 1º, inc. II), e da falta de concretização, por parte do Governo, do direito social da Reforma Agrária. Nas invasões dos Sem-Terra, desde que realizadas sem violência contra as pessoas, ou sem destruir coisas ou delas se apoderar definitivamente, se encontram as características apontadas por Eusébio Fernandez para a legitimidade da desobediência civil. Assim, tem-se que a infringência à lei é praticada para o progresso político e social da coletividade, no sentido de serem cumpridos os dispositivos da Lei Maior concernentes à redistribuição de terras rurais e para sanar a injustiça governamental resultante da deficiência na execução do respectivo programa. Os atos de invasão devem ser públicos e abertos, em manifestações coletivas. A necessidade de violar a lei fica demonstrada pela inutilidade do emprego de meios normais de solução judicial dos conflitos e dos meios usuais de participação política, como se depreende da mora reiterada na efetivação da Reforma Agrária (FERNANDES, E. 1991, 232-233). Dworkin, manifestando-se sobre o tema, em artigo publicado na imprensa, escreveu que, no Brasil, se é verdadeira uma história de injustiças no campo, “que criou grande pobreza para milhões de pequenos agricultores, (...) e também proporcionou poder político vasto e injusto a grandes proprietários”, e se o MST pode alegar que não age para aterrorizar o governo, mas para sensibilizar fatias da opinião pública em favor de suas reivindicações, e havendo evidências (como o assassinato de agricultores durante a retirada de assentamentos), “para demonstrar que um grupo não é tratado como participante, em igualdade de condições, na aventura política de uma nação, a democracia falhou e, nessa medida, até que mude a atitude do governo, atos não violentos se incluirão na honrada tradição da desobediência civil” (DWORKIN, R. 1997, A2). O direito à desobediência civil, exercido por meio de manifestações públicas, como as invasões de imóveis rurais e de prédios públicos, só se legitima quando cumpridas todas as exigências indicadas pelos dois autores a que se fez menção, por último. Perante uma hipótese concreta, será indispensável examinar com imparcialidade as circunstâncias de fato, para averiguar sobre o cabimento da aplicação ou não desse direito não enumerado. Desse modo, é cabível sugerir, para a Medida Provisória número 2.183, uma interpretação conforme à Constituição, a fim de que sejam excluídos, da proibição bienal de vistoria para Reforma Agrária, os imóveis rurais cujas invasões tenham sido efetuadas como autêntica manifestação do direito fundamental da desobediência civil. Nesses termos, restam conciliadas as manifestações jurisprudenciais acima referidas e preservado o direito decorrente aqui identificado. 5.3 Direitos sociais 5.3.1 Direito à união de família O artigo 226, caput, da Constituição Federal considera a família como “base da sociedade” e lhe confere “especial proteção do Estado”. Com base nesse preceito, é possível, segundo o parágrafo 2º do artigo 5º da Lei Maior, concluir pela existência de um direito fundamental, das pessoas casadas, à união familiar, a ser preservada em face de separações provocadas em razão do desempenho de funções públicas. É de fácil compreensão que a convivência de um casal é necessidade básica para a manutenção da entidade familiar, que é a sede principal de relações afetivas interindividuais privilegiada pela norma constitucional, em vista da sua importância como célula nuclear da própria sociedade nacional. O direito à união de família possui, como norma de direito fundamental, eficácia vinculante em relação a todas as entidades públicas, como resulta do indicativo anotado no Preâmbulo da Constituição de 1988, de que o Constituinte pretendeu “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. É ela, outrossim, diretamente aplicável, nos incisivos termos do artigo 5º, § 1º, da Lei Magna – “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Assim, mesmo se não houvesse dispositivo legal sobre a possibilidade de remoção de servidores públicos para preservação do convívio familiar, cumpriria aos órgãos estatais autorizar o deslocamento necessário para concretizar o encargo da “especial proteção do Estado”. A falta de interesse da Administração com a remoção do servidor em nada interfere com o cabimento da pretensão. É que prevalece o interesse público de proteção ao grupo familiar, princípio constitucionalmente selecionado para ser realizado mediante ação estatal. Neste sentido, a orientação do Colendo Supremo Tribunal Federal, como se vê na ementa do Mandado de Segurança 21.893-DF, nos termos seguintes: “Diante da impossibilidade de serem conciliados como se tem na espécie, os interesses da Administração Pública, quanto à observância da lotação atribuída em lei para seus órgãos, com os da manutenção da unidade da família, é possível, com base no art. 36 da Lei nº 8.112/1990, a remoção do servidor-impetrante para o órgão sediado na localidade onde já se encontra lotada a sua companheira, independentemente da existência de vagas.” Esse direito decorrente, extraído do princípio constitucional da proteção da família, foi acolhido no ordenamento infraconstitucional, em particular, na alínea a do inciso III do artigo 36 da Lei 8.112/90. Esse dispositivo resultou de atuação do legislador ordinário da Lei nº 9.527/97, o qual pretendeu conformar, no âmbito do serviço público federal, a forma de atendimento a esse direito, estabelecendo entre as modalidades de remoção dos servidores públicos aquela que assim se lê: “III – a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração: a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração; [...]” Tal preceito deve, sem dúvida, ser entendido de forma que lhe atribua significado compatível com o direito fundamental a que se vincula. O deslocamento do cônjuge não há, necessariamente, de ocorrer após o exercício funcional do pretendente ao favor legal, podendo mesmo preexistir. Também, o afastamento do lar pode resultar da necessidade de assumir cargo público em local diverso do domicílio familiar. O que importa, para preencher o sentido constitucionalmente adequado do núcleo normativo da regra, é que, no interesse da Administração, os servidores casados tenham de ficar afastados, para exercerem as suas funções públicas. Uma compreensão diversa afastaria, em várias hipóteses, a proteção à família, exigida pelo artigo 226, que seria transformado em disposição meramente retórica. Entender que a circunstância de o servidor ter assumido o cargo fora do local onde se situa o domicílio conjugal impede o exercício do direito de unidade familiar equivale a atribuir a esse fato a eficácia de uma renúncia. Quer dizer, embora não se trate de ato de abdicar à união de família, vale como se o servidor dela tivesse desistido, quando, na verdade, foi exercer a função pública em lugar distante do lar, compelido pela necessidade de prover ao sustento próprio e dos seus. O entendimento restritivo desconhece uma das qualidades próprias dos direitos fundamentais, a da sua irrenunciabilidade. A propósito, calha transcrever o magistério de Ronald Dworkin, ao comentar o tema: “A Constituição como um todo afirma [...] as condições sob as quais os cidadãos serão considerados parte de uma comunidade e iguais. Um cidadão individual não é mais capaz de redefinir essas condições do que a maioria. A Constituição não permite que ele se venda como escravo ou que ceda seu direito de escolher sua própria religião. Não porque nunca seja do interesse dele fazer tal troca, mas porque é intolerável que algum cidadão seja escravo ou que hipoteque sua consciência. A pergunta que se deve fazer quando considerarmos que é possível renunciar a algum direito constitucional em particular é esta: a renúncia deixará alguma pessoa numa condição que se considera negar a igualdade pela Constituição?” (DWORKIN, R. 2000, 591-592) Direitos fundamentais não podem, nessa perspectiva, ser renunciados expressa ou implicitamente, mesmo porque decorrem do princípio cardeal da dignidade da pessoa humana. É injurídico conferir ao fato de alguém ter aceito exercer a função pública longe do domicílio familiar a força de um óbice inamovível para ele vir a postular a união com sua família. Admitir o contrário, por força de encontrar-se perante uma relação no âmbito do estatuto especial dos servidores públicos, seria retornar à “doutrina clássica das relações especiais de poder”, segundo a qual, na explanação de Canotilho, as pessoas estariam vinculadas “voluntariamente a um estatuto de sujeição produtor de uma capitis deminutio.” (CANOTILHO 1980, 555) Para o notável constitucionalista português, o regime restritivo precisa ter fundamento na Constituição, sendo necessário “apurar sempre se a especificidade estatutária exige restrições aos direitos fundamentais (princípio da exigibilidade).” (CANOTILHO 1980, 556) O conflito que se visualiza, entre o direito fundamental à unidade familiar e o interesse do serviço, há de ser resolvido, na esteira do autor citado, “à luz dos direitos fundamentais, mediante uma tarefa de concordância prática que possibilite a garantia dos direitos, mas sem tornar impraticáveis os estatutos especiais”. (CANOTILHO 1980, 556) Para isso, será necessário examinar as peculiaridades da situação do servidor e verificar sua específica necessidade de assumir cargo público fora do domicílio conjugal, até mesmo para poder manter a família. Na lição de Konrad Hesse, “nem devem os direitos fundamentais ser sacrificados às relações de status especiais, nem devem as garantias jurídico-fundamentais tornar impossível a função daquelas relações. Ambos, direitos fundamentais e relações de status especiais carecem, antes, de coordenação proporcional, que proporciona a ambos eficácia ótima. Também as relações de status especiais, limitadoras devem, por conseguinte, ser vistas ‘na luz dos direitos fundamentais’. A consideração aos direitos fundamentais é exigida sempre no quadro do possível – mesmo que isso traga consigo para as autoridades administrativas dificultações ou incomodidades.” (HESSE, 1998, 262) A proteção do núcleo familiar, ainda que perante situações como a antes discutida, iluminará, via de regra, a precedência condicionada do direito fundamental não enumerado de que se cuida sobre o interesse administrativo. Por outra parte, a qualidade essencial da necessidade humana de manter íntegra a convivência em centro de afetos como é a família justifica, sem qualquer dúvida, a conclusão aventada no presente tópico, de resultar tal direito decorrente do princípio do artigo 226 da Constituição. 5.3.2 Direito de homossexuais de serem tratados como em união estável para benefícios previdenciários Perante Vara Federal de Porto Alegre, o Ministério Público Federal propôs ação civil pública, com abrangência nacional, contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), para compelir a entidade a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial, da mesma classe dos heterossexuais em união estável, para fins de concessão de benefícios previdenciários. O promovente argumentou que a negativa da inscrição de tais companheiros configuraria discriminação decorrente de orientação sexual e que uma correta interpretação dos artigos 226, parágrafo 3º, 5º, caput, e 3º, inciso IV, todos da Constituição, faz concluir não ser vedada a união estável entre homossexuais. O requerido respondeu que a desconsideração das uniões homossexuais para fins previdenciários não representa medida discriminatória, mas resulta da circunstância de que um casal formado por pessoas com essa opção é incapaz de gerar filhos e advém de mero interesse sexual, sem a intenção de constituir uma célula nuclear da sociedade. A lide foi julgada procedente e subiu à apreciação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, cuja 6ª Turma, em decisão unânime, confirmou a sentença monocrática (Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Apelação Cível 2000.71.00.009347-0/RS). No corpo do julgado, ressaltam os argumentos assim expendidos pelo Relator: “O modelo de família constituído por um homem e uma mulher, casados no cível e no religioso, eleitos reciprocamente como parceiros eternos e exclusivos a partir de um ideário de amor romântico, que coabitam numa mesma unidade doméstica e que reproduzem biologicamente com vistas à perpetuação da espécie, ao engrandecimento da pátria e à promoção da felicidade pessoal dos pais não esgota o entendimento do que seja uma família. Da mesma forma, sociólogos, antropólogos, historiadores e cientistas políticos sistematicamente têm demonstrado que as noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. A imersão do direito de família no conteúdo dos princípios constitucionais, numa interpretação mais aprofundada, induz a compreensão (ou no mínimo, a reflexão) de que as uniões homossexuais também se constituem em entidades familiares, seja por analogia ao mencionado § 3º do art. 226, seja por ampliação do seu parágrafo 3º, seja porque, por se constituírem unidades afetivas familiares, não estão necessariamente amarradas aos tipos exemplificativos mencionados no texto constitucional. Nesse sentido, irracional seria não reconhecer que, nas circunstâncias atuais, as relações homossexuais estão abrangidas pela noção de entidade familiar, porquanto a família se constitui por laços de afetividade e necessidades mútuas, não por imperativos de ordem social.” O órgão julgador sublinhou a tendência mundial de aceitação das uniões homossexuais, seja com o alargamento da compreensão do conceito de família, seja com a alteração da ordem jurídica, para abarcar legalmente a ligação entre pessoas do mesmo sexo. Acentuou, ainda, a desrazão em negar um direito por motivo de uma opção sexual não proibida, à falta de uma justificação objetiva e razoável para amparar a distinção “que produz um tratamento diferenciado daquele dispensado à generalidade dos cidadãos”. A interpretação realizada pelo acórdão é exemplar, ao atualizar o sentido do texto com a realidade social presente. Nos dias de hoje, é evidente, na sociedade brasileira, como também em outros países do Ocidente, a multiplicação de consórcios entre pessoas do mesmo sexo, como forma de vida permanente, a exemplo do que anteriormente se visualizava com casais constituídos por homens e mulheres. A família tradicional, igualmente, em muitos casos, com os métodos de prevenção da gravidez, deixa de ser um centro de reprodução da espécie, servindo, com exclusividade, para um lugar de afetos e relacionamento sexual. Por isso, bem sentada a conclusão de que o preceito do artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição permite interpretação extensiva, para considerar como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, do que decorre o direito fundamental social a benefício previdenciário, consoante estabelecido no artigo 201, inciso V, do diploma fundamental. No reconhecimento desse direito decorrente, o Tribunal aplicou o mandamento constitucional da igualdade, constante do caput do artigo 5º, que se concilia com a vedação de quaisquer formas de discriminação consignada no artigo 3º, inciso IV, parte final. Na verdade, o preceito igualitário não determina que todas as pessoas devam ser tratadas sempre da mesma forma, porém, observadas as circunstâncias concretas, os iguais haverão de ser tratados como tais, enquanto os desiguais o serão desigualmente. Para justificar um tratamento desigual será necessário demonstrar uma razão suficiente ou, segundo Alexy, “a máxima geral de igualdade pode ser interpretada no sentido de um princípio de igualdade que, à primeira vista, exige um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se este pode ser justificado com razões em tal sentido” (ALEXY, R. 1993, 398). Na hipótese visualizada perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, as razões para a diferença de tratamento foram, consoante acima referido, fundamentadamente afastadas. Em um Estado neutro entre as concepções de bem dos seus cidadãos, com opção pluralista expressa no texto constitucional, é descabida a discriminação dos seres humanos em função de sua escolha sexual. O contexto social da atualidade, por outra parte, exibe pessoas do mesmo sexo convivendo em uniões semelhantes àquelas formadas por heterossexuais. Não se encontram, pois, motivos para negar aos casais homossexuais os direitos sociais previdenciários atribuídos aos demais grupos familiares. Correto, portanto, o reconhecimento, pelo acórdão referenciado acima, de mais esse direito decorrente. 6. Um preceito constitucional e uma Constituição para serem levados a sério A amostragem de direitos decorrentes aqui efetuada demonstra que o disposto no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição é importante válvula para ampliação dos direitos fundamentais, de exponencial utilidade para aumentar e atualizar, perante novas necessidades sociais, o rol oferecido pelo constituinte. Cuida-se, sem dúvida, de instrumento de magna importância, de que os tribunais e a doutrina, embora, por vezes, sem lhe fazer referência, têm lançado mão em inúmeras oportunidades. Além dos exemplos apresentados, vale ainda recordar as hipóteses do mandado de injunção coletivo e da efetividade do processo, como direitos decorrentes já reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal. Quanto ao primeiro instituto, o acórdão proferido no Mandado de Injunção 20 – DF assinalou: “[...] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo, com a finalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição.[...]” (Revista Trimestral de Jurisprudência 166, 751) Em outra ocasião, no julgamento do Mandado de Injunção 361 – RJ, foi dito: “I – Mandado de injunção coletivo: admissibilidade, por aplicação analógica do artigo 5º, LXX, da Constituição [...]” (Revista Trimestral de Jurisprudência 158, 375). Da mesma forma, sem fazer menção à cláusula de expansão aqui examinada, no Habeas Corpus 80.379 – SP, o Supremo Tribunal proclamou o direito decorrente [a]“o julgamento sem dilações indevidas” como “projeção do princípio do devido processo legal” (Revista Trimestral de Jurisprudência, 187, 933-4). A doutrina, para as duas hipóteses, concorda com a orientação jurisprudencial, também silenciando sobre a aplicação do parágrafo 2º. Lê-se em José Afonso da Silva (SILVA, J.A. 1999, 461-2): “Já estudamos o mandado de injunção e não é o caso de voltar a ele aqui, senão para esclarecer que também pode ser um remédio coletivo, já que pode ser impetrado por sindicato (art. 8º, III) no interesse de Direito Constitucional de categorias de trabalhadores quando a falta de norma regulamentadora desses direitos inviabilize seu exercício. Como segundo o art. 8º, III, os sindicatos são partes legítimas para defender direitos e interesses da categoria, o mandado de injunção utilizado em tal situação, como o proposto por qualquer outra entidade associativa nos termos do art. 5º, XXI, assume a natureza de coletivo.” [destaque do original] Acerca do outro direito, anota Teori Albino Zavascki que o direito de acesso à justiça compreende “não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa [...]” (ZAVASCKI, T.A. 1997, 64). Transparece que, do ponto de vista normativo, o dispositivo constitucional sob enfoque permite resolver deficiências na enumeração dos direitos, que, embora seu amplo rol, é incompleta, em razão de circunstâncias e necessidades, que vão sendo empiricamente constatadas. A cláusula merece, por isso, ser levada a sério, não apenas para continuar a ser aplicada como já demonstrado, mas também para evitar a inutilidade de acréscimo desnecessário, com a repetição de direito decorrente, como efetuado pela Emenda Constitucional n° 45, de oito de dezembro de 2004, instituindo o inciso LXXVIII do artigo 5º, assim soante: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” Em vez de aditar ao texto constitucional um dispositivo supérfluo, melhor seria excogitar sobre medidas para remediar a pouca concreção de alguns direitos, da qual resulta a pungente desigualdade que divide os cidadãos brasileiros. Assim, os direitos sociais e ainda alguns de primeira geração, como o de não conviver com a corrupção na Administração e na política, e os direitos à vida e à segurança, estes em xeque com o aumento desenfreado da criminalidade. No aspecto jurídico, a Constituição contém norma bastante para resolver deficiências na enumeração dos direitos, necessita, porém, ser realizada também em todos os aspectos nela previstos, inclusive com a adoção de medidas concretas para o efetivo gozo dos direitos por todo o povo. Além do parágrafo 2º do artigo 5º, os demais dispositivos da Constituição precisam ser levados a sério, para cumprir com seus generosos objetivos de construir autêntico regime democrático e uma sociedade livre, justa e solidária. 7. Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales . Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. ARENDT, Hannah. O Sistema Totalitário. Tradução de Roberto Raposo. Lisboa: Dom Quixote, 1978. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BARBOSA, Rui. República: Teoria e Prática. Petrópolis: Vozes, 1978. BONAVIDES, Paulo. 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REVISTA
DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS |
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