Responsabilidade Internacional e o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

Autora: Renata Vargas Amaral
Advogada
Mestre em Direito dos Negócios Internacionais
Publicado na Edição 14 - 19.09.2006


Introdução
A fase de implementação da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias é hoje um tema de grande preocupação entre os Estados-Membros da OMC. A problemática está centrada tanto na dificuldade da implementação, por parte do Estado vencido, da decisão adotada pelo OSC dentro da sua jurisdição nacional, quanto na possível não responsabilização do Estado de forma a coagi-lo ao cumprimento da decisão.

O Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial de Comércio, contemplado no Anexo 2 do tratado de Marraqueche, sustentado pelos acordos resultantes da Rodada do Uruguai, é um dos mais importantes instrumentos do sistema da OMC, responsável pela efetividade que pode ser atribuída à Organização, uma vez que trouxe segurança e previsibilidade aos intercâmbios internacionais.

Contudo, a fase de implementação prevista no atual Sistema de Solução de Controvérsias da OMC consiste em uma fase pós-jurisdicional, propriamente de execução, que tem seu objetivo principal insculpido no art. 22:1(1) do ESC, qual seja, forçar o Membro a cumprir a decisão do painel ou do Órgão de Apelação. Essa fase, no entanto, tem sido “o momento mais crítico para o legalismo nas relações econômicas internacionais”. (BARRAL, 2004, p. 53.

Trata-se a OMC de um tratado de Direito Internacional Público e, dessa forma, atos cometidos em violação a suas disposições ensejam a responsabilização do Estado responsável, já que constituem atos internacionalmente ilícitos. Complementa Celso Lafer:

“enquanto expressão de codificação e desenvolvimento progressivo e em contraste com o sistema do GATT, não é mero fruto de prática e interpretação. É uma obrigação, de outra hierarquia jurídica, posto que contemplada pelo próprio tratado constitutivo da OMC e, enquanto tal, obriga a todos os estados-membros e deve ser cumprida de boa-fé”. (LAFER, 1998, p.121.


A responsabilidade internacional é um instituto consuetudinário(2) que reflete um direito a resposta em face da violação da norma jurídica. Diz Mavroidis que, “de acordo com a codificação da ILC (artigos 41 e 42), um Estado que é autor de um ato ilícito tem duas obrigações: 1) a obrigação de sustar o ato ilícito; e 2) a obrigação de providenciar uma forma de reparação à(s) parte(s) prejudicada(s)”. (MAVROIDIS, 2003, p. 236-237)


1. O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC é imprescindível para a efetiva implementação de regras e acordos, de modo a garantir um crescimento equilibrado do comércio internacional.

O Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias pela primeira vez estabelece explicitamente em um tratado internacional um procedimento de implementação para o relatório de um painel. Com relação a esse procedimento, John Howard Jackson alerta:

“Esse procedimento inclui medidas para possível ‘compensação’ ou retaliação. Assim, algumas pessoas têm sustentado que essa é uma opção disponível para membros como uma alternativa para obedecer à decisão do painel. Como eu indiquei, porém, vários argumentos apontam para um ponto de vista contrário”. (JACKSON, 2000, p.166 – tradução da autora)(3)

Para além de todo o arsenal abrangente de normas que objetivam fornecer previsibilidade e segurança legal com relação à organização dos procedimentos referentes aos painéis, o sistema de solução de controvérsias da OMC deu a esta organização internacional a peculiar característica de aplicar sanções efetivas pelo descumprimento de suas normas. “Esta possibilidade é bastante limitada nas demais organizações internacionais, em virtude de restrições impostas pelos próprios Estados, apegados ao conceito westfaliano de soberania (o que acaba por implicar limitação ao próprio Direito Internacional Público).” (BARRAL; PRAZERES, 2002, p. 28)

Importa dizer, todavia, que no texto do Acordo sobre Solução de Controvérsias da OMC não se lê em nenhum momento o termo sanção. Porém, conforme comenta Steve Charnovitz (2001), a política comercial da comunidade internacional tem reconhecido que o sistema da OMC é diferente do sistema do GATT e, dessa forma, tem utilizado o termo “sanção” para descrever aquilo que o artigo 22 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC) permite.

A fase de implementação é uma fase pós-jurisdicional que buscará o cumprimento da decisão adotada pelo OSC.(4) De acordo com Barral (2004, p. 52): “O objetivo fundamental da fase de implementação, e da eventual suspensão de vantagens, é forçar o Membro a cumprir a decisão, tornando sua legislação interna compatível com as obrigações que assumiu no âmbito da OMC”.

O problema da implementação das decisões do OSC coloca em xeque antigas noções de soberania e de jurisdição estatal. Isso porque, para tratar-se da implementação de normas de Direito Internacional, é necessário que se compreenda que não há Estado absolutamente independente, nem se pode invocar a soberania estatal como escudo de proteção para evitar que se apliquem sanções e se implementem decisões ao Estado-Membro vencido em uma disputa no âmbito da OMC.

Acrescenta André Lipp Pinto Basto Lupi: “a validade do Direito Internacional para um Estado não depende do reconhecimento daquele por este. Um novo Estado já assume todas obrigações de Direito Internacional com seu surgimento, independente de reconhecer as normas que originam tais obrigações como válidas”. (LUPI, 2001, p. 115)

A assertiva sustentada por muitos membros da OMC – sobretudo por aqueles que perdem a disputa – no momento de implementar a decisão é a de que as recomendações dos painéis não vinculam, sendo que o Estado vencido não seria obrigado a implementar a decisão dentro de sua jurisdição, nem teria a obrigação de compatibilizar suas normas internas com uma recomendação de um relatório aprovado pelo OSC.

Contrário a esse entendimento, explica Michael Nunes Lawson:

“Apesar de a decisão dos painéis ou do órgão de apelação ser denominada ‘recomendação’, termo um tanto brando, é amplamente entendido que possua força vinculante plena. Como resquício do GATT, que dava mais valor a uma solução negociada do que ao rigorismo de um contencioso judicial, a regra é que os órgãos julgadores do OSC cinjam-se a uma manifestação da legalidade ou não da conduta em questão”. (LAWSON, 2003, p. 358-359)(5)

2. Responsabilidade Internacional

Os Estados-Membros da OMC têm, para com a Organização e os demais membros, uma obrigação pacta sunt servanda que provém particularmente do artigo 23:2 do ESC, segundo o qual “os membros da OMC concordaram em assinar compulsoriamente a adjudicação da terceira parte para resolver seus litígios relacionados ao comércio em favor dos órgãos adjudicantes da OMC”. (MAVROIDIS, 2003, p. 263)

Ainda, segundo Willian J. Davey (2001), as obrigações acordadas pelos Estados-Membros devem e serão impostas pelo OSC, sem que isso acarrete um excesso de poder por parte desse órgão.

Corroborando com o exposto por Lawson, disserta Mavroidis:

“As Recomendações são obrigatórias para seus destinatários. (...)As Sugestões não são obrigatórias para seus destinatários. Esta conclusão, contudo, não é equivalente a uma declaração de que estão desprovidas de qualquer conseqüência jurídica: de fato, se um membro da OMC seguir uma sugestão recebida, terá ipso facto cumprido com suas obrigações internacionais. Por isso, seguir as sugestões dos panels e dos Órgãos de Apelação é uma estratégia jurídica altamente recomendada”. (MAVROIDIS, p. 274, 2003)

A obrigação que um Estado tem com o outro de reparar o dano que causou está consagrada como um princípio do Direito Internacional Público. Conforme Ian Brownlie: “é um princípio de direito internacional, e até mesmo uma concepção geral do direito, que qualquer violação de um compromisso envolve uma obrigação de fazer reparação”.(6) (BROWLIE, 1963, p.438 – tradução da autora) Ainda, Brownlie comenta que a reparação de uma obrigação quebrada é um complemento indispensável de uma falha e que não há necessidade de estar expressamente em uma convenção.(7)

John Howard Jackson acrescenta que “os relatórios do painel de apelação parecem reforçar fortemente a ‘orientação normativa do sistema’. Eles também reforçam o conceito que os princípios gerais de direito internacional se aplicam à OMC e a seus acordos”. (JACKSON, 1997, p. 127 – tradução da autora)(8)

Celso Lafer (1998, p. 134) argumenta que a relação de responsabilidade internacional, no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC, transcende as partes envolvidas numa disputa, pois diz respeito a todos os membros da OMC. E completa:

“Com efeito, se a responsabilidade internacional é uma resposta a uma ruptura do equilíbrio de direitos e obrigações, e se a resposta exclui como remédio a obrigação de reparar através de compensação – negociada entre as partes diretamente envolvidas – por força de uma prioridade axiológica conferida ao interesse de todos os estados-membros na função da legalidade, estaríamos aí diante de uma diversificação muito ampliada de responsabilidade internacional – na linha de propostas dos trabalhos da CDI”. (LAFER, 1998, p. 134)


Conclusão

É verdade que o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias não deixa explícita literalmente a obrigação internacional de um Estado-Membro de seguir as recomendações ou determinações do relatório do painel ou do Órgão de Apelação. Todavia, vários artigos do ESC sugerem claramente essa obrigação, como, por exemplo, o artigo 3:1 do ESC quando diz que “membros afirmam sua aderência aos princípios para o controle de disputas daqui para frente”; o artigo 3:2, que assevera que o sistema de solução de controvérsias “é um elemento central para proporcional segurança e previsibilidade ao sistema multilateral de comércio” ; e, ainda, o artigo 21:1, que diz: “O pronto cumprimento das recomendações e decisões do OSC é fundamental para assegurar a efetiva solução das controvérsias, em benefício de todos os Membros”. (JACKSON, 1997, p. 126)

Nesse sentido, defende-se a obrigatoriedade de observar as decisões emanadas do OSC e a possibilidade de retaliação daqueles países que insistem em descumprir tais resoluções tanto por ferirem a obrigação frente aos outros membros da Organização Mundial do Comércio, bem como por estarem atingindo um consagrado princípio de direito internacional público, responsabilidade internacional, que envolve no mínimo uma obrigação de fazer frente aos demais Estados.


Referências bibliográficas

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Notas 1. ESC, Art. 22:1, “nem a compensação nem a suspensão de concessões ou de outras obrigações é preferível à total implementação de uma recomendação”.


2. Este direito, em especial o que diz respeito à responsabilidade do Estado, está em processo de codificação por parte da Comissão de Direito Internacional (Internacional Law Comission), que trata especificamente dos remédios em que um ato internacionalmente ilícito foi cometido.


3. “This procedure includes measures for possible ‘compensation’ or retaliation. Thus, some people have argued that this is an option available to members as an alternative to obeying the mandate of the panel report. As I have indicated, however, several arguments point to a contrary view”.


4. Acrescenta Petros C. Mavroidis (2003, p. 241): “Uma decisão de um órgão adjudicante abrange normalmente três elementos: (i) uma declaração da ilegalidade do ato em questão; (ii) o remédio jurídico apropriado; e (iii) alguma forma de garantia de não-repetição.”

5. É importante notar que, após o julgado do OSC, o país vencido tem o dever de apresentar suas intenções de cumprimento. O art. 21:1 do ESC diz expressamente: “O pronto cumprimento das recomendações e decisões do OSC é fundamental para assegurar a efetiva solução das controvérsias, em benefício de todos os Membros.” No entanto, caso não apresente suas intenções em compatibilizar suas normas internas com a decisão do julgado, o OSC poderá conceder um “prazo razoável” para tal.


6. “it is a principle of international law, and even a general conception of law, that any breach of na engagement involves an obligation to make reparation”.


7. “Reparation therefore is the indispensable complement of a failure to apply a convention and there is no necessity for this to be stated in the convention itself” (BROWLIE, 1963, p. 437).


8. “The appellate panel reports seem to strongly reinforce the ‘rule orientation of the system’. They also reinforce the concept that general international law principles apply to the WTO and its agreements”.


 

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , setembro 2006. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS