O Poder Judiciário e as ações na área da saúde

Autora: Ana Cristina Krämer
Juíza Federal Substituta
Publicado na Edição 15 - 22.11.2006

Sumário. Introdução. 1. O papel do Poder Judiciário na área da saúde. 2. A situação atual. 3. A saúde e a dignidade humana. 4. Do caráter meramente programático do direito à saúde ao reconhecimento de que se trata de Direito Subjetivo. A evolução da jurisprudência. 5. O Mínimo Existencial ou Piso Mínimo Normativo. 6. A compatibilidade das decisões judiciais reconhecendo o direito à saúde com a realidade do nosso país. Particularidades. 1. Legitimidade Passiva. 2. Irreversibilidade da Medida Liminar. Conclusão. Referências Bibliográficas. Anexos.

Introdução

O objeto deste trabalho é a saúde, tema ligado à vida diária das pessoas e de fundamental importância em todos os setores da convivência humana. O Sistema Único de Saúde – SUS –, regido pela Lei nº 8.080/90, foi criado justamente com o objetivo de assegurar a universalização do acesso à saúde (artigo 196 da Constituição Federal). Diz este artigo que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Além disso, no direito internacional, foi elencado de forma pioneira no que diz com a previsão expressa de um direito à saúde no artigo XXV, item 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Resolução XXX, revelando a concepção universal deste direito. Naquela, dispõe, em seus artigos 22 e 25, que a segurança social e um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e o bem-estar da pessoa humana são direitos humanos fundamentais.

No entanto, essas disposições e principalmente hoje a Constituição Federal de 1988 sempre estiveram numa relação de tensão para com a realidade da maioria dos brasileiros, representando seu texto, para muita gente, na expressão de Andreas J. Krell(1) “uma categoria referencial bastante distante.” Para o autor, constitui um paradoxo que o Brasil esteja entre os dez Países com a maior economia do mundo e com uma Constituição bastante avançada na área dos direitos sociais, enquanto mais de 30 milhões de seus habitantes vivam abaixo da linha da pobreza, sem um mínimo de condições de habitação, alimentação e serviço público de saúde. O mesmo autor, então, questiona: “Diante deste quadro, está o Poder Judiciário Brasileiro preparado para exercer um papel mais expressivo no controle das políticas públicas?”

1. O papel do Poder Judiciário na área da saúde

Poder-se-ia questionar porque o Judiciário se preocupa com a saúde, quando esta deveria ser de competência apenas dos médicos, do governo, dos hospitais e dos planos de saúde. Esse raciocínio é feito pelo professor Ingo Wolfang Sarlet,(2) que refere que, mesmo previsto na Constituição Federal, esse direito é por muitas vezes violado.

“Quando inseriram na Constituição Federal direitos como o da propriedade, o instituto do habeas corpus, o sigilo das comunicações e a privacidade de domicílio, ninguém questionou. A partir do momento em que passaram a ser previstos os direitos sociais, especialmente a educação, saúde, a assistência social e a previdência social, os quais dependem, para sua efetividade, de aporte de recursos materiais e humanos, passou-se a questionar até mesmo a própria condição de fundamentais destes direitos. Assim, a saúde comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, da dupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias fundamentais (e que, por esta razão, são assim designados) na nossa ordem constitucional. A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e, ao menos na Constituição pátria, desdobra-se em três elementos: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde), situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares. (...) Já no que diz com a fundamentalidade material, esta encontra-se ligada à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, o que – dada a inquestionável importância da saúde para a vida (e vida com dignidade) humana – parece-nos ser ponto que dispensa maiores comentários”.

Sobre o tema, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em inúmeras ocasiões, como a que passo a citar:

“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado Brasileiro – não pode converter-se em promessa institucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever por um gesto de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” (3)

Ainda, em outro julgado, do mesmo Relator, encontramos a referência de que ao julgador compete proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), em face de interesse financeiro e secundário do Estado, por razões que ele aponta como de ordem ético-jurídica.(4)

Ingo Wolfgang Sarlet(5) afirma ser a saúde um direito social fundamental, ligado, juntamente com outros (assistência social, previdência social e renda mínima), ao direito à garantia de uma existência digna, no âmbito do qual “se manifesta de forma mais contundente a vinculação do seu objeto (prestações materiais na esfera da assistência médica, hospitalar, etc.) com o direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. A vida (e o direito à vida) assume, no âmbito desta perspectiva, a condição de verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, pré-condição da própria dignidade da pessoa humana. Para além da vinculação com o direito à vida, o direito à saúde (aqui considerado num sentido amplo) encontra-se umbilicalmente atrelado à proteção da integridade física (corporal e psicológica) do ser humano, igualmente posições jurídicas de fundamentalidade indiscutível”.

Então, surge a questão: o titular do direito, já reconhecido aqui como fundamental, com base nas normas constitucionais que lhe asseguram este direito, pode exigir do poder público (e eventualmente de um particular) alguma prestação material, como determinado medicamento que lhe restabeleça a saúde, ou tratamento médico determinado, cirurgia, exame laboratorial, internação hospitalar, enfim, qualquer serviço ou benefício ligado à saúde? A Constituição Federal não refere a quais prestações está relacionado este direito; se a todas aquelas relacionadas à saúde (desde atendimento médico urgente até tratamento dentário) ou apenas àquelas ligadas às prestações básicas e vitais. Não havendo interpretação legislativa, cabe ao Judiciário definir seu nível de abrangência, quando chamado a, topicamente, atender determinado direito.

2. A situação atual

A crise atual na saúde, reveladora de que o Estado não está conseguindo atender às necessidades básicas relacionadas a este direito, é considerada um dos mais graves problemas atuais do Brasil. Diariamente, os meios de comunicação têm noticiado as carências nesta área.

Em sua coluna diária,(6) o jornalista Paulo Sant’ana assim registrou, sob o título um bárbaro holocausto:

“A burocracia decidiu, perversamente, que as pessoas que necessitam de cirurgias urgentes para reparar órgãos e funções atingidos pelas mais variadas espécies de doenças graves necessitam antes de se dirigirem aos hospitais, passarem no ‘postinho’. É assim que os pobres e desesperados doentes denominam os postos de saúde de sua jurisdição. Lá no ‘postinho’ é feita a avaliação da doença corrosiva e ameaçadora à vida do paciente, são realizados os exames e determinado o diagnóstico: cirurgia. Só a cirurgia urgente pode salvar a vida do paciente. A seguir, o doente é comunicado de que vá para casa e espere a sua vez, pois será chamado para sofrer a cirurgia. E daí em diante se dá um apagão na vida do doente que é um dos maiores atentados à civilização e um atestado de que o Brasil volta aos tempos das cavernas. Só para dar um exemplo, o paciente Nestor Gomes, 57 anos, perambula por várias estações de calvário há meses, batendo em postos de saúde e hospitais, clamando por uma cirurgia no seu câncer de garganta, mas foi condenado a esperar em casa por uma cirurgia que jamais virá. Porque ele já não pode mais alimentar-se, o câncer tomou conta da sua laringe e vai devorando o seu esôfago, já emagreceu quinze quilos. Vai num posto, o médico o examina e receita um remedinho para dor, no outro posto, o médico assina uma baixa hospitalar urgente, mas nos hospitais dizem que ele tem que cumprir a fila para a cirurgia, isto é, nunca será realizada a cirurgia. (grifei)”

As pessoas, ao saírem do “postinho” com a notícia de que devem aguardar em casa, na fila, têm duas opções, e a decisão sobre uma ou outra depende, entre outros, da sua situação financeira e do apoio de familiares, para aqueles que os tiverem: atender à ordem, aguardando ser chamado ou requerer ao Poder Judiciário o bem da vida pretendido. Neste contexto é que as demandas requerendo ordens liminares de internação para tratamento e cirurgias ou fornecimento de medicamentos têm crescido de forma bastante significativa. Diariamente entram ações, nas esferas federal e estadual, versando sobre esta matéria e demandando pronta atuação do Magistrado.

Em seu artigo, Marga Inge Barth Tessler(7) faz referência a uma visão bíblica, que bem retrata a situação acima e a preocupação deste trabalho:

“Estava Jesus a caminho de Jerusalém quando notou o lago de Betesda em volta do qual se reunia uma multidão de enfermos, ‘cegos, coxos e paralíticos’, esperando que se movessem as águas pois um anjo descia de tempos em tempos, tocando-as com sua asa. O primeiro doente que entrasse no tanque após o toque angelical, sarava de seus males.”

Após, refere que a visão não está distante da realidade, pois o “Juiz não maneja a espada com a delicadeza do anjo, mas ocasionalmente consegue agitar as águas, acaba desequilibrando aqueles que esperam a sua vez de serem atendidos.” Impõe-se, então, encarar seriamente a saúde como um dever fundamental.

A situação se agravou, também, em face do aumento dos índices de contaminação pelo vírus HIV, doença crônica que demanda tratamento contínuo, de alto custo, sob pena de pôr em risco a vida daquele que o porta. É necessário registrar, no entanto, que o Brasil tem se destacado nesta área, investindo em programas oficiais e disponibilizando a maioria dos medicamentos necessários ao tratamento, de uso contínuo, independentemente da condição financeira do portador.

Registro, ainda, notícia relacionada à prestação jurisdicional, veiculada recentemente,(8) sob o título Remédios caros são empurrados para o SUS – O Poder Público tem sido obrigado pela Justiça a fornecer a pacientes medicamentos sequer reconhecidos pelo Ministério da Saúde. Na matéria, após referir situações em que a Justiça obriga o Estado a fornecer remédios que não estão registrados junto ao Ministério da Saúde, consta o seguinte exemplo:

“O Iressa (gefitinib, pelo princípio ativo) ganhou páginas em revistas especializadas que o apresentavam como smart bomb (bomba inteligente) na luta contra o câncer. Conforme o laboratório, ele atacaria só as vulnerabilidades das células cancerígenas – diferentemente da quimioterapia tradicional. Com o uso nos EUA surgiram as primeiras dúvidas. Os testes clínicos que embasaram sua aprovação em regime de urgência pela Food and Drug Administration (FDA) norte-americano logo indicaram o baixo QI da droga inteligente: ela não acrescia sobrevida aos pacientes, não estendia o tempo de progressão da doença, nem alterava o índice de resposta em relação às drogas anteriores. Tinha efeitos colaterais clássicos – como acne, náuseas, diarréia e perda de apetite – e acrescentava, em pequeno percentual, outros riscos: pneumonias e acredite, a morte. Uma pesquisa publicada no Journal Of Clinical Oncology, revista da sociedade norte-americana de oncologia Clínica, comparou-o a uma pílula ineficaz (placebo) e concluiu que o Iressa não era mais eficiente. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) seguiu decisões européias e recusou o registro. Ocorre que, em dezembro, por indicação médica, uma paciente solicitou à Justiça gaúcha o tratamento com Iressa. Mesmo se referindo a uma droga sem registro e fora dos protocolos brasileiros a Justiça lhe foi favorável. O Estado só não pagou o tratamento em razão da morte da paciente. Em São Paulo, o governo é obrigado pelo STJ a importar o remédio. O custo: R$ 23.000,00 por paciente, durante três meses”.

Na mesma matéria, o Desembargador Genaro Baroni Borges do Tribunal de Justiça define a situação da saúde como “judicialização da saúde”. Por fim, consta, ainda, que no Rio Grande do Sul são mais de 4,7 mil ações judiciais exigindo medicamentos.

3. A saúde e a dignidade humana

Quando se fala no tema da saúde, relaciona-se o assunto, logo, ao conceito de dignidade humana. Na Justiça Federal há, ainda, enorme demanda relacionada ao benefício assistencial, em que esse princípio é igualmente invocado. Nesse contexto, devemos tentar identificar o conteúdo mínimo; de tal expressão, pois contém valores metajurídicos, por ser bastante ampla e genérica. O objetivo é procurar elementos que esbocem sua figura no âmbito jurídico constitucional. Assim, pode-se dizer que dignidade da pessoa humana veicula, entre outros, o seguinte valor: todo ser humano é uma pessoa, dotado de personalidade, com direitos e deveres, membro da sociedade em que vive e merecedor de uma existência humana, e não subumana. Esta afirmação implica disponibilização, a cada pessoa, de condições mínimas de sustento próprio e de relacionar-se com a sociedade em que vive.

José Cretella Júnior,(9) citando Zanobini, asseverou que:

"nenhum bem da vida apresenta tão claramente unidos o interesse individual e o interesse social, como o da saúde, ou seja, do bem-estar físico que provém da perfeita harmonia de todos os elementos que constituem o seu organismo e de seu perfeito funcionamento. Para o indivíduo, saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade econômica e especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado de doença não só constitui a negação de todos estes bens, como também representa perigo, mais ou menos próximo, para a própria existência do indivíduo e, nos casos mais graves, a causa determinante da morte. Para o corpo social a saúde de seus componentes é condição indispensável de sua conservação, da defesa interna e externa, do bem-estar geral, de todo progresso material, moral e político.”

Sobre as inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, veja-se o que disse Clèmerson Merlin Clève,(10) :

“Tomamos em 1988 as rédeas do nosso destino. Definimos que haveríamos de formar uma nova comunidade republicana. Uma comunidade republicana integrada por todos os brasileiros e estrangeiros residentes nesse imenso país. Seríamos capazes de definir numa Carta quais seriam os princípios que presidiriam a nossa convivência. Quais seriam os objetivos fundamentais desta sociedade que se articulava e que buscava um mundo novo com muita esperança. Definimos, ao mesmo tempo, quais eram os direitos fundamentais que nós certamente iríamos defender e defender ainda que fosse na trincheira. Queríamos, naquele momento, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Para a realização desses princípios, objetivos e direitos fundamentais, organizamos o Estado brasileiro. Que talvez não tenha sido, no que concerne ao modo de conformação de seu aparelho administrativo, o melhor Estado, concebido a partir das melhores fórmulas. Sim, pois a Constituição foi elaborada antes das surpreendentes mudanças pelas quais passaram o mundo ultimamente, motivo pelo qual as condições estruturais para a realização do discurso constitucional igualmente mudaram (de modo veloz). De qualquer modo ficou acertado naquele momento que o Estado seria o instrumento da comunidade republicana brasileira para a construção da sociedade livre, justa e solidária. Uma sociedade presidida por aqueles princípios, contaminada por aqueles objetivos, e ao mesmo tempo preservando aqueles direitos fundamentais. O que seria o Estado, portanto, para nós o povo que estivemos na Assembléia Nacional Constituinte, por meio de nossos representantes eleitos, o que seria o Estado, cumpre repetir, senão esta máquina, esse espaço, esse instrumento voltado à realização dos princípios, a prossecução dos objetivos e a defesa intransigente dos direitos fundamentais? A questão é saber de que maneira a efetividade dos direitos fundamentais sociais pode ser alcançada. Qual é o papel do Poder Judiciário nesse campo? Quais os limites da atuação judicial nesse universo de direitos?”

4. Do caráter meramente programático do direito à saúde ao reconhecimento de que se trata de Direito Subjetivo. A evolução da jurisprudência

Nossa Constituição Federal de 1988 foi a primeira a reconhecer o direito à saúde expressamente como direito fundamental. Consagrou o princípio da dignidade humana, inserindo-o como um dos fundamentos da república fundamental do Brasil, constituída em estado democrático de direito.

“Como expressão do direito à vida, imbuído na noção de dignidade da pessoa humana, o direito à saúde situa-se, assim, como direito individual fundamental (artigo 5º da Constituição Federal), e sua satisfação encontra-se no cerne dos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro (artigo 1º, III, da Constituição Federal). De forma objetiva, consta já no elenco de direitos sociais trazidos pelo artigo 6º da Carta Constitucional.”(11)

Não se pode deixar de referir que a Constituição, de acordo com Konrad Hesse, citado por Andreas Krell(12) não configura apenas expressão de “um ser”, mas também de um “dever ser”; “ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas, procurando imprimir ordem e conformação à realidade política e social”.

Nesta área, a doutrina é fortemente influenciada pelo direito alemão e, em geral, refere tratarem-se as normas constitucionais em apreço, de cunho programático, veiculadoras de princípios, esquemas genéricos ou programas, a demandar regulamentação posterior pela legislação ordinária.

Nesse sentido era a posição inicial dos nossos Tribunais, expressa na seguinte ementa:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. INEXISTÊNCIA. Direito líquido e certo, para efeito de concessão de segurança, é aquele reconhecível de plano e decorrente de lei expressa ou de preceito constitucional, que atribua ao impetrante um direito subjetivo próprio. Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito à saúde – protegem um interesse geral, todavia, não conferem, aos beneficiários desse interesse o poder de exigir sua satisfação – pela via do mandamus – uma vez que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o múnus de completá-las através da legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da Constituição Federal de 1988) são de eficácia limitada, ou, em outras palavras, não têm força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não dispõem de eficácia plena’, pois dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação complementar. Na regra jurídico-constitucional que dispõe que ‘todos têm direitos e o Estado o dever’ – dever de saúde – como afiançam os constitucionalistas, na realidade todos não têm direito, porque a relação jurídica entre o cidadão e o Estado devedor não se fundamenta em vinculum juris gerador de obrigações, pelo que falta ao cidadão o direito subjetivo público, oponível ao Estado, de exigir em Juízo, as prestações prometidas a que o Estado se obriga por proposição ineficaz dos constituintes. No sistema jurídico pátrio, a nenhum órgão ou autoridade é permitido realizar despesas sem a devida previsão orçamentária, sob pena de incorrer no desvio de verbas. Recurso a que se nega provimento.”(13) (grifei)

No entanto, encontramos na doutrina(14) que:

“Deve-se ressaltar que a programaticidade do sistema de saúde previsto pela Constituição, isto é, no que pertine a todos os seus aspectos físico-biológicos, ambientais e socioeconômicos, não se confunde com o referente ao atendimento médico-hospitalar em caso de doença ou enfermidade e o correlato fornecimento de medicação. Nesse sentido é que José Afonso da Silva exclui da classificação programática a norma pertinente ao direito à saúde, afirmando que ‘ela institui um dever correlato a um sujeito determinado: o Estado – que, por isso, tem a obrigação de satisfazer aquele direito. Se este não é satisfeito, não se trata de programaticidade, mas de desrespeito ao direito, de descumprimento da norma’”.

Também Ingo Wolfang Sarlet(15) refere, sobre o tema, que, “ao admitirmos um caráter programático das disposições constitucionais a respeito da saúde, não estamos com isso renunciando à possibilidade de – para além desta dimensão programática – reconhecer também normas que outorgam direitos subjetivos, inclusive de cunho prestacional”.

Nesse sentido, já houve uma mudança de entendimento no próprio Superior Tribunal de Justiça,(16) quando se reconheceu um direito líquido e certo à saúde, impondo-se o fornecimento de medicamento para esclerose lateral amiotrófica. Também pelo Supremo Tribunal Federal(17) , em processo relacionado a medicamentos para pacientes portadores de HIV, reconheceu-se que a saúde é direito público subjetivo. Vejamos:

“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição Federal (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir aos cidadãos, inclusive àqueles portadores de HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar”.

Em sede de Recurso Extraordinário,(18) o Supremo Tribunal Federal manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, com base na Lei Estadual nº 9.908/93, reconheceu a obrigação deste Estado em fornecer, de forma gratuita, medicamentos para portadores do vírus HIV que, comprovadamente, não podiam arcar com estas despesas sem privar-se dos recursos necessários ao sustento da própria família. Considerou-se que referida lei regulamentou o art. 196 da Constituição Federal, não havendo que se falar em necessidade de normatividade ulterior.

No primeiro grau da Justiça Federal, encontramos decisão em antecipação da tutela que, em ação civil pública,(19) ajuizada pela OAB – Seção São Paulo em face da União Federal, deferiu liminar para que esta fornecesse prótese necessária a toda criança e adolescente que tenha sofrido amputação de membros em decorrência de tratamento para câncer no âmbito da Fundação Pio XII de Barretos (Hospital do Câncer). Ficou assentado, contudo, na decisão que, “diante da enorme gama de ações assistenciais que são atualmente geridas e custeadas pelo Poder Público, para receber a prótese, o interessado deveria comprovar que não possui renda para custear o tratamento”. Determinou-se, então, que, em cada caso de requisição, fosse realizado prévio estudo por assistente social do Município em que reside a criança ou adolescente.

Distingue-se, então, a saúde integral, objetivo a ser implantado pelo Estado, do direito à vida, que engloba ações básicas de saúde, este direito fundamental de aplicabilidade direta e imediata.

5 O Mínimo Existencial ou Piso Mínimo Normativo

É bem conhecida a afirmação de Norberto Bobbio, feita já na década de 60 do século passado, de que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”. Para Bobbio, desde que a maior parte dos governos existentes proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, demonstrando haver consenso a respeito de quais os direitos humanos que devem ser protegidos na sua relação com o Estado, a questão dos fundamentos perdeu grande parte do seu interesse.(20)

Para Andreas Krell(21) “a eficácia dos direitos fundamentais sociais a prestações materiais depende dos recursos públicos disponíveis”. Nesse contexto, temos que a Constituição Federal de 1988 também trouxe o mínimo existencial ou o piso mínimo normativo e suas garantias. Para Barroso,(22) este “padrão mínimo” no cumprimento das tarefas estatais poderia, sem maiores problemas, ser ordenado por parte do Judiciário. Para ele, “a denegação dos serviços essenciais de saúde acaba por se equiparar à aplicação de uma pena de morte”.

Filósofos e juristas têm defendido a tese de que o Estado deve garantir o "mínimo existencial", ou seja, os direitos básicos das pessoas, sem intervenção para além desse piso. Dizem, ainda, que esse mínimo depende da avaliação do binômio necessidade/capacidade, não apenas do provedor, mas, também, daqueles a quem se prometeu a implementação da satisfação daquelas necessidades. Além disso, como vem sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência de diversos países, por força do princípio da dignidade humana, todo ser humano possui um direito ao mínimo existencial, o que significa um direito aos meios que possibilitem a satisfação das necessidades básicas, entre as quais a necessidade de ter saúde.

Inegavelmente, a saúde insere-se no mínimo existencial, para uma vida digna. Então, nesse contexto, a Justiça, quando é acionada para concessão de medicamentos e tratamentos médicos, mesmo que demandem altos custos, ou até realização no exterior, teria, inegavelmente, que conceder a tutela pretendida, porque para aquela pessoa que está pedindo, este é o único meio de garantir o seu direito ao mínimo existencial.

Ocorre que vivemos em um País de inúmeras carências, como já referido no início, com precárias condições de atendimento na área da saúde. Então, o entendimento que tem predominado é o de que há necessidade, na matéria direito à saúde, de apreciação razoável do direito que se pretende, não sendo possível conceder-se tratamentos caros, no exterior, que em regra são experimentais.

Também há, ainda, forte corrente no sentido de que a matéria exige prévia regulamentação legislativa (hoje, temos, além da Lei que regula o SUS (Lei nº 8.080/90), a de nº 8.142/90 e Resolução nº 283/91; a Lei nº 9.313/96; e, na área estadual, a Lei Estadual nº 9.908/93, estas duas relativas a medicamentos), na linha do entendimento de que se cuida de direito que, por sua feição econômica, implica alocação de recursos materiais e humanos, sendo apenas o legislador o legitimado constitucionalmente para dispor sobre tal matéria, submetido a uma reserva do possível.

Tal entendimento deve ser compatibilizado com o direito fundamental à vida. Há que se fazer uma ponderação entre esses direitos, porquanto trata-se de situações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria – na maioria das vezes – o comprometimento irreversível de um bem da vida, essencial, como o é o da saúde.

6 A compatibilidade das decisões judiciais reconhecendo o direito à saúde com a realidade do nosso país

Em aula proferida no módulo de direito administrativo, citando seu artigo A concretização de direitos e a validade da tese da Constituição dirigente em países de modernidade tardia, Lenio Luiz Streck fala em um contexto de baixa constitucionalidade, num País que ele denomina de periférico e de modernidade tardia. Relata as dificuldades encontradas no Poder Judiciário, por parte dos operadores do Direito, em declarar inconstitucionalidades de modo difuso – enfraquecimento do controle difuso. Diz que a Constituição continua a ser interpretada de acordo com leis infraconstitucionais (casos em que o Supremo Tribunal Federal deixa de apreciar inconstitucionalidades sob pretexto de que a violação, antes de ser da Constituição Federal, é da lei ordinária). Cita o exemplo da hipótese em que a parte alega violação do disposto no artigo 5º, que trata do direito adquirido, ocasião em que o Supremo tem remetido a discussão da inconstitucionalidade para o plano de resolução de antinomia, uma vez que o direito adquirido também está previsto na lei de introdução ao Código Civil. Refere, entre outros, ainda, a obrigatoriedade da presença de advogado no interrogatório e de como a dogmática jurídica somente admitiu a tese – que sempre esteve na Constituição, relacionado aos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e de outras garantias – depois da aprovação da Lei nº 10.792/2003.

Em seu artigo,(23) a Desa. Federal Marga Barth Tessler trata da matéria enfocando a saúde em seu aspecto dúplice, da saúde como direito humano e social e da saúde como dever do Estado e pessoal. Diz que o artigo 196 da Constituição Federal inscreve a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, sendo que a Lei nº 8.080/90 ao regular as ações e serviços de saúde estabelece que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

“A solução está, portanto, em buscar, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade.”(24)

O exemplo do medicamento Iressa (mencionado no item A Situação Atual) bem expressa a preocupação que devemos ter com os efeitos de nossas decisões, mormente em área tão delicada quanto é a da saúde, bem como para vermos a importância do uso da razoabilidade quando nos deparamos com situações da espécie.

Felizmente, de uma análise da jurisprudência dos nossos Tribunais, verifica-se que, em regra, não tem sido imposto ao Poder Público o custeio de tratamentos ou terapias alternativas, quando em fase de estudo ou pesquisa, ou ainda não registradas na Vigilância Sanitária e no Ministério da Saúde. Nesse sentido, decisão do Superior Tribunal de Justiça:(25)

“ADMINISTRATIVO – SERVIÇO DE SAÚDE – TRATAMENTO NO EXTERIOR – RETINOSE PIGMENTAR. 1. Parecer técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da ‘retinose pigmentar’ no Centro Internacional de Retinoses Pigmentárias em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763, proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS. 2. Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4. Mandado de segurança denegado.”

No mesmo sentido, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região(26) ficou assentado, em decisão envolvendo portadores de HIV e doentes de AIDS que:

“Medicamentos não constantes da lista oficial não podem ser concedidos mediante decisão judicial em ação civil pública, dado seu caráter genérico e universal, assumindo indisfarçável caráter normativo de extensão subjetiva tão abrangente quanto o da própria lei, mas em sentido contrário a ela, revogando a mesma, e sendo imprópria para provimentos jurisdicionais.”

Ainda, também em relação a portadores de HIV, foi decidido que não podem ser fornecidos medicamentos não constantes da lista do Ministério da Saúde, exceto se houver elementos fornecidos por especialistas acerca de sua eficácia e de seus efeitos colaterais. Eis a ementa:(27)

“PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REQUISITOS. NÃO-PREENCHIMENTO. 1. (...) 3. Modificada a decisão que concedeu a antecipação de tutela em parte, permitindo a utilização de medicamentos não constantes da lista do Ministério da Saúde, pois não obstante ser compreensível a situação dos portadores de doença grave como a AIDS, o uso de medicamentos ainda não aprovados poderia significar o agravamento do estado de saúde do paciente. 4. O Judiciário não pode conceder liminar sem elementos fornecidos por especialistas acerca da eficácia e dos efeitos colaterais dos medicamentos, sob pena de estar pondo em sério risco a saúde e a própria vida dos portadores do vírus HIV. 5. Agravo provido”.

No caso, o fundamento principal é o resguardo da saúde do paciente, além de haver preocupação em relação à possível quebra de patentes e desorganização do próprio Sistema de Saúde.

Em outro processo, na mesma Corte,(28) foi confirmada liminar concedida em ação civil pública que obrigava a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de Joinville, a fornecer medicamentos a duas pessoas portadoras, respectivamente, do mal de Parkinson e de atrofia múltiplo sistema, doenças degenerativas do sistema nervoso central. Alguns medicamentos faziam parte da lista oficial da União de medicamentos excepcionais (Cronomet e Prolopa dispersível), e outro (Lioresal 10 mg) não fazia parte da lista oficial, mas no caso não havia sido apontada restrição quanto ao seu uso ou comercialização, além do mesmo estar registrado na Vigilância Sanitária e no Ministério da Saúde.

Particularidades

Alguns aspectos que estão necessariamente ligados ao tema, porque alegados pelo Poder Público em sua defesa, nas ações judiciais, e que por isso devem ser mencionados neste artigo, ainda que de forma breve:

1. Legitimidade Passiva

A União Federal é parte passiva legítima para as ações que buscam prestações relacionadas à saúde, pois há solidariedade entre os entes federativos (União, Estados e Municípios). Assim foi decidido no Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.011935-9/RS e no REsp nº 656979. Seguem algumas decisões sobre o ponto:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - SUS - OFENSA AO ART. 535 DO CPC - INEXISTÊNCIA – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS - LEGITIMIDADE DA UNIÃO. 1. Em nosso sistema processual, o juiz não está adstrito aos fundamentos legais apontados pelas partes. Exige-se, apenas, que a decisão seja fundamentada, aplicando o magistrado ao caso concreto a legislação considerada pertinente. Inocorrência de violação ao art. 535 do CPC. 3. O funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que, qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. 4. Recurso Especial conhecido em parte e improvido (Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 704067/DJ. 23.05.2005 p. 240. Rel. Min. Eliana Calmon)”. (grifei)

“RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE C . DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. UNIÃO. LEGITIMIDADE. 1. Ação objetivando a condenação da entidade pública ao fornecimento gratuito dos medicamentos necessários ao tratamento de Hepatite C. 2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa à integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 3. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão posto legítima e constitucionalmente garantida, uma vez assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida. A saúde, como de sabença, é direito de todos e dever do Estado. 4. A União é parte legítima para figurar no pólo passivo nas demandas cuja pretensão é o fornecimento de medicamentos imprescindíveis à saúde de pessoa carente. 5. Recurso Especial desprovido. (Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 658323. DJ 21.03.2005 p. 272. Rel. Min. LUIZ FUX)”. (grifei)

2. Irreversibilidade da Medida Liminar

Tem sido reiteradamente decidido pela Jurisprudência que “a irreversibilidade da medida não constitui óbice ao deferimento de antecipação da tutela, sendo risco inerente ao processo judicial e ao Estado Democrático de Direito, e como tal deve ser suportado por toda a Sociedade”. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AGRG no RE 271/286/RS.

Na Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul, relativo a benefícios previdenciários e assistenciais, tem sido decidido, sobre a questão, que “o caráter nitidamente alimentar e de proteção da subsistência e da vida digna, próprio dos benefícios previdenciários, deve prevalecer sobre a genérica alegação de dano ao erário público e de eventual perigo de irreversibilidade”. RECURSO JEF Nº 2002.71.05.008193-8/RS. Relator Juiz Federal Caio Roberto Souto de Moura. 01.03.2005.

Ainda, decidiu-se, no âmbito da Turma Recursal,(29) que:

“O caráter satisfativo das medidas que determinam o pagamento de prestações previdenciárias não impede a antecipação da tutela, uma vez que a natureza alimentar de tais parcelas sobrepõe-se, por sua essencialidade, à irreversibilidade do provimento antecipado, não havendo risco de esgotamento do objeto da ação”. (grifei)

Tais fundamentos, relativos aos benefícios previdenciários e seu caráter alimentar, relacionado à vida digna, podem ser aproveitados para demandas relativas à saúde, que também estão relacionadas à dignidade humana.

Conclusão

O magistrado, ao analisar pedidos que versem sobre fornecimento de medicamentos e internação hospitalar, deve considerar:

1 Há direito subjetivo à saúde como prestação, tendo sido assentado em acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, rel. Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, que há um comprometimento de larga parcela do Poder Judiciário com a causa da vida e da dignidade da pessoa humana.(30) No entanto, prevalece o entendimento de que o direito refere-se às ações básicas nesta área e para pessoas comprovadamente carentes.

2 O direito subjetivo à saúde, no seu aspecto prestacional, deve ser compatível com a realidade econômica do nosso País, não sendo possível se deferir, em ações judiciais, por exemplo, o custeio para tratamento no exterior, de altíssimo custo, que em regra são experimentais.

3 Geralmente, aquele que aporta ao Poder Judiciário na busca deste tipo de tutela demanda por medida liminar, devendo, na medida do possível, ser concedida, no todo ou em parte, quando houver risco de comprometimento da saúde de forma irreversível.

4 Já está assentado que inexiste vedação à antecipação de tutela contra a Fazenda Pública no tocante aos benefícios previdenciários, mormente em face do seu caráter marcadamente alimentar e de proteção da subsistência e da vida, prevalecente sobre a genérica alegação de dano ao erário público e de eventual risco de perigo de irreversibilidade. Esta interpretação pode ser feita, da mesma forma, para ações que digam respeito à saúde, por seu caráter nitidamente emergencial, e também de proteção à vida. A proibição da concessão da tutela prevista na Lei 9.494/97, reconhecida constitucionalmente pelo Supremo Tribunal Federal, diz respeito tão-somente à matéria atinente à reclassificação, equiparação, concessão de aumentos, extensão de vantagens e a pagamento de vencimentos a servidores públicos, não obstando, assim, o deferimento da medida antecipatória contra o ente público. Nesse sentido, algumas decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

Agravo de Instrumento. Tutela antecipada. Direito à Saúde. Fornecimento de medicamentos. Tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 (art. 5º e 196) e a Lei nº 8.080/90 asseguram a assistência terapêutica integral e, ainda, porque é dever do Estado (União, Estados e Municípios) prover as condições indispensáveis ao exercício pleno do direito à saúde, correto se afigura determinar ao Estado de Santa Catarina fornecer ao autor a medicação de que este necessita, segundo prescrição médica.”(31)

Administrativo. Antecipação da tutela. Fornecimento de medicamentos. 1. A vedação de antecipação da tutela contra a Fazenda Pública não é absoluta, restringindo-se às hipóteses previstas no art. 1º da Lei nº 9.494/97, não sendo aplicável ao caso dos autos, em que autor postula o fornecimento de medicação para tratamento de hepatite C. 2. O medicamento é fornecido regularmente segundo a listagem do Ministério da Saúde, no entanto, o agravado deve sujeitar-se à regular dispensação dos remédios, não podendo o Judiciário possibilitar que o paciente burle o fornecimento administrativo de medicamentos. 3. Agravo regimental desprovido.”(32)

5 Em se tratando de pedido para fornecimento de medicamento importado, verificar se não há referências a possível similaridade com medicamentos já produzidos em território nacional ou se há referências sobre a possibilidade de ser utilizado o princípio ativo do medicamento e ser o remédio manipulado no Brasil.

6 Ouvir, na medida do possível, os órgãos responsáveis pela saúde pública, o órgão gerenciador das listas e precedência das pessoas atendidas,(33) atendendo, assim, ao princípio do contraditório, investigando sobre a necessidade e disponibilidade do tratamento, sob pena de desorganizar e tumultuar as prioridades legitimamente estabelecidas e, conseqüentemente, o atendimento à saúde.

“Não é ônus do Judiciário administrar o SUS, nem se pode, sem conhecimento exato sobre as reais condições dos enfermos, conferir prioridades que só virão em detrimento daqueles doentes que já aguardam ou já recebem a medicação e não poderão interromper tratamento. Não se pode deixar de pesar as conseqüências que uma medida como a deferida causa no sistema. Os recursos do SUS são, notoriamente, escassos. Deferir-se, sem qualquer planejamento, benefícios para poucos, ainda que necessários, podem causar danos para muitos, consagrando-se, sem dúvida, injustiça.” (34)

7 A União, como principal mantenedora, gestora, reguladora e fiscalizadora dos recursos destinados à área da saúde, não pode se omitir de seus deveres. A jurisprudência do nosso Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Superior Tribunal de Justiça é no sentido, quase pacífico, de que a União é parte legítima nestas ações, porque há solidariedade dos três entes federativos para integrar o pólo passivo. Nesse sentido, o Agravo de Instrumento nº 2005.04.01.017145-7/PR, Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, que cita julgado do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido; Agravos de Instrumento nos 127906 e 127183 e Apelação Cível nº 618794, sendo em todos relator o Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon.

Referências bibliográficas

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 23/24.

CRETELLA JÚNIOR. JOSÉ. Comentários à Constituição de 1988. vol. III.

CLEVÈ, Clémerson Merlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Palestra proferida no Congresso Brasileiro de Direito Constitucional. Curitiba, 2002. Disponível na Internet: . Acesso em 07 de junho de 2005.

FORTES, Simone Barbisan e outro. Direito da Seguridade Social: prestações e custeio da Previdência, Assistência e Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

KRELL. Andreas J. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na base dos Direitos Fundamentais Sociais. A Constituição Concretizada. Construindo Pontes com o Público e o Privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2000. p. 25-60.

Metas do Milênio para a Saúde: acesso a medicamentos é um dos grandes desafios. Artigo obtido no site http://www.opas.org.br/medicamentos/noticias/ver_not.cfm?codigo=134.

Remédios caros são empurrados para o SUS – O Poder Público tem sido obrigado pela Justiça a fornecer a pacientes medicamentos sequer reconhecidos pelo Ministério da Saúde. Jornal Zero Hora, 12 jun, 2005, p. 38 - 39.

SANT'ANA, Paulo. Um Bárbaro Holocausto. Jornal Zero Hora, 11 fev. 2005. p. 63.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3. ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2003.

_______. Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Caderno de Direito Administrativo nº 04/2004. Volume I. Escola da Magistratura. Cursos de Currículo Permanente. TRF da 4ª Região. p. 61 - 68.

STRECK. Lenio Luiz. A Concretização de Direitos e a Validade da Tese da Constituição Dirigente em Países de Modernidade Tardia. Caderno de Direito Administrativo nº 4 – Volume II. Escola da Magistratura. TRF 4ª Região. p. 103-131.

TESSLER, Marga Inge Barth. O Direito à Saúde. A Saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, nº 40, p. 13-110, 2001.

Anexos

Jurisprudência

1. EG. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO.

TRATAMENTO CIRÚRGICO GRATUITO. GRAVE ESCOLIOSE “TORÁCICO-LOMBAR”. TUTELA ANTECIPADA. LEGITIMIDADE PASSIVA.

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2005.04.01.017145-7/PR

RELATOR : DES. FEDERAL LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON

DECISÃO

Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que, em autos de ação ordinária, concedeu antecipação de tutela, determinando à União e aos ora interessados que, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, realizem o tratamento cirúrgico da parte agravada. Sustenta a União, em síntese, que: a) houve cerceamento de defesa, porque não lhe foi oportunizada a produção de provas; b) necessário reconhecer a sua ilegitimidade passiva no presente feito; c) é inviável a antecipação de tutela em face da União; d) há restrições à tutela antecipada contra o Poder Público; e) é irreversível a decisão. Há pedido de efeito suspensivo.

Decido. Inicialmente, esclareço que a antecipação de tutela foi concedida no bojo de uma sentença que julgou parcialmente a pretensão da parte autora, ora agravada, determinando que a União e as partes ora interessadas forneçam o tratamento prescrito ao agravado, de forma totalmente gratuita, mediante a realização de tratamento cirúrgico no hospital das Clínicas de Curitiba, devendo disponibilizar, ainda, todos os medicamentos indispensáveis ao tratamento, pré e pós-operatório.

Dos documentos acostados aos autos constata-se que o agravado é portador de séria e grave escoliose "torácico-lombar" desde os primeiros anos de vida, enfermidade de natureza ortopédica que necessita de delicada e complexa intervenção cirúrgica para a reparação.

Não vejo o cerceamento de defesa apontado pela agravante, considerando-se que lhe foi dada a oportunidade de se manifestar, tendo ela inclusive acostado documentos nos autos do processo principal (fls. 113/184 dos autos principais).

De outro lado, a legitimidade passiva da União está caracterizada porque há solidariedade dos três entes federativos para integrar o pólo passivo da presente demanda, que envolve atendimento hospitalar prestado pelo Sistema Único de Saúde - SUS.

O seguinte julgado do E. STJ estampa: “ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTO OU CONGÊNERE. PESSOA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS. FORNECIMENTO GRATUITO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS.

1. Em sede de recurso especial, somente se cogita de questão federal e não de matérias atinentes a direito estadual ou local, ainda mais quando desprovidas de conteúdo normativo.

2. Recurso no qual se discute a legitimidade passiva do Município para figurar em demanda judicial cuja pretensão é o fornecimento de prótese imprescindível à locomoção de pessoa carente, portadora de deficiência motora resultante de meningite bacteriana.

3. A Lei Federal nº 8.080/90, com fundamento na Constituição da República, classifica a saúde como um direito de todos e dever do Estado.

4. É obrigação do Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação ou congênere necessário à cura, controle ou abrandamento de suas enfermidades, sobretudo, as mais graves.

5. Sendo o SUS composto pela União, Estados-membros e Municípios, é de reconhecer-se, em função da solidariedade, a legitimidade passiva de quaisquer deles no pólo passivo da demanda.

6. Recurso especial improvido.

(RESP 656979/RS ; Relator(a) Ministro CASTRO MEIRA (1125), Órgão Julgador T2, Data da Publicação/Fonte DJ 07.03.2005 p. 230) (g.n).

Quanto à alegação de que há vedação à concessão de antecipação de tutela contra a União, trago julgados desta Corte, admitindo o deferimento de tutela antecipada contra o Poder Público em casos tais, conforme as decisões a seguir:

"PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. RESTABELECIMENTO IMEDIATO. BENEFÍCIO. (...) 3. A proibição da antecipação de tutela contra o Poder Público deve ser abrandada, diante da supremacia do direito à vida, à igualdade e à justiça assegurados pela Constituição Federal. (...)” (TRF da 4ª REGIÃO. AGRAC - AGRAVO REGIMENTAL NA APELAÇÃO CIVEL nº 2000.04.01.072004-2 UF: RS Órgão Julgador: QUINTA TURMA Fonte DJU DATA:14/02/2001 PÁGINA: 327 DJU DATA:14/02/2001 Relator JUIZ TADAAQUI HIROSE)"

"PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS. RESTABELECIMENTO DE AUXÍLIO-DOENÇA (...) 2. A suposta impossibilidade de antecipação de tutela contra o Poder Público é afastada pelo princípio constitucional maior que assegura a inafastabilidade do controle jurisdicional de qualquer lesão ou ameaça de lesão (art. 5º, XXXV, CF).

3. A irreversibilidade da medida não constitui óbice ao deferimento de tutela, sendo risco inerente ao processo judicial e ao Estado Democrático de Direito, e como tal, deve ser suportado por toda a sociedade. (....)” (TRF da 4ª REGIÃO. AG nº 2003.04.01.039364-0/SC. Órgão Julgador: QUINTA TURMA. Fonte DJU DATA:07.01.2004 PÁGINA: 344 DJU DATA:07.01.2004. Relator JUIZ FERNANDO QUADROS DA SILVA)

Pertinente à impossibilidade de medida que esgote o objeto da ação, o regramento relaciona-se com sua irreversibilidade, o qual - assevere-se - foi reproduzido no § 2º, do art. 273, do CPC. Tal regramento, contudo, de olhos postos na situação fática, deve ser relativizado, sob pena de ver-se obstada, em casos-limite, a concessão do provimento antecipatório. Assim, põe-se em confronto a segurança jurídica e a efetividade da jurisdição. Neste quadro, a interpretação literal ao dispositivo de lei, ver-se-á amparando o improvável direito do agravante em detrimento do irrefutável direito fundamental à saúde do agravado. Para o equacionamento da questão, como ensina Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, citando Egas Moniz de Aragão:

"Quando o problema consista em determinar onde se situa o limite da satisfação lícita de um interesse à custa de outro (...) também digno de tutela'', deve o juiz ponderar os interesses em jogo à luz do chamado princípio da proporcionalidade: quanto mais grave for a interferência do provimento na esfera do peticionado, tanto mais rigoroso tem de ser o exame do direito e tanto mais severas hão de ser as exigências a impor a quem cabe tornar críveis as alegações" (Da Antecipação da Tutela, in Revista de Jurisprudência da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, nº 3, pg. 235, ano 1996).

Assim, a irreversibilidade dos efeitos da medida, prevista no § 2º do art. 273 do CPC, não se pode erigir em impedimento inafastável ao deferimento de provimento antecipatório em casos como o dos autos, em que o autor, por absoluta falta de outro recurso, socorre-se dos valores derivados do restabelecimento do pagamento da sua aposentadoria. O princípio da proporcionalidade deve inspirar a prestação jurisdicional, de jeito que na colisão de interesses deve o julgador precatar aquele de maior valor, o qual, no caso, reputo ser o pertencente ao agravado.

Sobre o mérito propriamente, cabe registrar que o Supremo Tribunal Federal assim tem se posicionado sobre a questão: "o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito fundamental que assiste a todas as pessoas representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. (....). O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, (....), dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade." (AGRG. no Recurso Extraordinário nº 271.286/RS, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 24.11.2000).

O Superior Tribunal de Justiça vem, em casos quejandos, assentando diretriz no seguinte sentido: "RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535, II, DO CPC. INEXISTÊNCIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA PESSOA CARENTE. LEGITIMIDADE DA UNIÃO, DO ESTADO E DO MUNICÍPIO PARA FIGURAREM NO PÓLO PASSIVO DA DEMANDA. (...)

3. A Carta Magna de 1988 erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196). Daí, a seguinte conclusão: é obrigação do Estado, no sentido genérico (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação necessária para a cura de suas mazelas, em especial, as mais graves.

4. Sendo o SUS composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos três entes federativos no pólo passivo da demanda

5. Recurso especial desprovido."

(RESP 507.205/PR, rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ 17.11.2003)

Do exposto, indefiro o efeito suspensivo requerido.

Intime-se a parte agravada para apresentar resposta.

Porto Alegre, 10 de maio de 2005.

2. TERCEIRA TURMA. SAÚDE PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE. AVALIAÇÃO. NECESSIDADE E DISPONIBILIDADE DO TRATAMENTO.

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.011935-9/RS

RELATORA-:-DES. FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER

DECISÃO

Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que deferiu pedido de antecipação da tutela, determinando aos réus que providenciem, no prazo de vinte dias, o fornecimento do medicamento Mabithera (rituximab), na dosagem de 06 frascos de 500 mg e 12 frascos de 100mg.

Insurge-se a União Federal defendendo sua ilegitimidade passiva. Afirma não existir órgão federal competente para distribuição de medicamento ao consumidor final. A distribuição de medicamentos, informa, seria da competência do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Sua responsabilidade seria a de repassar os medicamentos às Secretarias de Saúde dos Estados. Sustenta não haver vedação legal à antecipação de tutela no caso. No mérito propriamente dito, alega que a atividade da Administração é organizada, no sentido de que são elaborados levantamentos para verificar quais as doenças e necessidades mais comuns à população mais carente. Não caberia ao Judiciário, assim, avocar para si a condição de administrador, ditando em que o administrador deveria aplicar os valores arrendados sem observar planos e previsões orçamentárias.

Requer a concessão do efeito suspensivo para, no mínimo, condicionar-se a concessão do medicamento à efetiva comprovação da necessidade do uso de Matibhera (ribuximab), fornecendo-se prazo maior à administração para cumprimento da decisão.

Decido.

Evidente o risco de lesão grave e de difícil reparação, tendo em vista o valor de R$ 60.130,00 a ser suportado pelos SUS, passo à análise sobre a presença da relevância na fundamentação da parte recorrente.

A concessão de medidas antecipatórias contra os interesses da Administração Pública não tem o alcance pretendido pela agravante. A possibilidade de tais concessões começa ao se analisar a Lei n° 9.494/97 que, embora contenha o comando no sentido de vedar a medida referida contra a Fazenda Pública, deve ser interpretada em conjunto com o sistema de normas que disciplina a matéria, pois a presente questão não é de tão simples solução. Da leitura dos textos legais referidos no art. 1° da Lei n° 9.494/97 (arts. 5º e 7º da Lei n° 4.348/64, art. 1º da Lei n° 5.021/66 e arts. 1º e 3º da Lei n° 8.437/92), depreende-se que a vedação de concessão de medidas liminares contra a Fazenda Pública se aplica apenas quando implique concessão de reclassificação, equiparação entre servidores, concessão de aumentos, concessão ou extensão de vantagens. O pretenso direito buscado na ação originária não contempla nenhuma destas hipóteses. Trata sobre o fornecimento de medicamentos, tema específico não atingido pela vedação legal.

Sobre a legitimidade, melhor sorte não assiste à União. Sua presença na lide resulta exatamente em razão da responsabilidade que afirma possuir quanto ao fornecimento de medicamentos (fl. 05): “verdadeiramente, não cabe à União fornecer medicamentos diretamente para doentes, mas, apenas, repassá-los às Secretarias de Saúde dos Estados, nos termos do art. 198, I, da Constituição da República que estabelece a descentralização dentre os princípios do Sistema Único de Saúde” (sic). O dispositivo da decisão recorrida deve ser interpretado no sentido de que cada órgão responsável pelo fornecimento de medicamentos, seja do Estado seja da União, deve atuar dentro de sua esfera de competência para que o recorrido receba o pretendido no prazo estipulado. Neste sentido, não vislumbro a ilegitimidade da União Federal para a demanda.

No que se refere ao mérito propriamente dito, todavia, é relevante a fundamentação da parte. Segundo consta na decisão recorrida, há nos autos apenas um atestado de um médico particular. Não há referências a possível similaridade com medicamentos já produzidos em território nacional e não há referências sobre a possibilidade de ser utilizado o princípio ativo do medicamento e ser o remédio manipulado no Brasil.

Ora, não deve o Judiciário deferir medidas antecipatórias nestas circunstâncias, sem ouvir os órgãos responsáveis pela saúde pública, sob pena de desorganizar e tumultuar, ainda mais, o atendimento à saúde. Não é ônus do Judiciário administrar o SUS, nem se pode, sem conhecimento exato sobre as reais condições dos enfermos, conferir prioridades que só virão em detrimento daqueles doentes que já aguardam ou já recebem a medicação e não poderão interromper tratamento. Não se pode deixar de pesar as conseqüências que uma medida como a deferida causa no sistema. Os recursos do SUS são, notoriamente, escassos. Deferir-se, sem qualquer planejamento, benefícios para poucos, ainda que necessários, podem causar danos para muitos, consagrando-se, sem dúvida, injustiça.

Prudente que se possibilite os estabelecimento do contraditório para que se investigue sobre a necessidade e disponibilidade do tratamento. Evita-se, assim, que a necessidade de um prejudique a necessidade de muitos.

Pelas razões expostas, defiro o efeito suspensivo pleiteado, suspendendo a decisão recorrida até a manifestação da Terceira Turma.

Intimem-se, sendo que a parte agravada na forma e para os fins do inciso V do artigo 527 do Código de Processo Civil.

Comunique-se.
Porto Alegre, 28 de março de 2003.

Notas

1. Obra citada. p. 26.

2. Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Caderno de Direito Administrativo n. 04/2004. Volume I. Escola da Magistratura. Cursos de Currículo Permanente. TRF da 4ª Região. p. 61/62.

3. RE 267.612 – RS, DJU 23.08.2000, Rel. Min. Celso de Mello.

4. (RE nº 194.674, Rel. Min. Celso de Mello, j. 24.05.99).

5. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3 ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2003, p. 313.

6. Verificar, Zero Hora, 11.02.2005.

7. TESSLER. Marga Inge Barth. O Direito à Saúde. A Saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, n. 40, p. 13-110, 2001.

8. Verificar Zero Hora, dia 12.06.2005, p. 38 e 39.

9. Comentários à Constituição de 1988, vol. III, pág. 4331.

10. Palestra proferida no Congresso Brasileiro de Direito Constitucional (promoção da Academia Brasileira de Direito Constitucional), realizado em Curitiba, no ano de 2002.

11. FORTES, Simone Barbisan e outro. Direito da Seguridade Social: prestações e custeio da Previdência, Assistência e Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 301.

12. KRELL. Andreas J.. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na base dos Direitos Fundamentais Sociais. A Constituição Concretizada. Construindo Pontes com o Público e o Privado. Ingo Wolfgang Sarlet – Organizador. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2000. p. 30.

13. Recurso em Mandado de Segurança n. 6.564/RS (95.0068782-8), Rel. Min. Demócrito Reinaldo. DJU 17.06.96.

14. FORTES, Simone Barbisan e outro. Direito da Seguridade Social: prestações e custeio da Previdência, Assistência e Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. p. 301 – a citação é de José Afonso da Silva. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

15. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3 ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2003, p. 313.

16. ROMS nº 11.183/PR, publicado no DJU em 04.09.2000, Rel. Min. José Delgado.

17. Agravo Regimental no RE n. 271.286-6/RS, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no DJU 24.11.2000.

18. RE 242.859-RS, Rel. Min. Ilmar Galvão, em 29.06.99. Publicado no Informativo 155 do STF.

19. Processo n. 2004.61.02.008940-0 – 5. Vara Federal de Ribeirão Preto. Juiz Federal Substituto Rafael Andrade de Margalho.

20. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus. 1992. p. 23-24.

21. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na base dos Direitos Fundamentais Sociais. A Constituição Concretizada. Construindo Pontes com o Público e o Privado. Ingo Wolfgang Sarlet – Organizador. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2000. p. 29.

22. Citado na obra acima, p. 44.

23. TESSLER. Marga Inge Barth. O Direito à Saúde. A Saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, n. 40, p. 13-110, 2001.

24. Ingo Wolfang Sarlet, em seu artigo Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988.

25. MS 8895/DF, Ministra ELIANA CALMON, em 22.10.2003. DJ 07.06.2004 p. 151.

26. Agravo de Suspensão na Execução de Liminar nº 639, rel. Des. Nylson Paim de Abreu.

27. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento n. 94573. Rel. Des. Federal MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE. DJU DATA:10.07.2002. p. 321.

28. Agravo de Instrumento nº 2005.04.01.017302-8/SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.

29. Processo nº 2003.71.00.049946-2. Relatora Juíza Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha. 25.11.2003.

30. Embargos Infringentes n. 598526481, 4º Grupo de Câmaras Cíveis, 11.06.99.

31. Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.010710-2/SC, 3ª Seção. Rel. Des.. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, j. em 17.06.2003, Fonte: DJ nº 144, 30.07.2003, p. 487.

32. Ag. Regimental n. 2003.04.01.019192-7/SC, 3ª Turma, Rel. Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler, j. em 17.06.2003, Fonte DJ2 129, 09.07.2003, p. 354.

33. TESSLER. Marga Inge Barth. O Direito à Saúde. A Saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, n. 40, p. 89.

34. Tribunal Regional Federal da 4ª Região Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.011935-9/RS. Rel. Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler.

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., novembro 2006. Disponível em:
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Acesso em: .