Sumário: Introdução. 1 Histórico. 1.1 Histórico da responsabilidade civil do Estado no direito pátrio. 1.2 Conceito e fundamento da responsabilidade civil do Estado. 2 Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais em nosso sistema jurídico. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
Inicialmente devemos registrar que o Estado, ao desenvolver suas atividades, poderá causar prejuízos aos administrados, e atualmente vigora o entendimento de que, existindo o dano, deve haver a reparação, respeitadas, obviamente, as causas que ensejam a exclusão da responsabilidade.
No direito pátrio, a Constituição Federal cuidou da matéria em seu art. 37, § 6º – responsabilidade objetiva –, existindo, no entanto, significativa controvérsia no que diz respeito à incidência da disposição constitucional na reparação do evento danoso originado de ato legislativo ou judicial.
Embora polêmica a questão, não podemos negar que os atos emanados do Poder Judiciário, em sua função típica de aplicar o direito, poderão eventualmente provocar dano e prejuízo ao jurisdicionado. E aqui reside grande controvérsia no que se refere às hipóteses em que caberá a reparação.
A par disso, a análise do assunto será efetuada apresentando os pensamentos dos doutrinadores e da jurisprudência, que não são pacíficos, contrariamente, existe um tormentoso debate sobre a responsabilidade do Estado pelos danos que eventualmente poderão decorrer da prestação jurisdicional.
Para os operadores do direito, entendemos extremamente importante estarem a par da controvérsia, pois, à medida que a humanidade caminha, princípios, conceitos, pensamentos, leis etc., para acompanhar esse avançar, devem ser revistos, modificados, restringidos ou ampliados. E as adaptações necessárias acontecem justamente pela riqueza do pensamento humano através de manifestações antagônicas e das necessárias reflexões, para alcançar solução equilibrada.
Embora o tema seja árduo e amplo, o objetivo, aqui, é exatamente apresentar o debate existente, por meio dos diferentes pensamentos dos operadores e estudiosos do direito, e para tanto os itens desenvolvidos serão um breve histórico, com o objetivo de situar a evolução do instituto, o conceito e os fundamentos da responsabilidade civil do Estado e os diferentes pensamentos no que se refere à responsabilidade civil por atos judiciais típicos em nosso sistema jurídico.
1 Histórico
A doutrina da responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública inicialmente contemplava a irresponsabilidade, ou seja, o Estado não era responsável pelos danos que causasse aos particulares no exercício das funções estatais, secularizada na regra inglesa da infalibilidade real – “The King can do no wrong” (O Rei nunca erra).
Devemos ressaltar, contudo, que havia a possibilidade de responsabilização individual dos agentes públicos. Nas palavras de Moraes (2002, p. 231):
“Observe-se, porém, que mesmo nesses casos não ficavam os indivíduos a descoberto de qualquer proteção, pois haveria possibilidade de responsabilização individual dos agentes públicos que, atuando com dolo ou culpa, acarretassem dano a outrem. Ressalte-se, porém, que a responsabilidade existiria em nome próprio, e não como preposto do Estado.”
A obrigação do funcionário de responder pelos seus atos sofria, entretanto, grandes restrições. Além da exigência da culpa grave ou do dolo, deveria ser solicitada prévia autorização do Estado, salvo se tratasse de falta absolutamente pessoal. Esse sistema foi adotado pela Constituição da França de 1791 em seu artigo 75.
Sob a influência do liberalismo, a partir do século XIX, passou-se a admitir a responsabilidade do Estado, com fundamento em teorias civilistas, como a do mandato ou da representação, ou do enriquecimento sem causa, ou ainda do abuso de direito, condicionando-se a responsabilidade estatal à natureza dos atos lesivos praticados pelos agentes ou à situação pessoal dos mesmos.
A teoria de maior destaque foi a que determinou a distinção entre atos de império e atos de gestão, possibilitando a obrigação de reparar apenas os últimos.
Os atos de império, em que não era admitida a responsabilização, diziam respeito à soberania. Já os de gestão se referiam às necessidades sociais de progresso, bem-estar e cultura.
Essa teoria, apesar de representar um avanço em relação à anterior, recebeu inúmeras críticas, uma vez que a necessidade de caracterização da culpa do funcionário a cargo do particular, a individualização do agente culpado e a divisão de personalidade do Estado se constituíram em entraves à responsabilização do Estado.
Bandeira de Mello (1969, p. 419) contestou, com os seguintes fundamentos: “um mesmo ser, na ordem temporal, não pode constituir ao mesmo tempo pessoas distintas, ou ser considerado pessoa com referência a certos atos e deixar de o ser relativamente a outros concomitantemente.”
Deixando de lado a diferenciação entre atos de império e atos de gestão, começou-se a admitir a responsabilidade do Estado amparada na culpa do funcionário, conceito inspirado no Direito Civil.
A imputação ao Estado acontecia quando o dano causado ao administrado proviesse de conduta culposa do agente estatal. Logo, apenas os atos que revelassem a existência de imprudência, imperícia ou negligência do funcionário público obrigariam o Estado. Os atos dolosos eram imputados diretamente ao funcionário.
A teoria da culpa, ainda, estabeleceu uma variedade de distinções entre as modalidades de culpa, como “a culpa de serviço”, “a culpa pessoal”, “culpa in eligendo” e “culpa in vigilando”, para definir quais as situações em que o Estado seria responsável pelos atos de seus agentes.
Tal teoria sofreu inúmeras críticas e acabou sendo afastada, uma vez que o estabelecimento de condicionantes da conduta dos agentes levava a subjetivismos tendentes a eximir o Estado de sua responsabilidade pelo dano causado ao administrado.
Começou, então, a se firmar na doutrina a idéia de que os institutos de Direito Público deveriam se desvincular das regras de Direito Privado. Meirelles defendeu esse entendimento ao afirmar que
“(...) o Estado não pode ser equiparado com seu poder e os seus privilégios administrativos ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas, tornando-se inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil, para a responsabilidade da Administração pelos danos causados aos administrados.”
Nascem a partir de então as teorias publicistas, cujo marco dessa nova fase é o caso “Blanco”, que ocorreu na França em 1873.
A “teoria da culpa administrativa”, primeira das denominadas publicistas, foi o ponto de transição entre as idéias civilistas e a doutrina publicista da responsabilidade do Estado.
O funcionário público deixou de ser simples preposto do Estado, como era entendido no Direito Privado, e passou a agir em nome do Estado com autoridade pública conferida pela sua competência legal. A culpa considerada em seu sentido lato, passa a incluir o dolo e a imprevisão entre suas modalidades, aumentando o campo de incidência da responsabilização.
Em seguimento veio a “teoria do acidente administrativo”, que abordou o primeiro estágio da responsabilidade objetiva do Estado. Essa teoria centralizou a questão da falha de serviço, denominada pela jurisprudência francesa de “faute du service publique”, que se traduz no funcionamento irregular, defeituoso, com retardo ou, ainda, no não-funcionamento do aparelhamento administrativo.
O fundamento da responsabilidade passou a ser a anormalidade do funcionamento público.
A teoria do risco administrativo ou da responsabilidade objetiva sucedeu a teoria do acidente – primeira teoria objetiva da responsabilidade.
A base essencial dessa evolução para a responsabilização do ente público passou a ser a existência do nexo causal entre o evento danoso ocasionado ao particular e o comportamento do órgão ou agente da Administração Pública que ocasionou o dano, em decorrência de sua atuação.
O fundamento da teoria do risco administrativo reside no princípio da igualdade dos administrados diante dos ônus e encargos públicos que devem ser eqüitativamente divididos entre os membros da coletividade. O Estado deverá indenizar sempre que a atividade administrativa provocar um dano, exceto no caso de a vítima concorrer para o evento danoso.
Tal teoria foi aceita pela maioria dos Estados Modernos e passou a integrar o nosso sistema na Constituição de 1946.
A teoria do risco integral é a final das teorias publicistas e difere da teoria do risco administrativo no que tange ao fato de que, de acordo com ela, o Estado é sempre obrigado a reparar, ainda que o dano tenha sido causado pela vítima. A referida teoria não foi adotada por qualquer Estado.
1.1 Histórico da responsabilidade civil do Estado no direito pátrio
Alguns doutrinadores afirmam que a teoria da irresponsabilidade foi acolhida pelo Brasil Colônia e rejeitada após a independência.
Outros, como Di Pietro (2003, p. 529), defendem: “A teoria da irresponsabilidade do Estado não foi acolhida pelo direito brasileiro; mesmo não havendo normas legais expressas, os nossos tribunais e doutrinadores sempre repudiaram aquela orientação”.
À época imperial era reconhecida a responsabilidade extracontratual do Estado, conforme demonstram os textos legislativos e as decisões dos Tribunais. A constituição de 1824, em seu artigo 179, nº 29, determinava a responsabilidade dos empregados públicos pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, salvo no que respeitava ao Imperador, que gozava do privilégio da irresponsabilidade.
A Constituição de 1891 – período republicano – também estabeleceu a responsabilidade dos funcionários públicos pelos abusos e omissões praticados no desempenho de suas atribuições ou quando fossem indulgentes com seus subordinados (artigo 82). Havia a possibilidade de solidariedade do Estado no ressarcimento do dano causado.
Também havia leis e decretos tornando expressa a responsabilidade da Fazenda Pública por atos danosos praticados pelos seus agentes.
Nosso Código Civil de 1916 adotou a teoria subjetivista, dominante na época, estabelecendo em seu artigo 15:
“As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.”
O referido artigo dividiu a doutrina e a jurisprudência, em face da imprecisão do legislador. Uma corrente defendia a exigência da demonstração da culpa civil da Administração. A outra vislumbrava admitida a teoria do risco, possibilitando a responsabilidade civil sem culpa, em alguns casos.
O mestre Meirelles (1999, p. 587) defendeu que:
“Temos para nós que o questionado art. 15 nunca admitiu a responsabilidade sem culpa, exigindo sempre e em todos os casos a demonstração desse elemento subjetivo para a responsabilização do Estado. Nem é outra a observação de Alvino Lima em preciosa tese sobre a matéria, onde sustenta que: ‘O Código Civil Brasileiro, seguindo a tradição de nosso Direito, não se afastou da teoria da culpa como princípio genérico regulador da responsabilidade extracontratual’.” (Da Culpa ao Risco, 1938, p. 174)
A Constituição de 1946 acatou de forma expressa a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, diferenciando, para a reparação do dano, os causados pelos agentes da administração e os ocasionados por atos de terceiros ou fenômenos da natureza.
Com o advento dessa Constituição, muitos doutrinadores passaram a defender o entendimento de que o seu artigo 194 revogou de forma tácita o artigo 15 do Diploma Civil de 1916, ao substituir o princípio da culpa pela teoria que fundamenta a obrigação do Estado no nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a atividade pública que o ocasionou. A favor da tese: Aguiar Dias, Seabra Fagundes e Helly Lopes Meirelles. Contrariando, pode-se citar Pontes de Miranda, Alfredo de Almeida Paiva, A. Gonçalves de Oliveira, Themístocles Cavalcanti.
Igual teoria foi adotada pelas Constituições de 1967 (art. 105) e de 1969 (art. 107).
Invocamos trechos do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em sede de Apelação Cível (716138), na data de 25.04.2005, que aborda o item em desenvolvimento:
“(...) Ora, como é sabido, a partir de 1946, adotou-se, no Brasil, no que concerne às entidades de direito público, a responsabilidade objetiva, com fulcro na teoria do risco administrativo, sem, no entanto, adotar a posição extremada dos adeptos da do risco integral, em que a Fazenda Pública responderia sempre, mesmo presentes as excludentes da obrigação de indenizar (CF de 1946, art. 194 e seu § único; CF de 1967, art. 105 e seu § único; CF de 1969, art. 107 e seu § único; e CF de 1988, art. 37, § 6º).
A Suprema Corte, em mais de uma oportunidade, fixou o exato alcance do comentado dispositivo constitucional. Assim o fez no RE nº 68.107-SP, julgado pela 2ª Turma, verbis:
‘(...)
II. A responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e seu parágrafo único da CF de 1946, cujo texto foi repetido pelas Cartas de 1967 e 1969, arts. 105-7, respectivamente, não importa no reconhecimento do risco integral, mas temperado. (...)’ (In RTJ 55/50).
Em seu voto, o relator, o eminente Ministro THOMPSON FLORES, ex-Presidente da Excelsa Corte, salientou, verbis:
‘(...) embora tenha a Constituição admitido a responsabilidade objetiva, aceitando mesmo a teoria do risco administrativo, fê-lo com temperamentos, para prevenir excessos e a própria injustiça.
Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou dolo do funcionário para alcançar indenização. Não privou, todavia, o Estado do propósito de eximir-se da reparação, que o dano defluíra do comportamento doloso ou culposo da vítima.
Ao contrário senso, seria admitir a teoria do risco integral, forma radical que obrigaria a Administração a indenizar sempre e que, pelo absurdo, levaria Jean Defroidmont (La Seience du Droit Positif, p. 339) a cognominar de brutal (...)’ (In RTJ 55/52-3).
Outro não foi o entendimento adotado por um dos mais conceituados administrativistas do país, o eminente e saudoso Ministro THEMÍSTOCLES CAVALCANTI, ao votar no julgamento do RE nº 61.387-SP, verbis:
‘(...) Partido da teoria da igualdade dos encargos e das finalidades essenciais do Estado, o clássico Tirard chegava à responsabilidade do Estado pela falta verificada no serviço (De la responsabilité du service publique, 1906).’ (...) “ (DJU 25.05.2005 p. 651).
A Carta Política de 1988 consagrou a responsabilidade objetiva da Administração Pública pelos danos causados pelos seus agentes, quando nessa qualidade, aos administrados. Tal obrigação de reparar também alcança as pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Ainda, segundo disposição constitucional (art 37, § 6º) e seguindo as constituições anteriores, há a previsão do direito de regresso do Estado contra o responsável nos casos de culpa e dolo. Transcrevemos a norma já referida:
“Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa.”
Aqui, destacamos algumas lições de Gasparini (2004, p. 886):
“O texto constitucional em apreço exige para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado uma ação do agente público, haja vista a utilização do verbo ‘causar’ (causarem). Isso significa que se há de ter por pressuposto uma atuação do agente público e que não haverá responsabilidade objetiva por atos omissos.
O dano há de ser causado por um agente do Estado, sob pena de não ser caracterizada a responsabilidade objetiva. Desse modo, parece-nos que a expressão ‘agente’, propositalmente incluída no texto dessa regra, é para ser havida de conteúdo lato. Desse modo, abriga todas as espécies de agentes públicos. Assim também entende Lúcia Valle Figueiredo (Curso, cit., p. 173).
É imprescindível que o agente esteja no desempenho de seu cargo, emprego ou função pública na entidade a que está vinculado (RT, 715:258). Sendo assim, não responde o Estado por dano causado por responsabilidade de alguém que não é seu agente ou que, embora o seja, não esteja, por ocasião do dano, no desempenho das atribuições do seu cargo, função ou emprego público, a exemplo do servidor que promove quebra-quebra em bar por ter tido com seu proprietário uma desavença qualquer. Mesmo assim, responde subsidiariamente pelos danos causados por terceiros em aparente, e às escâncaras, função de concessionários ou permissionários de serviços públicos, como são as empresas clandestinas de transporte coletivo de passageiros. Cremos, ainda, que o Estado responde objetivamente pelos danos causados pelo servidor de fato (v. Capítulo V, item VIII, subitem 3.2), pois, se aproveita as vantagens dessa situação, deve suportar os ônus dela decorrentes.
No Brasil já se condenou o Estado, tomada essa expressão em sentido amplo, por dano decorrente de apropriação indébita praticada por serventuário de cartório (RJTJSP, 72:97); despesa realizada para obtenção de fiança bancária a fim de pagar multa indevida (Ajuris 29: 145); queda de árvore sobre automóvel estacionado em via pública (RT, 551: 110); elevação do nível da rua (RT, 445:81); queda de veículo em valeta aberta em via pública, sinalizada precariamente (RT, 558:103); acidente de trânsito em razão de má conservação da pista (JTAAP, 83: 191); acidente em ponte em precárias condições de uso (RT, 573:253); má conservação de córrego (RT, 550:106); inundação (RT, 445: 100); semáforo defeituoso (JTACSP, 79:93); depredação praticada por multidão (RT, 275: 833); invasão de piquete grevista (RT, 297:301); assassinato de menor recolhido a abrigo de menores (RT, 464:98); prisão ilegal e tortura (RT,570:188); ferimento causado a alunos da PUCSP, em razão de invasão policial de suas dependências (RT, 553:89).”
Ressaltamos, também, conclusão de Patsy Schlesinger (1999, p. 43):
“No que diz respeito ao art. 37, § 6º, da vigente Constituição, alguns sustentam que tal dispositivo só previu os casos de responsabilidade objetiva; enquanto outros entendem que o referido artigo disciplinou hipóteses de responsabilidade objetiva e subjetiva. A maioria dos doutrinadores, capitaneada pelo emérito Hely Lopes Meirelles, postula que o art. 37, § 6º, diz respeito tão-somente às hipóteses de responsabilidade objetiva, fundada no risco. A segunda corrente defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello sustenta que a responsabilidade subjetiva do Poder Público funda-se na falta de serviço público, isto é, baseia-se na teoria da culpa do serviço, que não funcionou, funcionou mal ou tardiamente. Assim, a responsabilidade objetiva, para tal corrente, seria residual, só aplicando-se às hipóteses não abrangidas por aquela, como, por exemplo, o art. 21, XXIII, c, da Constituição da República ou nos casos fortuitos ou de força maior.”
1.2 Conceito e fundamento da responsabilidade civil do Estado
O Prof. Cretella Jr. leciona:
“O Estado é civilmente responsável, em nossos dias, por danos que seus agentes causem a terceiro por ação ou omissão. Essa responsabilidade de natureza objetiva, não dependendo de dolo ou culpa do agente, é equacionada, não em termos privatísticos, mas em termos publicísticos, informada por princípios do Direito Público, exorbitantes e derrogatórios do direito comum.”
O saudoso Meirelles (1999, p. 583) afirmou:
“Responsabilidade civil da Administração é, pois, a que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-la. É distinta da responsabilidade contratual e legal.”
Já Gasparini (2004, p. 869) conceitua a responsabilidade Civil do Estado com as seguintes palavras: “a obrigação que lhe atribuiu de recompor os danos causados a terceiros em razão de comportamento unilateral comissivo ou omissivo, legítimo ou ilegítimo, material ou jurídico, que lhe seja imputável”.
A partir dos conceitos transcritos resta claro que a administração tem o dever de restabelecer o dano causado a terceiros no exercício de suas atribuições.
A doutrina, nesse ponto, entende que essa responsabilidade do Estado pode ter por fundamento um ato lícito ou ilícito. Em se tratando de ato lícito o fundamento reside no “princípio da distribuição igualitária dos ônus e encargo a que estão sujeitos os administrados’’ (STF, RDA, 190:194). Como a obra ou o serviço, nesse caso, interessa a toda a coletividade é justo que todos também arquem com o ônus da indenização para restabelecer o dano causado ao particular.
No caso de atos ilícitos – descumprimento da lei –, o fundamento vai ser a violação da legalidade. Aqui o agente que cometer o ato ou comportamento de violação à lei terá que responder com o seu patrimônio pelos danos causados ao administrado.
Realçamos outros excertos do acórdão do Supremo Tribunal Federal, acima mencionado, em que foi relator o Ministro Carlos Velloso, que demonstra que a Corte Constitucional entendeu no mesmo sentido do defendido pelos doutrinadores:
“Em trabalho doutrinário que escrevi sobre o tema (Responsabilidade Civil do Estado, Rev. de Informação Legislativa, 96/233), lembrei que a teoria do risco administrativo fez surgir a responsabilidade objetiva do Estado. Segundo essa teoria, o dano sofrido pelo indivíduo deve ser visualizado como conseqüência do funcionamento do serviço público, não importando se esse funcionamento foi bom ou ruim. Importa, sim, a relação de causalidade entre o dano e o ato do agente público. É que, segundo a lição de Caio Mário da Silva Pereira, com o apoio em Amaro Cavalcanti, Pedro Lessa, Aguiar Dias, Orozimbo Nonato e Mazeaud el Mazeaud, positivado o dano, ‘o princípio da igualdade dos ônus e dos encargos exige a reparação. Não deve um cidadão sofrer as conseqüências do dano. Se o funcionamento do serviço público, independe da verificação de sua qualidade, teve como conseqüência causar dano ao indivíduo, a forma democrática de distribuir por todos a respectiva conseqüência conduz à imposição à pessoa jurídica do dever de reparar o prejuízo, e, pois, em face do dano, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo causado’. (Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de Dir. Civil, Forense, 1961, I/466, nº 116). George Vedel leciona que o dano causado pela Administração ao particular ‘é uma espécie de encargo público que não deve recair sobre uma só pessoa, mas que deve ser repartido por todos, o que se faz pela indenização da vítima, cujo ônus definitivo, por via de imposto, cabe aos contribuintes’ (G. Vedel e P. Delvolve, Droit Adminstratif, Presses Universitaires de France, 9ª ed, 1984, p. 448-449). Para L. Duguit, a atividade do Estado se exerce no interesse de toda a coletividade; as cargas que dela resultam não devem pesar mais fortemente sobre uns e menos sobre outros. Se, da intervenção do Estado, assim da atividade estatal, resulta prejuízo para alguns, a coletividade deve repará-lo, exista ou não exista culpa por parte dos agentes públicos. É que o Estado é, de um certo modo, assegurador daquilo que se denomina, freqüentemente, de risco social, ou o risco resultante da atividade social traduzida pela intervenção do Estado. (L. Duguit, Las Transformaciones Del Derecho Público, Madri, 2. ed., p. 306 e s.).
Na linha das opiniões acima indicadas, as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (Elementos de Direito Administrativo, Ed. Rev. dos Tribs., 1980, p. 252-253), Yussef Said Cahali (Responsabilidade Civil do Estado, Ed. Rev. dos Tribs., 1982) e Weida Zancaner Brunini (Da Responsabilidade Extracontratual da Administração Pública, Ed. Rev. dos Tribs., 1981).
(...)
É que a responsabilidade objetiva do poder público, com base na teoria do risco administrativo, não exige que a ação administrativa causadora do dano seja ilícita. Celso Antônio Bandeira de Mello, ao examinar o fundamento da responsabilidade do Estado, não obstante entender que ela se biparte – pois, ‘no caso de comportamentos ilícitos, comissivos ou omissivos, o dever de reparar o dano é contrapartida da violação da legalidade’ –, deixa claro, no que concerne aos atos lícitos, que ‘o fundamento da responsabilidade estatal é a idéia de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, repartindo-se os ônus provenientes dos atos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião do exercício de atividade desempenhada no interesse de todos’. (Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., p. 260) A lição, bem se vê, está na linha das opiniões anteriormente invocadas. Argumenta, ainda, o acórdão, que, tendo o prejuízo ‘decorrido de atividade administrativa lícita, objetivou o interesse da coletividade, interesse presumido e ínsito ao tipo de conglomerado humano constituído no grande centro’. O raciocínio esboroa-se, entretanto, data venia, frente às lições transcritas. Vale invocar Pedro Lessa: ‘desde que um particular sofre um prejuízo, em conseqüência do funcionamento (regular ou irregular, pouco importa) de um serviço organizado no interesse de todos, a indenização é devida. Aí temos um corolário lógico do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais’. (Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, p. 163 a 165) (...)”
2. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais em nosso sistema jurídico
Primeiramente, efetuamos a distinção entre os atos típicos do poder judiciário, que são os seus provimentos e decisões, e as execuções ou atos materiais levados a efeito pelos agentes, meios e modos pertinentes, no amplo atuar do serviço judiciário. O presente estudo diz respeito somente aos primeiros.
E no que se refere a esses atos judiciais típicos em nosso sistema, em princípio, a regra é a irresponsabilidade patrimonial, segundo uma parte da doutrina. Para esse grupo, o Estado não responde por prejuízos decorrentes de sentença e tal tese é amparada nos seguintes fundamentos: o Poder Judiciário é soberano; os juízes devem agir com independência e sem qualquer preocupação quanto a seus atos ensejarem responsabilidade do Estado; o juiz não é servidor público; e a indenização por dano decorrente de decisão judicial infringiria a regra da imutabilidade da coisa julgada, porque implicaria o reconhecimento de que a decisão foi proferida com violação da lei. Nesse sentido:
“A sentença não pode propiciar qualquer indenização por eventuais danos que possa acarretar às partes ou a terceiros, dado que ato da essência da soberania (RDA, 105:217, 114:298). Devem ser ressalvadas as hipóteses de condenações pessoais injustas, cuja absolvição é obtida em revisão criminal (CF, art. 5º, LXXV), e, ainda assim, se essas condenações não forem imputadas a ato ou falta do próprio condenado, consoante estabelece o § 2º do art. 630 do Código de Processo Penal (RDA, 77:272) e as expressamente indicadas em lei (RDA, 193:316). Maior cuidado ensejam as hipóteses elencadas no art. 133 do Código de Processo Civil (...).” (GASPARINI, 2004, p. 878).
Invocamos os argumentos de Di Pietro (2003, p. 534 e 535) como representante dos estudiosos que rebatem tal entendimento:
“Com relação à soberania, o argumento seria o mesmo para os demais poderes; a soberania é do Estado e significa a inexistência de outro poder acima dele; ela é uma, aparecendo nítida nas relações externas com outros Estados. Os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – não são soberanos, porque devem obediência à lei, em especial à Constituição. Se fosse aceitável o argumento da soberania, o Estado também não poderia responder por atos praticados pelo Poder Executivo, em relação aos quais não se contesta a responsabilidade.
A idéia de independência do Judiciário também é inaceitável para o fim de excluir a responsabilidade do Estado, porque se trata de atributo inerente a cada um dos Poderes. O mesmo temor de causar dano poderia pressionar o Executivo e o Legislativo.
Quanto a não ser o juiz funcionário público, o argumento não é aceitável no direito brasileiro, em que ele ocupa cargo público criado por lei e se enquadra no conceito legal dessa categoria funcional. Ainda que se entendesse ser ele agente político, seria abrangido pela norma do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que emprega precisamente o vocábulo agente para abranger todas as categorias de pessoas que, a qualquer título, prestam serviços ao Estado.
O argumento mais forte é o que entende que o reconhecimento da responsabilidade do Estado por ato jurisdicional acarretaria ofensa à coisa julgada.
No direito brasileiro, a força da coisa julgada sofre restrições na medida em que se admite a ação rescisória e a revisão criminal.
Nesse último caso, dúvida inexiste quanto à responsabilidade do Estado, prevista no artigo 630 do CPP e, agora, no artigo 5º, LXXV, da Constituição: ‘o Estado indenizará o condenado por erros judiciários, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença’.
As divergências que ocorrem abrangem outras hipóteses que não a de revisão criminal provida. Nos casos em que a ação rescisória não soluciona o assunto, ou porque prescreveu, ou porque foi julgada improcedente, a decisão se torna imutável. A admitir-se a indenização por dano decorrente da sentença, estar-se-ia infringindo a regra da imutabilidade da coisa julgada; esta tem em seu bojo uma presunção de verdade que não admite contestação.
Edmir Netto de Araújo (1981:137-143), mostrando as divergências doutrinárias a respeito do assunto, coloca de modo adequado a questão, dizendo que ‘uma coisa é admitir a incontrastabilidade da coisa julgada, e outra é erigir essa qualidade como fundamento para eximir o Estado do dever de reparar o dano’. Acrescenta que ‘o que se pretende é possibilitar a indenização ao prejudicado, no caso de erro judiciário, mesmo que essa coisa julgada não possa, dado o lapso prescricional, ser mais modificada’.
Com efeito, o fato de ser o Estado condenado a pagar indenização decorrente de dano ocasionado por ato judicial não implica mudança na decisão judicial. A decisão continua a valer para ambas as partes; a que ganhou e a que perdeu continuam vinculadas aos efeitos da coisa julgada, que permanece inatingível. É o Estado que terá que responder pelo prejuízo que a decisão imutável ocasionou a uma das partes, em decorrência de erro judiciário.
A própria presunção de verdade atribuída às decisões judiciais aparece enfraquecida num sistema judiciário como o nosso, em que o precedente judiciário não tem força vinculante para os magistrados; são comuns decisões contrárias e definitivas a respeito da mesma norma legal; uma delas afronta, certamente, a lei.
A jurisprudência brasileira não aceita, no entanto, a responsabilidade do Estado por atos judiciais, o que é lamentável porque podem existir erros flagrantes não só em decisões criminais, em relação às quais a Constituição adotou a tese da responsabilidade, como também nas áreas cível e trabalhista. Pode ocorrer o caso em que o juiz tenha decidido com dolo ou culpa; não haveria como afastar a responsabilidade do Estado. Mas, mesmo em caso de inexistência de culpa ou dolo, poderia incidir essa responsabilidade, se comprovado o erro da decisão.
(...)
As garantias de que se cerca a magistratura no direito brasileiro, previstas para assegurar a independência do Poder Judiciário, em benefício da Justiça, produziram a falsa idéia de intangibilidade, inacessibilidade e infalibilidade do magistrado, não reconhecida aos demais agentes públicos, gerando o efeito oposto de liberar o Estado de responsabilidade pelos danos injustos causados àqueles que procuram o Poder Judiciário precisamente para que seja feita justiça.
Com relação a atos judiciais que não impliquem exercício de função jurisdicional é cabível a responsabilidade do Estado, sem maior contestação, porque se trata de atos administrativos, quanto ao seu conteúdo.”
Situado o tema no âmbito da doutrina, apresentamos a posição da Corte Maior, proferida no AG. REG. no RE 429.518-1/SC, em que foi Relator o Ministro Carlos Velloso:
“RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ATO DO PODER JUDICIÁRIO.
O princípio da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do poder judiciário, salvo expressamente declarados em lei. Orientação assentada na jurisprudência do STF.
(...)
No voto, o ilustre Relator do precedente citado deduziu razões para o seu convencimento:
‘Demonstrou, entretanto, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 343/349) ser pacífica a jurisprudência do STF de que o princípio da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do poder judiciário, a não ser nos casos expressamente previstos em lei.
(...) O magistrado na atividade jurisdicional exerce função decorrente da soberania, essa definida como o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências, entretanto, apesar de seu conceito puramente político revelar uma expressão de poder exercido indiscriminadamente, no Estado de Direito baliza-se seu exercício pelas normas jurídicas estabelecidas, as quais delineiam a forma e o exercício desse atributo indissociável do Estado, preservando, deste modo, os direitos fundamentais do indivíduo. Direitos esses placitados, em regra, na carta constitucional, pedra angular do sistema jurídico pátrio, que erige no ápice do ordenamento jurídico, regras aptas a autodelimitar a atividade soberana do Estado, que, desde que o entenda conveniente, pode assumir obrigações externas, como pode fixar regras jurídicas para aplicação interna, sujeitando-se voluntariamente às limitações impostas por essas normas.
Assim, não há que se olvidar que a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal seja uma norma autolimitadora da Soberania do Estado, que, reconhecendo a hipossuficiência do cidadão frente ao aparelho estatal, exija deste, comprovado o evento danoso, apenas o nexo de causalidade, no que demonstrado a concorrência da Administração Pública na consumação do prejuízo que repercuta na esfera patrimonial do particular, compromete-se o Estado a indenizá-lo, perseguindo regressivamente o agente público que de alguma forma veio a causar o dano.
Entretanto, inferir-se desse dispositivo constitucional a responsabilidade objetiva do Estado por erros judiciais seria contrastar com a própria qualidade de Poder que permeia os órgãos judiciários, pois, ao exercer função que dimana da própria soberania, qual seja, decidir em última instância sobre a atributividade das normas, não iguala-se o juiz ao administrador que, ao revés, exerce atos de execução lastreados pela legalidade, o que permite o amplo controle da atividade administrativa e a direta responsabilidade do Estado pelo funcionamento deletério do serviço público (...).’
E vale a pena conferir no mesmo sentido o aresto proferido no RE nº 111.609.9-AM (Rel. Exmº Sr. Ministro Moreira Alves, DJ de 19.03.93), assim ementado:
‘Responsabilidade objetiva do Estado. Ato do Poder Judiciário.
A orientação que veio a predominar nesta Corte, em face das Constituições anteriores à de 1988, foi a de que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do STF
(...) Em trabalho de doutrina que escrevi – Responsabilidade Civil do Estado, no meu Temas de Direito Público, Del Rey Ed., 1ª ed. 2ª tiragem, 1997, p. 493 –, dissertei sobre o tema, registrando que a ‘jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o Estado não é civilmente responsável pelos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei, por isso que o ato jurisdicional é emanação da soberania estatal’. Indiquei os RREE 32.518/RS, Relator paro o acórdão o Ministro Vilas Boas, e 70.121/MG, Relator para o acórdão o Ministro Djaci Falcão (RTJ 39/190 E RDA 90/140).’ (...)”
Demonstramos que na doutrina os pensamentos são divergentes. Seguindo a posição do Supremo Tribunal Federal – guardião da CF – de que não se aplica o disposto no art. 37, § 6º, da CF/88 aos atos judiciais e apenas nas hipóteses expressamente declaradas em lei poderá um ato típico do Poder Judiciário ensejar a responsabilidade civil do Estado, uma vez que o ato judicial é a emanação da soberania estatal, passamos a enfrentar as disposições existentes em nosso ordenamento jurídico e as discussões estabelecidas.
1) Constituição Federal de 1988, art 5º LXXV:
“o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;”
e Código de Processo Penal, art. 630 e §§:
“Art. 630. O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos
§ 1º Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça.
§ 2º A indenização não será devida:
a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder;
b) se a acusação houver sido meramente privada.”
O dispositivo constitucional e a norma contida no Diploma Processual Penal garantem indenização ao indivíduo que por erro judiciário for condenado ou ficar preso por tempo maior que o fixado na sentença. Aqui sempre foi pacífico o direito a reparação do dano sofrido, através de uma justa indenização. À guisa de ilustração, os seguintes precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça:
“Comprovado que o peticionário foi condenado por crime que não praticou, imperioso que seja sanado o erro judiciário, de rigor o decreto absolutório, restabelecendo-se todos os direitos perdidos em virtude da condenação, reconhecendo-se, ainda, nos termos do art. 5º, LXXV (1ª parte), da CF, c/c o art. 630 do Código de Processo Penal, o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência do decreto condenatório e da submissão, indevida, ao cárcere. (...)” (TACRIM-SP- Rev.-Rel. Wilson Barreira – j. 07.10.96 – JUTACRIM-SP 33/465 E RT 739/609).
“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. REVISÃO CRIMINAL. ERRO JUDICIÁRIO. DIREITO A JUSTA INDENIZAÇÃO PELOS PREJUÍZOS SOFRIDOS.
É devida indenização uma vez demonstrado erro judiciário ex vi art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal e art. 630 do CPP. In casu, restaram devidamente comprovados os prejuízos sofridos pelo recorrente, razão pela qual não há óbice a uma justa indenização. Recurso provido.” (STJ, RE 2000/0030970-2, Rel. Ministro Felix Fischer, 14.06.2004)
Contrariamente, em relação às ressalvas contidas no § 2º (a e b) do art. 630 do Código de Processo Penal reside expressiva controvérsia.
Reza a letra a que a indenização não será possível “se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder”.
Em um primeiro momento parece não haver incompatibilidade entre a regra constitucional e o contido na norma infraconstitucional, pois, nesta hipótese, a causa da condenação errônea – evento danoso – é imputada por inteiro ao próprio sentenciado e poderia ser invocada a excludente da responsabilidade “culpa da vítima” (deu causa ao evento).
No entanto, como já referimos, o tema é tormentoso. Há corrente entendendo a não-recepção das limitações pela Constituição Federal de 1988. A decisão que segue comprova a controvérsia instaurada, apresentando entendimento que aplicou a restrição da letra a, nos exatos termos da norma infraconstitucional, e ao mesmo tempo salientou o pensamento da corrente que defende a não recepção pelo texto constitucional vigente, com fundamento em seu art. 5º, LXXV, e art. 37, § 6º.
“Erro judiciário – Revisão criminal e indenização civil – A citação edital só deve ser adotada quando esgotados todos os meios à citação pessoal do acusado – Hipótese em que se impõe anular o processo por comprovado cerceamento à regra da ampla defesa – Não reconhecimento (do direito) à indenização civil inobstante deferida a revisão criminal. A maioria entendeu indevido o pedido à justa indenização pela condenação desconstituída ao feitio do que prescreve o art. do Código de Processo Penal. Deu-se aplicação restrita à reparação civil por erro judiciário, nos termos em que o coloca o § 2º, a, do art. 630 do Código de Processo Penal. Já o Revisor e Juízes de Alçada que o acompanharam deferiram o pedido também nesta parte. Isso porque, hoje, a responsabilidade do Estado, por decisão judicial, está incluída na regra prevista no art. 37, § 6º, da Constituição, que contempla forma de responsabilidade objetiva. O art. 5º, LXXV, da Constituição, como norma especial em relação à prevista no art. 37, § 6º, da Carta Magna, apenas explicitou o que nesta última se continha, realçando dos casos de responsabilidade estatal e erigindo-o em direito fundamental do cidadão: o erro judiciário e o excesso de pena.” (Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Responsabilidade Civil do Estado pelo Exercício da Função Jurisdicional, p. 46)
Já no que se refere à restrição contida na letra b, transcrevemos lição de Espínola Filho (1955), que, embora lançada há bastante tempo, ainda atual para iluminar o tópico:
“Porque se trate de reparação de erro judiciário, não aplaudimos a isenção da responsabilidade do Estado quando a condenação tiver sido proferida em ação movida por iniciativa meramente privada. Se, como não escapou a João Vieira, a reparação fica a cargo do Estado, salvo o direito regressivo deste contra quem foi causa da sentença injusta, entendemos que, com o poder de movimentar-se contra o querelante, deveria o Estado ser obrigado à indenização mesmo sendo a condenação proferida em processo iniciado por queixa. Ainda mais digno de reparo se nos afigura o § 2º, b, do art. 630, quando é certo que, tanto podendo conter uma restrição ao § 1º como o próprio artigo, deixa em dúvida se, no caso de acusação meramente privada, não tem o réu mal-condenado direito a indenização alguma, ou somente não a tem em relação a União, ou aos Estados-membros. E ainda maior é a incorreção técnica daquele dispositivo quando é inevitável que aceita a solução de ter cabimento o preceito do § 2º, ‘’a’’, do art. 630 no caso de absolvição, em revisão, da pena imposta em processo de iniciativa exclusivamente do ofendido. Contra o querelante tem a jurisprudência admitido reclame indenização o réu absolvido se a queixa for caluniosa ou temerária (TJSP, 16.05.1919, RT 34/130). Que essa indenização seja devida no caso de absolvição em revisão, porquanto o Estado se exime de responsabilidade sob pretexto de ter sido a condenação proferida em ação de iniciativa privada, é obvio, pois seria um absurdo reparar o mal da condenação quando o crime, pela sua natureza, fez movimentar-se o Poder Público, e não assim quando a iniciativa foi da parte a cuja vontade a lei entregou a promoção da ação penal.
(...)
A despeito da má técnica do art. 630 do vigente Código de Processo, que peca pela redação e pela disposição dos seus parágrafos, estamos com os comentadores, na sua generalidade (Bento de Faria, Ary Franco, Sady de Gusmão, Câmara Leal), em que cabe ao réu, absolvido em revisão, o direito de pedir indenização ao querelante dos prejuízos sofridos com a condenação injusta em processo iniciado por queixa, não substituída por denúncia. Discordamos de Ary Franco e Sady de Gusmão no afastarem, para o caso, o cabimento do art. 630, § 2º, a. (...)”
Damásio de Jesus (2004, p. 504) entende que o já citado dispositivo constitucional tornou incondicional a indenização por erro judiciário, revogando totalmente o disposto no § 2º do art. 630 do CPP.
Mirabete (2000, p.1384) defende que apenas o disposto na letra b do § 2º não mais subsiste, em face de a CF não fazer qualquer restrição ao fato de o erro ter acontecido em ação privada:
“Não é devida indenização, nos termos do artigo, quando houver culpa do próprio interessado, por confissão voluntária falsa ou ocultação de provas, não se admitindo que se aproveite da própria fraude. Também não é ela devida, nos termos legais, quando a condenação foi proferida em ação exclusivamente privada. Essa proibição, porém, não mais existe porque a Constituição Federal, ao determinar a indenização pelo erro judiciário, não faz qualquer restrição ao fato de ter ele ocorrido em ação de iniciativa privada.”
Devemos salientar que não pode ser confundida, nesse caso, a responsabilidade do Estado, pelo erro, com a responsabilidade do juiz, esta sempre subsidiária e restrita às hipóteses expressamente previstas que seguem.
2) Código de Processo Civil, art. 133:
“Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo e fraude;
II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.”
-LOMAN, art. 49:
‘’Art. 49. Responderá por perdas e danos o magistrado, quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo e fraude;
II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.’’
Os artigos elencados disciplinam a responsabilidade do juiz por danos causados aos jurisdicionados, nas situações em que ficar configurado o dolo ou a fraude no exercício de suas funções, bem como nos casos em que, injustificadamente, recusar, omitir ou retardar providência que deveria ser realizada de ofício ou a requerimento da parte.
Nas hipóteses dos incisos I, a responsabilidade dependerá de reconhecimento do dolo ou fraude do juiz em ação rescisória. Já as situações do inciso II exigem a satisfação das exigências do disposto no parágrafo único dos referidos artigos (“Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no nº II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não lhe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias”).
As previsões legais, portanto, somente autorizam que o juiz individual e civilmente responda por dolo, fraude, recusa, omissão ou retardamento injustificado de providências de seu ofício.
Aqui utilizamos ensinamentos de Aguiar Júnior (1993, p. 16), para elucidar a questão da legitimidade do Estado para figurar em ação que vise ao ressarcimento dos prejuízos causados, em ocorrendo as suposições dos artigos em análise, bem como a questão da ação regressiva contra o juiz responsável:
“ (...) c) nos casos do art. 133, I, do CPC, o Estado responde diretamente e tem ação regressiva contra o juiz; nas hipóteses do art. 133, II, ‘trata-se de responsabilidade pessoal do juiz, com nítida feição correicional’.
Para solver o impasse, é preciso considerar, em primeiro lugar, que tanto o Código de Processo Civil quanto a Lei Orgânica da Magistratura nada referem quanto à imediatidade da responsabilidade atribuída ao juiz, pelo que se deve interpretar tais regras em consonância com o texto constitucional, isto é, o Estado responde primária e diretamente frente ao lesado; o juiz responde regressivamente frente ao Estado nos casos figurados no artigo 133, para a jurisdição civil, e no artigo 49 da LOMAN, para as demais jurisdições. Isso significa respeitar o princípio geral da responsabilidade direta do Estado pelos atos dos seus agentes e a limitação do direito de regresso, em se tratando de ato judicial, às hipóteses dos artigos mencionados.
O princípio da responsabilidade objetiva, que se satisfaz com a causação do dano, não pode ser aceito no âmbito dos atos judiciais porque sempre, ou quase sempre, da atuação do juiz na jurisdição conscienciosa resultará alguma perda para uma das partes. Se esse dano fosse indenizável, transferir-se-ia para o Estado, na mais absoluta socialização dos prejuízos, todos os efeitos das contendas entre os particulares. É por isso que a regra ampla do artigo 37, § 6º, da Constituição deve ser trazida para os limites indicados no seu artigo 5º, LXXX, que admite a indenização quando o ato é falho (erro na sentença) ou quando falha o serviço (excesso de prisão). A partir daí, a legislação ordinária e complementar vale para delinear com mais precisão os contornos dessa responsabilidade. O Estado responde quando o juiz age com dolo, fraude (art. 133, I, do CPC; art. 49, I, da LOMAN) ou culpa grave, esta revelada por negligência manifesta (art. 133, II, do CPC, artigos 49, II, e 56, I, da LOMAN) ou pela incapacitação para o trabalho (art. 56, III, da LOMAN). (...)”
A partir da lição invocada, podemos afirmar que a responsabilidade do Estado é primária e direta, ou seja, cabe ao Estado responder perante o jurisdicionado lesado. O Juiz responderá regressivamente.
Acerca do tema, ainda, algumas lições doutrinárias e jurisprudenciais, que coadunam com a posição adotada pela Corte Suprema:
Mário Guimarães (O Juiz e a Função Jurisdicional, nº 147, p. 239):
“(...) Os juízes pagam tributo inexorável à falibilidade humana. Erram porque são homens. Se obrigados a ressarcir, de seu bolso, os danos causados, ficariam tolhidos, pelo receio de prejuízo próprio, na sua liberdade de apreciação dos fatos e de aplicação do Direito. Não se coadunaria com a dignidade do magistrado coagi-lo a descer à arena, após a sentença, para discutir, com a parte, o acerto de suas decisões.”
Em sintonia com tal pensamento, as decisões dos tribunais, que defendem que os juízes não respondem por erro judiciário, exceto nas expressas hipóteses legais (RT 385/153, 400/386 e 545/86, RJTJSP 9/32, 19/547, 24/511). Em suma, as decisões, segundo Patsy Schlesinger (1999, p. 84):
“(...) o magistrado necessita de absoluta liberdade de consciência para decidir; independência funcional, inerente à Magistratura, tornar-se-ia letra morta se o juiz, pelo fato de ter proferido decisão neste ou naquele sentido, pudesse ser acionado para compor perdas e danos em favor da parte ‘A’ ou da parte ‘B’, pelo fato de a decisão ser reformada pela instância superior; nenhum juiz ousaria divergir da interpretação dada anteriormente pela instância superior; seria a morte do Direito, uma vez que cessaria o pendor para a pesquisa, estiolar-se-ia a formulação de novos princípios.”
Ainda, acórdão do TJ-MG-Ac. Unân. da 1ª Câm. Civ., publ. em 03.12.93 – Ap. nº 6.048/3. Rel. Des. Garcia Leão:
“RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO – ATOS JUDICIAIS – CPC E LOMAN.
É o Estado parte legítima para figurar no pólo passivo da ação de indenização por danos resultantes de atos judiciais, uma vez que os atos derivados da função jurisdicional não empenham a responsabilidade civil do Estado, salvo as exceções expressamente estabelecidas em lei. E os juízes, como órgãos da soberania nacional, que não se enquadram nas disposições do § 6º do art. 37 da CF, somente respondem civilmente quando, no exercício de suas funções, incorrerem em dolo ou fraude, a teor das normas contidas no art. 133 do CPC e art. 49 da Lei Complementar nº 35/79 – LOMAN. (...)”
Inovando a corrente que segue a posição do Supremo Tribunal Federal, apresentamos trecho do voto do Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz do TRF da 4ª Região, em AC nº 2000.71.00.007552-0, que entendeu que também aos atos judiciais se aplica a responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, prevista no art. 36, § 6º, da Constituição de 1988. A tese que segue defendida, inclusive, tem amparo em significativa parcela da doutrina e vem crescendo na jurisprudência:
“Realmente, embora a matéria seja controvertida, entendo que a responsabilidade civil do Estado, prevista no art. 37, § 6º, da CF/88, compreende, também, os atos judiciais.
Em artigo de doutrina intitulado ‘Responsabilidade do Estado, por Atos Judiciais’, publicado na Revista Arquivos do Ministério da Justiça, a. 50, nº 189, jan./jun. 1988, concluí, à p. 76/7, verbis:
‘A responsabilidade do Estado por atos judiciais funda-se na regra geral sobre responsabilidade da Fazenda Pública por prejuízos causados na organização ou no funcionamento do serviço público.
Ora, na medida em que o disposto no § 6º do art. 37 da Lei Maior enunciou o princípio da responsabilidade objetiva do Estado por ato de seus agentes, exercendo o Poder Judiciário um serviço público e sendo o magistrado o seu agente, é inarredável a conclusão de que os seus atos caem no âmbito dessa regra geral.
Com efeito, essa é a melhor exegese do art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, a que melhor atende à sua finalidade e ao próprio espírito da Constituição, o que não deve ser desprezado pelo intérprete.
(...)
Assim, em face do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, incumbe ao Estado responder perante o jurisdicionado lesado pelo ato judicial danoso, o que, por sua vez, resguarda a independência do magistrado. Por outro lado, a responsabilidade pessoal do juiz, que há de ser levada a cabo pelo Estado mediante ação regressiva, estará caracterizada apenas nos casos dos arts. 133 do CPC e 49 da Loman.
Não se pretende, evidentemente, a responsabilidade do Estado em termos tão amplos de modo a comprometer a independência funcional dos juízes, sem a qual estes viveriam em permanente sobressalto ante o receio de serem responsabilizados civilmente, em ação direta ou por via regressiva, a chamado da Fazenda Pública.
De forma que, não obstante a persistência das idéias que sustentam a imunidade do Estado-juiz, notadamente na jurisprudência, vai pouco a pouco perdendo terreno a tese da irresponsabilidade dos danos originários do mau funcionamento do serviço da justiça (...)’.”
Conclusão
A partir do estudo realizado, demonstramos, como dito inicialmente, que, atualmente, não é pacífico o tema da responsabilidade civil do Estado por atos judiciais típicos. Há doutrina e jurisprudência defendendo uma ampliação na responsabilização até então admitida.
A amplitude defendida se ampara no fato de que também os atos judiciais típicos podem causar danos aos administrados e o Estado não pode se furtar de sua obrigação de assumir a responsabilidade pelos eventuais prejuízos causados, uma vez que nossa Constituição de 1988 consagrou o princípio da responsabilidade estatal, expressamente em seu art. 37, § 6º.
Entendemos que são necessárias, ainda, maiores reflexões e discussões acerca do tema para que se chegue a uma solução satisfatória, tanto para aquele que porventura sofra com um erro judicial ou ineficiência no funcionamento da instituição, quanto para o próprio Poder Judiciário, preservando seu direito de julgar de forma independente, sem sofrer com o peso de eventual responsabilização por sua decisão, pensamento ou conduta. O caminho é árduo, no entanto deve ser percorrido, pois o Estado deve propiciar através de suas instituições segurança e bem-estar aos administrados.
No presente momento, ainda prematuro apostar em um ou outro pensamento como eventual vencedor no duelo que se trava. No entanto, alguma mudança ampliativa deverá se solidificar, uma vez que os jurisdicionados tendem a buscar a reparação dos prejuízos originados de atos emanados do Poder Judiciário.
Para iluminar as novas idéias que surgem na busca de solução equilibrada, seguem relatório apresentado pelo atual(1) presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, na Comissão Revisora da CF de 1998 e pensamento de Augusto do Amaral Dergint.
1) A Comissão Revisora da Constituição de 1988, em seus trabalhos realizados em 1992, propôs expressamente que se introduzisse, no art. 95, parágrafo atribuindo a responsabilidade civil do Estado por atos de juízes. Consta do Relatório apresentado pelo então deputado Nelson Jobim:
“Estamos propondo, com a inclusão de novo parágrafo no art. 95 do texto constitucional, a instituição da responsabilidade civil do Estado pelos danos causados a terceiro por juízes, no exercício de suas funções, assegurando-se o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou fraude. Parece-nos que já seja tempo de afastar, entre nós, a tese da irresponsabilidade do Estado por atos dos juízes, predominante ainda hoje tanto na doutrina quanto na jurisprudência firmada nos tribunais. Esta a lição do Desembargador e Mestre Rui Rosado de Aguiar Júnior, em elucidativo estudo sobre o tema, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: ‘Nos últimos anos está surgindo movimento vigoroso em favor da ampliação do conceito (responsabilidade civil do Estado por ato dos juízes), por motivos de ordem política e razões de ordem jurídica. Do ponto de vista político, porque a marcha para a plena realização do Estado de Direito – aspiração que a todos deve orientar – impõe a gradual extinção da idéia da irresponsabilidade, quando resquício de privilégios antes concedidos a classes e pessoas para a mantença de poderes e benefícios injustificáveis à luz do Estado moderno, democrático, igualitário e solidário. Juridicamente, porque o ato estatal praticado através do juiz não se distingue ontologicamente das demais atividades do Estado, estas geradoras do dever de indenizar uma vez presentes os requisitos. Isto é, o Estado-juiz é uma fração do Poder Público que pode, através de seu agente, nessa qualidade, causar dano injusto, não havendo razão jurídica para impor ao lesado o sofrimento do prejuízo daí decorrente. Em verdade, a doutrina constitucional contemporânea afirma a responsabilidade civil do Estado por ato do juiz. Com efeito, segundo a doutrina espanhola (REBOLLO, Luiz Martin. Jueces y Responsabilidad del Estado. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1983), a responsabilidade objetiva do Estado por ato do juiz não se impõe apenas em virtude da prática de atos ilícitos causadores de danos. Era este o ensinamento tradicional, em que se buscava fundamentar a responsabilidade civil do Estado aproximando-o de um conteúdo obrigacional material. Atualmente, entende-se que, para além da culpabilidade ou ilicitude, o fundamento da responsabilidade objetiva do Estado por ato do juiz encontra-se na própria Constituição. A dignidade da pessoa humana (mormente na hipótese de erro judiciário), a liberdade (que exige a limitação da intervenção legítima do Poder Público), a igualdade (que demanda a proporcionalidade na divisão dos encargos e ônus da atuação do Poder Público entre os cidadãos) e a legalidade são, portanto, os princípios legitimadores da responsabilidade do Estado. Sob tal perspectiva, apontem-se os textos das atuais Constituições italiana (art.24) e espanhola (art.121). Não são estranhos à ordem constitucional pátria os institutos da responsabilidade objetiva do Estado e da responsabilidade regressiva do agente público nas hipóteses de dolo ou culpa (art. 37, § 6º). A responsabilidade do Estado por erro judiciário encontra-se positivada no art. 5º, LXXV, da Constituição, enquanto a responsabilidade civil da autoridade judiciária nas hipótese de dolo ou culpa está consagrada no Código de Processo Civil (art. 133, I).A introdução, pois, do proposto § 3º do art. 195 do texto constitucional é corolário do próprio modelo de responsabilidade da Magistratura que se quer implantar, assentada em dois vértices: a responsabilidade civil e a responsabilidade disciplinar (cujo controle estará a cargo do Conselho Nacional de Justiça e dos tribunais), evoluindo-se do isolamento orgânico-corporativo do Judiciário para um modelo de responsabilidade social, nos parâmetros preconizados por Cappelletti’.”
Patsy Schlesinger (1999, p. 50) assim se manifesta acerca da proposta:
“(...) o parágrafo proposto pelo eminente Relator da Comissão Revisora, deputado Nélson Jobim, dispondo que ‘o Poder Público responderá pelos danos que os membros do Poder Judiciário causarem no exercício de suas funções, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou fraude’, no que referenda uma orientação jurisprudencial mais consciente, teria o mérito de sua generalização.
A proposta constitucional inovadora mostra-se em consonância (inclusive na sua literalidade) com o disposto no art. 37, § 6º, da mesma Constituição, embora se deva reconhecer que, na sua aplicação, deveria sujeitar-se às peculiaridades da atividade jurisdicional.”
2) Augusto do Amaral Dergint, Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, in RT710/225:
“No direito comparado, soluções recentes denotam a derrubada da inconsistente tese da irresponsabilidade do Estado por atos judiciais (inclusive os juridicionais). Alça-se a responsabilidade à categoria de princípio. Países como a França (Lei 72-620, de 5.7.72, e 79-43, de 18.1.79), a Alemanha, a Polônia e a Itália (Lei 117, de 13.4.88) adotam, inclusive, um sistema de responsabilidade estatal exclusiva, isto é, apenas o Estado responde perante o jurisdicionado, ressalvado àquele o direito de regresso contra o magistrado faltoso. Na Itália, o problema da responsabilidade judicial assumiu tamanha relevância que foi objeto de um referendum popular, realizado em 1987, que culminou com a Lei 117, de 13.4.88, que adotou um sistema de responsabilidade estatal exclusiva por ato judicial ilícito. (...) O vigente texto constitucional brasileiro (segundo a linha traçada pelos que o precederam, a partir de 1946) expressamente adota, em seu art. 37, § 6º, o princípio da responsabilidade do Estado por danos causados por seus agentes. Nessa regra geral funda-se, no direito positivo brasileiro, a responsabilidade do Estado por danos causados por atos judiciais. O serviço judiciário consiste, incontestavelmente, em um serviço público, imposto aos cidadãos pelo Estado, que deve zelar por um certo grau de perfeição tanto na sua organização quanto no seu funcionamento, bem como responder pelos danos acaso daí provenientes. Por isso, pode-se dizer que ‘a responsabilidade do Estado por atos judiciais, nestes catalogados também os jurisdicionais, é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público’ (Edmir Netto de Araújo). O magistrado, como operador desse serviço estatal, é um agente público, age em nome do Estado – este tirando proveito da atividade daquele. Os atos do juiz são, pois, diretamente imputáveis ao Estado, que tem o dever de responder por suas conseqüências danosas. (...)
Não se pode conceber que o jurisdicionado, tanto na jurisdição cível como na penal, assuma o risco de um eventual erro judiciário, que advém de um serviço público que, além de ser imposto aos indivíduos, é prestado em benefício de toda a coletividade (ainda que indiretamente). A responsabilidade estatal é um princípio inerente aos sistemas jurídicos, desde o advento do Estado de Direito, de modo que prescinde de texto legal a estabelecê-lo. Não procede o argumento de que o Estado somente responde por atos judiciais nas hipóteses expressamente declaradas em lei, que, assim, representariam exceções a uma pretensa imunidade do Estado – igualmente sem correspondência legal. De qualquer forma, o princípio da responsabilidade estatal encontra-se consagrado, textualmente, em regra constitucional (art. 37, § 6º), aplicável aos atos danosos executivos, legislativos e judiciais. Não se pode dizer que existe uma lacuna no sistema jurídico. Mesmo se houvesse, ela não eximiria o juiz de julgar, devendo ele recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito.”
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Nota:
1. Este artigo foi redigido em 2005, durante a gestão do Ministro Nelson Jobim na Presidência do STF (2004-2006).
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