Introdução
Sem embargo da existência de disciplina normativa específica, o tema da data de início dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social vem oferecendo algumas dificuldades ao aplicador do direito.
Os benefícios previdenciários por incapacidade, a título exemplificativo, nada obstante as regras insertas nos artigos 43 e 60 da Lei 8.213/91, são concedidos com efeitos a partir da data da realização do laudo técnico pericial, destacadamente quando a prova técnica não logra precisar a data do início da incapacidade. Evidentemente que cabe ao magistrado, não apenas a partir do laudo técnico, mas igualmente com apoio em outros elementos de prova, aferir a data aproximada do início da incapacidade para o trabalho, fixando a data de início do benefício (DIB) e, por conseqüência, os efeitos da decisão condenatória.
Em relação a tais benefícios, existem outras tantas hipóteses que reclamam particular solução, como, no caso das ações de restabelecimento, a possibilidade de se presumir, a depender da espécie de moléstia ou lesão incapacitante, a persistência da incapacidade após a data da cessação administrativa do benefício.
A tarefa de fixação da data de início da pensão por morte também pode hospedar alguns desafios, e talvez o principal deles seja a interpretação da regra do art. 74, II, da LBPS, em relação à qual exponho o problema com a seguinte formulação: se o menor ou incapaz requerer a pensão por morte após o prazo de 30 dias, o benefício será devido a partir do requerimento? A resposta será negativa, desde que prevaleça o pensamento de que não corre prescrição contra menores, incapazes e ausentes (LBPS, art. 103, parágrafo único, in fine). Desse modo, o benefício será devido desde a data do óbito. Mas, sendo assim – é dizer, admitindo o argumento de que a regra de prescrição é aplicável à disciplina data de início do benefício porque fundamentada no pensamento de que o menor não pode ter seus direitos atingidos pelo decurso do tempo –, haverá o direito de receber as prestações atrasadas desde o óbito em qualquer hipótese?
Consideremos um caso em que a pensão por morte já vem sendo paga a um dependente desde o óbito, ocorrendo a posterior habilitação de um menor. Essa habilitação após o trintídio legal ainda assim obriga a Administração Previdenciária a proceder ao pagamento desde a data do óbito? E, quanto aos valores que foram pagos integralmente ao dependente habilitado, na forma do art. 76 da Lei 8.213/91, serão devolvidos pelo pensionista, porque com a habilitação do menor o dependente então habilitado passaria a ter direito só a uma cota da pensão por morte e não à sua integralidade? Temos uma hipótese restante para a solução de nosso problema: O INSS deverá conceder o benefício desde a data do óbito para o menor, não exigindo a devolução dos valores pagos ao dependente anteriormente habilitado, isto é, pagará duas vezes.
A questão colocada acima, acerca da qual guardo o entendimento de que em havendo dependente habilitado o benefício será devido ao menor a partir da data do requerimento administrativo – inteligência do art. 76 da Lei 8.213/91,(1) presta-se a ilustrar as variantes de pensamento acerca da caracterização da data do início do benefício também em relação à pensão por morte.
Mas o ideal primeiro deste trabalho é trazer algumas reflexões a respeito da data de início das aposentadorias voluntárias (aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de contribuição ou serviço e aposentadoria especial), reflexões que me parecem de alta relevância para a emancipação do direito previdenciário frente a um dado arbítrio judicial no que toca à fixação da data de início desses benefícios, arbítrio este manifestado pela adoção de critérios de justiça subjetivos emitidos pelo sujeito estatal chamado a aplicar o Direito.
A data de início das aposentadorias voluntárias concedidas judicialmente
A regra correspondente à data de início de benefício é única para as aposentadorias por idade, tempo de contribuição ou serviço e especial. A teor do artigo 49 da Lei 8.213/91, a aposentadoria por idade será devida ao segurado empregado, inclusive o doméstico, (i) a partir da data do desligamento do emprego, quando requerida até essa data ou até noventa dias depois dela, ou (ii) da data do requerimento, quando não houver desligamento do empregado ou quando for requerida após o prazo de noventa dias. Para os demais segurados, a aposentadoria será devida sempre a partir da data da entrada do requerimento. Essa regra é referência para a aposentadoria por tempo de contribuição (Lei 8.213/91, art. 54) e igualmente para a aposentadoria especial (Lei 8.213/91, art. 57, § 2º).
O que se pretende destacar no presente trabalho, em referência à disciplina legal sobre a data de início do benefício das aposentadorias voluntárias, é a existência de pensamento consoante o qual na hipótese da aposentadoria ser concedida por ordem judicial, a data de seu início deve ser a do ajuizamento da ação quando o segurado apenas em Juízo apresenta documentos essenciais ao sucesso de sua pretensão.
Inicialmente é de se recordar que a legislação previdenciária estipula expressamente a data de início dos benefícios, dispondo, em relação à aposentadoria por idade, que ela será devida, para os segurados que não empregados, a partir da data da entrada do requerimento (Lei 8.213/91, art. 49, II).
É de se lembrar, igualmente, que a única possibilidade – inscrita em norma jurídica válida – para a subtração de valores reconhecidamente devidos ao segurado da Previdência Social é a que decorre da prescrição incidente sobre as parcelas vencidas há mais de cinco anos do ajuizamento da ação (Lei 8.213/91, art. 103, parágrafo único).
Segundo a teoria da norma, uma vez aperfeiçoados todos os critérios da hipótese de incidência previdenciária, desencadeia-se o juízo lógico que determina o dever jurídico do INSS de conceder a prestação previdenciária. A questão da comprovação dos fatos que constituem o antecedente normativo constitui matéria estranha à disciplina da relação jurídica de benefícios e não inibem os efeitos imediatos da realização, no plano dos fatos, dos requisitos dispostos na hipótese normativa.
Ora, se ao tempo do requerimento administrativo, o segurado cumpria todos os requisitos para a obtenção de benefício de valor mínimo reputado indispensável para sua subsistência e requereu administrativamente o benefício, opera-se o que se tem por exercício de um direito adquirido, assim compreendido aquele “que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem lei nem fato posterior possa alterar tal situação jurídica, pois há direito concreto, ou seja, direito subjetivo e não direito potencial ou abstrato”. (Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Ed. Saraiva, 2004, p. 189)
Uma coisa é o cumprimento de todos os requisitos em lei para a obtenção do benefício. Outra coisa, bastante distinta, é o momento em que o titular de um direito existente logra demonstrar sua existência.
Não se deve condicionar o nascimento de um direito (já incorporado ao patrimônio e à personalidade de seu titular) ao momento em que se tem por comprovados os fatos que lhe constituem, por algumas razões elementares:
primeiro, seria o caso de enriquecimento ilícito do devedor, que teria todo estímulo para embaraçar a comprovação do fato que lhe impõe o dever de pagar, possibilitando-se a violação de tradicional princípio do direito civil, segundo o qual ninguém pode valer-se da própria torpeza;
segundo, restaria fulminado o instituto do direito adquirido, pois, se somente nasce o direito com a comprovação cabal de sua existência, então nada se adquiriu;
terceiro, não há qualquer norma jurídica, em qualquer seara de ordenamento posto sob as luzes de um Estado de Direito, a condicionar os efeitos de um direito adquirido ao momento de sua comprovação; a regra contida no art. 41, § 6º, da Lei 8.213/91, por versar sobre a data de início do pagamento e não data de início do benefício, não guarda qualquer pertinência com a questão, concessa maxima venia de quem entende no sentido contrário.
quarto, inexiste raiz hermenêutica que permita a construção de um mecanismo de acertamento de relação jurídica que tenha por dado fundamental o momento em que o magistrado tem por comprovado determinado fato;
quinto, estaria criada uma penalização pela inércia na comprovação dos fatos constitutivos de um direito sem qualquer amparo legal.
No domínio do direito previdenciário, tal pensamento causa ainda mais perplexidade, pois aqui falamos de hipossuficientes, de valores que foram indevidamente subtraídos de sua esfera jurídico-patrimonial pelo órgão gestor da Previdência Social, de parcelas que eram destinadas à subsistência do segurado e que não perderam essa natureza apenas porque não foram oportunamente pagas.
Na interpretação do direito social ganham realce o plexo de valores destinados à implementação da dignidade da pessoa humana em todas as suas manifestações e as exigências de concretização das normas constitucionais e de iluminação hermenêutica a partir dos princípios fundamentais; ganham realce, igualmente, valores como Justiça (social), eqüidade (LICC, art. 5º) e respeito ao ser humano, como valor fonte.
Se o que aprendemos é que o juiz deve ter em conta, na atividade interpretativa, a finalidade social para qual foi produzida determinada norma, como realizar o contrário, aplicando um direito inexistente contra o hipossuficiente ou operando uma interpretação contra legem (já que há norma expressa, que assumiu determinado valor e disciplinou expressamente o fato “data de início do benefício”)?
E o que são “documentos necessários/suficientes” para a concessão do benefício, uma vez que o legislador ordinário não os consagra de modo objetivo nem o poderia fazer, em face do princípio da liberdade probatória de nosso sistema de persuasão racional? Os “documentos necessários” seriam aqueles exigidos pelo INSS ou então aqueles assim entendidos pelo juiz singular ou pela instância recursal? Seriam necessários aqueles documentos segundo a perspectiva do STJ? Os documentos tidos por suficientes para a demonstração de determinado direito correspondem a uma noção subjetiva, impossível de ser a priori satisfeita.
De fato, quando “novos documentos” são apresentados em Juízo, pode-se até presumir que a Administração Previdenciária deles não tomou conhecimento. Mas não é possível, segundo penso e verifico da prática administrativa, sequer atestar que os chamados “novos documentos” não foram apresentados ao INSS, isso porque, longe do ambiente climatizado em que laboram os operadores do direito, o “processo administrativo previdenciário” é conduzido como se a Administração prestasse um obséquio ao cidadão carente, ao arrepio dos mais comezinhos princípios constitucionais processuais, demonstração inequívoca de uma administração paralela (parafraseando Augustín Gordillo),(2) isso em uma relação de poder, e não em uma relação de iguais submetidos ao Estado Democrático de Direito. O INSS pode carrear aos autos do feito administrativo apenas aquilo que reputou conveniente, desprezando-se, por exemplo, documentos que não se reportem diretamente ao interessado no recebimento do benefício, já que não teria em consideração de todo modo.
Aqui cabe a observação de que o princípio constitucional da eficiência deveria conduzir os agentes administrativos a orientarem o segurado da Previdência Social para a facilitação de acesso a direito fundamental destinado a garantir-lhe a subsistência. Talvez essa seja precisamente a finalidade do latente serviço social, delineado no art. 88 da Lei 8.213/91.
Mas ademais não se pode sequer afirmar que com os novos documentos o INSS concederia de pronto o benefício. Então não merece prevalecer essa noção de que os novos documentos apresentados em Juízo implicam a limitação da data de início do benefício. Tal pode ser até desejo ideológico do intérprete, mas não é o que o ordenamento jurídico dispõe.
Nesse sentido é indispensável a referência ao magistério de Marcus Orione, renomado professor e magistrado federal paulista, rogando vênia para a longa transcrição:
“Tem-se uma outra situação muito corriqueira, que é a análise do pagamento de atrasados em matéria de benefício previdenciário (quando se está discutindo judicialmente esses valores). Estes são corriqueiramente analisados sob a perspectiva da dívida de valor, como se eles não fossem mais créditos de natureza alimentar. Na verdade, a grande discussão que se coloca aqui é a seguinte: eles são créditos alimentares? Esses valores que foram ficando atrasados dentro de uma cobrança previdenciária (de uma ação de natureza previdenciária) se tratam de dívida de valor ou alimentar? Essa é uma pergunta importante, porque, caso se chegue à conclusão de que eles têm natureza alimentar, toda a lógica da execução vai ser uma, caso se conclua o contrário, a lógica vai ser outra. Hoje em dia, parte-se de uma presunção que chega a ser absurda: se o sujeito conseguiu sobreviver durante esse período todo, o crédito não tem natureza alimentar (isto é, o valor que foi acumulado não teria cunho alimentar). No entanto, quantas vezes a pessoa, para sobreviver durante esse período, teve que fazer empréstimos, reduzir a sua alimentação, comprar remédios, submetendo-se a restrições, que são restrições ligadas à própria essência do ser humano? Portanto, esses valores, uma vez recuperados em momento futuro, ainda que acumulados, continuam a ter natureza alimentar, porque vão resgatar a deficiência nutricional que essa pessoa teve durante esse período. Irão ser usados para pagar aqueles que, num momento de dificuldade, a socorreram (...). Portanto, a verba não tem natureza indenizatória. Na verdade, ela tem uma única natureza: serve ao resgate daquela humanidade que lhe foi suprimida durante um período. Portanto, continua a ter natureza alimentar nesse sentido de sobrevivência, de subsistência. Não é riqueza acumulada, tendo sido valor, denegado, muitas vezes, por falta de adequada diligência (...). Ele é direito de personalidade e não direito patrimonial.”(3)
A atuação do aplicador do direito deve-se dar no sentido de obstar qualquer atentado ao direito de personalidade (Código Civil, art. 12), razão pela qual deve ser fixada, como data de início do benefício, a data da entrada do requerimento administrativo, nos termos do art. 49, II, da Lei 8.213/91, ainda que o titular de tal prestação tenha logrado evidenciar seu direito apenas em Juízo.
Costumeiramente, porém, suscita-se o seguinte argumento: se o processo administrativo foi de fato mal instruído, isto é, sem os elementos de prova material capazes de convencer o servidor público responsável pela decisão concessória, então o indeferimento administrativo não se afigura ilegal, porque outra não poderia ser a solução ao pedido administrativo que não o indeferimento. Por essa razão, se bem andou o agente administrativo ao indeferir o benefício, porque os elementos de prova encontrados no processo administrativo não permitiam a concessão do benefício, o ato administrativo de indeferimento – segundo se sustenta – não seria ilegal, de maneira que o juiz que determina a concessão da aposentadoria, em verificando que o indeferimento foi “legal” (diante da insuficiente documentação oferecida pelo segurado), deve atrelar a data de início do benefício à data do ajuizamento da ação.
O argumento é falacioso, pois será ilegal o ato administrativo que decide um requerimento de benefício previdenciário toda vez que, não obstante o segurado preencha todos os requisitos exigidos pela legislação previdenciária, for indeferida a prestação pretendida.
Para a censura judicial do ato administrativo indeferitório, é irrelevante se a valoração da prova se deu adequadamente pelo agente administrativo, isto é, se no processo administrativo havia ou não prova suficiente para o reconhecimento do fato constitutivo do direito do beneficiário. O que importa é saber se já havia o direito ao benefício previdenciário, de natureza alimentar, quando do requerimento administrativo. Se existia o direito, isto é, se todas as condições para sua concessão haviam sido implementadas quando do requerimento, pouco importa se o segurado ou o dependente não logrou, por conta própria, reunir a documentação necessária para a demonstração de seu direito ainda na esfera administrativa.
Não é demais salientar que se impõe também à Administração Previdenciária uma participação ativa na instrução de um processo de benefício previdenciário, pois não há quem mais de perto conheça a complexa legislação previdenciária e os requisitos muitas vezes milimetricamente estabelecidos para o reconhecimento dos fatos constitutivos do direito do beneficiário que o agente concessor.
Entretanto, se a Administração Previdenciária põe termo a processo administrativo, indeferindo beneficio previdenciário sem propiciar ao segurado o pleno conhecimento acerca de seus direitos e de como deve proceder para resolver seus problemas com a Previdência Social (Lei 8.213/91, art. 88), quando não se realiza a Justificação Administrativa para confortar a prova documental apresentada pelo segurado (Lei 8.213/91, art. 108), quando o INSS não oferece espaço para exercício do contraditório e ampla defesa no processo de concessão de benefício, contribui decisivamente, com sua ineficiência, para a precária instrução do processo administrativo, para o adiamento da satisfação do direito material que se apresentou sob sua análise e para o afogamento da máquina judiciária federal.
Diante desse cerco aos direitos fundamentais processuais do segurado, faltava apenas lhe cercear, agora na Justiça, o direito a receber os direitos previdenciários em sua integralidade, hipótese à qual não se deve emprestar prestígio.
No que toca ao termo inicial do benefício previdenciário, é de se indagar, afinal, o que a lei dispõe a respeito, e isso não pode ser visto como apenas um detalhe ou uma recomendação ao nosso senso subjetivo de Justiça.
Aliás, a edição da Súmula 33 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais se encontra exatamente nesse sentido, senão vejamos: “Quando o segurado houver preenchido os requisitos legais para concessão da aposentadoria por tempo de serviço na data do requerimento administrativo, essa data será o termo inicial da concessão do benefício”.
Considerações finais
O presente trabalho colocou em foco tema que se revela como um dos mais atuais do direito previdenciário: a fixação da data de início das aposentadorias voluntárias.
Sem embargo da clareza normativa específica, o estudo de matéria de alta significância, pois o abandono da chamada concepção mecânica da função jurisdicional, que impunha ao juiz o exercício de uma operação silogística e que negava de um modo absoluto a possibilidade de criação judicial do Direito – em estrita realização do princípio da separação dos poderes(4) –, conduz à assunção de que no processo de aplicação do direito o juiz, exceção feita aos casos rotineiros, não desenvolve apenas um trabalho puramente cognoscitivo que se reduz a uma operação dedutiva que consiste em extrair uma conclusão a partir de premissas normativas e fáticas.
Como expressa Manuel Atienza, “el Derecho no es solamente un sistema, sino una práctica; y en la práctica jurídica argumentativa se hace uso de muchas premisas que no son enunciados del sistema”.(5)
Na medida em que o conhecimento objetivo do Direito passa, então, a depender do modo como o sistema de normas será decifrado pelo juiz, é imperioso que a aplicação do Direito seja questionada no âmbito de uma discussão racional, em que os próprios fins perseguidos e a utilização de determinados meios sejam examinados, de modo a assegurar a máxima racionalidade possível no processo de aplicação das normas jurídicas.(6)
Como a aplicação do Direito implica subjetividade, a justificação da escolha das premissas ou dos valores deve ser alinhada aos postulados de racionalidade da prática jurídica, de maneira a se honrar a previsibilidade do sistema jurídico e se limitar a adoção, pelo juiz, do emprego de suas crenças particulares ou de pautas ético-morais que entenda aplicáveis, procedendo-se a um controle de sua atividade a partir dos critérios a que recorreu.(7)
No domínio do Direito da Seguridade Social, alguns valores são visualizados como fundamentais, pois são os que exigem, num primeiro momento, concerto social para a implementação de um grande programa, organizado pelo Poder Público, que se destina a amparar o indivíduo que se encontra em uma contingência adversa e que potencialmente pode afetar-lhe a saúde, inibir a condição de inserção social ou diminuir a possibilidade de obtenção dos recursos para sua manutenção.
A seguridade social existe para o homem, para assegurar-lhe a existência, promover-lhe a dignidade, para socorrer-lhe na necessidade e ampliar-lhe, pelo princípio da igualdade, as reais condições de exercer a liberdade. O valor fundante da seguridade social – que constitui expressamente, ademais, princípio fundamental constitucional de nossa República (CF/88, art. 1º, III) e, por conseguinte, de nossa ordem econômica (CF/88, art. 170, caput) – seria, então, a dignidade da pessoa humana, o direito de ser tratado sempre como um fim em si mesmo e jamais como meio para a satisfação de determinada meta (Kant). A noção de universalidade da seguridade social, mais do que um princípio constitucional expresso (CF/88, art. 194, I), é ínsita a esse modelo de proteção social, que, pode-se dizer, floresce da tragédia da segunda guerra mundial como a bandeira da interdição da miséria, com a meta da abolição do estado de necessidade.
Não se promove a dignidade da pessoa humana pela seguridade social senão com apoio no postulado da solidariedade. Solidariedade para igualdade, no sentido de que o sistema de seguridade social se destina, sob um prisma individual, para acudir aos necessitados, tanto mais intensa a proteção social quanto for a debilidade econômica ou social do indivíduo (diretriz informadora do princípio constitucional da seletividade e distributividade das prestações da Seguridade Social – CF/88, art. 194, III). Solidariedade pela igualdade, no sentido de que o custeio para o pagamento das prestações necessárias deve-se dar com eqüidade (CF/88, art. 194, V), isto é, o financiamento da seguridade social tem ou deve ter fortes implicações redistributivas.
Corolário desses princípios constitucionais de superior dignidade, percebe-se que a seguridade social, para além dos caros objetivos que lhe são confiados, presta-se ela mesma como um instrumento para a realização de objetivos fundamentais republicanos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, promoção do bem a todos, sem qualquer forma de discriminação, e, destacadamente, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.
O sistema de seguridade social, engendrado em uma ordem social que “tem por base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e justiça sociais” (CF/88, art. 193), pela sua própria natureza e pelos princípios que a informam, busca promover justiça social, superando a concepção individualista do homem (ligada ao Estado liberal), para garantir, em um ambiente constitucional comunitário, uma convivência digna, livre e igual para todas as pessoas.
Esses valores que justificam a edificação de um tal sistema de proteção social é que devem nortear o intérprete do Direito da seguridade social e devem servir, outrossim, como filtro ético de controle da validade de uma decisão judicial dita previdenciária.
Notas
1. Nestas hipóteses deve ser chamado à responsabilidade o representante do incapaz, aquele que tinha o poder e o dever de tutelar seus direitos, mas que não o fez, por incúria.
2. GORDILLO, A. A. . La administración paralela. Madrid: Civitas, 1982.
3. (CORREIA, M. O. G.. Interpretação do Direito da Segurança Social, in ROCHA, D. M. e SAVARIS, J. A. (coord). Curso de Especialização em Direito Previdenciário, 2005, Juruá Editora, p. 266/267.
4. Talvez a escola da exegese francesa que dominou o pensamento durante boa parte do século XIX traduza, de maneira mais fiel, esta concepção dedutiva e unitária do raciocínio de Descartes e de tradição racionalista.
5. ATIENZA, M. El derecho como argumentación: concepciones de la argumentación. Barcelona: Ariel, 2006, p. 222.
6. A chamada crise da racionalidade da pós-modernidade não é uma negação da racionalidade, senão que o conhecimento da verdade não se opera apenas por meio de métodos objetivos, neutros e que conduzem a verdades absolutas. O realismo jurídico norte-americano, que surge como reação à concepção mecânica de atuação jurisdicional, representa a concepção sociológica da prática jurídica, alcançada no final do século XIX e no início do Século XX. Tal corrente de pensamento expressava que o Direito não se resume a um sistema mais ou menos fechado que limita a tarefa de atuação jurisdicional ao emprego de métodos dedutivos a partir de textos convenientemente interpretados, mas um meio de que o legislador se vale para alcançar determinados fins e para promover alguns determinados valores, de modo que a posição da atividade judicial não mais podia ser vista como tão passiva, sendo mesmo dotada de feição emotiva ou irracional.
7. Por racionalidade jurídica devem ser entendidos “os fundamentos lógicos de avaliação e prudência na atividade legislativa [...]”. Por razão, deve-se ter o “Conhecimento que se fundamenta em hipóteses, dedução e verificação experimental. Neste sentido, a razão se opõe a conhecimento ilusório, a crença, a preconceito e mito". (MELO, O. F. de. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis: OAB/SC, 2000, p. 83).
|