1. Este breve estudo tem como objetivo analisar as questões de direito intertemporal decorrentes da criação do instituto da decadência do direito de revisão do benefício previdenciário, hoje previsto no art. 103, caput, da Lei de Benefícios da Previdência Social.
Busca-se, em síntese, identificar se o novo instituto se aplica a todos os benefícios previdenciários ou tão-somente àqueles que foram concedidos após a vigência da lei instituidora da decadência.
2. Atualmente, o art. 103, caput, da Lei de Benefícios da Previdência Social estabelece um prazo preclusivo para que o segurado pleiteie a revisão da renda mensal inicial do seu benefício. Trata-se de inovação legal, pois, anteriormente, admitia-se a ampla possibilidade de questionamento dos critérios que determinaram o cálculo do benefício, o que era potencializado ainda pela aplicação da conhecida Súmula nº 85 do Superior Tribunal de Justiça, aplicada em larga escala no âmbito das ações previdenciárias. Referido enunciado assim dispõe: “Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a fazenda pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura”.
De acordo com esse entendimento, não havia limite temporal para o pedido de revisão dos critérios de cálculo da renda mensal inicial do benefício concedido no âmbito do Regime Geral de Previdência Social. Ficavam prejudicadas, apenas, as prestações vencidas em período superior a cinco anos do ajuizamento da ação. Assim, eram muito comuns as ações judiciais em que se questionavam, por exemplo, os índices de correção monetária dos salários-de-contribuição, relativamente a benefícios concedidos quinze ou vinte anos antes.
A partir da edição da Medida Provisória nº 1.523-09/2007, a situação se alterou. Referido diploma, sucessivamente reeditado até converter-se na Lei nº 9.528/97, deu a seguinte redação ao caput do art. 13 da LBPS:
“Art. 103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.” (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
Pouco tempo depois, sobreveio alteração legislativa que reduziu o prazo de decadência, ficando assim a redação do art. 103:
“Art. 103. É de cinco anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.” (Redação dada pela Lei nº 9.711, de 20.11.98)
Por fim, um dia antes de se completarem cinco anos da edição da Lei nº 9.711/98, o Presidente da República baixou a Medida Provisória 138, de 19.11.2003 (publicada no Diário Oficial do dia seguinte). Essa MP, convertida na Lei nº 10.839/2004, deu ao art. 103 da LBPS nova redação, reintroduzindo o prazo de dez anos para a caracterização da decadência:
“Art. 103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.” (Redação dada pela Lei nº 10.839, de 2004)
Esta, portanto, é a regulamentação legal atualmente vigente.
3. Tem-se argüido que a regra decadencial prevista no art. 103, caput, da LBPS não poderia ser aplicada aos benefícios concedidos anteriormente à sua vigência, por se tratar de aplicação irretroativa da lei, vedada pelo ordenamento jurídico.(1) Há, inclusive, decisões judiciais nesse sentido.(2)
Entendemos, contudo, que não procede essa objeção, se aplicado o prazo decadencial a partir da legislação que o instituiu, mesmo para benefícios concedidos anteriormente a ela.
É regra geral que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” (art. 6º, caput, da LICC). No mesmo sentido, dispõe a Constituição Federal que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI).
A regra, então, é da incidência imediata da lei, desde que não haja prejuízo ao trinômio ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. Não há, por outro lado, qualquer distinção relativamente ao conteúdo da lei – se ela institui norma de direito material ou de direito processual, se se trata de lei cogente ou supletiva, etc. A regra, insistimos, é da incidência imediata da lei, com a ressalva do art. 5º, XXXVI, da Constituição.(3)
Cabe perquirir, então, se e quando a instituição do prazo decadencial e a aplicação deste aos benefícios concedidos anteriormente implicariam violação ao art. 5º, XXXVI, da CF e ao art. 6º da LICC.
Ora, de início, deve-se afastar o óbice da coisa julgada, instituto jurídico alheio ao direito de revisão do benefício.
Tampouco a aplicação da norma decadencial aos benefícios pretéritos implicaria violação ao ato jurídico perfeito. De acordo com expressa definição legal, “reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. No caso em exame, qual ato que deve ser considerado, para os fins da lei? Não o de concessão do benefício, justamente porque este ato o segurado pretende revisar; o ato a ser considerado, então, é o próprio ato de revisão. Ora, somente haveria violação ao ato jurídico perfeito se o segurado já houvesse requerido a revisão do benefício e se pretendesse aplicar retroativamente a regra decadencial. Se não houve o pedido de revisão do benefício – seja administrativo, seja judicial – não há falar em ato jurídico perfeito que deva ser preservado. A conclusão é simples: em não tendo havido o pedido de revisão da renda mensal inicial do benefício, o estabelecimento de uma norma estabelecendo o prazo para a prática deste ato não viola ato jurídico perfeito algum, já que o ato de revisão sequer foi praticado.
Caberia, por fim, analisar a questão pelo prisma do direito adquirido. De acordo com o art. 6º, § 2º, da LICC, “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
É certo que o segurado possui o direito a requerer a revisão do seu benefício que foi concedido erroneamente; e esse direito não foi retirado pela legislação, que apenas condicionou o seu exercício à observância de um lapso temporal. Desse modo, o direito à revisão não foi atingido; o que foi atingido, na verdade, foi o direito à revisão em qualquer tempo, implicitamente previsto na legislação que até então vigia. Cabe perquirir, então, se o segurado possuía um direito adquirido à revisão em qualquer tempo e que tenha sido indevidamente atingido pela nova redação do art. 103 da LBPS.
Não há tal espécie de direito em nosso ordenamento jurídico – o direito à “imunidade” a prazos decadenciais ou prescricionais –, porquanto a jurisprudência pátria é pacífica no sentido de considerar que “não há direito adquirido a regime jurídico” e que as relações denominadas de “estatutárias” ou “institucionais” não são infensas a alterações, desde que não se modifiquem os atos já ocorridos no passado.
Sem adentrar na discussão ampla sobre a conceituação de tais relações, certo é que a relação entre segurado e autarquia previdenciária é uma relação estatutária ou institucional, de modo que o segurado não possui direito adquirido a determinado regime jurídico. Esse raciocínio é aplicado diuturnamente para várias questões relativas à sucessão de leis no direito previdenciário, e não haveria qualquer motivo para dar-se aplicação diversa no tocante à regra decadencial instituída na nova redação do art. 103 da LBPS.
Desse modo, entendemos que não há qualquer óbice à aplicação imediata da regra decadencial estabelecida pela nova legislação, já que isso não configura aplicação irretroativa da lei e não viola o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Somente haveria violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição caso se pretendesse efetuar a contagem do prazo decadencial retroativamente, isto é, com termo inicial antes da vigência da norma legal que o instituiu. Nesta hipótese, poderia ocorrer que, ao advento da norma legal, já teria se operado a decadência, o que é inadmissível.
Sobre esse ponto, é relevante transcrever trecho do voto do Min. Teori Albino Zavascki no julgamento do REsp 603.135/PE:
“Considerando tal princípio [do art. 5.º, XXXVI, da Constituição], não há como dar aplicação retroativa a leis que fixem ou reduzam prazo prescricional ou decadencial. Também nesse domínio jurídico não se pode inovar, no plano normativo, conferindo eficácia atual a fato ocorrido no passado. No que se refere especificamente a prazos decadenciais (ou seja, prazos para exercício do direito, sob pena de caducidade), admitir-se a aplicação do novo regime normativo (que reduz prazo) sobre período de tempo já passado, significaria, na prática, permitir que o legislador eliminasse, com efeito retroativo, a possibilidade de exercício do direito. Ora, eliminar, com eficácia retroativa, a possibilidade de exercício do direito é o mesmo que eliminar o próprio direito. E isso, é indispensável enfatizar, seria absolutamente inconstitucional.”
(REsp 603135/PE, 1ª Turma, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 21.06.2004.)
4. Em que pese a instituição de prazos decadenciais ou prescricionais – e seus efeitos sobre as relações jurídicas constituídas anteriormente – seja tema novo na jurisprudência, o mesmo não se pode dizer do estabelecimento de novos prazos decadenciais ou prescricionais, geralmente menores que os anteriores. E, em relação a esse ponto, é relevante verificar qual o posicionamento adotado pela jurisprudência pátria, já que os princípios por ela adotados devem ser aproveitados para o caso em análise.
Pois bem, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de firmar jurisprudência sobre os efeitos jurídicos da diminuição dos prazos de prescrição e de decadência, relativamente às situações constituídas anteriormente.
Com efeito, o julgamento do RE 79.327-5/SP, em 03.10.1978, pela Primeira Turma, relatado pelo Min. Antonio Neder, foi assim ementado:
“1. Prescrição. Direito intertemporal. Caso em que o prazo prescribente fixado na lei nova é menor do que o prazo prescricional marcado na lei anterior. Feita a contagem do prazo prescribente marcado na lei nova (isso a partir da vigência dessa lei), e se ocorrer que ele termine antes de findar-se o prazo maior fixado na lei anterior, é de se considerar o prazo menor previsto na lei posterior, contado esse prazo a partir da vigência da segunda lei. (...)”
O julgamento do RE 93.689-0, pela Primeira Turma, ocorrido em 10.02.1981 e relatado pelo Min. Soarez Muñoz, foi assim ementado:
“AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA. DIREITO INTERTEMPORAL.
Se o restante do prazo de decadência fixado na lei for superior ao novo prazo estabelecido pela lei nova, despreza-se o período já transcorrido para levar-se em conta, exclusivamente, o prazo da lei nova, a partir do início de sua vigência. Precedente: AR 905. Incidência da Súmula 286. Recurso não conhecido.”
É relevante destacar o seguinte trecho do voto do relator que transcreve parte da decisão recorrida:
“(...) Entretanto, quando há incidência de lei nova em prazos de prescrição ou decadência em curso, não há falar em direito adquirido, pois o entendimento predominante na doutrina, em direito intertemporal, como salienta CARLOS MAXIMILIANO, é o de que, ‘enquanto não se integra um lapso estabelecido, existe apenas uma esperança, uma simples expectativa; não há o direito de granjear as vantagens daquele instituto – no tempo fixado por lei vigente quando o prazo começou a correr. Prevalecem os períodos ulteriores, a partir do momento em que entraram em vigor’ (Dir. Intertemporal, nº 212, p. 246/247).
Quando a lei nova dilata o prazo que está em curso, tem ela aplicação integral, sem maior problema, pois, como lembrado por CARLOS MAXIMILIANO, em tal hipótese, ao tempo já decorrido sob o império da lei anterior adiciona-se o saldo trazido pela lei nova (v. ob. cit., p. 247).
Havendo, porém, encurtamento do prazo pela lei nova, surgem as dificuldades, decorrentes do confronto do princípio da aplicação imediata da lei nova com o princípio da não retroatividade, dificuldades que devem ser solucionadas tendo em vista resguardar os interesses em conflito: de um lado, o proprietário ou o credor; de outro, o prescribente ou devedor. E para que a apuração pura e simples do prazo menor a situações em curso não venha a prejudicar os interessados, apanhando-os de surpresa, é que SAVIGNY sugeriu a fórmula, hoje acolhida em doutrina como teoria intermédia, assim exposta por CARLOS MAXIMILIANO: ‘prevalece o lapso mais breve, estabelecido pela norma recente, a partir da entrada da mesma em vigor; não se conta o tempo transcorrido antes; porém, se ao sobrevir o novo diploma faltava, para se consumar a prescrição, trato menor do que o fixado pelos preceitos atuais, prefere-se o prazo determinado pela lei anterior.’ (...)”
Vê-se, pois, que a questão dos efeitos jurídicos da redução dos prazos de decadência e de prescrição não é nova e já foi enfrentada, ao menos, quando da alteração dos prazos de prescrição estabelecida pelo Código Civil de 1916 e quando da alteração do prazo da ação rescisória introduzida pelo atual Código de Processo Civil. Em qualquer desses casos e em todos outros análogos, jamais se utilizou o entendimento, com a devida vênia simplista, de que as modificações introduzidas pela legislação não se aplicariam às situações jurídicas já existentes quando da entrada em vigor daquelas; ao contrário, sempre se levou em consideração o princípio da incidência imediata da lei, com as devidas ponderações, caso a caso, para evitar que a lícita incidência imediata se convertesse em indevida aplicação retroativa da lei.
Poderia se argumentar, porém, que a orientação contida nos precedentes citados não tem aplicação ao caso em exame, porque eles tratam de diminuição de prazos decadenciais ou prescricionais, enquanto se está agora a tratar da instituição de prazo decadencial até então inexistente.
Não vemos razão, porém, para tal espécie de objeção. Entendemos que a instituição de um novo prazo de decadência ou de prescrição e a diminuição dos prazos já existentes se equivalem na essência. O princípio aplicado é o mesmo: a incidência imediata das leis, com os temperamentos necessários que a observância do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada exigem. Não haveria porque se considerar que não há direito adquirido aos prazos estabelecidos em lei (de acordo com a jurisprudência pacífica do STF) e, contraditoriamente, considerar-se que há direito adquirido à inexistência de prazos.
5. Por fim, cabe observar que, além de ser tecnicamente a mais adequada, não há qualquer injustiça na interpretação ora defendida. Injustiça, salvo melhor juízo, seria, por exemplo, considerar que alguém que tenha obtido um benefício previdenciário em 1980 tenha a eternidade para postular a sua revisão, enquanto aquele que obteve o benefício em 1999 só possa postular a revisão da renda mensal inicial até 2009. A interpretação contrária, então, além de não se mostrar a mais adequada, acabaria por estabelecer uma situação de total disparidade na situação jurídica dos segurados.
6. Sendo assim, concluímos que o prazo decadencial estabelecido no art. 103 da LBPS também tem aplicação aos benefícios concedidos anteriormente. Evidentemente, o cômputo do lapso decenal, para esses benefícios, só terá início a partir da vigência da lei instituidora no novo instituto, isto é, a partir de 28.06.1997, data em que foi publicada a nona edição da Medida Provisória n.º 1.523, sucessivamente reeditada, com o referido dispositivo, até converter-se na Lei nº 9.528/97. Sendo assim, a partir de 28/06/2007, está atingido pela decadência o direito de revisar a renda mensal inicial dos benefícios concedidos há mais de dez anos.
Note-se que a contagem dos prazos estipulados em anos expira no dia e no mês iguais aos do início da contagem, ao que se depreende da norma do art. 132, § 3º, do Código Civil/2002 e do art. 1º da Lei nº 810/1949.
Quanto à revisão dos benefícios concedidos a partir da vigência da MP nº 1523-09/1997, o prazo decenal é contado a partir “do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo”, de acordo com o texto legal.
Notas:
1. Esta é a posição de Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior: “O prazo decadencial de revisão atinge somente os benefícios previdenciários concedidos após o advento da MP nº 1.523-9, de 27 de junho de 1997, pois a norma não é expressamente retroativa.” Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Esmafe, 2004. p. 308.
2. Tomem-se como exemplos os seguintes julgados do STJ: REsp 479.964/RN, 6ª Turma, rel. Min. Paulo Galotti, DJ 10.11.2003; REsp 254.186/PR, 5ª Turma, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 27.08.2001.
3. Geralmente, diz-se que a lei que trata de “direito material” não se aplica aos fatos passados; a afirmação, na verdade, é imperfeita, porque não é correta em todos os casos; é certo que, na maior parte dos casos, essa afirmação se mostra adequada, porque aplicação imediata da lei pode implicar violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Nem sempre, porém, isso ocorre.
|