Sumário: Introdução. 1 A
Constituição dirigente de 1988 e a interpretação sistemática do direito à
saúde. 2 Conceito do direito à saúde. 3 A superação do caráter meramente
programático do direito social à saúde. 4 O direito à saúde: natureza
jurídica de direito subjetivo público e sua aplicabilidade imediata. 5 A
atuação do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde: a figura
do juiz constitucional. 6 O fornecimento de medicamentos não inclusos na
Relação Nacional de Medicamentos Especiais – RENAME. 7 Os princípios da
seletividade e da reserva do possível enquanto cláusulas restritivas ao
fornecimento de medicamentos. 8 As liminares previstas na Lei da Ação
Civil Pública: natureza jurídica. Possibilidade de concessão em face da
irreversibilidade da medida. Operacionalização do direito concedido. 9
Aspecto processual relevante: a legitimidade ativa do Ministério Público
Federal nas ações civil públicas envolvendo o direito à saúde. Conclusões.
Referências bibliográficas. Anexos.
Introdução
A garantia do direito à saúde é um dos pressupostos para a
existência de uma sociedade justa, sendo que, “se colocada em termos
suficientemente gerais, a essência de uma sociedade justa pode ser
facilmente enunciada. É que cada membro, independentemente de sexo, raça
ou origem étnica, deve ter acesso a uma vida gratificante.”(1)
O respeito aos direitos sociais, em especial o direito à saúde,
faz com que o Estado exista validamente enquanto precursor de políticas
públicas e sociais que concretizem esse direito e, via de conseqüência, o
bem-estar e a justiça sociais que são fundamentos da República Federativa
do Brasil.
Nessa breve referência, pode-se delimitar o contexto no
qual se insere este trabalho, que visa a analisar, em última instância, a
fonte constitucional e a (não) concretização do direito à saúde sob o
aspecto específico do fornecimento de medicamentos não disponibilizados
pelo Estado (União, Estados-membros e Municípios) àquelas pessoas que
deles necessitam.
Os métodos utilizados são o dogmático e o
sociológico.
A escolha do tema teve por razão a crise atual
envolvendo as prestações concretas do direito fundamental à saúde, donde
sobressai a necessidade de proteção das pessoas que necessitam de
medicamentos não fornecidos pelo SUS por exclusão da lista RENAME
elaborada pelo Ministério da Saúde, sendo este apenas um viés da
problemática atual que atinge os países em desenvolvimento – países de
constituição dirigente, mas de modernidade tardia, nas palavras do
Professor Lênio Streck –, sendo que “uma teoria da Constituição Dirigente
Adequada a Países de Modernidade Tardia, que também pode ser entendida
como uma teoria da Constituição dirigente-compromissória adequada a países
periféricos, deve, assim, cuidar da construção das condições de
possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as
quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o
próprio Estado Democrático de Direito.”(2)
Por fim, pretende-se ampliar a discussão acerca do tema proposto,
apresentando-se situações práticas enfrentadas pelos magistrados no
dia-a-dia, visando a trazer uma contribuição mínima para o debate que, por
certo, está apenas se iniciando.
1 A Constituição dirigente de 1988 e a
interpretação sistemática do direito social à saúde
A Constituição Federal de 1988 é, indubitavelmente, uma
constituição dirigente, sendo uma das mais amplas em termos de direitos
individuais e sociais assegurados, estando, pelo menos em tese, na
diretriz dos países que se dizem sociais democráticos e em
desenvolvimento.
A noção de constituição dirigente é no sentido de
um texto que “objetiva a mudança social, indo além, por conseguinte, de
representar um simples elenco de ‘instrumentos de governo’, haja vista a
enunciação de fins, metas, programas a serem perseguidos pelo Estado e
pela sociedade.”(3)
Reforçando a premissa lançada acima, a Constituição de 1988 é uma
constituição que define não apenas um estatuto de poder, mas também cuida
de estabelecer programas e metas que deverão ser concretizados pelo Estado
enquanto Poder Executivo e também pela própria sociedade, e é sob esse
viés que se tem o estabelecimento de uma nova ordem social, com base no
primado do trabalho e com objetivo de promover o bem-estar e a justiça
sociais.
E o que representa o bem-estar e a justiça sociais? Basta
voltar os olhos para os incisos III e IV do artigo 1º da Constituição, que
guardam os fundamentos da dignidade humana e os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, sendo que o artigo 3º da mesma Carta
explicita os objetivos fundamentais da República, dentre eles a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da
marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e
regionais.
Extrai-se do artigo 3º, inciso I, da Constituição a
expressão “solidária” para referir-se à importância visível dada pelo
constituinte originário ao princípio da solidariedade social que se traduz
em fundamento do Estado do bem-estar social, sendo que o bem-estar social
é um direito de todo o cidadão, estando esmiuçado pelo caput do
artigo 6º de forma a parametrizar o mínimo necessário a ser garantido aos
cidadãos, a fim de que eles possam viver com dignidade, e não apenas
sobreviver (como ocorre freqüentemente).
Observando-se esses
primados e objetivos e utilizando-se uma interpretação sistemática do
texto constitucional como um todo, em especial, por ser o tema deste
trabalho, dos direitos sociais, busca-se através da hermenêutica
constitucional a definição e a sistematização dos métodos aplicáveis para
determinar o sentido e significado das palavras e expressões contidas nas
normas constitucionais, referentes aos direitos sociais.
Não se
pode deixar de referir que no preâmbulo da nossa Carta Magna – o qual,
muito embora não faça parte do texto constitucional propriamente dito, é
juridicamente relevante e serve de parâmetro inicial para o exercício da
hermenêutica (interpretação) constitucional, possuindo, inclusive força
normativa – se destaca a necessidade de o Estado democrático assegurar o
bem-estar da Sociedade, sendo lógico que a saúde pública está inserida no
bem-estar social.
Nesta linha, a Constituição Federal de 1988,
enquanto constituição dirigente que é e adequada ao conceito de Estado
democrático de direito, qualifica a saúde como direito social e
fundamental do povo brasileiro, devendo-se se utilizar, para a
interpretação das normas legais e a verificação da sua
(in)constitucionalidade, o princípio da interpretação conforme a
constituição, o qual decorre da natureza rígida das Constituições, da
hierarquia das normas constitucionais e do caráter de unidade inerente ao
ordenamento jurídico.
“A aplicação desse método parte, por
conseguinte, da presunção de que toda a lei é constitucional, adotando-se
ao mesmo passo o princípio de que em caso de dúvida a lei será
interpretada ‘conforme a Constituição’. Deriva, outrossim, do emprego de
tal método a consideração de que não se deve interpretar isoladamente uma
norma constitucional, uma vez que do conteúdo geral da Constituição
procedem princípios elementares da ordem constitucional, bem como decisões
fundamentais do constituinte, que não podem ficar ignorados, cumprindo
levá-los na devida conta por ensejo da operação interpretativa, de modo a
fazer a regra que se vai interpretar adequada a esses princípios ou
decisões. Daqui resulta que o intérprete não perderá de vista o fato de
que a Constituição representa um todo ou uma unidade e, mais do que isso,
um sistema de valor.”(4)
Isto é, “as leis e normas secundárias devem ser interpretadas,
obrigatoriamente, em consonância com a Constituição. Dessa perspectiva, a
interpretação conforme a Constituição configura uma subdivisão da
interpretação sistemática”,(5)
sendo que, no caso de duas interpretações possíveis de uma lei, há de se
preferir aquela que se revele compatível com a Constituição, caso não se
verifique compatibilidade, o reconhecimento da inconstitucionalidade,
direta ou indiretamente, será a conseqüência lógica.
Tal
entendimento tem sido endossado pelo Supremo Tribunal Federal, que utiliza
a interpretação conforme a Constituição no seu processo decisório,
consoante decisão prolatada em sede de Medida Cautelar nos autos da ADInMC
2.231-DF, em que o Ministro Néri da Silveira proferiu voto no sentido de
dar ao texto interpretação conforme à Constituição Federal a fim de
excluir de sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já
postas em juízo.(6)
2 Conceito de saúde
O conceito de saúde e sua caracterização como direito tem
fundamento mais remoto no valor supremo da dignidade humana, sendo,
verdadeiramente, um dos aspectos mais importantes na valorização e
proteção dos direitos humanos.
É de se referir que o valor supremo
da dignidade humana é “concretizado pelo reconhecimento e positivação de
direitos e garantias fundamentais”,(7)
constituindo verdadeiro “valor unificador de todos os direitos
fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio,
também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos
fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados
internacionais.”(8)
Tanto é assim que, quando foi criada a Organização das Nações
Unidas – ONU, em 1945, ficou estabelecido que deveria ser elaborado um
documento que expressasse claramente todos os direitos humanos, inclusive
os sociais, sendo que em 1966 a Assembléia Geral da ONU aprovou o Pacto
Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais que, nos termos
da Resolução nº 543, item 6, emanada dessa Assembléia, permite concluir
que, quando um indivíduo é privado de seus direitos econômicos, sociais e
culturais, ele não caracteriza uma pessoa humana, sendo que pessoa humana
vem definida pela Declaração dos Direitos do Homem como ideal de homem
livre.
Do referido Pacto Internacional, que entrou em vigor em
03.01.1976, é possível inferir (itens 1 e 2) o conceito de saúde como
sendo um conceito amplo, “abrangendo desde a típica face individual do
direito subjetivo à assistência médica em caso de doença, até a
constatação da necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento,
personificada no direito a um nível de vida adequado à manutenção da
dignidade humana.”(9)
3 A superação do caráter meramente programático do
direito social à saúde
Dada a amplitude do conceito de saúde em nível internacional e sua
previsão como direito social e fundamental na nossa Constituição de 1988,
é de se afirmar que não se pode pretender atribuir caráter meramente
programático à norma contida no artigo 196 da Constituição,(10)
conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA.(11)
Não é mais possível, nos dias de hoje, enquadrar o direito à saúde
no conceito de norma meramente programática, pois a norma constitucional
contida no artigo 196 da Constituição Federal vigente, em leitura conjunta
com o caput do artigo 6º, institui um dever correlato a um sujeito
determinado: o Estado – que, por isso, tem a obrigação de satisfazer
aquele direito. Se essa obrigação não é satisfeita, não se trata de
programaticidade, mas de desrespeito ao direito, de descumprimento da
norma e desrespeito pelo Estado do dever de primar pela realização de uma
conduta voltada à distribuição justa e adequada dos bens sociais
existentes ou não, pois são direitos prestacionais que devem ser postos à
disposição do cidadão.
Por conta do exposto acima, enquadrar a
norma constitucional que assegura o direito à saúde no conceito de
programática é postura merecedora de crítica na exata medida em que
assegurar constitucionalmente um direito, mas não delimitar ao Estado
enquanto Poder Executivo as regras mínimas para sua efetivação, é o mesmo
que não assegurar nada, com vênia pela simplicidade do raciocínio, mas é o
único significado que se encontra para tal situação e que demonstra, ainda
que minimamente, a indignação quanto a essa postura do Poder Executivo
4 O direito à saúde: natureza jurídica de direito
subjetivo público e sua aplicabilidade imediata
A caracterização do direito à saúde como direito social e
fundamental do cidadão e, via de conseqüência, como direito subjetivo
público encontra sustentação no princípio basilar da universalidade da
prestação, na medida em que “saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (CF: art. 196), sendo
de “relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização
e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de
terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica” (CF: art.
197).
“Não há dúvida da fundamentalidade do direito à saúde. Foi a
Constituição de 1988 a primeira das nossas Cartas políticas a reconhecer
explicitamente e assegurar este direito. É o segundo dos direitos sociais,
logo após a educação. O artigo 196 da Carta de 1988 inscreve a saúde como
‘direito de todos e dever do Estado’. Este dever do Estado será garantido
através de políticas sociais e econômicas, objetivando a redução do risco
de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços públicos para a sua promoção, proteção e
recuperação.”(12)
Trata-se de um direito subjetivo das pessoas independentemente da
sua judicialidade e exeqüibilidade imediatas. E sobre a necessária
exeqüibilidade imediata dos direitos fundamentais do homem, vale referir
crítica de Norberto Bobbio(13)
no sentido da defasagem entre a teoria e a prática neste campo. Tal
defasagem é ainda maior e mais intensa em relação aos direitos sociais,
exemplificando que na Constituição Italiana as normas que se referem a
direitos sociais foram chamadas pudicamente de programáticas.
Bobbio(14)
questiona: já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas
que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam,
proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência
claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que
gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo
reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além
de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’
é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser
chamado corretamente de ‘direito’?”
Assim, o direito à saúde, além
de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas,
representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida,
merecendo, portanto, a atenção e o zelo do Poder Público no sentido de que
seja realmente efetivado através da adoção de condutas eficientes e
adequadas a garantir resultados.
Não é possível, portanto, e
pede-se vênia pelo impositivismo da afirmação, querer conceder mero
caráter programático ao direito à saúde, pois se trata de um direito
subjetivo público oponível ao Estado e nesta condição se encontra
positivado na Constituição Federal de 1988, podendo e devendo ser
executado pelos seus titulares, pois detêm dimensão subjetiva, não podendo
ser considerados como simples imposições constitucionais, donde derivariam
direitos reflexos para os cidadãos.
5 A atuação do Poder Judiciário na concretização
do direito à saúde: a figura do juiz constitucional
Todo o juiz é um juiz constitucional e por força dessa investidura
é guardião da aplicabilidade direta e imediata do direito fundamental à
saúde e das promessas democráticas plasmadas no texto constitucional, não
sendo factível questionar-se a legitimidade ou competência do juiz para
dirimir as questões atinentes à saúde, em especial aquelas que tratam do
fornecimento de medicamentos não inclusos na lista RENAME.
O
reconhecimento de que o juiz é um intérprete da constituição e que dela
advém seu investimento e poder decisório é feito por Peter Häberle, quando
afirma que “o juiz constitucional já não interpreta, no processo
constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do processo;
as formas de participação ampliam-se acentuadamente.”(15)
No tocante à aplicabilidade imediata do direito à saúde, tem-se
que se trata de questão diretamente ligada à defasada teoria da
programaticidade de algumas normas constitucionais. José Joaquim Canotilho
afirma, de forma contundente, que, “marcando uma decidida ruptura em
relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da ‘morte’ das normas
constitucionais programáticas”,(16)
explicando que “às ‘normas programáticas’ é reconhecido hoje um valor
jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da
constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática
(ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se
obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político.”(17)
A aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, dentre eles do
direito ao fornecimento de medicamentos não entregues pelo SUS aos
cidadãos que deles necessitam, é conclusão lídima diante da evolução da
teoria constitucional, não sendo possível desprezar os direitos
fundamentais sob o argumento pífio e simplista da inexistência de
positivação legal – até porque se a lei, quando existente e vigente, não
se sobrepõe à Constituição, imagine-se uma lei que sequer exista? Até
porque, caso existente, a lei deve sempre ser interpretada e aplicada
conforme à Constituição.
Assim, ainda que ausente lei, cabe ao juiz
promover a integração da norma constitucional ao caso concreto (teoria da
concretização da constituição) e não se há de falar em ofensa à função
precípua do Poder Legislativo, pois o magistrado de primeiro grau, que
está próximo da demanda judicial, estará apenas suprindo omissões dos
Poderes Legislativo e Executivo no tocante ao cumprimento e à
concretização do direito à saúde.
A intervenção do Poder Judiciário
na atividade administrativa (= executiva) do Poder Executivo e Legislativo
não é indevida, pois não se vislumbra ofensa ao artigo 2º da Constituição,
nem a ocorrência da substituição do Estado-administração pelo Poder
Judiciário, pois “ao afirmar que os Poderes da União são independentes e
harmônicos, o texto constitucional consagrou, respectivamente, as teorias
da separação dos poderes e dos freios e contrapesos.”(18)
O Supremo Tribunal Federal, em decisão pertinente ao direito
social à educação,(19)
o que permite a sua aplicação analógica ao tema do direito social à saúde,
decidiu, em breve resumo, que, embora seja inquestionável que resida,
primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de
formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao
Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar,
especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua
omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais
impregnados de estatura constitucional.
Ressalta-se também que ao
Judiciário, como poder autônomo e independente, cabe não só a
administração da Justiça, mas a guarda da Constituição, com a finalidade
de preservar os princípios e as garantias de um estado democrático de
Direito, sem prejuízo do exercício do direito subjetivo de todo o cidadão
de exigir da Administração o cumprimento de seus deveres.
“Também
há, ainda, forte corrente no sentido de que a matéria exige prévia
regulamentação legislativa (hoje, temos, além da Lei que regula o SUS (Lei
nº 8.080/90), a de nº 8.142/90 e a Resolução nº 283/91; a Lei nº 9.313/96;
e, na área estadual, a Lei Estadual nº 9.908/93, estas duas relativas a
medicamentos), na linha do entendimento de que se cuida de direito que,
por sua feição econômica, implica alocação de recursos materiais e
humanos, sendo apenas o legislador o legitimado constitucionalmente para
dispor sobre tal matéria, submetido a uma reserva do possível.”(20)
Ainda, “tal entendimento deve ser compatibilizado com o direito
fundamental à vida. Há que se fazer uma ponderação entre estes direitos,
porquanto tratam-se de situações de cunho emergencial, cujo indeferimento
acarretaria – na maioria das vezes – o comprometimento irreversível de um
bem da vida, essencial, como o é o da saúde.”(21)
A intervenção do Judiciário em questões administrativas é cabível
apenas em áreas alheias à margem de discricionariedade do administrador,
aquele legitimado ao juízo de oportunidade e conveniência quanto à atuação
da Administração, em que se consideram os recursos disponíveis,
normalmente escassos, e as inúmeras necessidades. Tais áreas de
intervenção admissível são, justamente, as da competência vinculada, em
que a conduta da Administração é ditada pelo ordenamento jurídico e pelas
normas, regras ou princípios que o compõem.
Considerando que a vida
e a saúde dos cidadãos são valores jurídicos tutelados pelo ordenamento, é
de se concluir que atos tendentes a fragilizá-los ou vulnerá-los violam o
sistema e extrapolam a discricionariedade. Assim, promover a devida e
correta concretização desses direitos com adequação às normas
constitucionais, através de determinações judiciais, são medidas que
buscam corrigir desvio de conduta vinculada esperada da
Administração.
Por conta de tudo isso, é perfeitamente defensável e
imperiosa a concretização imediata do direito social à saúde,
especificamente através da concessão de antecipações de tutela em sede de
ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal para
fornecimento de medicamentos não integrantes da lista RENAME e, portanto,
não disponibilizados pelo SUS.
6 O fornecimento de medicamentos não inclusos na
lista RENAME
A realidade brasileira nesta seara – concretização do direito à
saúde – não é das melhores, sendo inúmeros os casos veiculados nos meios
de comunicação acerca das mazelas sociais às quais são submetidos os
cidadãos brasileiros, de modo que essas pessoas vêm bater às portas do
Poder Judiciário como última esperança de ver atendidos seus
pleitos.
Assim, a concretização do direito à saúde como
conseqüência da aplicabilidade imediata das normas constitucionais a esse
respeito, embora possa ser passível de crítica é o mais justo e adequado
quando se tem a experiência viva de se ver e ouvir pessoas portadoras de
graves doenças e que necessitam de medicamentos e, ao buscá-los junto aos
Postos de Saúde municipais, encontram negativados os seus pedidos.
Tais pessoas precisam desses medicamentos para salvaguardar a sua
vida, pois doenças como o mal de Wilson – distúrbio do metabolismo do
cobre no organismo – é uma doença rara de origem genética que produz um
defeito no metabolismo do cobre no organismo, sendo que, conforme consta
do Anexo da Portaria do Ministério da Saúde nº 844/2002, sem tratamento a
doença evolui para insuficiência hepática, doença neuropsiquiátrica,
falência hepática e morte.
Com efeito, nos autos do processo nº
2004.72.01.002000-7, em trâmite perante o Juízo Federal Substituto da 4ª
Vara Federal de Joinville-SC, tanto no inquérito civil que instrui a
inicial, quanto nas alegações preliminares dos réus, restou demonstrado
que o medicamento SYPRINE (TRIENTINE), de que necessita o paciente
paradigma, não está incluído na relação oficial de medicamentos essenciais
(RENAME) nem na relação de medicamentos especiais aprovados para a doença
de Wilson, situação que justificou o deferimento da antecipação de tutela
para que a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de Joinville
fornecessem tal medicamento em cumprimento aos preceitos
constitucionais.
A Constituição Federal de 1988 reuniu as políticas
públicas de saúde, assistência e previdência social no capítulo da
Seguridade Social, sendo que estabeleceu em seu art. 198 que “as ações e
serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada
e constituem um sistema único (...).” Esse dispositivo restou
regulamentado pela Lei nº 8.080/90, em cujo artigo 4º preceitua que “o
conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições
públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e
indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema
Único de Saúde (SUS).”
No art. 6º, inciso I, letra d, da
referida Lei nº 8.080/90, verifica-se que se inclui no elenco dos
objetivos e atribuições do SUS “I – a execução de ações: (...). d –
de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”.
Já
entre os princípios do SUS, previstos no art. 7º da Lei nº 8.080/90,
consta do inciso II do referido dispositivo a “integralidade de
assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e
serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para
cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.
Com a
edição da Portaria GM nº 3.916, de 31.10.1998, foi aprovada a Política
Nacional de Medicamentos, cujas ações “terão por objetivo implementar, no
âmbito das três esferas do SUS, todas as atividades relacionadas à
promoção do acesso da população aos medicamentos e seu uso
racional.”
Nesse sentido foi instituído o Sistema Único de Saúde –
SUS –, composto por uma rede de prestação de serviços regionalizada, que
se organiza de acordo com as diretrizes da descentralização, em que se
redefinem os papéis das três esferas de governo – União, Estados e
Municípios – que, entre si, estabelecem novas relações. Agora, o poder
público municipal assume plenamente o papel de gestor do sistema de saúde
de sua cidade; e os poderes estadual e federal assumem novas
responsabilidades específicas, cabendo à esfera estadual criar condições
para que o município possa exercer a gestão nos seus limites territoriais
ou exercer o papel de gestor nos municípios em que isso ainda não foi
possível. À esfera federal cabe, além de incentivar a implementação dos
SUS estaduais e municipais, normatizar e coordenar o sistema
nacional.
Esse modelo de gestão do SUS representa importante
instrumento para a concretização do objetivo de garantir à população uma
atenção à saúde que tenha como fundamentos a universalidade, a eqüidade, a
integralidade e um padrão mínimo de qualidade. A Constituição Federal,
conforme disposto no art. 198, buscou justamente implementar racionalidade
e objetividade, mediante a descentralização administrativa, sistema que
encontra ressonância nas Leis nos 8.080/90 e 8.142/90.(22)
A respeito do fornecimento de medicamentos, destaca-se precedente
do Superior Tribunal de Justiça em julgamento envolvendo paciente com
bócio difuso tóxico com hipertiroidismo, o qual, com base no direito à
vida e à saúde – dignidade humana –, na política do SUS que visa à
integralidade da assistência à saúde e no dever constitucional do Estado
de atender a todos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade,
manteve o deferimento dos medicamentos necessários ao tratamento da doença
referida.(23)
Outra doença que teve o fornecimento de medicamento deferido
através de medida judicial é a doença de Crohn, que se trata uma doença
inflamatória intestinal de origem não conhecida e caracterizada pelo
acometimento focal, assimétrico e transmural de qualquer parte do tubo
digestivo. Suas manifestações clínicas mais comuns são dor abdominal e
diarréia, formação de fístulas e sintomas obstrutivos intestinais. Não é
uma doença clinicamente ou cirurgicamente curável e sua história natural é
marcada por agudizações e remissões, consoante anexo da Portaria
Ministerial nº 858/2002-MS, que aprovou o Protocolo Clínico e Diretrizes
Terapêuticas para Doença de Crohn, constando do esquema terapêutico o
medicamento Infliximab.
Pois bem, no processo nº
2004.72.01.005735-3, também em trâmite perante o Juízo Federal Substituto
da 4ª Vara Federal de Joinville, verificou-se que medicamento Infliximab
(remicade®) está incluído na relação oficial da União de medicamentos
excepcionais aprovados para a doença de Crohn (CID10: K50, K50.0, K50.1,
K50.8 e K50.9) e para a artrite reumatóide (CID10: M05.0, M05.1, M05.2,
M05.3, M05.8, M05.9, M06.0, M06.1, M06.2, M06.3, M06.4, M06.8 e M06.9),
nos termos da Portaria Ministerial nº 1.318/2002. Contudo, não está
previsto na lista oficial de medicamentos excepcionais do Estado de Santa
Catarina, o que justificou a determinação judicial para o seu
fornecimento.
Destaca-se que, nos autos acima referidos, o Estado
de Santa Catarina alegou, em resumo, que esse medicamento está padronizado
na Portaria Ministerial nº 1.318/2002, para Doença de Crohn, Artrite
Reumatóide e outras artrites. Porém, não está padronizado no Programa de
Medicamentos de dispensação excepcional do Estado, sendo que para essa
patologia constam os medicamentos Azatioprina 50mg, Ciclosporina de 25,50
e 100 mg, Sulfassalazina 500mg, Mesalazina 500 mg. Por fim, informa que
todos os pacientes acometidos da Doença de Crohn que apresentaram processo
para o Programa de Medicamentos de dispensação excepcional na Diretoria
estão sendo atendidos com os medicamentos padronizados e específicos do
Protoloco, enquanto os pacientes portadores da Doença de Crohn com
indicação para o uso de Infliximab 100 mg estão sendo atendidos por
liminares judiciais.
Ora, se a própria normatização expedida pela
União autoriza o uso do Infliximab e determina o seu fornecimento pelos
Estados-membros, a negativa pelo Estado de Santa Catarina do fornecimento
do medicamento não encontra respaldo fático ou jurídico, não procede
sequer a alegação de que o medicamento tem alto custo, pois esse é o
motivo para a existência da relação oficial dos medicamentos excepcionais,
visto que são de alto custo, não podendo deles fazer uso a população de
baixa renda, razão pela qual o Estado (gênero) através dos seus entes
federativos tem o dever constitucional de fornecê-los.
São
posturas públicas como essas que causam indignação, até porque, segundo o
Parecer Técnico nº 103/2004/SCTIE/MS, para o co-financiamento do Programa
de dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, o repasse de
recursos federais no mês de agosto de 2004 para o Estado de Santa Catarina
foi de R$ 2.291.688,30 (dois milhões, duzentos e noventa e um mil,
seiscentos e oitenta e oito reais e trinta centavos), verba mais que
suficiente para cumprir a promessa constitucional do direito à saúde e à
vida.
Refere-se outro caso prático trazido a julgamento nos autos
da ação civil pública nº 2004.72.01.006629-9, em trâmite perante a 4ª Vara
Federal de Joinville, envolvendo a pretensão de responsabilizar
solidariamente a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de
Joinville a fornecer o medicamento antipsicótico amisulprida (socian®) aos
portadores de quadro depressivo refratário ao uso dos medicamentos
clorpromazina 25mg, 100mg, solução injetável 5mg e solução oral 40mg/ml e
haloperidol 1mg, 5mg, solução injetável 5mg/ml e solução oral 2mg/ml,
previstos na RENAME/2002.
Em tal ação decidiu-se que a negativa de
fornecimento pelo Estado (União, Estado de Santa Catarina e Município de
Joinville) do medicamento amisulprida (socian®) não encontra respaldo
fático ou jurídico, não procedendo sequer a alegação de que o medicamento
tem alto custo, pois não é esse o caso, faltando motivo para o Estado
(gênero) através dos seus entes federativos não fornecê-los. É de causar
indignação a postura do Estado de Santa Catarina, pois, segundo o já
referido Parecer Técnico nº 112/2004/SCTIE/MS (fl. 51/53), o repasse de
recursos federais no mês de julho de 2004 para o Estado de Santa Catarina
foi de R$ 57.476,82 (cinqüenta e sete mil quatrocentos e setenta e seis
reais e oitenta e dois centavos), contudo o Estado não dispensou nenhum
medicamento, inclusive os previstos na RENAME/2002.
Ainda, nos
mesmos autos, foi afirmado que, se há o repasse de verbas federais, tem a
União o dever de fiscalizar se esses valores estão sendo destinados para o
atendimento da população usuária do SUS, justificando-se a sua
responsabilidade solidária, pois “nos artigos 9º e 16, III, a, da
Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1999, a União está habilitada a atender
à pretensão deduzida pelo autor [fornecimento do medicamento amisulprida
(socian®)], pois, além de responsável pela direção do SUS, também tem
atribuição de coordenar os sistemas de assistência de alta
complexidade.”(24)
Resta, portanto, a imposição constitucional ao Poder Público, em
todos os níveis da organização federativa, de forma solidária, de
assegurar o direito à saúde a toda a população, o que implica a adoção de
medidas que possibilitem o acesso universal e igualitário das pessoas a um
sistema organizado que atenda às suas necessidades de assistência
farmacêutica e médico-hospitalar.
Conforme já se pronunciou o
Supremo Tribunal Federal:
“O direito público subjetivo à saúde
representa prerrogativa jurídica da República (art. 196). Traduz bem
jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e
implementar – políticas sociais e econômicas que visem garantir, aos
cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência
médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que
compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
Brasileiro – não pode converter-se em promessa institucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas
nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever por um gesto de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.”(25)
7 Os princípios da seletividade e da reserva do
possível enquanto possíveis cláusulas restritivas ao fornecimento de
medicamentos
Refere-se a possível limitação e restrição à concessão de
medicamentos não inclusos na lista RENAME e, portanto, a restrição dos
paradigmas constitucionais da dignidade humana e da igualdade pelos
princípios da seletividade (que está previsto no artigo 194, parágrafo
único, inciso III, da Constituição Federal de 1988) e da reserva do
possível (este enquanto respaldo financeiro do Estado para realizar suas
políticas sociais).
“A seletividade fornece o rol das
contingências-necessidades objetos da relação jurídica de
seguridade”,(26)
contudo este rol, estabelecido pelo legislador infraconstitucional, não
pode ultrapassar o limite da igualdade material, princípio de caráter
geral, previsto no artigo 5º, caput, da mesma Carta Constitucional,
pois, ao regular a Constituição, o legislador infraconstitucional não pode
promover desigualdades sociais, já que a idéia é exatamente o contrário:
busca da redução das desigualdades sociais e regionais e da
marginalização.
O princípio da seletividade é utilizado pelos
defensores da aplicação do preceito da reserva do possível enquanto
limitador financeiro a favor do Estado quando pretender justificar a sua
inoperância em termos de Estado Social.
Tais princípios não são
malferidos pela justificativa de que haveria ingerência no orçamento
público dos entes federados e também no sentido de que ficariam pacientes
sem atendimento pelo SUS por conta do dispêndio de verbas com o
fornecimento de medicamentos não inclusos na lista RENAME. Essa
justificativa é falaciosa, pois é fato notório que as verbas gastas com
publicidade institucional são, no mais das vezes, muitos maiores que as
verbas destinadas à prestação eficaz do direito fundamental à
saúde.
Sobre tal questão foi decidido, nos autos da ação civil
pública nº 2004.72.01.005735-3, em trâmite perante a 4ª Vara Federal de
Joinville, que não socorre à União e ao Estado de Santa Catarina a
alegação de inexistência de previsão orçamentária, “pois consabido possuir
várias fontes de receita e meios orçamentários de relocação de verbas.
Também não lhe socorre a alegada prejudicialidade que a medida acarreta
aos usuários que porventura necessitem dos serviços públicos de
saúde.”(27)
O próprio Supremo Tribunal Federal(28)
vem entendendo que a reserva do possível encontra limitação exata no
princípio da dignidade da pessoa humana enquanto garantidor do mínimo
existencial, não podendo o Estado, através do Poder Executivo ou do
Legislativo, solapar direitos sociais constitucionalmente garantidos e que
devem ser disponibilizados aos seus titulares, havendo a imperiosa
necessidade de preservação em favor dos indivíduos da integridade e da
intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial, o qual
está diretamente ligado ao valor da dignidade humana.
Não se
ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais –
além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização
– depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro
subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que,
comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira
da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então,
considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do
comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará
lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo
artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade
financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e
censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o
estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de
condições materiais mínimas de existência.(29)
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do
possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível
– não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se,
dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais,
notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar
nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais
impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”(30)
8 As liminares previstas na Lei da Ação Civil
Pública: natureza jurídica. Possibilidade de concessão em face da
irreversibilidade da medida. Operacionalização do direito concedido
Entende-se que as medidas liminares pleiteadas, apesar do nome
jurídico atribuído pela Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347 de 1985,
detêm natureza jurídica de antecipação de tutela, pois, ainda que fundadas
na urgência, sua finalidade precípua é adiantar os efeitos da tutela de
mérito, de sorte a propiciar sua imediata execução, objetivo que não se
confunde com o da medida cautelar (assegurar o resultado útil do processo
de conhecimento ou de execução ou, ainda, a viabilidade do direito
afirmado pelo autor).
Ademais, as liminares previstas no art. 12
da Lei 7347/85 visam tutelar preventivamente o provável dano que venha a
ocorrer, é tutela que pretende acautelar o futuro do processo. Porém, com
as alterações do Código de Processo Civil em 1994 que culminaram, entre
outras coisas, com a criação do instituto da tutela antecipada, resta
claro que as denominadas liminares (medidas cautelares) ficaram adstritas
àquelas expressamente previstas no Código de Processo Civil na parte do
Processo Cautelar, deixando de existir, a meu ver, as cautelares
inominadas.
No tocante à irreversibilidade das antecipações de
tutela deferidas, entende-se que tal situação produzida no mundo dos fatos
não tem o condão de obstar o deferimento da antecipação, pois se considera
a preponderância do direito à vida enquanto consectário da dignidade da
pessoa humana em relação ao princípio da indisponibilidade dos bens
públicos – fundamento para alegação de dano irreparável ao
erário.
Quanto à operacionalização do fornecimento do medicamento
deferido em sede de antecipação de tutela, considera-se adequado que sejam
definidas as regras pertinentes ao cumprimento da determinação judicial,
para que não aleguem os sujeitos passivos da relação processual que não
houve especificação de como proceder e, atribuindo uns aos outros a
responsabilidade, façam perecer o direito do paciente
substituído.
Nesses casos, tem-se por legal, conforme a Lei nº
8.080/90, e razoável, muito embora se reconheça a legitimidade passiva
concorrente dos três entes federativos, determinar ao Município que
viabilize o fornecimento da medicação deferida aos que dela
necessitarem.
Fundamenta-se tal entendimento nos artigos 4º, 8º e
9º, incisos I, II e III, da Lei nº 8.080/90, bem como no artigo 18 da
mesma lei que trata da competência de cada esfera federativa no SUS, em
que consta no inciso I que compete ao Município executar os serviços
públicos de saúde.(31)
Desse modo, afasta-se do bojo do processo em que são concedidos
medicamentos negados pelo Estado (gênero) qualquer questão sobre custos do
medicamento. Tais questões deverão ser discutidas pelos entes federativos
na seara administrativa, sendo que entraves burocráticos não servirão de
justificativa para descumprimento dessa ordem judicial.
9 Aspecto processual relevante: a legitimidade
ativa do Ministério Público Federal nas ações civis públicas envolvendo o
direito à saúde
Tem-se entendido que o direito à saúde, além de ser direito
individual fundamental e indisponível por estar diretamente ligado ao
direito à vida, é direito social (art. 6º da Constituição Federal),
reconhecendo a doutrina, ainda, a existência do direito difuso à saúde
pública.
Além disso, a partir da relevância social atribuída aos
serviços de saúde no art. 197 da Constituição Federal, o Ministério
Público tem legitimidade para o ajuizamento de ação individual ou coletiva
que busque garantir a prestação do serviço nos moldes estabelecidos na
Constituição, conforme art. 129, II e III, da Constituição Federal. E, na
tutela coletiva da saúde pública, o Ministério Público pode referir e
formular requerimentos em relação a situações individuais paradigmas,
incluídas na tutela pretendida em relação ao tipo de serviço oferecido a
todos, como é o caso dos autos em relação à paciente
paradigma.
Nesse sentido, inúmeros são os julgados do Superior
Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal desta 4ª Região que
assentam a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação
coletiva que busca tutela do direito à saúde.(32)
O próprio Supremo Tribunal Federal,(33)
no voto do Relator, Ministro Celso de Mello, proferido no julgamento do
agravo regimental no RE 273.834-4/RS, assenta a legitimidade do Ministério
Público para buscar a tutela do direito à saúde, em face da relevância
pública atribuída na Constituição Federal às ações e serviços de saúde.
Conclusões
1. A Constituição Federal de 1988 é uma constituição dirigente, que
tem como primado o trabalho e como objetivos fundamentais o bem-estar e a
justiça sociais.
2. A hermenêutica constitucional representa o
marco fundamental para a interpretação da Constituição, sendo que através
do princípio da interpetação conforme à Constituição chega-se à exata
interpretação dos ordenamentos infraconstitucionais.
3. O princípio
da interpretação conforme à Constituição tem suas bases firmadas pela
doutrina e pela jurisprudência constitucional emitida pelo intérprete
máximo da Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal.
4. Os
direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, dentre
eles o direito à saúde, são direitos fundamentais de segunda geração e se
caracterizam por outorgarem aos indivíduos direitos a prestações sociais
estatais, dentre elas a previdência social.
5. O conceito de saúde
é amplo e tem como pressuposto o valor supremo da dignidade
humana.
6. O Estado tem o dever constitucional de garantir o mínimo
existencial, o qual está representado pelos direitos sociais previstos no
artigo 6º da Constituição, estando obrigado a adimplir com este dever
através de uma prestação positiva (concretização material).
7.
Resta superado o conceito de norma programática atribuído ao direito à
saúde.
8. O direito à saúde detém natureza jurídica de direito
subjetivo público, com aplicabilidade imediata tanto pelo Poder Executivo
nas três esferas governamentais, quanto pelo Poder Judiciário quando
demandado para tanto.
9. Todo o juiz é um juiz constitucional
investido desse poder e da função de guardião da Constituição, devendo
atuar como intérprete e concretizador do direito fundamental à
saúde.
10. É possível e constitucionalmente assegurado o
fornecimento de medicamentos não inclusos na relação nacional de
medicamentos especiais – RENAME pelo Poder Judiciário quando presente a
omissão do Estado.
11. Os princípios da seletividade e da reserva
do possível não podem ser utilizados como limitações dos paradigmas
constitucionais da dignidade humana, da igualdade e do não-retrocesso
social, de modo que não pode o Estado, através do Poder Executivo e do
Legislativo, solapar direitos sociais constitucionalmente garantidos e que
devem ser disponibilizados aos seus titulares.
12. Pelos casos
práticos referidos neste trabalho, restam demonstradas na prática a
inoperância e a omissão do Estado a justificar a atuação judicial, ainda
que excepcional, no sentido de implementar as políticas públicas e sociais
às quais está obrigado o Poder Executivo.
13. Essa omissão do Poder
Executivo só contribui para aumentar as desigualdades sociais já
existentes, em afronta ao princípio da igualdade, em nada contribuindo
para a redução das desigualdades sociais.
14. É adequada a atuação
do Poder Judiciário na direção do cumprimento do princípio da igualdade e
da redução das desigualdades sociais tão acentuadas em nosso país,
elevando os desiguais a patamares de igualdade com aqueles que já detêm o
mínimo existencial, isto é, o mínimo para uma vida digna e justa.
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Legislação de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p.22.
Anexos
Anexo I – A experiência prática vivenciada no âmbito dos processos
distribuídos ao Juízo Federal Substituto da 4ª Vara Federal de
Joinville/SC
Desde o ano de 2003 foram distribuídas ao Juízo
Federal Substituto da 4ª Vara Federal de Joinville cinco ações civis
públicas e uma ação ordinária envolvendo o fornecimento de medicamentos e
tratamento médico, sendo que em todas as ações foi deferida, parcial ou
integralmente, a tutela antecipada requerida.
Nos autos da ação
civil pública nº 2004.72.01.005735-3 (doença de Crohn) e da ação ordinária
nº 2005.72.01.004381-4 (psoríase) já foram proferidas sentenças, com
julgamento de parcial procedência do pedido. Em ambos, como condenação
principal, foi determinado ao Estado (gênero) o fornecimento do
medicamento requerido pelo autor (Ministério Público Federal na ação civil
pública e particular na ação ordinária), o qual, coincidentemente, era o
mesmo medicamento: Infliximab (remicade®).
Na ação civil pública nº
2004.72.01.006629-9 a doença do paradigma a ser atendido era depressão,
sendo que tal quadro depressivo era refratário ao tratamento disponível no
SUS, necessitando dos medicamentos FRONTAL 1mg, SOCIAN 50mg e REMERON
15mg, os quais tiveram sua dispensação negada pelo Estado. Na antecipação
de tutela foi deferido apenas o fornecimento do medicamento antipsicótico
amisulprida (socian®), uma vez que, (a) para o antidepressivo mirtazapina
15mg (remeron®), foram testados esquemas terapêuticos envolvendo apenas o
uso de Fluoxetina e de Amitriptilina, enquanto que a RENAME/2002 prevê a
dispensação do clomipramina 10mg e 25mg, carbonato de lítio 300mg e
nortriptilina 10mg e 50mg e, (b) para o ansiolítico Alprazolam 1mg
(frontal®), foi testado esquema terapêutico envolvendo apenas o próprio
frontal®, contudo a RENAME/2002 prevê a dispensação do diazepam 2mg, 5mg e
solução injetável 5mg/ml, clomipramina 10mg e 25 mg, midazolam 15mg,
solução injetável 5mg/ml e solução oral 2mg/ml e prometazina
25mg.
Nos autos do processo nº 2004.72.01.002000-7 deferiu-se a
antecipação de tutela para o fornecimento do medicamento SYPRINE
(TRIENTINE), de que necessitava o paciente paradigma, o qual não está
incluído na relação oficial de medicamentos essenciais (RENAME) nem na
relação de medicamentos especiais aprovados para a doença de
Wilson.
Já nos autos nº 2003.72.01.005772-5 foi decidido pelo
deferimento do medicamento gabapentina (neurotin®) 300 mg à paciente
paradigma portadora de neuropatia lombosacral (transtorno de discos
intervertebrais, mais especificamente de discos lombares e/ou de discos
intervertebrais com radiculopatia, ocasionando o comprometimento
osteomuscular do seu portador, conforme consta do CID 10 M
51.1.).
Por fim, na ação civil pública nº 2006.72.01.001895-2, o
Ministério Público Federal pleiteou proteção para as pessoas portadoras de
doenças oftalmológicas. Neste processo, foi deferida parcialmente a tutela
antecipada, tão somente para obrigar a União, o Estado de Santa Catarina e
o Município de Joinville a realizar os exames de retinografia e
angiofluorocenografia para os casos paradigmas e para os portadores das
doenças oftalmológicas que deles necessitarem. Peculiaridade processual a
ser destacada é que foi reconhecida a conexão do pedido inicial formulado
nesta ação com o pedido constante dos autos da ação civil pública nº
2005.72.01.004473-9 em tramite perante a 2ª Vara Federal da subseção de
Joinville.
Apenas na ação civil pública nº 2004.72.01.002000-7 foi
interposto recurso de agravo de instrumento nº 2004.04.01.038643-3/SC
perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sendo atribuído apenas
efeito devolutivo ao recurso, mantendo-se a decisão de primeiro grau pelos
seus próprios fundamentos.
Anexo II – Jurisprudência dos Tribunais pátrios
Impende destacar algumas ementas de julgamentos proferidos pelo
Supremo Tribunal Federal no âmbito do fornecimento de medicamentos e do
atendimento eficaz e eficiente do direito à saúde:
“Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento. Fornecimento de medicamentos a
paciente hipossuficiente. Obrigação do Estado. Paciente carente de
recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita.
Obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. Agravo regimental a que
se nega provimento.”(34)
“Agravo Regimental em recurso extraordinário. Distribuição de
medicamentos especiais ou excepcionais a pessoas carentes. Lei nº
9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, e acordo firmado na comissão
intergestores bipartite – CIB. Reexame de cláusulas. Impossibilidade. 1.
Programa de distribuição de medicamentos especiais ou excepcionais a
pessoas carentes. Lei nº 9.908/96, do Estado do Rio Grande do Sul. Ofensa
ao artigo 196 da Carta Federal. Alegação improcedente. Precedentes. 2.
Acordo firmado na Comissão de Intergestores Bipartite – CIB. Reexame de
cláusulas firmadas entre as partes no que concerne à reserva de
atribuições para operacionalização dos recursos financeiros.
Impossibilidade. Ofensa ao princípio federativo da separação dos poderes.
Inexistência. Hipótese que trata de divisão de funções com vistas à
execução dos encargos cometidos por lei ao Estado. Agravo regimental não
provido.”(35)
“Paciente com HIV/AIDS – Pessoa destituída de recursos financeiros
– direito à vida e à saúde – fornecimento gratuito de medicamentos – dever
constitucional do Poder Público (CF, arts. 5º, caput, e 196) –
Precedentes (STF) – Recurso de Agravo improvido. Direito à saúde
representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. –
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria
Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar –
políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos,
inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e
igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à
saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas
as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do
direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional
de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode
mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de
incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento
inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter
programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por
destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode
converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder
Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,
substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que
determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE
MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade
jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas
carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a
preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º,
caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto
reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,
especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a
consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.
Precedentes do STF.”(36)
O Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente decidindo pela
legitimidade ativa do Ministério Público Federal para ajuizar ações civis
públicas na defesa do direito à saúde, tendo afirmado que “a ação civil
pública é o meio adequado para resguardar interesse individual de menor
que necessita de tratamento médico. Precedente da Primeira Seção. Recurso
especial provido para reconhecer a legitimidade do Ministério Público, bem
como reconhecer a ação civil pública como meio adequado para pleitear a
tutela dos direitos individuais indisponíveis à saúde e à vida e
determinar o prosseguimento da referida ação.”(37)
No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça afirmou que
“constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar a
entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer
medicamento essencial à saúde de pessoa carente, especialmente quando
sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar,
prematuramente, a sua morte.”(38)
Na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, são
inúmeros os julgados no sentido da autorização constitucional para o
fornecimento de medicamentos não inclusos na relação nacional de
medicamentos especiais – RENAME, demonstrando que a orientação da
jurisprudência regional não destoa da dos tribunais
superiores:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO
DE TUTELA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO DE SAÚDE. -
Havendo previsão constitucional (art. 196) no sentido de considerar a
saúde um dever do Estado e considerando a patologia de que é portadora a
paciente Telma de Fátima Panka, resta presente a verossimilhança das
alegações a amparar o deferimento de pedido de antecipação de tutela, além
do evidente risco de dano irreparável ou de difícil reparação.”(39)
“AGRAVO REGIMENTAL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS.
UNIÃO. 1. ‘O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas
de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive
àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos
fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196)
e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário
de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada
têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de
sua essencial dignidade. Precedentes do STF.’ (STF - AGRRE 271286 - 2ª T.
- Rel. Min. Celso de Mello - DJU 24.11.2000 - p. 00101) (...)”(40)
“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
DIREITO À VIDA E À SAÚDE. SUS. PRECEDENTES. 1. O artigo 196 da
Constituição Federal, ao dizer que ‘a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal
igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e
recuperação’, obriga o Poder Público, entre outras ações, à assistência
farmacêutica a quem não tem condições de arcar com o custo da medicação
necessária à cura ou ao controle da doença da qual é portador. - A Lei
n° 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, não deixa margens a qualquer dúvida, pois, em seu
artigo 6°, inciso I, alínea d, arrolou no campo de ação do Sistema
Único de Saúde (SUS) a assistência terapêutica integral, inclusive
farmacêutica. Não poderia ser diferente, já que é notório o alto custo das
substâncias imprescindíveis ao tratamento de certas doenças, assim como as
dificuldades financeiras que grande parte da população enfrenta ao
deparar-se com problemas de saúde. - Consabido que o Estado não pode
arcar com o tratamento de saúde de todos os seus súditos, é razoável que o
amparo farmacêutico alcance os que revelem ausência de recursos, como
ocorre com a Sra. Sirley Alves de Medeiros (fls. 24/25). - Importante
frisar que o preço do medicamento, na faixa de R$ 44,36 no caso, não exime
os réus de prestar a devida assistência, haja vista a notória carência
financeira de parte da população e o impacto inegável que o uso contínuo
de remédios como o em discussão causa no orçamento familiar das pessoas de
baixa renda. - Ademais, a indispensabilidade e necessidade do
medicamento ‘Ritmonorm’ para o tratamento da Sra. Sirley decorre da sua
indicação por três diferentes médicos do Sistema Único de Saúde (fls.
25/26 e 43). A receita de fl. 25 atesta, inclusive, que a paciente
‘necessita fazer uso crônico do medicamento’. - Neste contexto, cai por
terra a alegação do Estado de Santa Catarina de que seria possível a
utilização de medicamentos similares, dispensados em Centros de Saúde
através do Programa Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica. - Os
profissionais que examinaram a paciente e decidiram pelo remédio
‘Ritmonorm’ são vinculados ao Sistema Único de Saúde e têm, por isso,
conhecimento da relação de medicamentos fornecidos gratuitamente pelo
Estado. Deste modo, se fosse possível a utilização de medicação similar, o
remédio ‘Ritmonorm’ não teria sido receitado. - De qualquer modo, a
jurisprudência tem entendido que a não-inclusão do medicamento em lista
prévia não tem o condão de obstar o seu fornecimento, em prestígio ao
direito à vida e à saúde, que sempre devem ser colocados em primeiro
lugar. 'Processo. AgRg na STA 83/ MG ; AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO
DE TUTELA ANTECIPADA. 2004/0063271-1. Relator(a). Ministro EDSON
VIDIGAL (1074). Órgão Julgador. CE - CORTE ESPECIAL. Data do Julgamento
25.10.2004. Data da Publicação/Fonte. DJ 06.12.2004 p. 172. Ementa
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO GRATUITA. DEVER DO ESTADO.
AGRAVO REGIMENTAL. 1. Consoante expressa determinação constitucional, é
dever do Estado garantir, mediante a implantação de políticas sociais e
econômicas, o acesso universal e igualitário à saúde, bem como os serviços
e medidas necessários à sua promoção, proteção e recuperação (CF/88, art.
196). 2. O não-preenchimento de mera formalidade – no caso, inclusão de
medicamento em lista prévia – não pode, por si só, obstaculizar o
fornecimento gratuito de medicação a portador de moléstia gravíssima, se
comprovada a respectiva necessidade e receitada, aquela, por médico para
tanto capacitado. Precedentes desta Corte. 3. Concedida tutela
antecipada no sentido de, considerando a gravidade da doença enfocada,
impor, ao Estado, apenas o cumprimento de obrigação que a própria
Constituição Federal lhe reserva, não se evidencia plausível a alegação de
que o cumprimento da decisão poderia inviabilizar a execução dos serviços
públicos. 4. Agravo Regimental não provido. De outra banda, a
extensão do fornecimento do remédio em questão a um número indeterminado
de pessoas, mesmo que num espaço territorial determinado, consiste em
decisão de nítido cunho normativo, já que estabelece regra geral de
conduta dos órgãos públicos para casos futuros e indeterminados, em clara
substituição à tarefa legislativa e ao poder regulamentar do Executivo;
especialmente no presente caso, em que há o fornecimento gratuito de
medicamentos similares que, embora inadequados para a paciente Sirley,
podem ser suficientes ao tratamento de outras pessoas com a mesma
moléstia. 2. Improvimento das apelações e da remessa oficial.”(41)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTOS. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. ANTECIPAÇÃO DA
TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.
1 - Pertinentemente à
impossibilidade de medida que esgote o objeto da ação, o regramento
relaciona-se com sua irreversibilidade, o qual – assevere-se – foi
reproduzido no § 2º do art. 273 do CPC. Tal regramento, de olhos postos na
situação fática, deve ser relativizado, sob pena de obstaculização, em
situações de urgência e necessidade, à concessão do provimento
antecipatório.
2 - O direito público subjetivo à saúde representa
prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas
pela própria Constituição da República (art. 196).
3 - O Poder
Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano
da organização federativa brasileira, não pode se mostrar indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por
censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.”(42)
Notas:
1. GALBRATH, John Kenneth. A sociedade justa:
uma perspectiva humana. 7.ed. Tradução de Ivo Koytowski. Rio de Janeiro:
Campus, 1996. p.25.
2. STRECK, Lênio Luiz. A
Concretização de direitos e a validade da tese da constituição dirigente
em países de modernidade tardia. Caderno de direito constitucional –
2006. Escola da Magistratura. Cursos de Currículo Permanente. Tribunal
Regional Federal da 4ª Região. p. 31.
3. TOJAL, Sebastião
Botto de Barros. A Constituição dirigente e o direito regulatório do
estado social: o direito sanitário. Artigo publicado na obra Direito
Sanitário e Saúde Pública v. 1: coletânea de textos – Série E.
Legislação de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. p.22.
4. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.
11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.474.
5. MENDES,
Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de
normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 231.
6. Supremo Tribunal Federal, ADInMC 2.231-DF, rel.
Min. Néri da Silveira, julgado na sessão do dia 05.12.2001, noticiado no
Informativo do Supremo Tribunal Federal de nº 253, sob o título: ADPF:
Controle Concentrado.
7. ANDRADE, J.C. Vieira apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
97.
8. FARIAS, E. Pereira de apud SARLET, op. cit., p. 98.
9. DALLARI, Sueli Gandolfi.
Direito sanitário. Artigo publicado na obra Direito Sanitário e Saúde
Pública. v. 1: coletânea de textos – Série E. Legislação de Saúde.
Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p.48.
10. Constituição Federal: Art. 196. Saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros e ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
11. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas
Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 150.
12. TESSLER, Marga Inge Barth. O direito à saúde: A saúde como
direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, n. 40, p.
78.
13. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.
Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.
77.
14. BOBBIO, op. cit., p. 78
15. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A
sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a
interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução: Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997 –
reimpressão 2002. p. 41.
16. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes.Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. (2ª
reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003. p. 1.176.
17. CANOTILHO, op. cit. p. 1176-1177.
18. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e
Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.
137.
19. STF, RE n. 436.996/SP, Decisão monocrática
do Min. Celso de Mello, DJU: 07.11.2005, confirmada pela respectiva Turma
no julgamento do Agravo Regimental em 20.11.2005.
20. KRÄMER, Ana Cristina. O poder judiciário e as ações na área da saúde. Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre, n. 15, maio 2006.
Disponível em:
http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm.
Acesso em: 17 dez. 2006.
21. KRÄMER, op. cit.
22. Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, AC n. 2000.04.01.028702-4, rel. Des. Edgar Lippmann,
in RTRF 4ª. Região 47/110-123.
23. STJ, REsp nº
200400164910/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ
23.08.2004.
24. Tribunal Regional Federal da
4ª Região, 3ª Turma, Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.0387550-RS, Rel.
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, DJU: 17.12.2003, p.
350.
25. Supremo Tribunal Federal, Recurso
Extraordinário nº 267.612/RS, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ
23.08.2000.
26. SANTOS, Marisa Ferreira. O
princípio da seletividade das prestações de seguridade social. São
Paulo: LTr, 2004. p.215.
27. Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, AG nº 200304010505363/RS, 4ª Turma, Rel. Des.
Federal Amaury Chaves de Athayde, DJU 31.05.2004.
28. Supremo Tribunal Federal, Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 45-DF, rel. Ministro Celso de Mello, DJU:
04.05.2004.
29. STF, ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO, Informativo/STF nº 345/2004.
30. STF,
idem.
31. “Art. 4º O conjunto de ações e serviços de
saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e
municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas
pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde
(SUS).
(...)
Art. 8º As ações e serviços de saúde,
executados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja diretamente ou mediante
participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de
forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade
crescente.
(...)
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde
(SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição
Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes
órgãos:
I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II
- no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria
de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios,
pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão
equivalente.
(...)
Art. 18. À direção municipal do Sistema
de Saúde (SUS) compete:
I - planejar, organizar, controlar e
avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços
públicos de saúde; (...)”
32. STJ, 6ª T.,
REsp 1998.00422595/PE, Rel. Min. Vicente Leal, DJU 1º.07.2002, p. 410; e
TRF4R, 3ª T., AI 2003.04.01.041369-9/SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo
Thompson Flores Lenz, DJU 21.01.2004.
33. Supremo
Tribunal Federal. Agravo Regimental no RE 273.834-4/RS, Rel. Ministro
Celso de Mello.
34. Supremo Tribunal Federal.
Segunda Turma. AI-AgR n. 604949/RS, relator Min. Eros Roberto Grau, DJ:
24.11.2006, p. 086.
35. Supremo Tribunal Federal.
Segunda Turma. RE-AgR n. 257.109/RS, relator Min. Maurício Corrêa, DJ:
07.12.2000, p. 020.
36. Supremo Tribunal Federal.
Segunda Turma, RE-AgR n. 271286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ:
24.11.2000, p. 101.
37. Superior Tribunal de
Justiça. Segunda Turma, REsp 750409-RS, Rel. Ministro Humberto Martins,
DJ: 11.12.2006, p. 339.
38. Superior Tribunal de
Justiça. Primeira Turma, REsp 837591-RS, Rel. Ministro José Delgado, DJ:
11.09.2006, p. 233.
39. Tribunal Regional Federal
da 4ª Região, Quarta Turma, AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 200604000053043-PR,
Rel. Des. Federal EDGARD ANTONIO LIPPMANN JÚNIOR, DJU DATA:11.10.2006, p.
998.
40. Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
Primeira Turma Suplementar, AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 200504010523260-SC,
Rel. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva, DJU: 06.09.2006, p. 848.
41. Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
Terceira Turma, AC nº 200572000066386-SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo
Thopson Flores Lenz, DJU: 23.08.2006, p. 1159.
42. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Primeira Turma
Suplementar, AG n. 200504010372955-RS, Rel. Des. Federal Luiz Carlos de
Castro Lugon, DJU: 14.06.2006, p. 483.
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