A concretização do direito à saúde sob o viés do fornecimento de medicamentos não inclusos na Relação Nacional de Medicamentos Especiais – RENAME


Autora: Janaina Cassol Machado
Juíza Federal
Publicado na Edição 20 - 29.10.2007

 

Sumário: Introdução. 1 A Constituição dirigente de 1988 e a interpretação sistemática do direito à saúde. 2 Conceito do direito à saúde. 3 A superação do caráter meramente programático do direito social à saúde. 4 O direito à saúde: natureza jurídica de direito subjetivo público e sua aplicabilidade imediata. 5 A atuação do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde: a figura do juiz constitucional. 6 O fornecimento de medicamentos não inclusos na Relação Nacional de Medicamentos Especiais – RENAME. 7 Os princípios da seletividade e da reserva do possível enquanto cláusulas restritivas ao fornecimento de medicamentos. 8 As liminares previstas na Lei da Ação Civil Pública: natureza jurídica. Possibilidade de concessão em face da irreversibilidade da medida. Operacionalização do direito concedido. 9 Aspecto processual relevante: a legitimidade ativa do Ministério Público Federal nas ações civil públicas envolvendo o direito à saúde. Conclusões. Referências bibliográficas. Anexos.

Introdução

A garantia do direito à saúde é um dos pressupostos para a existência de uma sociedade justa, sendo que, “se colocada em termos suficientemente gerais, a essência de uma sociedade justa pode ser facilmente enunciada. É que cada membro, independentemente de sexo, raça ou origem étnica, deve ter acesso a uma vida gratificante.”(1)

O respeito aos direitos sociais, em especial o direito à saúde, faz com que o Estado exista validamente enquanto precursor de políticas públicas e sociais que concretizem esse direito e, via de conseqüência, o bem-estar e a justiça sociais que são fundamentos da República Federativa do Brasil.

Nessa breve referência, pode-se delimitar o contexto no qual se insere este trabalho, que visa a analisar, em última instância, a fonte constitucional e a (não) concretização do direito à saúde sob o aspecto específico do fornecimento de medicamentos não disponibilizados pelo Estado (União, Estados-membros e Municípios) àquelas pessoas que deles necessitam.

Os métodos utilizados são o dogmático e o sociológico.

A escolha do tema teve por razão a crise atual envolvendo as prestações concretas do direito fundamental à saúde, donde sobressai a necessidade de proteção das pessoas que necessitam de medicamentos não fornecidos pelo SUS por exclusão da lista RENAME elaborada pelo Ministério da Saúde, sendo este apenas um viés da problemática atual que atinge os países em desenvolvimento – países de constituição dirigente, mas de modernidade tardia, nas palavras do Professor Lênio Streck –, sendo que “uma teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia, que também pode ser entendida como uma teoria da Constituição dirigente-compromissória adequada a países periféricos, deve, assim, cuidar da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito.”(2)

Por fim, pretende-se ampliar a discussão acerca do tema proposto, apresentando-se situações práticas enfrentadas pelos magistrados no dia-a-dia, visando a trazer uma contribuição mínima para o debate que, por certo, está apenas se iniciando.

1 A Constituição dirigente de 1988 e a interpretação sistemática do direito social à saúde

A Constituição Federal de 1988 é, indubitavelmente, uma constituição dirigente, sendo uma das mais amplas em termos de direitos individuais e sociais assegurados, estando, pelo menos em tese, na diretriz dos países que se dizem sociais democráticos e em desenvolvimento.

A noção de constituição dirigente é no sentido de um texto que “objetiva a mudança social, indo além, por conseguinte, de representar um simples elenco de ‘instrumentos de governo’, haja vista a enunciação de fins, metas, programas a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade.”(3)

Reforçando a premissa lançada acima, a Constituição de 1988 é uma constituição que define não apenas um estatuto de poder, mas também cuida de estabelecer programas e metas que deverão ser concretizados pelo Estado enquanto Poder Executivo e também pela própria sociedade, e é sob esse viés que se tem o estabelecimento de uma nova ordem social, com base no primado do trabalho e com objetivo de promover o bem-estar e a justiça sociais.

E o que representa o bem-estar e a justiça sociais? Basta voltar os olhos para os incisos III e IV do artigo 1º da Constituição, que guardam os fundamentos da dignidade humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, sendo que o artigo 3º da mesma Carta explicita os objetivos fundamentais da República, dentre eles a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Extrai-se do artigo 3º, inciso I, da Constituição a expressão “solidária” para referir-se à importância visível dada pelo constituinte originário ao princípio da solidariedade social que se traduz em fundamento do Estado do bem-estar social, sendo que o bem-estar social é um direito de todo o cidadão, estando esmiuçado pelo caput do artigo 6º de forma a parametrizar o mínimo necessário a ser garantido aos cidadãos, a fim de que eles possam viver com dignidade, e não apenas sobreviver (como ocorre freqüentemente).

Observando-se esses primados e objetivos e utilizando-se uma interpretação sistemática do texto constitucional como um todo, em especial, por ser o tema deste trabalho, dos direitos sociais, busca-se através da hermenêutica constitucional a definição e a sistematização dos métodos aplicáveis para determinar o sentido e significado das palavras e expressões contidas nas normas constitucionais, referentes aos direitos sociais.

Não se pode deixar de referir que no preâmbulo da nossa Carta Magna – o qual, muito embora não faça parte do texto constitucional propriamente dito, é juridicamente relevante e serve de parâmetro inicial para o exercício da hermenêutica (interpretação) constitucional, possuindo, inclusive força normativa – se destaca a necessidade de o Estado democrático assegurar o bem-estar da Sociedade, sendo lógico que a saúde pública está inserida no bem-estar social.

Nesta linha, a Constituição Federal de 1988, enquanto constituição dirigente que é e adequada ao conceito de Estado democrático de direito, qualifica a saúde como direito social e fundamental do povo brasileiro, devendo-se se utilizar, para a interpretação das normas legais e a verificação da sua (in)constitucionalidade, o princípio da interpretação conforme a constituição, o qual decorre da natureza rígida das Constituições, da hierarquia das normas constitucionais e do caráter de unidade inerente ao ordenamento jurídico.

“A aplicação desse método parte, por conseguinte, da presunção de que toda a lei é constitucional, adotando-se ao mesmo passo o princípio de que em caso de dúvida a lei será interpretada ‘conforme a Constituição’. Deriva, outrossim, do emprego de tal método a consideração de que não se deve interpretar isoladamente uma norma constitucional, uma vez que do conteúdo geral da Constituição procedem princípios elementares da ordem constitucional, bem como decisões fundamentais do constituinte, que não podem ficar ignorados, cumprindo levá-los na devida conta por ensejo da operação interpretativa, de modo a fazer a regra que se vai interpretar adequada a esses princípios ou decisões. Daqui resulta que o intérprete não perderá de vista o fato de que a Constituição representa um todo ou uma unidade e, mais do que isso, um sistema de valor.”(4)

Isto é, “as leis e normas secundárias devem ser interpretadas, obrigatoriamente, em consonância com a Constituição. Dessa perspectiva, a interpretação conforme a Constituição configura uma subdivisão da interpretação sistemática”,(5) sendo que, no caso de duas interpretações possíveis de uma lei, há de se preferir aquela que se revele compatível com a Constituição, caso não se verifique compatibilidade, o reconhecimento da inconstitucionalidade, direta ou indiretamente, será a conseqüência lógica.

Tal entendimento tem sido endossado pelo Supremo Tribunal Federal, que utiliza a interpretação conforme a Constituição no seu processo decisório, consoante decisão prolatada em sede de Medida Cautelar nos autos da ADInMC 2.231-DF, em que o Ministro Néri da Silveira proferiu voto no sentido de dar ao texto interpretação conforme à Constituição Federal a fim de excluir de sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já postas em juízo.(6)

2 Conceito de saúde

O conceito de saúde e sua caracterização como direito tem fundamento mais remoto no valor supremo da dignidade humana, sendo, verdadeiramente, um dos aspectos mais importantes na valorização e proteção dos direitos humanos.

É de se referir que o valor supremo da dignidade humana é “concretizado pelo reconhecimento e positivação de direitos e garantias fundamentais”,(7) constituindo verdadeiro “valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais.”(8)

Tanto é assim que, quando foi criada a Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, ficou estabelecido que deveria ser elaborado um documento que expressasse claramente todos os direitos humanos, inclusive os sociais, sendo que em 1966 a Assembléia Geral da ONU aprovou o Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais que, nos termos da Resolução nº 543, item 6, emanada dessa Assembléia, permite concluir que, quando um indivíduo é privado de seus direitos econômicos, sociais e culturais, ele não caracteriza uma pessoa humana, sendo que pessoa humana vem definida pela Declaração dos Direitos do Homem como ideal de homem livre.

Do referido Pacto Internacional, que entrou em vigor em 03.01.1976, é possível inferir (itens 1 e 2) o conceito de saúde como sendo um conceito amplo, “abrangendo desde a típica face individual do direito subjetivo à assistência médica em caso de doença, até a constatação da necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento, personificada no direito a um nível de vida adequado à manutenção da dignidade humana.”(9)

3 A superação do caráter meramente programático do direito social à saúde

Dada a amplitude do conceito de saúde em nível internacional e sua previsão como direito social e fundamental na nossa Constituição de 1988, é de se afirmar que não se pode pretender atribuir caráter meramente programático à norma contida no artigo 196 da Constituição,(10) conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA.(11)

Não é mais possível, nos dias de hoje, enquadrar o direito à saúde no conceito de norma meramente programática, pois a norma constitucional contida no artigo 196 da Constituição Federal vigente, em leitura conjunta com o caput do artigo 6º, institui um dever correlato a um sujeito determinado: o Estado – que, por isso, tem a obrigação de satisfazer aquele direito. Se essa obrigação não é satisfeita, não se trata de programaticidade, mas de desrespeito ao direito, de descumprimento da norma e desrespeito pelo Estado do dever de primar pela realização de uma conduta voltada à distribuição justa e adequada dos bens sociais existentes ou não, pois são direitos prestacionais que devem ser postos à disposição do cidadão.

Por conta do exposto acima, enquadrar a norma constitucional que assegura o direito à saúde no conceito de programática é postura merecedora de crítica na exata medida em que assegurar constitucionalmente um direito, mas não delimitar ao Estado enquanto Poder Executivo as regras mínimas para sua efetivação, é o mesmo que não assegurar nada, com vênia pela simplicidade do raciocínio, mas é o único significado que se encontra para tal situação e que demonstra, ainda que minimamente, a indignação quanto a essa postura do Poder Executivo

4 O direito à saúde: natureza jurídica de direito subjetivo público e sua aplicabilidade imediata

A caracterização do direito à saúde como direito social e fundamental do cidadão e, via de conseqüência, como direito subjetivo público encontra sustentação no princípio basilar da universalidade da prestação, na medida em que “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (CF: art. 196), sendo de “relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica” (CF: art. 197).

“Não há dúvida da fundamentalidade do direito à saúde. Foi a Constituição de 1988 a primeira das nossas Cartas políticas a reconhecer explicitamente e assegurar este direito. É o segundo dos direitos sociais, logo após a educação. O artigo 196 da Carta de 1988 inscreve a saúde como ‘direito de todos e dever do Estado’. Este dever do Estado será garantido através de políticas sociais e econômicas, objetivando a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos para a sua promoção, proteção e recuperação.”(12)

Trata-se de um direito subjetivo das pessoas independentemente da sua judicialidade e exeqüibilidade imediatas. E sobre a necessária exeqüibilidade imediata dos direitos fundamentais do homem, vale referir crítica de Norberto Bobbio(13) no sentido da defasagem entre a teoria e a prática neste campo. Tal defasagem é ainda maior e mais intensa em relação aos direitos sociais, exemplificando que na Constituição Italiana as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de programáticas.

Bobbio(14) questiona: já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de ‘direito’?”

Assim, o direito à saúde, além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida, merecendo, portanto, a atenção e o zelo do Poder Público no sentido de que seja realmente efetivado através da adoção de condutas eficientes e adequadas a garantir resultados.

Não é possível, portanto, e pede-se vênia pelo impositivismo da afirmação, querer conceder mero caráter programático ao direito à saúde, pois se trata de um direito subjetivo público oponível ao Estado e nesta condição se encontra positivado na Constituição Federal de 1988, podendo e devendo ser executado pelos seus titulares, pois detêm dimensão subjetiva, não podendo ser considerados como simples imposições constitucionais, donde derivariam direitos reflexos para os cidadãos.

5 A atuação do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde: a figura do juiz constitucional

Todo o juiz é um juiz constitucional e por força dessa investidura é guardião da aplicabilidade direta e imediata do direito fundamental à saúde e das promessas democráticas plasmadas no texto constitucional, não sendo factível questionar-se a legitimidade ou competência do juiz para dirimir as questões atinentes à saúde, em especial aquelas que tratam do fornecimento de medicamentos não inclusos na lista RENAME.

O reconhecimento de que o juiz é um intérprete da constituição e que dela advém seu investimento e poder decisório é feito por Peter Häberle, quando afirma que “o juiz constitucional já não interpreta, no processo constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do processo; as formas de participação ampliam-se acentuadamente.”(15)

No tocante à aplicabilidade imediata do direito à saúde, tem-se que se trata de questão diretamente ligada à defasada teoria da programaticidade de algumas normas constitucionais. José Joaquim Canotilho afirma, de forma contundente, que, “marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da ‘morte’ das normas constitucionais programáticas”,(16) explicando que “às ‘normas programáticas’ é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político.”(17)

A aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, dentre eles do direito ao fornecimento de medicamentos não entregues pelo SUS aos cidadãos que deles necessitam, é conclusão lídima diante da evolução da teoria constitucional, não sendo possível desprezar os direitos fundamentais sob o argumento pífio e simplista da inexistência de positivação legal – até porque se a lei, quando existente e vigente, não se sobrepõe à Constituição, imagine-se uma lei que sequer exista? Até porque, caso existente, a lei deve sempre ser interpretada e aplicada conforme à Constituição.

Assim, ainda que ausente lei, cabe ao juiz promover a integração da norma constitucional ao caso concreto (teoria da concretização da constituição) e não se há de falar em ofensa à função precípua do Poder Legislativo, pois o magistrado de primeiro grau, que está próximo da demanda judicial, estará apenas suprindo omissões dos Poderes Legislativo e Executivo no tocante ao cumprimento e à concretização do direito à saúde.

A intervenção do Poder Judiciário na atividade administrativa (= executiva) do Poder Executivo e Legislativo não é indevida, pois não se vislumbra ofensa ao artigo 2º da Constituição, nem a ocorrência da substituição do Estado-administração pelo Poder Judiciário, pois “ao afirmar que os Poderes da União são independentes e harmônicos, o texto constitucional consagrou, respectivamente, as teorias da separação dos poderes e dos freios e contrapesos.”(18)

O Supremo Tribunal Federal, em decisão pertinente ao direito social à educação,(19) o que permite a sua aplicação analógica ao tema do direito social à saúde, decidiu, em breve resumo, que, embora seja inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.

Ressalta-se também que ao Judiciário, como poder autônomo e independente, cabe não só a administração da Justiça, mas a guarda da Constituição, com a finalidade de preservar os princípios e as garantias de um estado democrático de Direito, sem prejuízo do exercício do direito subjetivo de todo o cidadão de exigir da Administração o cumprimento de seus deveres.

“Também há, ainda, forte corrente no sentido de que a matéria exige prévia regulamentação legislativa (hoje, temos, além da Lei que regula o SUS (Lei nº 8.080/90), a de nº 8.142/90 e a Resolução nº 283/91; a Lei nº 9.313/96; e, na área estadual, a Lei Estadual nº 9.908/93, estas duas relativas a medicamentos), na linha do entendimento de que se cuida de direito que, por sua feição econômica, implica alocação de recursos materiais e humanos, sendo apenas o legislador o legitimado constitucionalmente para dispor sobre tal matéria, submetido a uma reserva do possível.”(20)

Ainda, “tal entendimento deve ser compatibilizado com o direito fundamental à vida. Há que se fazer uma ponderação entre estes direitos, porquanto tratam-se de situações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria – na maioria das vezes – o comprometimento irreversível de um bem da vida, essencial, como o é o da saúde.”(21)

A intervenção do Judiciário em questões administrativas é cabível apenas em áreas alheias à margem de discricionariedade do administrador, aquele legitimado ao juízo de oportunidade e conveniência quanto à atuação da Administração, em que se consideram os recursos disponíveis, normalmente escassos, e as inúmeras necessidades. Tais áreas de intervenção admissível são, justamente, as da competência vinculada, em que a conduta da Administração é ditada pelo ordenamento jurídico e pelas normas, regras ou princípios que o compõem.

Considerando que a vida e a saúde dos cidadãos são valores jurídicos tutelados pelo ordenamento, é de se concluir que atos tendentes a fragilizá-los ou vulnerá-los violam o sistema e extrapolam a discricionariedade. Assim, promover a devida e correta concretização desses direitos com adequação às normas constitucionais, através de determinações judiciais, são medidas que buscam corrigir desvio de conduta vinculada esperada da Administração.

Por conta de tudo isso, é perfeitamente defensável e imperiosa a concretização imediata do direito social à saúde, especificamente através da concessão de antecipações de tutela em sede de ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal para fornecimento de medicamentos não integrantes da lista RENAME e, portanto, não disponibilizados pelo SUS.

6 O fornecimento de medicamentos não inclusos na lista RENAME

A realidade brasileira nesta seara – concretização do direito à saúde – não é das melhores, sendo inúmeros os casos veiculados nos meios de comunicação acerca das mazelas sociais às quais são submetidos os cidadãos brasileiros, de modo que essas pessoas vêm bater às portas do Poder Judiciário como última esperança de ver atendidos seus pleitos.

Assim, a concretização do direito à saúde como conseqüência da aplicabilidade imediata das normas constitucionais a esse respeito, embora possa ser passível de crítica é o mais justo e adequado quando se tem a experiência viva de se ver e ouvir pessoas portadoras de graves doenças e que necessitam de medicamentos e, ao buscá-los junto aos Postos de Saúde municipais, encontram negativados os seus pedidos.

Tais pessoas precisam desses medicamentos para salvaguardar a sua vida, pois doenças como o mal de Wilson – distúrbio do metabolismo do cobre no organismo – é uma doença rara de origem genética que produz um defeito no metabolismo do cobre no organismo, sendo que, conforme consta do Anexo da Portaria do Ministério da Saúde nº 844/2002, sem tratamento a doença evolui para insuficiência hepática, doença neuropsiquiátrica, falência hepática e morte.

Com efeito, nos autos do processo nº 2004.72.01.002000-7, em trâmite perante o Juízo Federal Substituto da 4ª Vara Federal de Joinville-SC, tanto no inquérito civil que instrui a inicial, quanto nas alegações preliminares dos réus, restou demonstrado que o medicamento SYPRINE (TRIENTINE), de que necessita o paciente paradigma, não está incluído na relação oficial de medicamentos essenciais (RENAME) nem na relação de medicamentos especiais aprovados para a doença de Wilson, situação que justificou o deferimento da antecipação de tutela para que a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de Joinville fornecessem tal medicamento em cumprimento aos preceitos constitucionais.

A Constituição Federal de 1988 reuniu as políticas públicas de saúde, assistência e previdência social no capítulo da Seguridade Social, sendo que estabeleceu em seu art. 198 que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único (...).” Esse dispositivo restou regulamentado pela Lei nº 8.080/90, em cujo artigo 4º preceitua que “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).”

No art. 6º, inciso I, letra d, da referida Lei nº 8.080/90, verifica-se que se inclui no elenco dos objetivos e atribuições do SUS “I – a execução de ações: (...). d – de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”.

Já entre os princípios do SUS, previstos no art. 7º da Lei nº 8.080/90, consta do inciso II do referido dispositivo a “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.

Com a edição da Portaria GM nº 3.916, de 31.10.1998, foi aprovada a Política Nacional de Medicamentos, cujas ações “terão por objetivo implementar, no âmbito das três esferas do SUS, todas as atividades relacionadas à promoção do acesso da população aos medicamentos e seu uso racional.”

Nesse sentido foi instituído o Sistema Único de Saúde – SUS –, composto por uma rede de prestação de serviços regionalizada, que se organiza de acordo com as diretrizes da descentralização, em que se redefinem os papéis das três esferas de governo – União, Estados e Municípios – que, entre si, estabelecem novas relações. Agora, o poder público municipal assume plenamente o papel de gestor do sistema de saúde de sua cidade; e os poderes estadual e federal assumem novas responsabilidades específicas, cabendo à esfera estadual criar condições para que o município possa exercer a gestão nos seus limites territoriais ou exercer o papel de gestor nos municípios em que isso ainda não foi possível. À esfera federal cabe, além de incentivar a implementação dos SUS estaduais e municipais, normatizar e coordenar o sistema nacional.

Esse modelo de gestão do SUS representa importante instrumento para a concretização do objetivo de garantir à população uma atenção à saúde que tenha como fundamentos a universalidade, a eqüidade, a integralidade e um padrão mínimo de qualidade. A Constituição Federal, conforme disposto no art. 198, buscou justamente implementar racionalidade e objetividade, mediante a descentralização administrativa, sistema que encontra ressonância nas Leis nos 8.080/90 e 8.142/90.(22)

A respeito do fornecimento de medicamentos, destaca-se precedente do Superior Tribunal de Justiça em julgamento envolvendo paciente com bócio difuso tóxico com hipertiroidismo, o qual, com base no direito à vida e à saúde – dignidade humana –, na política do SUS que visa à integralidade da assistência à saúde e no dever constitucional do Estado de atender a todos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, manteve o deferimento dos medicamentos necessários ao tratamento da doença referida.(23)

Outra doença que teve o fornecimento de medicamento deferido através de medida judicial é a doença de Crohn, que se trata uma doença inflamatória intestinal de origem não conhecida e caracterizada pelo acometimento focal, assimétrico e transmural de qualquer parte do tubo digestivo. Suas manifestações clínicas mais comuns são dor abdominal e diarréia, formação de fístulas e sintomas obstrutivos intestinais. Não é uma doença clinicamente ou cirurgicamente curável e sua história natural é marcada por agudizações e remissões, consoante anexo da Portaria Ministerial nº 858/2002-MS, que aprovou o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Doença de Crohn, constando do esquema terapêutico o medicamento Infliximab.

Pois bem, no processo nº 2004.72.01.005735-3, também em trâmite perante o Juízo Federal Substituto da 4ª Vara Federal de Joinville, verificou-se que medicamento Infliximab (remicade®) está incluído na relação oficial da União de medicamentos excepcionais aprovados para a doença de Crohn (CID10: K50, K50.0, K50.1, K50.8 e K50.9) e para a artrite reumatóide (CID10: M05.0, M05.1, M05.2, M05.3, M05.8, M05.9, M06.0, M06.1, M06.2, M06.3, M06.4, M06.8 e M06.9), nos termos da Portaria Ministerial nº 1.318/2002. Contudo, não está previsto na lista oficial de medicamentos excepcionais do Estado de Santa Catarina, o que justificou a determinação judicial para o seu fornecimento.

Destaca-se que, nos autos acima referidos, o Estado de Santa Catarina alegou, em resumo, que esse medicamento está padronizado na Portaria Ministerial nº 1.318/2002, para Doença de Crohn, Artrite Reumatóide e outras artrites. Porém, não está padronizado no Programa de Medicamentos de dispensação excepcional do Estado, sendo que para essa patologia constam os medicamentos Azatioprina 50mg, Ciclosporina de 25,50 e 100 mg, Sulfassalazina 500mg, Mesalazina 500 mg. Por fim, informa que todos os pacientes acometidos da Doença de Crohn que apresentaram processo para o Programa de Medicamentos de dispensação excepcional na Diretoria estão sendo atendidos com os medicamentos padronizados e específicos do Protoloco, enquanto os pacientes portadores da Doença de Crohn com indicação para o uso de Infliximab 100 mg estão sendo atendidos por liminares judiciais.

Ora, se a própria normatização expedida pela União autoriza o uso do Infliximab e determina o seu fornecimento pelos Estados-membros, a negativa pelo Estado de Santa Catarina do fornecimento do medicamento não encontra respaldo fático ou jurídico, não procede sequer a alegação de que o medicamento tem alto custo, pois esse é o motivo para a existência da relação oficial dos medicamentos excepcionais, visto que são de alto custo, não podendo deles fazer uso a população de baixa renda, razão pela qual o Estado (gênero) através dos seus entes federativos tem o dever constitucional de fornecê-los.

São posturas públicas como essas que causam indignação, até porque, segundo o Parecer Técnico nº 103/2004/SCTIE/MS, para o co-financiamento do Programa de dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, o repasse de recursos federais no mês de agosto de 2004 para o Estado de Santa Catarina foi de R$ 2.291.688,30 (dois milhões, duzentos e noventa e um mil, seiscentos e oitenta e oito reais e trinta centavos), verba mais que suficiente para cumprir a promessa constitucional do direito à saúde e à vida.

Refere-se outro caso prático trazido a julgamento nos autos da ação civil pública nº 2004.72.01.006629-9, em trâmite perante a 4ª Vara Federal de Joinville, envolvendo a pretensão de responsabilizar solidariamente a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de Joinville a fornecer o medicamento antipsicótico amisulprida (socian®) aos portadores de quadro depressivo refratário ao uso dos medicamentos clorpromazina 25mg, 100mg, solução injetável 5mg e solução oral 40mg/ml e haloperidol 1mg, 5mg, solução injetável 5mg/ml e solução oral 2mg/ml, previstos na RENAME/2002.

Em tal ação decidiu-se que a negativa de fornecimento pelo Estado (União, Estado de Santa Catarina e Município de Joinville) do medicamento amisulprida (socian®) não encontra respaldo fático ou jurídico, não procedendo sequer a alegação de que o medicamento tem alto custo, pois não é esse o caso, faltando motivo para o Estado (gênero) através dos seus entes federativos não fornecê-los. É de causar indignação a postura do Estado de Santa Catarina, pois, segundo o já referido Parecer Técnico nº 112/2004/SCTIE/MS (fl. 51/53), o repasse de recursos federais no mês de julho de 2004 para o Estado de Santa Catarina foi de R$ 57.476,82 (cinqüenta e sete mil quatrocentos e setenta e seis reais e oitenta e dois centavos), contudo o Estado não dispensou nenhum medicamento, inclusive os previstos na RENAME/2002.

Ainda, nos mesmos autos, foi afirmado que, se há o repasse de verbas federais, tem a União o dever de fiscalizar se esses valores estão sendo destinados para o atendimento da população usuária do SUS, justificando-se a sua responsabilidade solidária, pois “nos artigos 9º e 16, III, a, da Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1999, a União está habilitada a atender à pretensão deduzida pelo autor [fornecimento do medicamento amisulprida (socian®)], pois, além de responsável pela direção do SUS, também tem atribuição de coordenar os sistemas de assistência de alta complexidade.”(24)

Resta, portanto, a imposição constitucional ao Poder Público, em todos os níveis da organização federativa, de forma solidária, de assegurar o direito à saúde a toda a população, o que implica a adoção de medidas que possibilitem o acesso universal e igualitário das pessoas a um sistema organizado que atenda às suas necessidades de assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

Conforme já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:

“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado Brasileiro – não pode converter-se em promessa institucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever por um gesto de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.”(25)

7 Os princípios da seletividade e da reserva do possível enquanto possíveis cláusulas restritivas ao fornecimento de medicamentos

Refere-se a possível limitação e restrição à concessão de medicamentos não inclusos na lista RENAME e, portanto, a restrição dos paradigmas constitucionais da dignidade humana e da igualdade pelos princípios da seletividade (que está previsto no artigo 194, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal de 1988) e da reserva do possível (este enquanto respaldo financeiro do Estado para realizar suas políticas sociais).

“A seletividade fornece o rol das contingências-necessidades objetos da relação jurídica de seguridade”,(26) contudo este rol, estabelecido pelo legislador infraconstitucional, não pode ultrapassar o limite da igualdade material, princípio de caráter geral, previsto no artigo 5º, caput, da mesma Carta Constitucional, pois, ao regular a Constituição, o legislador infraconstitucional não pode promover desigualdades sociais, já que a idéia é exatamente o contrário: busca da redução das desigualdades sociais e regionais e da marginalização.

O princípio da seletividade é utilizado pelos defensores da aplicação do preceito da reserva do possível enquanto limitador financeiro a favor do Estado quando pretender justificar a sua inoperância em termos de Estado Social.

Tais princípios não são malferidos pela justificativa de que haveria ingerência no orçamento público dos entes federados e também no sentido de que ficariam pacientes sem atendimento pelo SUS por conta do dispêndio de verbas com o fornecimento de medicamentos não inclusos na lista RENAME. Essa justificativa é falaciosa, pois é fato notório que as verbas gastas com publicidade institucional são, no mais das vezes, muitos maiores que as verbas destinadas à prestação eficaz do direito fundamental à saúde.

Sobre tal questão foi decidido, nos autos da ação civil pública nº 2004.72.01.005735-3, em trâmite perante a 4ª Vara Federal de Joinville, que não socorre à União e ao Estado de Santa Catarina a alegação de inexistência de previsão orçamentária, “pois consabido possuir várias fontes de receita e meios orçamentários de relocação de verbas. Também não lhe socorre a alegada prejudicialidade que a medida acarreta aos usuários que porventura necessitem dos serviços públicos de saúde.”(27)

O próprio Supremo Tribunal Federal(28) vem entendendo que a reserva do possível encontra limitação exata no princípio da dignidade da pessoa humana enquanto garantidor do mínimo existencial, não podendo o Estado, através do Poder Executivo ou do Legislativo, solapar direitos sociais constitucionalmente garantidos e que devem ser disponibilizados aos seus titulares, havendo a imperiosa necessidade de preservação em favor dos indivíduos da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial, o qual está diretamente ligado ao valor da dignidade humana.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.(29)

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”(30)

8 As liminares previstas na Lei da Ação Civil Pública: natureza jurídica. Possibilidade de concessão em face da irreversibilidade da medida. Operacionalização do direito concedido

Entende-se que as medidas liminares pleiteadas, apesar do nome jurídico atribuído pela Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347 de 1985, detêm natureza jurídica de antecipação de tutela, pois, ainda que fundadas na urgência, sua finalidade precípua é adiantar os efeitos da tutela de mérito, de sorte a propiciar sua imediata execução, objetivo que não se confunde com o da medida cautelar (assegurar o resultado útil do processo de conhecimento ou de execução ou, ainda, a viabilidade do direito afirmado pelo autor).

Ademais, as liminares previstas no art. 12 da Lei 7347/85 visam tutelar preventivamente o provável dano que venha a ocorrer, é tutela que pretende acautelar o futuro do processo. Porém, com as alterações do Código de Processo Civil em 1994 que culminaram, entre outras coisas, com a criação do instituto da tutela antecipada, resta claro que as denominadas liminares (medidas cautelares) ficaram adstritas àquelas expressamente previstas no Código de Processo Civil na parte do Processo Cautelar, deixando de existir, a meu ver, as cautelares inominadas.

No tocante à irreversibilidade das antecipações de tutela deferidas, entende-se que tal situação produzida no mundo dos fatos não tem o condão de obstar o deferimento da antecipação, pois se considera a preponderância do direito à vida enquanto consectário da dignidade da pessoa humana em relação ao princípio da indisponibilidade dos bens públicos – fundamento para alegação de dano irreparável ao erário.

Quanto à operacionalização do fornecimento do medicamento deferido em sede de antecipação de tutela, considera-se adequado que sejam definidas as regras pertinentes ao cumprimento da determinação judicial, para que não aleguem os sujeitos passivos da relação processual que não houve especificação de como proceder e, atribuindo uns aos outros a responsabilidade, façam perecer o direito do paciente substituído.

Nesses casos, tem-se por legal, conforme a Lei nº 8.080/90, e razoável, muito embora se reconheça a legitimidade passiva concorrente dos três entes federativos, determinar ao Município que viabilize o fornecimento da medicação deferida aos que dela necessitarem.

Fundamenta-se tal entendimento nos artigos 4º, 8º e 9º, incisos I, II e III, da Lei nº 8.080/90, bem como no artigo 18 da mesma lei que trata da competência de cada esfera federativa no SUS, em que consta no inciso I que compete ao Município executar os serviços públicos de saúde.(31)

Desse modo, afasta-se do bojo do processo em que são concedidos medicamentos negados pelo Estado (gênero) qualquer questão sobre custos do medicamento. Tais questões deverão ser discutidas pelos entes federativos na seara administrativa, sendo que entraves burocráticos não servirão de justificativa para descumprimento dessa ordem judicial.

9 Aspecto processual relevante: a legitimidade ativa do Ministério Público Federal nas ações civis públicas envolvendo o direito à saúde

Tem-se entendido que o direito à saúde, além de ser direito individual fundamental e indisponível por estar diretamente ligado ao direito à vida, é direito social (art. 6º da Constituição Federal), reconhecendo a doutrina, ainda, a existência do direito difuso à saúde pública.

Além disso, a partir da relevância social atribuída aos serviços de saúde no art. 197 da Constituição Federal, o Ministério Público tem legitimidade para o ajuizamento de ação individual ou coletiva que busque garantir a prestação do serviço nos moldes estabelecidos na Constituição, conforme art. 129, II e III, da Constituição Federal. E, na tutela coletiva da saúde pública, o Ministério Público pode referir e formular requerimentos em relação a situações individuais paradigmas, incluídas na tutela pretendida em relação ao tipo de serviço oferecido a todos, como é o caso dos autos em relação à paciente paradigma.

Nesse sentido, inúmeros são os julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal desta 4ª Região que assentam a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação coletiva que busca tutela do direito à saúde.(32) O próprio Supremo Tribunal Federal,(33) no voto do Relator, Ministro Celso de Mello, proferido no julgamento do agravo regimental no RE 273.834-4/RS, assenta a legitimidade do Ministério Público para buscar a tutela do direito à saúde, em face da relevância pública atribuída na Constituição Federal às ações e serviços de saúde.

Conclusões

1. A Constituição Federal de 1988 é uma constituição dirigente, que tem como primado o trabalho e como objetivos fundamentais o bem-estar e a justiça sociais.

2. A hermenêutica constitucional representa o marco fundamental para a interpretação da Constituição, sendo que através do princípio da interpetação conforme à Constituição chega-se à exata interpretação dos ordenamentos infraconstitucionais.

3. O princípio da interpretação conforme à Constituição tem suas bases firmadas pela doutrina e pela jurisprudência constitucional emitida pelo intérprete máximo da Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal.

4. Os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, dentre eles o direito à saúde, são direitos fundamentais de segunda geração e se caracterizam por outorgarem aos indivíduos direitos a prestações sociais estatais, dentre elas a previdência social.

5. O conceito de saúde é amplo e tem como pressuposto o valor supremo da dignidade humana.

6. O Estado tem o dever constitucional de garantir o mínimo existencial, o qual está representado pelos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição, estando obrigado a adimplir com este dever através de uma prestação positiva (concretização material).

7. Resta superado o conceito de norma programática atribuído ao direito à saúde.

8. O direito à saúde detém natureza jurídica de direito subjetivo público, com aplicabilidade imediata tanto pelo Poder Executivo nas três esferas governamentais, quanto pelo Poder Judiciário quando demandado para tanto.

9. Todo o juiz é um juiz constitucional investido desse poder e da função de guardião da Constituição, devendo atuar como intérprete e concretizador do direito fundamental à saúde.

10. É possível e constitucionalmente assegurado o fornecimento de medicamentos não inclusos na relação nacional de medicamentos especiais – RENAME pelo Poder Judiciário quando presente a omissão do Estado.

11. Os princípios da seletividade e da reserva do possível não podem ser utilizados como limitações dos paradigmas constitucionais da dignidade humana, da igualdade e do não-retrocesso social, de modo que não pode o Estado, através do Poder Executivo e do Legislativo, solapar direitos sociais constitucionalmente garantidos e que devem ser disponibilizados aos seus titulares.

12. Pelos casos práticos referidos neste trabalho, restam demonstradas na prática a inoperância e a omissão do Estado a justificar a atuação judicial, ainda que excepcional, no sentido de implementar as políticas públicas e sociais às quais está obrigado o Poder Executivo.

13. Essa omissão do Poder Executivo só contribui para aumentar as desigualdades sociais já existentes, em afronta ao princípio da igualdade, em nada contribuindo para a redução das desigualdades sociais.

14. É adequada a atuação do Poder Judiciário na direção do cumprimento do princípio da igualdade e da redução das desigualdades sociais tão acentuadas em nosso país, elevando os desiguais a patamares de igualdade com aqueles que já detêm o mínimo existencial, isto é, o mínimo para uma vida digna e justa.

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Anexos

Anexo I – A experiência prática vivenciada no âmbito dos processos distribuídos ao Juízo Federal Substituto da 4ª Vara Federal de Joinville/SC

Desde o ano de 2003 foram distribuídas ao Juízo Federal Substituto da 4ª Vara Federal de Joinville cinco ações civis públicas e uma ação ordinária envolvendo o fornecimento de medicamentos e tratamento médico, sendo que em todas as ações foi deferida, parcial ou integralmente, a tutela antecipada requerida.

Nos autos da ação civil pública nº 2004.72.01.005735-3 (doença de Crohn) e da ação ordinária nº 2005.72.01.004381-4 (psoríase) já foram proferidas sentenças, com julgamento de parcial procedência do pedido. Em ambos, como condenação principal, foi determinado ao Estado (gênero) o fornecimento do medicamento requerido pelo autor (Ministério Público Federal na ação civil pública e particular na ação ordinária), o qual, coincidentemente, era o mesmo medicamento: Infliximab (remicade®).

Na ação civil pública nº 2004.72.01.006629-9 a doença do paradigma a ser atendido era depressão, sendo que tal quadro depressivo era refratário ao tratamento disponível no SUS, necessitando dos medicamentos FRONTAL 1mg, SOCIAN 50mg e REMERON 15mg, os quais tiveram sua dispensação negada pelo Estado. Na antecipação de tutela foi deferido apenas o fornecimento do medicamento antipsicótico amisulprida (socian®), uma vez que, (a) para o antidepressivo mirtazapina 15mg (remeron®), foram testados esquemas terapêuticos envolvendo apenas o uso de Fluoxetina e de Amitriptilina, enquanto que a RENAME/2002 prevê a dispensação do clomipramina 10mg e 25mg, carbonato de lítio 300mg e nortriptilina 10mg e 50mg e, (b) para o ansiolítico Alprazolam 1mg (frontal®), foi testado esquema terapêutico envolvendo apenas o próprio frontal®, contudo a RENAME/2002 prevê a dispensação do diazepam 2mg, 5mg e solução injetável 5mg/ml, clomipramina 10mg e 25 mg, midazolam 15mg, solução injetável 5mg/ml e solução oral 2mg/ml e prometazina 25mg.

Nos autos do processo nº 2004.72.01.002000-7 deferiu-se a antecipação de tutela para o fornecimento do medicamento SYPRINE (TRIENTINE), de que necessitava o paciente paradigma, o qual não está incluído na relação oficial de medicamentos essenciais (RENAME) nem na relação de medicamentos especiais aprovados para a doença de Wilson.

Já nos autos nº 2003.72.01.005772-5 foi decidido pelo deferimento do medicamento gabapentina (neurotin®) 300 mg à paciente paradigma portadora de neuropatia lombosacral (transtorno de discos intervertebrais, mais especificamente de discos lombares e/ou de discos intervertebrais com radiculopatia, ocasionando o comprometimento osteomuscular do seu portador, conforme consta do CID 10 M 51.1.).

Por fim, na ação civil pública nº 2006.72.01.001895-2, o Ministério Público Federal pleiteou proteção para as pessoas portadoras de doenças oftalmológicas. Neste processo, foi deferida parcialmente a tutela antecipada, tão somente para obrigar a União, o Estado de Santa Catarina e o Município de Joinville a realizar os exames de retinografia e angiofluorocenografia para os casos paradigmas e para os portadores das doenças oftalmológicas que deles necessitarem. Peculiaridade processual a ser destacada é que foi reconhecida a conexão do pedido inicial formulado nesta ação com o pedido constante dos autos da ação civil pública nº 2005.72.01.004473-9 em tramite perante a 2ª Vara Federal da subseção de Joinville.

Apenas na ação civil pública nº 2004.72.01.002000-7 foi interposto recurso de agravo de instrumento nº 2004.04.01.038643-3/SC perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sendo atribuído apenas efeito devolutivo ao recurso, mantendo-se a decisão de primeiro grau pelos seus próprios fundamentos.

Anexo II – Jurisprudência dos Tribunais pátrios

Impende destacar algumas ementas de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do fornecimento de medicamentos e do atendimento eficaz e eficiente do direito à saúde:

“Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Fornecimento de medicamentos a paciente hipossuficiente. Obrigação do Estado. Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita. Obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.”(34)

“Agravo Regimental em recurso extraordinário. Distribuição de medicamentos especiais ou excepcionais a pessoas carentes. Lei nº 9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, e acordo firmado na comissão intergestores bipartite – CIB. Reexame de cláusulas. Impossibilidade. 1. Programa de distribuição de medicamentos especiais ou excepcionais a pessoas carentes. Lei nº 9.908/96, do Estado do Rio Grande do Sul. Ofensa ao artigo 196 da Carta Federal. Alegação improcedente. Precedentes. 2. Acordo firmado na Comissão de Intergestores Bipartite – CIB. Reexame de cláusulas firmadas entre as partes no que concerne à reserva de atribuições para operacionalização dos recursos financeiros. Impossibilidade. Ofensa ao princípio federativo da separação dos poderes. Inexistência. Hipótese que trata de divisão de funções com vistas à execução dos encargos cometidos por lei ao Estado. Agravo regimental não provido.”(35)

“Paciente com HIV/AIDS – Pessoa destituída de recursos financeiros – direito à vida e à saúde – fornecimento gratuito de medicamentos – dever constitucional do Poder Público (CF, arts. 5º, caput, e 196) – Precedentes (STF) – Recurso de Agravo improvido. Direito à saúde representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.”(36)

O Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente decidindo pela legitimidade ativa do Ministério Público Federal para ajuizar ações civis públicas na defesa do direito à saúde, tendo afirmado que “a ação civil pública é o meio adequado para resguardar interesse individual de menor que necessita de tratamento médico. Precedente da Primeira Seção. Recurso especial provido para reconhecer a legitimidade do Ministério Público, bem como reconhecer a ação civil pública como meio adequado para pleitear a tutela dos direitos individuais indisponíveis à saúde e à vida e determinar o prosseguimento da referida ação.”(37)

No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça afirmou que “constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde de pessoa carente, especialmente quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar, prematuramente, a sua morte.”(38)

Na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, são inúmeros os julgados no sentido da autorização constitucional para o fornecimento de medicamentos não inclusos na relação nacional de medicamentos especiais – RENAME, demonstrando que a orientação da jurisprudência regional não destoa da dos tribunais superiores:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO DE SAÚDE.
- Havendo previsão constitucional (art. 196) no sentido de considerar a saúde um dever do Estado e considerando a patologia de que é portadora a paciente Telma de Fátima Panka, resta presente a verossimilhança das alegações a amparar o deferimento de pedido de antecipação de tutela, além do evidente risco de dano irreparável ou de difícil reparação.”(39)

“AGRAVO REGIMENTAL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. UNIÃO.
1. ‘O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.’ (STF - AGRRE 271286 - 2ª T. - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 24.11.2000 - p. 00101) (...)”(40)

“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. SUS. PRECEDENTES.
1. O artigo 196 da Constituição Federal, ao dizer que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’, obriga o Poder Público, entre outras ações, à assistência farmacêutica a quem não tem condições de arcar com o custo da medicação necessária à cura ou ao controle da doença da qual é portador.
- A Lei n° 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, não deixa margens a qualquer dúvida, pois, em seu artigo 6°, inciso I, alínea d, arrolou no campo de ação do Sistema Único de Saúde (SUS) a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica. Não poderia ser diferente, já que é notório o alto custo das substâncias imprescindíveis ao tratamento de certas doenças, assim como as dificuldades financeiras que grande parte da população enfrenta ao deparar-se com problemas de saúde.
- Consabido que o Estado não pode arcar com o tratamento de saúde de todos os seus súditos, é razoável que o amparo farmacêutico alcance os que revelem ausência de recursos, como ocorre com a Sra. Sirley Alves de Medeiros (fls. 24/25).
- Importante frisar que o preço do medicamento, na faixa de R$ 44,36 no caso, não exime os réus de prestar a devida assistência, haja vista a notória carência financeira de parte da população e o impacto inegável que o uso contínuo de remédios como o em discussão causa no orçamento familiar das pessoas de baixa renda.
- Ademais, a indispensabilidade e necessidade do medicamento ‘Ritmonorm’ para o tratamento da Sra. Sirley decorre da sua indicação por três diferentes médicos do Sistema Único de Saúde (fls. 25/26 e 43). A receita de fl. 25 atesta, inclusive, que a paciente ‘necessita fazer uso crônico do medicamento’.
- Neste contexto, cai por terra a alegação do Estado de Santa Catarina de que seria possível a utilização de medicamentos similares, dispensados em Centros de Saúde através do Programa Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica.
- Os profissionais que examinaram a paciente e decidiram pelo remédio ‘Ritmonorm’ são vinculados ao Sistema Único de Saúde e têm, por isso, conhecimento da relação de medicamentos fornecidos gratuitamente pelo Estado. Deste modo, se fosse possível a utilização de medicação similar, o remédio ‘Ritmonorm’ não teria sido receitado.
- De qualquer modo, a jurisprudência tem entendido que a não-inclusão do medicamento em lista prévia não tem o condão de obstar o seu fornecimento, em prestígio ao direito à vida e à saúde, que sempre devem ser colocados em primeiro lugar.
'Processo. AgRg na STA 83/ MG ; AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE
TUTELA ANTECIPADA. 2004/0063271-1. Relator(a). Ministro EDSON VIDIGAL (1074). Órgão Julgador. CE - CORTE ESPECIAL. Data do Julgamento 25.10.2004. Data da Publicação/Fonte. DJ 06.12.2004 p. 172.
Ementa PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO GRATUITA. DEVER DO ESTADO. AGRAVO REGIMENTAL.
1. Consoante expressa determinação constitucional, é dever do Estado garantir, mediante a implantação de políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário à saúde, bem como os serviços e medidas necessários à sua promoção, proteção e recuperação (CF/88, art. 196).
2. O não-preenchimento de mera formalidade – no caso, inclusão de medicamento em lista prévia – não pode, por si só, obstaculizar o fornecimento gratuito de medicação a portador de moléstia gravíssima, se comprovada a respectiva necessidade e receitada, aquela, por médico para tanto capacitado. Precedentes desta Corte.
3. Concedida tutela antecipada no sentido de, considerando a gravidade da doença enfocada, impor, ao Estado, apenas o cumprimento de obrigação que a própria Constituição Federal lhe reserva, não se evidencia plausível a alegação de que o cumprimento da decisão poderia inviabilizar a execução dos serviços públicos.
4. Agravo Regimental não provido.
De outra banda, a extensão do fornecimento do remédio em questão a um número indeterminado de pessoas, mesmo que num espaço territorial determinado, consiste em decisão de nítido cunho normativo, já que estabelece regra geral de conduta dos órgãos públicos para casos futuros e indeterminados, em clara substituição à tarefa legislativa e ao poder regulamentar do Executivo; especialmente no presente caso, em que há o fornecimento gratuito de medicamentos similares que, embora inadequados para a paciente Sirley, podem ser suficientes ao tratamento de outras pessoas com a mesma moléstia.
2. Improvimento das apelações e da remessa oficial.”(41)

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.

1 - Pertinentemente à impossibilidade de medida que esgote o objeto da ação, o regramento relaciona-se com sua irreversibilidade, o qual – assevere-se – foi reproduzido no § 2º do art. 273 do CPC. Tal regramento, de olhos postos na situação fática, deve ser relativizado, sob pena de obstaculização, em situações de urgência e necessidade, à concessão do provimento antecipatório.

2 - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196).

3 - O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode se mostrar indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.”(42)

Notas:

1. GALBRATH, John Kenneth. A sociedade justa: uma perspectiva humana. 7.ed. Tradução de Ivo Koytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1996. p.25.

2. STRECK, Lênio Luiz. A Concretização de direitos e a validade da tese da constituição dirigente em países de modernidade tardia. Caderno de direito constitucional – 2006. Escola da Magistratura. Cursos de Currículo Permanente. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. p. 31.

3. TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição dirigente e o direito regulatório do estado social: o direito sanitário. Artigo publicado na obra Direito Sanitário e Saúde Pública v. 1: coletânea de textos – Série E. Legislação de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. p.22.

4. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.474.

5. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 231.

6. Supremo Tribunal Federal, ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, julgado na sessão do dia 05.12.2001, noticiado no Informativo do Supremo Tribunal Federal de nº 253, sob o título: ADPF: Controle Concentrado.

7. ANDRADE, J.C. Vieira apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 97.

8. FARIAS, E. Pereira de apud SARLET, op. cit., p. 98.

9. DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. Artigo publicado na obra Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1: coletânea de textos – Série E. Legislação de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p.48.

10. Constituição Federal: Art. 196. Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

11. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 150.

12. TESSLER, Marga Inge Barth. O direito à saúde: A saúde como direito e como dever na Constituição Federal de 1988. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, a. 12, n. 40, p. 78.

13. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 77.

14. BOBBIO, op. cit., p. 78

15. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997 – reimpressão 2002. p. 41.

16. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. (2ª reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003. p. 1.176.

17. CANOTILHO, op. cit. p. 1176-1177.

18. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 137.

19. STF, RE n. 436.996/SP, Decisão monocrática do Min. Celso de Mello, DJU: 07.11.2005, confirmada pela respectiva Turma no julgamento do Agravo Regimental em 20.11.2005.

20. KRÄMER, Ana Cristina. O poder judiciário e as ações na área da saúde. Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre, n. 15, maio 2006. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm. Acesso em: 17 dez. 2006.

21. KRÄMER, op. cit.

22. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, AC n. 2000.04.01.028702-4, rel. Des. Edgar Lippmann, in RTRF 4ª. Região 47/110-123.

23. STJ, REsp nº 200400164910/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 23.08.2004.

24. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, 3ª Turma, Agravo de Instrumento nº 2003.04.01.0387550-RS, Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, DJU: 17.12.2003, p. 350.

25. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 267.612/RS, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ 23.08.2000.

26. SANTOS, Marisa Ferreira. O princípio da seletividade das prestações de seguridade social. São Paulo: LTr, 2004. p.215.

27. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, AG nº 200304010505363/RS, 4ª Turma, Rel. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, DJU 31.05.2004.

28. Supremo Tribunal Federal, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-DF, rel. Ministro Celso de Mello, DJU: 04.05.2004.

29. STF, ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004.

30. STF, idem.

31. “Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
(...)
Art. 8º As ações e serviços de saúde, executados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente.
(...)
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:

I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
(...)
Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:

I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde; (...)”

32. STJ, 6ª T., REsp 1998.00422595/PE, Rel. Min. Vicente Leal, DJU 1º.07.2002, p. 410; e TRF4R, 3ª T., AI 2003.04.01.041369-9/SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJU 21.01.2004.

33. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no RE 273.834-4/RS, Rel. Ministro Celso de Mello.

34. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. AI-AgR n. 604949/RS, relator Min. Eros Roberto Grau, DJ: 24.11.2006, p. 086.

35. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. RE-AgR n. 257.109/RS, relator Min. Maurício Corrêa, DJ: 07.12.2000, p. 020.

36. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma, RE-AgR n. 271286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ: 24.11.2000, p. 101.

37. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma, REsp 750409-RS, Rel. Ministro Humberto Martins, DJ: 11.12.2006, p. 339.

38. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma, REsp 837591-RS, Rel. Ministro José Delgado, DJ: 11.09.2006, p. 233.

39. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Quarta Turma, AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 200604000053043-PR, Rel. Des. Federal EDGARD ANTONIO LIPPMANN JÚNIOR, DJU DATA:11.10.2006, p. 998.

40. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Primeira Turma Suplementar, AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 200504010523260-SC, Rel. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva, DJU: 06.09.2006, p. 848.

41. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Terceira Turma, AC nº 200572000066386-SC, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thopson Flores Lenz, DJU: 23.08.2006, p. 1159.

42. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Primeira Turma Suplementar, AG n. 200504010372955-RS, Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, DJU: 14.06.2006, p. 483.

Referência bibliográfica: (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2007. Disponível em:
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